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Introdução Este primeiro capítulo é dedicado às questões sobre a língua levantadas pela ciência da linguagem, a linguística, as quais trazem à tona realidades, em geral, desconhecidas pelos professores. Tais questões referem-se tanto à natureza do conhecimento que o indivíduo possui de sua própria língua, quanto ao uso linguístico em situações de comunicação da vida quotidiana e, com certeza, trarão esclarecimentos importantes ao futuro professor, na medida em que ele compreenderá a sua língua através de um olhar diferente do tradicional e terá condições de ser um agente de transformação em relação ao que precisa ser mudado no ensino de língua materna no Brasil. Normalmente, a resposta a essa pergunta é uma só: gramática. Portanto, a pergunta que se deve fazer, na realidade, quando se é professor de português, é “Qual é a gramática com a qual se trabalha na escola?” Vejamos alguns argumentos de estudiosos da área sobre o assunto. É notória a convicção de professores de língua portuguesa quanto ao fracasso do ensino que eles mesmos seguem produzindo; os alunos, a seu turno, são praticamente unânimes ao afirmarem que não sabem gramática. Quanto aos objetivos, no item “a”, se, conforme Perini, eles prometem o que não é possível cumprir, há algo de inadequado em se ter como meta a ‘melhora’ do aluno na leitura e na escrita, isto é, em se pressupor que o aluno vem mal à escola, e esta tem a incumbência de melhorá-lo. Se, conforme a causa apontada em “b”, falta lógica às gramáticas escolares, isso implica que se espera uma lógica, segundo Perini, na maneira como se lida com os fatos da língua ao conduzir- se o aluno a utilizá-la. Finalmente, em “c”, o autor menciona a metodologia baseada na prescrição, comum no ensino baseado na gramática tradicional, que ignora a capacidade reflexiva do aluno e o seu conhecimento da própria língua – usada por ele diariamente, desde os primeiros meses de vida - para se comunicar e interagir socialmente. Neves (1990:10-11), descreve o ensino da gramática em nossas escolas como primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que, como vimos, são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é tirada a maioria dos exemplos. Tais regras e exemplos são repetidos anos a fio como formas “corretas” e “boas” a serem imitadas na expressão do pensamento. Nas aulas, há uma ausência quase total de atividades de produção e compreensão de textos. Observa-se também uma concentração muito grande no uso de metalinguagem no ensino de gramática teórica para a identificação e classificação de categorias, relações e funções dos elementos linguísticos, o que caracterizaria um ensino descritivo, embora baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável. A maior parte do tempo das aulas é gasta no aprendizado e utilização dessa metalinguagem, que não avança, pois, ano após ano, insiste-se na repetição dos mesmos tópicos gramaticais: classificação de palavras e sua flexão, análise sintática do período simples e composto a que se acrescentam ainda noções de processos de formação de palavras e regras de regência e concordância, bem como regras de acentuação e pontuação. Alguns professores ainda realizam estudos de figuras de linguagem e, bem menos frequentemente, de versificação. A gramática é dada para se cumprir um programa previamente estabelecido, sem se levar em conta as dificuldades ou não dos alunos no emprego que fazem efetivamente da linguagem, nessa ou naquela ocasião, num processo de interação verbal. A mesma autora, num levantamento feito junto a 170 professores de ensino fundamental e médio no estado de São Paulo, registrou que, em resposta à pergunta “Para que se ensina a gramática?”, quase 50% dos professores fizeram indicações que se referem ao bom desempenho, com destaque ao desempenho ativo (melhor expressão, melhor comunicação, melhor compreensão); cerca de 30% das indicações referem-se a questões normativas (maior correção, conhecimento de regras ou de normas, conhecimento do padrão culto) e cerca de 20% se ligam a uma finalidade teórica (aquisição das estruturas da língua/melhor conhecimento da língua/conhecimento sistemático da língua/apreensão dos padrões da língua/sistematização do conhecimento da língua) e menos de 1% dos professores declarou que só dá aulas de gramática para cumprir o programa, embora os passos ulteriores da pesquisa tenham mostrado que a desvalorização da gramática ocorre numa porcentagem bem maior do que a declarada. Quanto à pergunta “Para que se usa a gramática que é ensinada?”, Neves registrou que a maioria das indicações se liga ao melhor desempenho linguístico, registrado como “falar e escrever melhor”, e ligado a sucesso na vida prática. O melhor conhecimento da língua vem traduzido em sucesso em concursos, e A fonte do problema da crise no ensino do português está, segundo Suassuna (2003:19-25), no próprio modelo de escola no qual se encaminha a pedagogia da língua. Para a autora, a escola no Brasil orienta-se por um princípio excludente, que é o do ensino do “certo” em detrimento do “errado”. O estudo da linguagem, em primeiro lugar, veio a existir apenas à medida que as sociedades primitivas se tornaram mais complexas, pois, originariamente, a linguagem não se constituía em objeto de estudo, uma vez que era um elemento natural da vida social. bom desempenho social e profissional e como instrumento de ascensão social e segurança, embora também venha apontado como utilizável “para nada”. O ensino de gramática (teoria) aparece como algo desligado de qualquer utilidade ou utilização prática, ligada ao sucesso na própria sala de aula, ou seja, apenas acertar exercícios. Tudo isto aponta para o fato de que, para a maioria dos professores, não há uma real necessidade para o ensino de teoria gramatical. Por que, então, a insistência nesse tipo de atividade em sala de aula? Talvez comodismo, desconhecimento de alternativas