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ADVOCACIA PÚBLICA E POLÍTICAS PÚBLICAS EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR Professor da Faculdade de Direito do Recife Mestre e Doutor pela UFPE Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região SUMÁRIO: 1. Políticas públicas: uma exigência do Estado constitucional. 2. A advocacia pública como instituição essencial ao Estado democrático de Direito. 3. Advocacia pública versus políticas públicas. 4. Uma síntese conclusiva. 1. POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA EXIGÊNCIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL. O movimento constitucionalista, o qual teve um ponto especial de destaque com a Revolução de 1789, teve por objetivo principal limitar o poder político, tal qual exercitado no Estado absolutista, mediante sua concentração na monarquia e na nobreza. Por isso, as primeiras constituições depositaram na lei, elaborada mediante a intervenção de representantes populares, reunidos em assembleias, cuja maioria dos integrantes emanava da burguesia, a custódia de sua liberdade. O seu caráter genérico seria, por sua vez, responsável por assegurar a igualdade dos cidadãos, o que se reforçava a partir da substituição dos privilégios de classes (direitos feudais) pela igualdade de estatuto jurídico. Houve, sem dúvida, a consagração de direitos fundamentais, mas limitados à garantia da liberdade individual e à da propriedade, incluindo-se nesta a proteção à liberdade de iniciativa. Ao depois de uma centúria e meia, mais especificadamente com o término da Segunda Guerra Mundial, emerge o constitucionalismo do Estado social e democrático de Direito, a reclamar não somente a existência de uma constituição escrita. Ao mesmo tempo, passa-se a mostrar imperiosa, para a configuração desse arquétipo, a previsão, no texto magno, de uma ordem de valores. Tanto é assim que, ao aludir à concepção de Constituição democrática, Peter Häberle 1 aponta que, no seu conteúdo, haverão de estar presentes algumas elementares, a saber: a) a dignidade da pessoa humana; b) o princípio da soberania popular; c) a existência de pacto que contenha a formulação de objetivos e valores de orientação, possíveis e necessários; d) o princípio da divisão de poderes; e) o Estado de Direito e o Estado social de Direito. Isso faz com que, por força duma evolução paulatina 2 , os direitos fundamentais não mais ficassem restritos ao elenco constante dos primórdios do constitucionalismo e 1 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Madri: Editorial Tecnos, 2000, p. 33-34. Tradução de Emilio Mikunda. 2 Como aponta Häberle noutro escrito (Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madri: Minima Trotta, p. 51-53. Versão para o espanhol por Ignacio Gutiérrez Gutiérrez), as declarações de direitos constantes, dentre outras, das Constituições francesas de 1793, 1795, 1830 e 1848, da Constituição belga de 1831 e da Constituição prussiana de 1849, consistiram 2 que teve o parâmetro de referência na Declaração de 26 de agosto de 1789. Lançaram- se, assim, os textos sobranceiros mais recentes à prática de aderir à consagração de direitos, denominados com mais assiduidade de sociais, e que representam anseios de tutela dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural. Daí que o status de cidadão não mais restou assegurado unicamente com a consagração de direitos fundamentais de defesa, tais como o de não ser punido com pena restritiva de liberdade senão pela prática de crime ou delito tipificado em lei, mas se deslocou para a exigência de satisfação de utilidades inerentes à educação, saúde, seguridade social, meio ambiente, entre outros. Diante disso, as constituições promulgadas a contar da segunda metade do século pretérito passaram a se notabilizar pelo elemento teleológico, traçando objetivos a serem atendidos pela ação do Poder Público. A Assembleia Constituinte da qual resultou a Constituição vigente, como sempre acontece, não poderia desprezar o ideário então prevalecente. Tanto foi assim que o seu art. 3º dispôs: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”3. Em complemento, o texto vigente descortina, em muitas passagens, a partir do seu art. 5º, a disciplina de inúmeros direitos fundamentais 4 . Preservando a nota identificadora das constituições dirigentes, o documento de 1988 estipula, ao versar sobre o tema, as diretrizes a serem observadas pelo legislador (guidelines). À guisa de exemplo, o art. 208, I a VII, da Lei Maior, que, em se relacionando com a efetivação do dever do Estado com a educação, baliza – e muito – a política educacional a ser traçada pela via legislativa, a qual, dentre outros pontos, não poderá deixar de prever atendimento especial aos portadores de deficiência, bem assim programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. A concretização dos novos direitos pressupõe a execução do que, na atualidade, tem-se convencionado de política pública, e, no dizer de Fábio Konder Comparato 5 , em experiências destinadas a completar, ultrapassar e também corrigir o texto clássico da Declaração de 1789. 3 De forma semelhante, o art. 9º, alíneas a a h, da Constituição da República Portuguesa, ao enunciar as tarefas fundamentais do Estado. 4 Digna de nota se mostra a técnica perfilhada pela Lei Fundamental de Bonn de 1949, na qual se fundem, num mesmo preceito, a menção a um objetivo primordial e, em contrapartida, um conjunto de direitos fundamentais correspondentes. Tal se contém na cláusula que declara a República Federal da Alemanha como um Estado federal, democrático e social (art. 20.1), a qual, segundo Ernest Benda (El Estado social de Derecho. Tradução: Antonio López Pina. In Manual de derecho constitucional. Madri: Marcial Pons, 1996, p. 521.), explicita uma adesão ao Estado social de importância decisiva na interpretação da Constituição, impondo aos poderes públicos o encargo de realizar tal objetivo. Daí a possibilidade também de extrair-se o reconhecimento de direitos que resultem de injunção de tal modelo de Estado, o que compete à atividade interpretativa do Tribunal Constitucional, uma vez que tal documento praticamente é omisso em traçar um rol de direitos sociais. 5 Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, ano 35, n. 138, p. 44-45, abril/junho de 1998. Desperta curiosidade a circunstância do autor em utilizar, 3 assim se impõe justamente porque versa sobre realidade que, antes da Revolução Industrial, não portava importância, uma vez se referir ao estabelecimento de meta ou finalidade coletiva. Não se configura nem como norma nem como ato, mas como um programa de ação, englobando aqueles. Portanto, na visão do autor, a política pública constitui um conjunto de normas e atos, unificado pela sua finalidade. De forma não distinta, Cristiane Derani 6 deixa claro que a política pública, emergindo a partir de uma construção normativa, ocorre no interior do Estado e pressupõe três momentos. O primeiro deles é a decisão estatal – que, quase sempre, advémcom a presença de uma norma constitucional – passando, em seguida, à alteração institucional no âmbito da Administração, a qual resulta de lei, para viabilizar a consecução daquela. Em seguida, vêm ações propriamente ditas, consistentes no exercício da função administrativa que, em obediência à finalidade constitucional, disciplinada em sede legal, procuram materializar, em concreto, os anseios políticos definidos pelo constituinte 7 . como ponto de partida, lição de Ronald Dworkin, ao distinguir entre normas, princípios e diretrizes políticas, considerando como estas o “tipo de standard que propõe um objetivo que tem de ser alcançado; geralmente, uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade” (tipo de estándar que propone un objetivo que ha de ser alcanzado; generalmente, una mejora en algún rasgo econômico, político o social de la comunidad. Los derechos en serio. 3ª reimpressão. Barcelona: Ariel, 1997, p. 72. Versão para o espanhol por Marta Guastavino). Isso porque referido autor tem seu parâmetro no constitucionalismo inglês, o qual, além de não possuir uma constituição escrita em formato de documento único, também não possui, salvo a fissura recente do Human Rigths Act de 1998, uma nítida distinção entre norma constitucional e legal, o que é uma decorrência da supremacia parlamentar. Igualmente, dentre as várias declarações de direitos que integram seu regramento constitucional, não se vislumbra referência a normas de direitos sociais, conforme se pode vislumbrar da doutrina. Consultar, a esse respeito, Enrique Alcaraz Varo (El inglés jurídico. 6ª ed. Barcelona: Ariel, 2007, p. 9-10). A própria Convenção Europeia de Direito Humanos, recentemente incorporada ao ordenamento inglês, não consagra no seu rol de direitos (art. 2º a 14), normas que consagram direitos sociais. 6 Política pública e norma política. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n. 41, p. 22-24, 2004. Interessante, no particular, a leitura das palavras da autora: “Portanto, políticas públicas são concretizações específicas de normas políticas, focadas em determinados objetivos concretos. A norma política é o início de uma política porque ela já anunciará o quê, como e para quê fazer. Política pública usa de instrumentos jurídicos para finalidades políticas, isto é, toma os preceitos normativos para a realização de ações voltadas àqueles objetivos que se reconhecem como necessários para a construção do bem-estar. A realização de políticas públicas pelo Estado, concretizando preceitos constitucionais, perfaz o cumprimento de um dever. Da mesma forma que compete ao Estado a ação normativa especificando as normas políticas constitucionais, a ele também se impõe a ação executiva” (Loc. cit., p. 23-24). 7 À guisa de ilustração, observe-se que a Constituição de 1988 não poupou, seja no singular quanto no plural, referências ao termo “política”, afetando-lhe o significado de programa de ação governamental. Basta que, numa leitura passageira do texto da Lei Maior, observem-se os artigos: a) 22, IX, atribuindo competência à União para legislar sobre as diretrizes da política nacional de transportes; b) 23, XII, estatuindo a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito; c) 39, caput, contemplando a instituição, pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de conselho de política de administração e de remuneração de pessoal; d) 165, §2º, parte final, segundo o qual a lei orçamentária estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento; e) 182, caput, §1º, inserto no Capítulo II (Da Política Urbana) do Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira), ao ditar que a política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público municipal terá suas diretrizes gerais fixadas em lei federal, sendo seu instrumento básico o plano diretor; f) o 187, caput, §2º, inserto também no Capítulo III (Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária) do Título VII, ao prever que a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva dos setores de produção, comercialização, armazenamento e de transportes, de acordo com as diretrizes indicadas nos seus incisos I a VIII, será compatibilizada com as ações de política agrícola e reforma agrária; g) 188, 4 Daí se segue que a definição e a execução de políticas estão afetadas aos segmentos normativos (constituinte ou legislativo) e administrativos do Estado. O Judiciário não participa de tais tarefas. Cabe-lhe, porém, fiscalizar o seu desenrolar, a fim de verificar a sua conformidade com a Constituição. Feito esse intróito, cabe-nos aqui descortinar o papel que a Advocacia Pública exerce no campo das políticas públicas, o que será tratado a partir da configuração institucional de tal setor integrante da Administração Pública. 