e outras razões alegadas, como: exigência do currículo, dos pais, da sociedade em seus concursos. Os gregos antigos tinham objetivos de natureza filosófica em suas investigações sobre a linguagem; eles eram fortemente impulsionados pela busca da relação entre a língua e as coisas que ela exprime, isto é, entre a palavra e a noção por ela expressa. Assim, o estudo da verdade, do certo, era o estudo do sentido original das palavras, e representava uma base forte das investigações realizadas pelos gregos. Os romanos aplicaram ao latim as principais conquistas linguísticas dos gregos, mas, com o crescimento do Império Romano, impôs-se a necessidade de uma língua única (nessa época, (havia conflito entre a língua falada pelas classes rurais e a “oficial” das classes superiores) e formou-se o desejo de impor o latim clássico sobre as nações que iam constituindo o Império, o que continuou na Idade Média. Tudo isso motivou o estudo do certo e do errado, para encontrarem-se argumentos quanto à necessidade da imposição do latim, como, por exemplo, a existência nesta língua de uma estrutura universal. Passando para a época do Renascimento, o interesse normativo continuava sendo a orientação fundamental dos estudos das línguas, com o latim clássico sendo imposto como a língua dos estudiosos e, paralelamente, o grego ressurgindo juntamente com a revalorização de sua cultura antiga. Esses "verdadeiros fenômenos linguísticos" a que se refere Câmara são os aspectos específicos da gramática de cada língua, neste caso, o português. Em outras palavras, pouca atenção ainda era dispensada à descrição do sistema linguístico e das funções às quais ele serve para seus usuários. Já não era mais fundamental a importância do latim como língua da cultura, nem as discussões sobre a relação entre palavra e ideia, o que precisava ser estudado eracomo o português funcionava, visto que ele não era o latim. No século XVII, após uma nova onda de interesse pela gramática universal, destacando-se a Grammaire Génerale et Raisonée de Port-Royal (Gramática Geral e Racional de Port-Royal), em 1660, como obra de cunho mentalista a respeito das estruturas gramaticais, começou-se a dar atenção efetiva às línguas nacionais e o latim deixou de ser o centro das investigações. Iniciaram-se comparações sistemáticas entre as línguas com vistas a um trabalho de classificação das mesmas, levando-se em conta suas semelhanças. Uma hipótese lançada no século XVI (de que o Hebraico seria a língua que originara todas as outras) também inspirou os estudos da fase comparativista (que vai até meados do século XIX), no sentido de se buscar encontrar o chamado Proto-Indo-Europeu – a primeira língua a ser falada na Terra. Com o aprofundamento dos estudos comparativistas das línguas, foi-se intensificando o contato com elas, através da observação de suas características gramaticais, o que conferiu grande importância à verificação empírica de dados linguísticos, tendência científica geral, iniciada no século XVIII e continuada no século XIX, quando, sob a influência do positivismo, os estudos sobre a linguagem eram realizados através do método histórico-comparativo. A língua era vista como um organismo vivo, submetido a certas leis evolucionistas, e supunha-se que uma língua antiga dava origem a uma ou várias línguas novas. Falar e escrever corretamente está absolutamente atrelado a um padrão escolhido como certo por uma classe dominante, o qual não reflete a realidade de todos os atos de linguagem realizados pelos mais diversos falantes de nosso idioma. Além disso, como vimos acima, a linguagem literária tem sido tomada como modelo padrão e, como ela se concretiza na escrita primordialmente, contribui para priorizar esta modalidade em detrimento da fala, conferindo, assim, um grau superior aos textos escritos e um rótulo inferior à língua falada. Suassuna (2003:32) relaciona esses fatos ao ensino da língua materna no Brasil: No caso particular do Brasil, surgiu um outro problema no contexto do ensino de língua materna: nossas gramáticas eram cópias das gramáticas portuguesas, e não se levava em conta o fato de que, mesmo quando o Brasil era colônia de Portugal, já se diferenciavam as duas normas linguísticas, além do que os propósitos educacionais de cada país também deviam ser diferentes. [...] A situação que venho comentar permaneceu durante longo tempo inalterada e mesmo hoje é possível verificarmos que ela não se modificou muito. Qualquer professor de língua portuguesa é capaz de lembrar a sua própria história escolar e admitir que ela foi quase que uma mera repetição da imposição do “certo e errado”. A tendência natural, então, é que reproduza esse procedimento dogmático e prescritivo na escola, acreditando mesmo em seu funcionamento. Se, conforme atestado por autores, como os que já foram citados aqui, o ensino baseado no “certo e errado” não frutificou – e, para comprová-lo, podemos evocar nossas próprias experiências pessoais em sala de aula –, o que é preciso ser considerado a fim de se mudar esse quadro e, como professores de português, não perpetuá-lo? Perini (2010, p. 21) adverte que: Para nós, “certo” é aquilo que ocorre na língua. É verdade que quase todo mundo tem suas preferências, detesta algumas construções, prefere a pronúncia de alguma região, etc. Mas o linguista precisa manter uma atitude científica, com atenção constante às realidades da língua e total respeito por elas. O linguista, cientista da linguagem, observa a língua como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser. Condenar uma construção ou uma palavra ocorrente como incorreta é mais ou menos como decretar que é “errado” que aconteçam terremotos (não seria melhor que não acontecessem?). Mas eles acontecem, e um cientista não tem remédio senão reconhecer os fatos. Outros autores, como Bortoni-Ricardo (2005), também enfatizam a necessidade de desmistificar o prestígio do português padrão, questionando-o