2. A ADVOCACIA PÚBLICA COMO INSTITUIÇÃO ESSENCIAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO. Quebrando tradição iniciada desde 1824, a Constituição de 16 de julho de 1934, cuja técnica de redação parece ter se guiado pelo caráter analítico, notabilizou-se por não se restringir, quando do tratamento do Poder Executivo, à definição do modo de investidura, prerrogativas, deveres e responsabilidade do Presidente da República. Foi além, pretendendo fixar as diretrizes de outros setores componentes do Executivo, mais precisamente quanto à Administração Pública. Assim, tratou dos Ministros de Estado (Título I, Capítulo I, Seção IV, arts. 59 a 62), dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais (Título I, Capítulo VI, Seção III, arts. 95 a 98) e dos funcionários públicos (Título VIII). Esse modelo persistiu, com algumas modificações, com a Constituição de 10 de novembro de 1937, na qual mereceu destaque a disciplina do Conselho Federal (arts. 50 a 56), do Conselho da Economia Nacional (arts. 57 a 63), dos Ministros de Estado (arts. 88 e 89), dos funcionários públicos (arts. 156 a 159) e dos militares de terra e mar (arts. 160). Pouca mudança se verificou nas Constituições de 1946 e de 1967-69, tendo estas se ocupado do tratamento dos Ministros de Estado (Título I, Capítulo III, Seção IV, arts. 90 a 93; e Título I, Capítulo VII, Seção IV, arts. 84 e 85), das Forças Armadas (Título VII, arts. 177 a 183; e Título I, Capítulo VII, Seção VI, arts. 90 a 93) e dos funcionários públicos (Título VIII, arts. 184 a 194; e Título I, Capítulo VII. Seção VIII, arts. 97 a 111). A Constituição vigente, sem sombra de dúvidas, a mais extensa e detalhista de nossas experiências constitucionais, lançou-se – na verdade, com uma acentuada inspiração centralizadora - a uma sólida disciplina da Administração Pública (arts. 37 a 43) no Título III, relativo à organização do Estado. Por ocasião da organização dos poderes, de que se ocupou o Título IV, destinado à estrutura dos poderes, inseriu um Capítulo IV, logo após o regramento do Poder Judiciário, e o dedicou às funções essenciais à justiça. Nestas, inseriu, em três seções, caput, ao prescrever que a destinação das terras públicas e devolutas compatibilizar-se-á com a política agrícola; h) 196, caput, proclamando que a saúde é direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas; i) 200, IV, ao frisar competir ao sistema único de saúde participar da formulação dapolítica e da execução das ações de saneamento básico; j) 204, II, ao consignar a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; l) 50 do ADCT, de acordo com o qual lei, a ser promulgada dentro de um ano, definirá os instrumentos de política agrícola. 5 normas sobre o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia e a Defensoria Pública 8 . À Advocacia Pública, reservou dois artigos, sendo o primeiro deles voltado à Advocacia-Geral da União, o qual, sendo um dos poucos a portar sua redação original, dispõe: “Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo- lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. §1º A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre escolha pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. §2º O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos. §3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei”. De logo, vislumbra-se que aos integrantes da Advocacia-Geral da União toca a representação, judicial e extrajudicial, da União e dos entes públicos integrantes da Administração Federal, bem assim exercer, em apoio aos gestores de tais entidades, função de consultoria e assessoramento jurídico. A estrutura e atribuições da Advocacia-Geral da União tiveram sua disciplina com a Lei Complementar 73, de 10-02-93, sendo objeto de realce, dentre outros aspectos, os inerentes ao Advogado-Geral da União (art. 4º, I a XIX) 9 . Da mesma forma, foi regulada a atividade de representação judicial mediante as procuradorias da União (art. 9º) e a de natureza consultiva, esta a cargo das consultorias jurídicas da União (arts. 10 e 11). No particular das controvérsias de natureza fiscal, atribuiu-se à Procuradoria da Fazenda Nacional a legitimidade para representar a União em juízo ou fora dele. No que concerne aos Estados e ao Distrito Federal, o art. 132 da Lei Maior de 1988, com a redação da EC 19/98, menciona a existência de procuradorias, organizadas em carreira, nos termos de lei própria, às quais competirá a representação judicial e a consultoria das correspondentes unidades federadas 10 . Diz o preceito que os seus 8 Em estudo sobre o assunto, Cláudio Grande Júnior (Advocacia pública: estudo classificatório de direito comparado. Revista da Procuradoria-Geral do Estado, v. 31, n. 66, p. 184 e 192-206, jul./dez. de 20007) alude que o conjunto formado por Ministério Público (advogado da sociedade), pela Defensoria Pública (advocacia dos necessitados) e Advocacia de Estado deve ser visto como integrante do segmento Advocacia Pública em sentido amplo. Ao depois, ocupa-se, em linhas gerais, da organização da Advocacia Pública em sistemas jurídicos integrantes das famílias do extremo Oriente, da common law, socialista e romano-germânica. A partir de tal descrição, remata que, na verdade, há dois grandes modelos de estruturação da Advocacia Pública. O primeiro é o unitário, no qual uma única instituição exerce as funções de advocacia estatal e de advocacia da sociedade e um segundo, de feição dualista, onde tais funções são confiadas a instituições distintas. Este último se aproxima ao do direito pátrio, a contar da Constituição em vigor. 9 Uma visão panorâmica e, sobremodo, didática, da estrutura organizacional da Advocacia-Geral da União se tem na pena de Ronaldo Jorge Araújo Júnior (A advocacia pública consultiva federal e a sustentabilidade jurídico-constitucional das políticas públicas: dimensões, obstáculos e oportunidades na atuação da Advocacia-Geral da União. Revista da AGU, ano VIII, nº 19, p. 12-21, jan./mar. de 2009). 10 O art. 69 do ADCT permitiu que os Estados pudessem manter consultorias jurídicas fora do âmbito de suas procuradorias-gerais, contanto que, em 05-10-88, possuíssem órgãos distintos para tais funções. 