e demonstrando como ele gera efeitos negativos ao perpetuar as desigualdades sociais, embora não se possa nem se deva negá-lo, uma vez que se trata de uma variedade da língua necessária, assim como as outras variedades linguísticas, para propósitos específicos na comunicação verbal. Num artigo intitulado “Reflexões sobre o ensino/aprendizagem de gramática”, Zuleika Murrie (2001:65-77) (2001) faz a seguinte introdução ao tema: Ao se considerar o conceito de gramática como um conjunto de regras significativas de uma língua, conhecido e dominado pelos falantes nativos em uma comunidade, elaborado e aceito socialmente como o próprio à comunicação, através da linguagem verbal, formula-se a seguinte questão: que gramática ensinar àqueles que já a conhecem? O conhecimento da gramática de uma língua faz parte integrante do conhecimento linguístico do usuário. O falante é capaz de operacionalizar as regras, sem nem mesmo conhecê-las, denominá-las ou pensar sobre elas (por exemplo, a emissão “por favor feche a porta” jamais será falada pelo nativo da seguinte forma “favor por porta a feche”). O ensino de gramática, sob este ponto de vista, deixa de ser apenas um conjunto de regras prescritivas ou normativas, para transformar-se em uma explicitação das regras de uso da língua, em situações significativas. O sistema linguístico que identifica as especificidades de cada língua (português, francês, inglês, etc.) está sujeito a variações determinadas, no tempo e espaço, e necessárias para que a língua permaneça viva. Desse modo, no sistema, destacam-se dois aspectos: a) um conjunto de imposições, definidor da parte normativa, explicita a permanência, que manifesta a estabilidade do sistema linguístico; b) um conjunto de liberdades, indicador da parte consultiva, se reporta à inovação, desde que não sejam afetadas as condições funcionais do sistema. Esse equilíbrio permite que uma dada língua mude e continue a ser a mesma; nesse sentido, todas as línguas, porque funcionam, necessariamente mudam [...] Tais variações linguísticas próprias de cada segmento social estão sujeitas, também, a regras de acordo com a norma escolhida pelos usuários da língua. A gramática entendida como uma construção interativa em processo, através do tempo e espaço, introduz no conceito um aspecto histórico e dialético e sugere algumas reflexões: qual a gramática ensinada pela escola? Por que ensinar gramática? Que gramática deve o aluno dominar? [...] As crianças conseguem derivar oralmente regularidades presentes no sistema gramatical, sem nunca terem sido expostas a elas. É o caso de emissões do tipo: “eu ponhei”, “eu fazi” onde o paradigma dos verbos regulares se sobrepõe aos irregulares, mesmo sem que tal emissão tivesse sido falada pelos adultos com quem convivem. A ideia-chave a ser ressaltada no texto da autora acima está na pergunta inicial: Poucos professores, ainda hoje em dia, têm clareza quanto à complexidade do conhecimento que o aluno já domina ao chegar à escola pela primeira vez. Esse esclarecimento começou a ter forma justamente com os estudos linguísticos modernos, de Saussure, no final do século XIX, quando ele mostrou que a fala é prioritária em relação à escrita. Todos os usuários de uma língua falam antes de escreverem e, ao chegarem à escola, já falam tudo o que querem e precisam em cada situação de comunicação verbal de que participam. Assim, a verdadeira língua está na fala, sendo a escrita, posteriormente, aprendida em situações formais – normalmente, na escola. A escrita, por sua vez, é baseada na fala. Isso quer dizer que a escrita não pode ser modelar para uma língua, pois ela veio a existir para registrar o que era dito por meio da fala, então, ela é quese modela segundo a fala. Portanto, quando se ensina uma língua, não é aconselhável tomar escritores clássicos, portugueses e brasileiros, como parâmetro do “correto”, mas sim abordar as funções para as quais os falantes utilizam sua língua no dia-a-dia e as formas que o sistema linguístico (a gramática) fornece para a consecução dos propósitos dos falantes, ao interagirem em atos de comunicação verbal. Partindo dessa ideia, portanto, o que cabe ao ensino de língua materna - com base em estudos e na experiência de linguistas que não se conformam com a atitude pessimista, tanto de alunos como de professores, em relação aos resultados das aulas de português – pode ser expresso, conforme Tavaglia (2009:17), como “desenvolver a competência comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), isto é, a capacidade do usuário de empregar adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação.” Essa competência já existe no falante e deve ser desenvolvida na escola, não iniciada, como se o aparelho cognitivo humano fosse uma tábula rasa em que a escola precisasse inserir todo o conhecimento da língua. E, para que a competência comunicativa se desenvolva, o aluno deve ser exposto a experiências reais de linguagem, o que inclui contextos de fala e escrita de todas as possíveis variedades da língua, incluindo a variedade padrão. Nos próximos capítulos, serão brevemente estudadas diferentes áreas da linguística, para, a partir do capítulo 6, focalizar-se a variação da língua e a importância que ela tem no ensino de língua materna. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. CÂMARA, M. História da linguística. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1975. MURRIE, Z.F. (org.) O ensino de português. São Paulo: Contexto, 2001. NEVES, M.H.M. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 1990. NEVES, M.H.M. Que gramática estudar na escola? São Paulo: Contexto, 2003. TRAVAGLIA, L.C. Gramática e interação. 13ª ed., São Paulo: Cortez, 2009. PERINI, M. A. Sofrendo a gramática. 3ª ed., São Paulo: Ática, 2005. PERINI, Mário, A. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. SUASSUNA, L. Ensino de língua portuguesa: uma abordagem pragmática. 6ª ed., Campinas: Papirus, 2003 Introdução Neste capítulo, o objetivo é conhecer o objeto de estudo de diversas áreas da Linguística, tanto no que tange ao sistema da língua, quanto ao estudo mais amplo, que considera fatores fora da língua que intervêm na atitude linguística do falante. Após uma breve explanação do foco investigativo de cada campo da linguística apresentado, serão trazidos exemplos de como pesquisar na microlinguística e na macrolinguística. Os termos microlinguística e macrolinguística são utilizados, segundo Weedwood (2002:12), por pura conveniência, uma vez que ainda não estão definitivamente estabelecidos. Todavia, pelo fato de ser muito esclarecedora quanto à organização do escopo do estudo da linguística, optamos por utilizar essa classificação com nossos alunos nesta disciplina. O termomicrolinguística se refere a uma visão mais restrita, enquanto o termo macrolinguística se refere a uma visão mais ampliada do escopo da linguística. Conforme Weedwood (p.12): Pela visão da microlinguística, as línguas devem ser analisadas em si mesmas e sem referência a sua função social, à maneira como são adquiridas pelas crianças, aos mecanismos psicológicos que subjazem à produção e recepção da fala, à função literária ou estética ou comunicativa da língua, e assim por diante. Em contraste, a macrolinguística abrange todos esses aspectos da linguagem. Dentro da microlinguística, então, poderíamos incluir os estudos que se preocupam com a "língua em si": fonética e fonologia, sintaxe, morfologia, semântica, lexicologia. É comum a referência a essas áreas de estudo como o "núcleo duro" da linguística (em referência ao termo inglês hard-core). Representam também boa parte do conjunto mais antigo e tradicional de estudos da linguagem: basta ver que boa parte da terminologia técnica até hoje empregada na microlinguística (substantivo, adjetivo, preposição, verbo, pretérito, antônimo, pronome, etc.) remonta aos estudos linguísticos da Antiguidade greco-romana. Diversas áreas dentro da macrolinguística têm recebido reconhecimento sob forma de nomes próprios: psicolinguística, sociolinguística, linguística antropológica, dialetologia, linguística matemática e computacional, estilística, etc. Não se deve confundir a macrolinguística com a linguística aplicada. A aplicação de métodos e conceitos linguísticos ao ensino da língua pode muito bem envolver outras disciplinas, de um modo que a microlinguística desconhece. Mas existe, em princípio, um aspecto teórico em cada parte da macrolinguística, tanto quanto da microlinguística. Embora seja difícil definir o objeto de estudos das diversas áreas, tanto da microlinguística, quanto da macrolinguística, a seguir faremos algumas indicações a respeito do interesse de cada área. MICROLINGUÍSTICA a. Fonética: a principal preocupação da Fonética é descrever os sons da fala, considerando, por exemplo, o modo como o ar passa pelo aparelho vocal, o ponto onde a língua toca os dentes e a forma como vibram as cordas vocais quando cada som é produzido. Por exemplo, uma afirmação fonética é que o som [b] é articulado com uma corrente de ar pulmonar egressiva, com vibração das cordas vocais, com uma obstrução do fluxo de ar seguida de uma explosão. b. Fonologia: enquanto a Fonética se ocupa dos sons da fala, a Fonolgia está ligada aos sons da língua. Enquanto a fala é individual, a língua representa o código comum de comunicação entre todos os membros de uma comunidade. A fonologia estuda os fones segundo a função que eles cumprem numa língua específica, os fones relacionados às diferenças de significado e a sua inter-relação para formar sílabas, morfemas e palavras. c. Sintaxe: essa parte da linguística dedica-se à descrição do modo como os itens lexicais (as palavras) são combinados para compor sentenças, sendo essa descrição organizada sob a forma de regras. Por exemplo, ao adquirir a linguagem, a criança desde cedo sabe que um item lexical como mesa é diferente de um item lexical como cair. Ela, logo, diz caiu, mas nunca dizmesou. d. Morfologia: definida como o componente linguístico que trata da estrutura interna das palavras, a Morfologia já encontra sua primeira dificuldade no conceito de palavra. Portanto, o modelo, ou teoria morfológica, dependerá do que o pesquisador compreende por esse termo, pois, a partir disso, poderá definir suas unidades mínima e máxima de pesquisa. e. Lexicologia: componente da linguística preocupado com o léxico, isto é, com o conjunto de palavras de uma língua. O lexicólogo procura determinar a origem, a forma e o significado das palavras, além de descrever como elas são usadas na comunidade dos falantes. Não se confunde com a lexicografia, ciência empenhada em elaborar dicionários. f. Semântica: busca descrever o significado das palavras e das sentenças, de acordo com alguma definição para o termo significado. Por exemplo, podemos indagar a respeito do significado de um objeto, como mesa, que será diferente de indagar a respeito do significado da atitude tomada por um falante, isto é, de sua intenção. Podemos ainda falar sobre o significado de um livro, da vida, da fumaça, da cor do semáforo. (OLIVEIRA, 2005, p. 17). Para ilustrar a pesquisa microlinguística, poderíamos destacar algum fenômeno de qualquer uma das áreas anteriormente mencionadas, por isso, escolheremos uma, a semântica, pois aqui não é possível, devido às limitações de espaço, exemplificar todas elas. A semântica formal é aquela que estuda os fenômenos de significadoque existem em todas as línguas, uma vez que são originados pelas relações lógicas entre os significados de palavras ou de sentenças. Em qualquer lugar no mundo, essas relações semânticas se mantêm, não dependendo da intenção do falante, do contexto de comunicação, da ideologia ou de qualquer outro fator, elas são ligadas ao significado intrínseco das palavras e das sentenças. Destacaremos a relação de acarretamento. Essa noção faz uso de outra, a de hiponímia, portanto, para