6 membros serão investidos mediante concurso público, no qual figurará a Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases. Ao contrário do que sucedeu com o Ministério Público (art. 128, §5º, CF), inexiste lei nacional traçando o estatuto dos membros de tais procuradorias. Por isso, toca a cada uma das unidades federadas a edição, observadas as disposições constitucionais, de lei que cuida dos direitos e deveres de tais servidores. Antes de encerrar este tópico, hão de ser evocadas duas observações lançadas por Diogo de Figueiredo Moreira Neto 11 em busca do aperfeiçoamento do Estado democrático de Direito por parte do desempenho da representação judicial dos entes públicos. A primeira delas está no dever do advogado estatal oferecer o melhor contraditório possível para a defesa dos interesses públicos primários e secundários da pessoa jurídica de direito público, o que é inclusive imposto pelo princípio da eficiência. No entanto, sustenta que aquele poderá deixar de fazê-lo quando, em trabalho de doutrina, ou parecer oficial, houver sustentado tese contrária. Em segundo lugar, e não muito diversa da primeira, expõe, a pretexto de balizar o relacionamento do advogado público com os órgãos hierárquicos superiores, especificadamente o Advogado-Geral ou Procurador-Geral, ser desnecessário autorização hierárquica ou beneplácito superior para que atuem como agentes independentes, de acordo com a sua consciência, pois, do contrário, haveria a frustração de sua missão de controle da juridicidade plena e de mantenedores e responsáveis pelo aperfeiçoamento da ordem jurídica. Com o devido respeito, não concordamos com a independência do advogado público na extensão defendida pelo jurista acima mencionado. Sem embargo de que, muitas vezes, deva ser assegurada, na qualidade de autor de escrito doutrinário, a independência do advogado público, o qual, em muitas ocasiões, expõe seus entendimentos no exercício de atividade acadêmica, encouraçada pela liberdade de cátedra, a justificar que não atue em feitos nos quais haja, quanto à questão jurídica a ser resolvida, uma colisão de entendimento com o interesse da pessoa de direito público, não respalda a independência funcional em termos tão amplos. Igualmente, o fato do advogado público, na qualidade de agente administrativo, não ser o advogado do governante, mas sim do Estado, não respalda essa ilimitada e difusa independência, a qual poderá gerar desvios e prejuízos à atividade de controle interno da Administração. É de não se esquecer que o exercício da atividade de advogado público se desenvolve, no âmbito da função administrativa, mediante carreira submetida ao princípio hierárquico. Isso se encontra bem delineado na Lei Complementar 73/93, a apontar o Advogado-Geral da União como dirigente superior da Advocacia-Geral da União (art. 4º, I), cabendo-lhe, dentre outras atribuições, aquelas de uniformizar a compreensão de questões jurídicas que tenham repercussão na esfera da Administração 11 A advocacia de Estado revisitada – essencialidade ao Estado democrático de Direito. Debates em Direito Público, ano IV, n. 4, p. 55-57, outubro de 2005. 7Pública Federal Direta e Indireta (art. 4º, X a XIII). A própria Consultoria-Geral da União se encontra sob subordinação hierárquica do Advogado-Geral (art. 10, caput). Tais dispositivos legais não ostentam incompatibilidade nenhuma com a ordem magna, sendo de notar que, para esse fim, não se faz possível invocação dos arts. 131 e 132 da Lei Máxima. A contrariedade, por parte do advogado público, a entendimento público manifestado pelo Advogado-Geral da União (ou ainda por Procurador-Geral) somente se justifica com apoio em posicionamento vinculativo do Supremo Tribunal Federal, quer diretamente nos casos de ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental, ou ainda de súmula vinculante, quer indiretamente, em face da adoção de tese idêntica à manifestada em sede de repercussão geral. Da mesma maneira, quando se tratar de questão que demande unicamente interpretação de preceito de lei federal, somente se legitima o entendimento do advogado público divergente do sufragado pelos órgãos de direção superior quando apoiado em tese firmada na forma do art. 543 – C, do CPC, cuja vinculação, embora não expressamente referida na Constituição vigente, é de ordem lógica e inegável. 3. ADVOCACIA PÚBLICA VERSUS POLÍTICAS PÚBLICAS. Cabe-nos aqui alinhavar algumas palavras sobre a importância da atuação da Advocacia Pública, seja a nível federal ou não, durante a atividade inerente ao desenvolvimento de políticas públicas. Muito embora o advogado público, inserto na categoria dos agentes administrativos, não integre o chamado núcleo político do Estado, não há impedimento a que auxilie os integrantes deste. Num primeiro aspecto, tem-se a formulação da política, a qual emana da atividade estatal legislativa. Constitui aspecto de relevo, na atualidade, o de que a intervenção do Estado na disciplina normativa dos mais diversos setores da coletividade – cada vez mais inçada de complexidade – está vinculada à necessidade de conhecimentos técnicos. Está diante do fenômeno da tecnificação da atividade jurídica 12 , pois, ao contrário do panorama vivenciado à época do predomínio da sociedade agrária, o que se verificou até a primeira metade do século XIX, a realidade social ao depois das revoluções tecnológicas levou o jurista a desafios que, antes, seriam impensáveis. Há novos e inúmeros setores da vida coletiva a serem regulados, tais como os assuntos inerentes ao meio ambiente, à saúde, à biotecnologia, às novas exigências de ordenação das cidades, entre outros. Nestes o conhecimento técnico é, quase sempre, mais determinante do que o jurídico, que se limita a formalizar o resultado das apreciações dos especialistas. Ao lado e em decorrência disso, nota-se, de forma paulatina, o avanço do Poder Executivo na seara normativa, seja mediante a participação no processo legislativo não 12 O fenômeno é alvo de abordagem excelente por Manuel Calvo García (Transformaciones del Estado y del Derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2005, p. 44-54) 8 somente mediante a sanção ou veto, conforme expunha Montesquieu (faculté d’empechêr), mas, igualmente, pela iniciativa da sugestão das leis, pela sua elaboração em virtude de delegação legislativa – frequente no parlamentarismo, mas não alheia ao presidencialismo – e, ainda, por força de competência própria, conforme acontece aqui pela via das medidas provisórias e, em tempos de outrora, teve desenvolvimento pela via do decreto-lei. Isso sem contar, a nível secundário, a possibilidade de expedição de regulamentos para a fiel execução das leis. Em assim sendo, a elaboração, pela via legislativa, das políticas públicas não pode prescindir do providencial auxílio dos advogados públicos, cuja atividade deverá ser exercida em sintonia e aproximação com os órgãos técnicos e representativos da atividade-fim da Administração, para cuja execução se destina a política. Essa participação é de grande relevo para que os aportes dos setores técnicos, no que concerne ao conteúdo das políticas, afinem-se com as normas constitucionais. Cabe, assim, àqueles velar pela legitimidade dos programas de ação desenvolvidos pelos governos 13 . Dessa conjugação será possível a apresentação de projetos de lei, de medidas provisórias, de regulamentos e, até mesmo, de propostas de emenda constitucional, se necessário. E, nesse campo, não olvidar a participação no processo legislativo, mediante audiências públicas e reuniões. Nessa província, impede ao advogado público elaborar soluções criativas, as quais vão além da pura literalidade dos textos legais. No que concerne especificamente à matéria tributária – que é um aspecto indissociável das políticas públicas, tendo em vista que a concretização do Estado social reclama dispêndios - os planos de recuperação dos contribuintes, as concessões de isenções e outros incentivos fiscais, que se fazem necessários para o incremento da indústria e comércio pátrio, não podem deixar de contar, nos estudos de sua elaboração, com a participação da Procuradoria da Fazenda Nacional. Se a intervenção técnica da Secretaria da Receita Federal se afigura indispensável para a análise do impacto da política tributária na arrecadação, a participação articulada da Procuradoria da Fazenda Nacional é primordial para que sejam evitadas inconstitucionalidades, cuja suscitação é assídua por parte dos contribuintes. Outro ponto de realce se centra na defesa das medidas integrantes de uma política pública, a ter lugar em juízo. É inconteste que as medidas que compõem uma política pública, quando contrariem o sistema jurídico, expõem-se a controle jurisdicional. Durante o trâmite do processo que se destina à aferição da sua legitimidade, o papel da advocacia pública se faz decisivo não somente para servir de aparato formal à observância do devido processo legal, mas, sobretudo, pela possibilidade de trazer ao debate argumentos técnicos. 13 Vêm a calhar as palavras de Gustavo Binenbojm: “O Advogado Público tem como uma das suas missões institucionais mais nobres e relevantes cuidar da viabilização jurídica de políticas públicas legítimas definidas pelos agentes políticos democraticamente eleitos. (...) Nesse sentido, o papel do Advogado Público é o de realizar a mediação entre a vontade democrática e o direito” (A Advocacia Pública e o Estado democrático de Direito. Revista Brasileira de Direito Público, ano 8, n. 31, p. 35, out./dez. de 2010). 9 O juiz, seja por sua formação, bem como pelo cotidiano de sua atividade de dizer o direito aplicável aos casos concretos, encontra-se, na maioria das vezes, encerrado pelo raciocínio puramente jurídico. Padece, com frequência, de uma escassez quanto aos detalhes técnicos que informam a elaboração de uma determinada política pública. O fenômeno, que já foi objeto de observação pela doutrina 14 e pela jurisprudência 15 , requer a colaboração das partes para que uma decisão mais acertada e justa seja proferida e, neste particular, torna-se providencial que o advogado público não se limite à menção genérica de normas legais, mas que, diversamente, instrua sua defesa com argumentos técnicos que sejam capazes de justificar a medida cuja aplicação é questionada perante o Judiciário. Ainda nesse particular, assume importância a participação da advocacia pública nos processos de controle de constitucionalidade. Não se desconhece que, por imperativo magno(art. 103, §3º, CF), ao Advogado-Geral da União foi conferida a missão de defender as leis e atos normativos cuja inconstitucionalidade, em tese, seja suscitada perante o Supremo Tribunal Federal, o que se estende para as normas estaduais e distritais. Da mesma maneira, tal agente público assessora o Presidente da República quando do ajuizamento de ação declaratória de constitucionalidade de lei federal 16 , a qual pode dizer respeito à definição de política pública, o que também se verifica quanto às arguições de descumprimento de preceito fundamental e às ações declaratórias de inconstitucionalidade por omissão (art. 4º, V e VII, da Lei Complementar 73/93). Nesse âmbito, não se pode esquecer, nos dias que transcorrem, a advertência que, louvado na experiência pioneira norte-americana, assentou Cardozo no primeiro quartel da centúria passada, ou seja, antes do funcionamento dos tribunais constitucionais europeus instituídos quase três décadas após, consoante a qual a 14 Gerardo Pisarello (Los derechos sociales y sus garantias. Madri: Editorial Trotta, 2007, p. 89-90), ao tratar da jurisdicionalização dos direitos sociais, aponta que, além do déficit de legitimidade democrática, comporta relevo a suscitação, por igual, da não competência técnica dos magistrados, a qual tem como estuque uma tríade de razões, a saber: a) os juízes não são expertos em matéria econômica e social e, portanto, seria perigoso deixar-lhes intervir em questões complexas que são estranhas às suas funções; b) em não sendo os juízes encarregados das atividades de arrecadação de recursos, destinados ao financiamento das políticas sociais, as intervenções daqueles tenderiam a afastar restrições orçamentárias e as consequências de suas decisões, resvalando-se para um “populismo judicial”; c) mesmo nas situações nas quais os juízos e tribunais foram cautelosos e prudentes, carecem das ferramentas processuais adequadas para levar adiante a tutela reclamada pelos direitos sociais. 