compreender o acarretamento, precisamos entender a hiponímia. Conforme Müller e Viotti (2003:145), "a hiponímia é uma relação de sentido entre palavras tal que o significado de uma está incluído no significado de outra". Por exemplo, cachorro é hipônimo de animal, faca é hipônimo de talher e sapato e hipônimo de calçado. Em outras palavras, o significado de cachorro está incluído no significado de animal, o significado defaca está incluído no significado de talher e o significado de sapato está incluído no significado de calçado, pois não há como algo ser um cachorro e não ser um animal, toda a faca é um talher e um sapato sempre será um calçado. Como se pode ver, a definição de acarretamento é comprovada pelo teste feito acima, demonstrando, também, que essa noção diz respeito ao significado intrínseco das sentenças, isto é, não importa onde e por quem essas sentenças sejam proferidas, essa relação sempre estará presente, por isso a Semântica faz parte da microlinguística. MACROLINGUÍSTICA a. Sociolinguística: nas palavras de Mollica e Braga (2003, p. 9), "A Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos linguísticos e sociais. Esta ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em especial, os de caráter heterogêneo". b. Pragmática: se a Semântica, ligada à filosofia analítica de Oxford, preocupa-se com o significado das palavras e sentenças da linguagem humana (que não dependem do contexto nem da intenção de quem as profere), a Pragmática, oriunda da filosofia da linguagem (Austin, Grice, Wittgenstein), veio para dar conta dos significados que não aparecem no dito, no explícito, não estão vinculados ao significado intrínseco das palavras e frases, ela veio para dar conta do significado ligado às intenções do falante no momento em que se dá o ato da comunicação, ou, conforme Austin, o ato de fala. c. Psicolinguística: o termo psicolinguística foi utilizado, pela primeira vez, na década de 70, em um artigo de Proncko, e sugere que se trata de um campo interdisciplinar para o qual colaboram a Psicologia e a Linguística (BALIEIRO JR, 2005, p. 172). Nessa ciência, portanto, se estuda a relação entre a linguagem e o pensamento. d. Análise do Discurso: tem como foco de estudo a relação linguagem/pensamento/mundo, que não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro. Cada um tem sua especificidade. Além disso, pressupõe-se que há um real da história de tal forma que o homem faz história, mas esta também não lhe é transparente. Assim, para a Análise de Discurso, a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma; a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); o sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. e. Linguística Histórica: segundo Gabas Jr. (2005:77), "a Linguística Histórica estuda os processos de mudança das línguas no tempo. Os estudos históricos, principalmente os desenvolvidos a partir do século XIX com o latim, o grego e o sânscrito, são tão importantes em linguística (conforme veremos na seção 2) que a própria disciplina, a Linguística, afirmou-se como ciência a partir deles. f. Análise da Conversação: estuda a interação verbal entre os seres humanos. Segundo Marcuschi (1986:14), "a conversação é a primeira das formas de interação a que estamos expostos e provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora". Conforme Dionísio (2005, p. 70), a Análise da Conversação liga-se aos estudos sociológicos, os quais procuram responder a questões do tipo "como nós conversamos?". Os linguísticas da Análise da Conversação perguntam "como a linguagem é estruturada para favorecer a conversação?" e reconhecem que a conversação nos diz algo sobre a natureza da língua como fonte para se fazer a vida social. g. Neurolinguística: levando em conta o hibridismo do termo, parece óbvio, segundo Morato (2005, p. 144), "que Neurolinguística diga respeito às relações entre linguagem e cérebro e que acione dois campos do conhecimento humano para explicá-las, as Neurociências e a Linguística". A autora destaca que essa definição seria muito confortável caso não houvesse tantos problemas para explicar os processos complexos que constituem a linguagem e o cérebro, bem como o modo de funcionamento de ambos. h. Linguística do Texto: estuda o texto como unidade de comunicação. O texto, com base nos pressupostos teóricos desse campo de pesquisa, é muito mais que a simples soma das frases. A Linguística Textual coloca em discussão conceitos que vêm romper com uma proposta restrita de ensino e aprendizagem da língua, os quais tradicionalmente partiam de palavras e frases para explicar as regras do uso da língua aos estudantes. Essa nova forma de praticar o ensino da língua considera que a unidade de análise mais importante é o texto, pois, ao conversarmos e escrevermos, produzimos textos e é possível compreender o sentido das mensagens apenas levando em consideração o todo, sem desmembrá-lo em partes. Para exemplificarmos a pesquisa macrolinguística, faremos referência aos estudos da Análise da Conversação, que trata das regras envolvidas na comunicação falada entre os seres humanos. Segundo Fávero, Andrade e Aquino (2011): O oral e o escrito se diferenciam por escolhas feitas pelo locutor/enunciador, determinadas pela adequação a cada modalidade em cada um dos gêneros textuais por meio dos quais elas se manifestam (entrevista, requerimento, receita culinária, conto, atestado, conversa telefônica, consulta médica, etc.). Além disso, é preciso observar a importância do suporte que permite a efetivação do texto (rádio, TV, internet, jornal, revista, outdoor, etc.), o contexto em que se encontram os interlocutores e a interação que se estabelece entre eles. O texto conversacional, portanto, é criado de forma coletiva, constituindo-se num lugar onde os participantes estabelecem relações de dominância ou igualdade, convivência ou conflito, familiaridade ou distância. A fala organiza-se em torno da troca de