15 É de observar da leitura do voto-condutor do Min. Gilmar Mendes nos autos no Agravo Regimental na STA 175 – CE (STF, Pleno, v.u., DJe de 30-04-2010) quando este, no particular da impugnação da inexistência de tratamento adequado pelo SUS, chama atenção para a necessidade que, na instrução de tais feitos, a defesa do Poder Público não se limitar à padronização de contestações e peças processuais, devendo, ao invés, contemplar a especificidade do caso concreto sob exame. Alertou-se, desse modo, para que seja privilegiada a formulação de defesas que vão além do aspecto genericamente jurídico, investindo-se, com mais profundidade, no exame técnico dos contornos da demanda. 16 Chame-se atenção para o fato de que o ajuizamento de ação declaratória de constitucionalidade tem se mostrado como mecanismo eficaz para a defesa de política pública de grande impacto na vida nacional. Exemplo disso se teve na ADC 9 – 6 – DF (STF, Pleno, mv, rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 23-04-2004), da qual resultou o reconhecimento da compatibilidade vertical dos arts. 14 a 18 da MP 2.152 – 2/2001, e suas reedições, os quais versavam sobre o plano de gestão da crise de energia elétrica conhecido como “apagão”. 10 atividade interpretativa, no juízo de constitucionalidade, não pode se restringir ao cotejo entre o texto normativo questionado e a norma constitucional parâmetro. Deve, igualmente, considerar elementos fáticos que vivencia a sociedade, os quais, diante da abertura que deve revestir os dispositivos da constituição, são capazes de direcionar, num sentido diverso do que se apresenta, à primeira vista, a exegese gramatical dos textos em confronto, uma solução para o assunto 17 . Em assim atuando, o Advogado-Geral da União, bem assim os chefes das procuradorias estaduais, haverá de levar argumentos que não se limitem à hermenêutica isolada dos textos constitucional e legal, mas que, da mesma forma, transmitam fundamentos extrajurídicos ao problema que, no fundo, ostenta algo de político e não puramente normativo 18 . Resta-nos expor um dilema e, em seguida, também um desafio. O primeiro diz respeito à atividade do advogado público nas ações judiciais, coletivas ou individuais, nas quais se impugna a omissão inaceitável quanto à execução de atividade administrativa que diz respeito a uma política pública. As áreas mais sensíveis são a educação e a saúde. É algo inconteste que a reserva do possível, mesmo tendo origem no direito alemão, não é totalmente estranha ao direito brasileiro. O art. 167, II, da Lei Básica, parece-nos conduzir à adoção de um princípio de equilíbrio orçamentário. Todavia, a reserva do possível, como matéria de defesa por parte do ente público, não pode ser articulada de forma genérica. Tal alegação, que deve ser provada e não presumida, pressupõe a exposição de parâmetros objetivos 19 . 17 La naturaleza de la función judicial. Granada: Editorial Comares, 2004, p. 41. Tradução da edição inglesa por Eduardo Ponssa. Reportou-se o autor, nessa ocasião, a que os tribunais, assiduamente, foram conduzidos a equívoco ao julgar sobre a validade de uma lei não por falta de compreensão do Direito, mas, diferentemente, pela incompreensão dos fatos. Exemplificou com lei do Estado de New York que, ao proibir o trabalho noturno das mulheres, foi declarada arbitrária e inválida em 1907, enquanto que, em 1915, com um conhecimento mais completo, propiciado por investigações levadas a cabo por assistentes sociais, uma lei semelhante foi qualificada de razoável e válida. 18 Seja em face do controle das políticas públicas em sede de ações individuais ou civis públicas, ou ainda perante a fiscalização abstrata de constitucionalidade, importante se afigura a advertência lançada por Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior quanto à necessidade de se potencializar a integração das ações dos órgãos públicos, afirmando: “A aproximação com as áreas finalísticas dos órgãos, para que os fundamentos das políticas públicas sejam compreendidos, faz parte da necessidade de aprofundar a cultura dialógica em que o Direito se relacione com outras áreas do conhecimento. Há diversas questões, no âmbito das políticas públicas, para as quais o Direito não possui as respostas completas. Deve-se buscar, com afinco, a eliminação da cultura do conflito envolvendo gestores e advogados públicos, a partir da superação de bloqueios e pré-compreensões de parte a parte. Há que se afastar o mito de que, de um lado, para os gestores, os advogados públicos são formalistas em excesso e impedem a execução das políticas; e, de outro, para os advogados públicos, importa por de lado a idéia de que somente nós, técnicos do Direito, detemos o monopólio da virtude e da moralidade pública. Assumindo o ônus da redundância, é imperiosa a aproximação entre as dimensões consultiva e contenciosa da AGU para que haja, de um lado, o esclarecimento sobre os fundamentos constitucionais e jurídicos de dada política e, de outro lado, sejam atualizadas as correções de rumo quanto à legalidade e eventualmente quanto ao mérito, empreendidas pelo Poder Judiciário” (A advocacia pública consultiva federal e a sustentabilidade jurídico-constitucional das políticas públicas: dimensões, obstáculos e oportunidades na atuação da Advocacia-Geral da União. Revista da AGU, ano VIII, nº 19, p. 40, jan./mar. de 2009). 