turnos de fala entre os participantes do ato comunicativo. E os marcadores conversacionais atendem às necessidades do envolvimento direto entre os participantes, podendo ser produzidos pelo falante ou por seu interlocutor. Como exemplos de marcadores conversacionais temos: claro, sabe?, certo, né?, acho, então, aí, uhn, ahn e outros. No texto falado, os interlocutores fazem repetições, correções, paráfrases, referenciações, além de hesitações, interrupções e outras características típicas da fala, não permitidas na escrita. Nesta, tudo deve estar explícito e não há recursos para efeitos visuais e auditivos, recursos extratextuais. Apesar de a conversa espontânea construir-se a cada intervenção dos interlocutores, não sendo, portanto, possível prever em que sentido cada parceiro orientará a sua intervenção, não significa que a sua organização seja caótica ou aleatória.Segundo Dionísio (2005, p. 72), "As contribuições dos falantes devem demonstrar, de alguma forma, uma relação com o curso da conversa, pois a conversação é uma atividade semântica, ou seja, um processo de produção de sentidos, altamente estruturado e funcionalmente motivado". Segundo a mesma autora, quando estamos conversando, falamos sempre sobre um ou mais assuntos, um ou mais tópicos discursivos, recorrendo, constantemente, a enunciados como "isso me lembra", "por falar em", "agora", mudando de assunto", "voltando ao assunto". Este texto, é fácil perceber, é uma transcrição exata do que foi dito durante uma conversação. Assim que os analistas da conversação trabalham, para extrair todas as particularidades dos atos de comunicação conversacionais. São mantidas todas as características da fala como ela se deu, a variedade da língua utilizada, os desvios gramaticais de concordância, as repetições próprias da fala, incluindo-se marcas que indicam ocorrências, como pausa na fala (...), alongamentos de vogal ou consoante (::), superposição ou simultaneidade de vozes ( [ ) e entoação enfática (eviDENte). BALIEIRO JUNIOR, A. P. Psicolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística 2: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005. p. 171-201. DIONÍSIO, A.P. Análise da conversação. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística 2: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005. p.70-99. FÁVERO, Leonor Lopes, ANDRADE, Maria Lúcia C.V.O, AQUINO, Zilda. Reflexões sobre oralidade e escrita no ensino de língua portuguesa. In: ELIAS, Vanda Maria (org.), Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita, leitura. São Paulo: Contexto, 2011. GABAS, N. Jr. Linguística Histórica. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística 1: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005. p. 77-103. MARCUSCHI, L. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. MOLLICA, M.C. & BRAGA, M.L. (orgs.) Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003. MORATO, E. Neurolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística 2: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005. p. 143-170. MÜLLER, A.L.P & VIOTTI, E.C. Semântica Formal. In: FIORIN, J.L.(org.)Introdução à Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003. p. 137-159. OLIVEIRA, R.P. Semântica. In: MUSSALIM, F. & BENTES, A.C. (orgs.)Indrodução à Linguística 2. São Paulo: Cortez, 2005, p. 17-46. Introdução Neste capítulo, o objetivo principal é compreender como se pode estudar a linguagem no seu nível de organização discursiva, ou seja, a linguagem enquanto discurso. Para isso, é preciso que se defina o que se entende por discurso. Não temos a intenção de caracterizar, aqui, as várias tendências existentes relativas ao discurso, mas sim situar o aluno na concepção de discurso, chamada Análise do Discurso Francesa (AD). Nos anos 60, a Análise de Discurso se constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são, ao mesmo tempo, uma ruptura com o século XIX: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. A Linguística constitui-se pela afirmação da não-transparência da linguagem: ela tem seu objeto próprio, a língua, e esta tem sua ordem própria. Esta afirmação é fundamental para a Análise de Discurso, que procura mostrar que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro. Cada um tem sua especificidade. Por outro lado, a Análise de Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de que há um real da história de tal forma que o homem faz história, mas esta também não lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai se chamar a forma material (não abstrata como a da Linguística), que é a forma encarnada na história para produzir sentidos: esta forma é, portanto, linguístico-histórica. Nos estudos discursivos, não se separam forma e conteúdo e procura-se compreender a língua não só como uma estrutura, mas, sobretudo, como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento, a forma material é vista como o acontecimento do significante (língua) em um sujeito afetado pela história. Aí, entra então a contribuição da Psicanálise, com o deslocamento da noção de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, constitui-se na relação com o simbólico, na história. Assim, para a Análise de Discurso: • a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem); • a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); • o sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. Em Ferreira (1986), encontramos a seguinte definição para discurso: DISCURSO. [do lat. discursu.] S. m. 1. Peça oratória proferida em público, ou escrita, como se tivesse de o ser. 2. Exposição metódica sobre certo assunto, arrazoado. 3. Oração, fala. 4. Ling. Qualquer manifestação correta da língua. [Sin., nesta acepç.: fala e (fr.) PAROLE.] 5. ant. Raciocínio, discernimento. 6. Fam. Palavreado vão, e/ou ostentoso. [...] 7. Fam. Fala longa e fastidiosa, de natureza geralmente moralizante. [...]. 8. Liter. Qualquer manifestação por meio da linguagem, em que há predomínio da função poética. [...]