19 Ao depois de acentuar que os órgãos públicos não podem ser obrigados ao impossível, Gerardo Pisarello (Los derechos sociales y sus garantias. Madri: Editorial Trotta, 2007, p. 102) afirma que o economicamente razoável ou possível éalgo que deve ser provado e não presumido, compreendendo que 11 Na experiência brasileira, por peculiaridades da nossa realidade governamental, a invocação da reserva do possível se apresenta como uma quaestio diabolica ao advogado público. Como justificar este que atentará contra o equilíbrio das contas públicas a determinação de fornecimento de medicamento contra o câncer, que ainda não figura no protocolo do SUS, em favor de pessoa jovem, carente de recursos e que seja praticamente o meio apto para o salvamento de sua vida, quando se tem, no dia-a- dia, enormidade de gastos com publicidade institucional – a qual, ao invés de representar atendimento ao princípio da publicidade da Administração, funciona como mecanismo destinado a promoção de governantes – o que, recentemente, é agravado pela opção política, assaz dispendiosa, de edificação de estádios modernos para a Copa do Mundo, muitos dos quais não passarão, ao depois de servirem de palco a poucos jogos, de verdadeiros elefantes brancos. Isso faz com que a tarefa de defender a razoabilidade da omissão do SUS em fornecer determinado tratamento, ou quando do não cumprimento de metas para a educação, transforme-se em algo sobremaneira difícil, indefensável. Por seu turno, um aspecto desafiante, e para o qual a advocacia pública, por seus órgãos superiores, não poderá deixar de atentar é o inerente à criação de condições que propiciem a diminuição da litigiosidade entre cidadão e o Estado, a qual, sem sombra de dúvidas, vem implicando, só por só, gastos para este, em face da ampliação do aparato jurisdicional, conforme se tem verificado no espaço da Justiça Federal. Assim o é porque, além do Direito ter como objetivo inseparável e primeiro a paz social, o Estado brasileiro, no Preâmbulo da Constituição cidadã, manifesta adesão à justiça. Para tanto, indispensável proceder-se a uma identificação veraz de interesse público que, longe de se identificar com o interesse pecuniário da fazenda pública, mas, ao contrário, do chamado interesse público coletivo primário, formado pele conjunto de interesses individuais preponderantes em determinada coletividade 20 . Duas cautelas se impõem. A primeira é a de que a cura do interesse público primário não deverá ser realizada apenas com o busca do interesse público abstrato, o qual consiste na simples violação da lei, mas, antes, com o despertar para a necessidade de visualização do interesse público concreto, o qual, muitas vezes, encontra-se em posição antagônica, mas que merece prevalecer, pelo atendimento melhor à dinâmica que é conatural à própria noção em comento 21 . aqueles devem demonstrar que estão: a) empregando o máximo de seus esforços e recursos para a satisfação dos direitos sociais discutidos; b) recolhendo e difundindo informação suficiente sobre as necessidades existentes; c) supervisionando o cumprimento dos planos existentes e, simultaneamente, formulando planos futuros; d) os planos, presentes e futuros, estão a prever solução de curto, médio e longo prazo para os grupos mais necessitados. 20 O conceito alcançou notável desenvolvimento na pena de Renato Alessi (Instituciones de derecho administrativo. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1970. Tomo I, p. 180-223. Tradução da terceira edição italiana por Buenaventura Pellisé Prats). 21 A esse propósito, conferir a lição, cada vez mais atual, de Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 55). 12 Ao depois, há que prevalecer o entendimento segundo o qual é inconcebível se falar na preponderância do interesse patrimonial da fazenda pública quando este atente a direito fundamental do cidadão 22 . Daí competir à advocacia pública, mais precisamente no exercício de sua atividade consultiva, ao reconhecimento de direitos dos cidadãos, quando se possa aferir, com abstração do só fato de que tal poderá implicar alguma despesa, de que a ordem jurídica recepciona o pleito do administrado 23 . Portanto, a advocacia pública deve ser valorizada por outros setores da Administração como órgão que permite coibir o excesso de demandas ajuizadas contra o Estado. Inconcebível se afigura o Estado despender mais, para litigar pela negativa de direito do administrado, do que deferir direitos ao administrado. Se uma perspectiva de custo benefício conspira contra essa postura de negação sistemática de pleitos formulados pelos cidadãos, não menos o princípio da legalidade – que expressa, na atualidade, conformidade da Administração ao Direito e não unicamente ao sentido literal da lei formal 24 , como outrora se supôs 25 . Em assim atuando, assegura-se a harmonia com o estádio presente da função administrativa, cuja movimentação há de haurir suas balizas nas leis de procedimento administrativo, as quais, dentre os seus objetivos, é o de proporcionar justiça nas relações com os cidadãos 26 . Considerando-se que, com o passar do tempo, o labor do advogado público tem se acrescido em demasia, seja pela necessidade duma atividade consultiva sobre 22 A relação jurídico-tributária nos oferece um forte exemplo disso. Cuida-se do julgamento no ano de 1952, por parte da maioria absoluta do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, do Ag. 1.323, o qual pode ser apontado como o leading case relacionado com a revogação das isenções condicionadas. Do voto-condutor, da lavra do Des. Túlio Bezerra, consta a passagem seguinte: “12. O interesse público, em face do sistema constitucional vigente, não pode servir de motivo à violação de direitos e garantias individuais. Ele deve estar muito mais ao lado destas, que são o cerne do regime democrático, sob que vivemos. E a prova desse respeito está no próprio artigo 146 da Carta Magna, onde se dispõe que o Estado pode intervir no domínio econômico, mas terá como limite os direitos fundamentais nela assegurados” (Revista Forense 158/314). 23 Sugestiva a leitura de Luiz Carlos de Castro Lugon (Ética na concretização dos direitos fundamentais. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ano 18, n. 65, p. 44, 2007) quando propugna que muitos litígios poderiam – e poderão – ser evitados mediante a atividade interpretativa a cargos das consultorias jurídicas dos órgãos públicos, a qual não contraria a legalidade administrativa. 