. Em Houaiss (2001), lemos: DIS.CUR.SO. S. m. 1. mensagem proferida em público (D. DE UM PRESIDENTE) 2. exposição metódica sobre um assunto [...] 3. conjunto de enunciados que caracterizam o modo de agir ou de pensar de alguém ou de um grupo específico (D. PSICANALÍTICO, EMOTIVO) 4. GRAM. Enunciado oral ou escrito em que se supõe um locutor e um interlocutor. Podemos concluir, pelos conceitos dos dicionaristas citados, que, ao definiremdiscurso, ambos consideram o lugar onde o discurso será proferido, a metodologia utilizada na sua construção, os processos mentais e os planos oral e escrito da língua. Em Houaiss, mais particularmente, aparece a preocupação com a relação entre locutor e interlocutor. Como veremos em nosso estudo, o conceito de discurso, pela visão da linguística, é muito mais complexo, pois, além desses aspectos considerados pelos dicionaristas, ainda são elencados fatores como significado, condições de produção e recepção, o contexto em que o discurso se realiza, relações semânticas e pragmáticas e as possibilidades de retextualização de um mesmo enunciado. Conforme veremos mais adiante, assim como a palavra é a unidade básica da frase e a frase é a unidade básica para a produção do texto, o texto é a unidade básica do discurso, embora os textos possam estar representados nas mais diversas tipologias. Um princípio, no entanto, é preponderante no discurso: a ideologia de que ele se encontra revestido. Dooley e Levinsohn (2003), ao apresentarem suas teorias sobre Análise do Discurso, levam em consideração quatro aspectos fundamentais no que se refere à realização e à dimensão do discurso. A Análise do Discurso segue várias linhas de estudo, porque são diversas as considerações conceituais a respeito de discurso. Algumas são referentes a aspectos restritos dentro da análise linguística e localizam-se no limite do uso particular que se faz da língua; outras, no entanto, de caráter mais amplo, extrapolam os limites da concretude linguística e ingressam em profundidade nos aspectos micro e macroestruturais, que constituem o enunciadodiscursivo e o próprio ato da enunciação. Possenti (2002, p. 18) assume esta última posição em relação à noção de discurso, como podemos perceber pela explicação a seguir: O discurso é entendido [...] como um tipo de sentido, uma posição, uma ideologia – que se materializa na língua, embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de expressão da língua. É pela “exploração” de certas características da língua que a discursividade se materializa. [...] Ou seja, o discurso se constitui pelo trabalho COM e SOBRE os recursos de expressão, que produzem determinados efeitos de sentido em relação com posições e condições de produção específica. Ao explicar a noção de discurso, Possenti esclarece a importância do ponto de vista declarado no discurso, que é revestido pelas ideias, pelas crenças, pelas tradições, pelos princípios e pelos mitos que expressam os valores de indivíduos ou grupos sociais, mesmo que não apresentem relação alguma com as construções linguísticas utilizadas. Vai mais adiante, afirmando a necessidade de buscar esse sentido não só nos constituintes explícitos no texto, mas no contexto em que este se realiza e/ou para o qual ele se dirige, mantendo, conjuntamente, a preocupação com o papel desempenhado tanto pelo produtor como pelo receptor da mensagem. Como nossa preocupação, neste capítulo, não é com os aspectos estruturais do discurso, tampouco com a sua metodologia, mas com as bases teóricas que o fundamentam, é de capital relevância considerar os princípios determinados por Ducrot (1972, 1987) no que se relaciona à Análise do Discurso. Ao tratar desse assunto, o autor ressalta a importância de se enfatizar o papel da Semântica na construção do discurso, visto ser o SENTIDO o determinante principal do uso que se faz dele. Para tal, ele ainda se refere ao quanto é relevante ter claras as noções de enunciado e enunciação, para poder argumentar sobre o verdadeiro papel do discurso. Assim, temos que enunciado é a realização concreta, oral ou escrita, de uma frase, enquanto enunciação envolve todos os elementos intrínsecos ou extrínsecos que influenciaram a produção e a recepção de determinado enunciado. Uma vez clareadas essas diferenças, o autor estabelece seis LEIS FUNDAMENTAIS que devem determinar (para não dizer normatizar) o discurso, descritas a seguir: O que fica cada vez mais evidente, em nosso estudo, é que, ao tratarmos da Análise do Discurso, nossa atenção está voltada muito mais para os aspectos macroestruturais (externos ao texto como realização linguística) do que para os aspectos lógicos explícitos no discurso. Fica patente que a preocupação maior está centrada no sentido veiculado no e pelo discurso, bem como nas condições de produção e recepção pelos locutores/ouvintes. Como estamos abordando várias teorias e, da mesma forma, vários teóricos, reflitamos um pouco sobre a abordagem que faz Orlandi sobre a Análise do Discurso: “A análise do discurso visa fazer compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico, pois eles intervêm no real sentido". (ORLANDI, 2005, p. 26) Essa autora é mais uma teórica que ressalta a importância da interpretação da simbologia dos elementos discursivos como determinante na compreensão do verdadeiro sentido que contém o discurso. Fica evidente, dessa forma, que o sentido verdadeiro do discurso não está contido apenas nas construções linguísticas envolvidas na enunciação, mas implica o domínio da relação entre o contexto e o discurso para que o sentido se concretize. Também, para a autora, é fundamental, na produção do discurso, saber quais sentidos são identificados pelo receptor, pois a sua relevância está condicionada à importância que esses sentidos desempenham em sua realidade. Orlandi ainda afirma: “Os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitoS". (ORLANDI, 2005, p. 