24 Enfatizamos esse aspecto por ocasião de escrito anterior (Administração pública, legalidade e pós- positivismo. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Coords.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 203-220). 25 Há de ser abandonado, no estádio hodierno do direito administrativo, o ensinamento, cuja adequação é típica dos ordenamentos dos regimes autoritários, de Hely Lopes Meirelles, o qual sustentou: “Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”, para o administrador público significa “deve fazer assim” (Direito administrativo brasileiro. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 78). 26 Nesse particular, o ensinamento de Odete Medauar: “O processo administrativo direciona-se à realização da justiça não só pelo contraditório e ampla defesa vistos do ângulo do indivíduo, mas também por propiciar o sopesamento dos vários interesses envolvidosnuma situação” (Direito administrativo moderno. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 187). Observando a tendência, a Lei 10.177/98, responsável pela regência do procedimento administrativo perante a Administração Pública paulista, no seu Título IV, Capítulo III, Seção IV, arts. 65 a 71, inovadoramente previu procedimento de reparação de danos, cuja legitimidade ativa pertence ao administrado. 13 diversas matérias, muitas das quais de elevada complexidade, e que precisam duma solução rápida, ou pelo aumento da atividade contenciosa, decorrente do ajuizamento de uma pletora de feitos contra a fazenda pública, a partir da vigência da Constituição de 1988, torna-se imperiosa uma observação: a de que a dedicação do advogado público às suas tarefas deve ser a maior possível. Escorreita, portanto, a previsão constante do art. 28, I, da Lei Complementar 73/93, ao vedar o exercício, pelos integrantes da carreira da Advocacia-Geral da União, do ofício fora das atribuições institucionais. Sem sombra de dúvida, na atualidade a advocacia privada talvez seja a que mais exija dispêndio de força de trabalho, o que, só por só, é de palmar incompatibilidade com a atividade que, nos dias de hoje, é reclamada dos advogados públicos. A própria pretensão duma equiparação do status funcional do advogado público ao dos magistrados e membros do Ministério Público, seja na parte estipendiária, ou quanto à autonomia funcional, administrativa e orçamentária do correspondente órgão, conforme sustentado a nível doutrinário 27 , não dispensa que tal se faça não somente com direitos e prerrogativas, mas, igualmente, com deveres e proibições. Diversamente, o desempenho de atividade acadêmica na área jurídica, contanto que haja compatibilidade de horários, afigura-se salutar, pois, envolvendo recíproco câmbio de conhecimentos, contribui para o aperfeiçoamento da atividade do advogado público. 4. UMA SÍNTESE CONCLUSIVA. Alfim e ao cabo, é possível sumariar algumas conclusões, a saber: a) o constitucionalismo do Estado social e democrático de Direito, que emergiu ao depois da segunda metade do século que se findou, propiciou, mediante a incorporação do elemento teleológico às constituições, a afirmação de novos direitos fundamentais, para cuja consecução se torna necessária a implementação de programas de ação governamental (políticas públicas), a cargo dos atores políticos (Legislativo e Executivo); b) a Constituição de 1988, numa alteração de topografia, instituiu, na organização do Poder Judiciário, capítulo inerente às funções essenciais à Justiça, tratamento à Advocacia Pública, filiando-se, num panorama comparativo, a um modelo dualista, pois separou definitivamente, em termos de carreira, os defensores das pessoas de direito público do Ministério Público (advogado da sociedade); c) segmento do aparato administrativo do Estado, a Advocacia Pública se faz indispensável, numa sociedade que se notabiliza pelo excesso de legislação técnica, durante a formulação das políticas públicas, a fim de que, numa articulação com os órgãos públicos incumbidos de sua execução, seja possível afiná-las com o sistema jurídico constitucional; 27 Gustavo Binenbojm (A Advocacia Pública e o Estado democrático de Direito. Revista Brasileira de Direito Público, ano 8, n. 31, p. 39, out./dez. de 2010). 14 d) noutro passo, a atuação em juízo da Advocacia Pública tem de ir além da satisfação formal do devido processo, cabendo ao seu representante o papel de fornecer argumentos capazes de auxiliar o magistrado no conhecimento dos aspectos técnicos das demandas, o que se afigura sobremodo importante no âmbito da fiscalização abstrata de constitucionalidade; e) nessa tarefa, encontrará o advogado público dificuldades, tais como a de superar a não aceitação, pelos juízos e tribunais, da exceção da reserva do possível, mas também desafios, como o inerente à necessidade de reduzir-se a situação de litigiosidade sistemática no relacionamento entre Administração e administrado. AUTORES E ESCRITOS CONSULTADOS ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1970. Tomo I. Tradução da terceira edição italiana por Buenaventura Pellisé Prats BENDA, Ernest. 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A advocacia de Estado revisitada – essencialidade ao Estado democrático de Direito. Debates em Direito Público, ano IV, n. 4, outubro de 2005. 15 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Administração pública, legalidade e pós- positivismo. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Coords.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. PISARELLO, Gerardo. Los derechos sociales y sus garantias. Madri: Editorial Trotta, 2007. VARÓ, Enrique Alcaraz. El inglés jurídico. 6ª ed. Barcelona: Ariel, 2007. VIEIRA JÚNIOR, Ronaldo Jorge Araújo. A advocacia pública consultiva federal e a sustentabilidade jurídico-constitucional das políticas públicas: dimensões, obstáculos e oportunidades na atuação da Advocacia-Geral da União. Revista da AGU, ano VIII, nº 19, jan./mar. de 2009.
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