30) Como podemos perceber, as relações contextuais e de produção de sentido do discurso vão além da intenção do orador, porque elas dependem da sintonia com outros fatores, tanto de produção como de recepção, e lhes são totalmente aleatórias, portanto, impossíveis de serem controladas. Esses fatores têm múltiplas proveniências. Eles têm sua origem no comportamento psíquico e social dos indivíduos, bem como na própria história do sujeito receptor e de sua comunidade. Também, aqui, há que se dar relevo à cultura e ao saber (conhecimento de mundo) tanto do produtor como do receptor do discurso. Assim como Orlandi (1988, p. 19), Barros, citado por Fiorin (2006), propõe uma Análise do Discurso à luz da Semiótica. Para a autora, a Semiótica vai além dos limites da frase para explicar as relações de sentido do discurso. Ela busca o sentido nos mecanismos e processos utilizados para a produção do texto, pois é aí que se localizam essas relações e não nas construções linguísticas abstratas das frases ou sentenças que compõem o texto. A autora ressalta, além dos constituintes históricos que formam o sujeito, a sua bagagem cultural, a qual se manifesta na produção do texto, que é a base para o discurso. Para concluir nosso estudo, citamos Maingueneau (1997), que fundamenta seus estudos nos princípios da Análise do Discurso de cunho francês, linha que associa o estudo do texto com a história, através de uma metodologia de abordagem específica, visto a relevância da tradição das produções literárias. Maingueneau (p. 18) assim determina o objeto de estudo da Análise do Discurso: A AD não é, pois, uma parte da linguística que estudaria os textos, da mesma forma que a fonética estuda os sons, mas ela atravessa o conjunto de ramos da linguística: Os funcionamentos discursivos socialmente pertinentes atravessam a matéria linguística, sem preocupar-se com suas fronteiras que, para outros fins, puderam ser traçadas entre sintaxe, semântica e pragmática. [...] A dimensão ideológica do funcionamento do discurso diz respeito a operações que podem se situar em níveis muito diferentes da organização da matéria linguística. Afirmamos, então, que, segundo a linguística, o alcance da Análise do Discurso vai muito além dos limites da própria linguística enquanto ciência da linguagem. Ela se manifesta a partir da compreensão e da interpretação das ideologias que determinam o comportamento das sociedades nas mais diferentes épocas. Essas ideologias relacionadas ao comportamento dos sujeitos é que determinam as direções, a amplitude, os constituintes e os processos da produção discursiva. A Análise do Discurso de orientação francesa, segundo Maingueneau (1997), é bastante incisiva quanto à impossibilidade de delimitação de sua abrangência, visto os processos metodológicos de análise serem múltiplos e as formas de abordagem ilimitadas. Tanto é assim que a autora a compara com a linha de estudo americana (Estados Unidos). Para justificar esse postulado, vejamos o quadro a seguir. Quadro 1 – Análise do Discurso: orientação francesa versus anglo-saxã Fonte: Gadet, citado por Maingueneau, 1997. Pelo quadro exposto, conseguimos perceber as diferentes linhas de abordagem da Análise do Discurso. Enquanto a linha francesa centra seus estudos na linguagem escrita, a linha americana toma a oralidade como matéria de estudo. Além disso, temos naquela uma observação essencialmente linguística e histórica, visto ser o discurso de cunho ideológico, e esta, por se centrar na forma comunicativa mais usual, que é a oralidade, uma preocupação com os processos mentais e sociológicos, portanto, eminentemente antropológicos, voltados para a interação imediata dos sujeitos participantes do discurso. Enquanto a primeira enfatiza a produçãoliterária, retomando as tradições, a segunda se concentra nas produções orais, que fazem parte da coletividade, mais imediatas. A Análise do Discurso, como vimos, é um campo que não se esgota, devido à multiplicidade de possibilidades teóricas de abordagem e, principalmente, por ser o discurso um expediente que se reveste das mais variadas possibilidades de realização. DOOLEY, R. A.; LEVINSOHN, S. H. Análise do discurso: conceitos básicos em linguística. Petrópolis: Vozes, 2003. DUCROT, O. Princípios de semântica linguística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1972. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FIORIN, J.L Elementos de análise do discurso. 14ª ed., São Paulo: Contexto, 2006. HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2925 MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3ª ed., Campinas: Pontes, 1997. ORLANDI, E.P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6ª ed., São Paulo: Pontes, 2005. ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. Campinas: Cortez/Ed. da Unicamp, 1988. POSSENTI, S. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito.Curitiba: Criar Edições, 2002. Introdução Este capítulo centra-se na relação estudada pela Psicolinguística, a relação entre a linguagem e a mente. Traz uma abordagem das correntes psicológicas, que têm como principal representante Wilhelm Wundt, e aponta os historiadores que contribuem para que se tenha uma melhor compreensão acerca das teorias comportamentalistas. Apresenta também uma discussão sobre diferentes visões linguísticas acerca da estreita relação da linguagem com o pensamento. Para concluir o capítulo, retoma-se Mikhail Bakhtin e abre-se uma discussão sobre os três níveis de processamento da linguagem. Para este estudo, é importante saber que, sob o nome depsicolinguística, encontram-se vários trabalhos de pesquisa que se relacionam com a linguagem e a mente. Há uma certa impossibilidade de delimitar esse campo, dadas as diferentes fontes utilizadas como parâmetros. Alguns teóricos têm como referência os princípios da psicologia para explicar a linguagem; outros partem dos princípios da linguística, reduzindo-os aos mecanismos mentais. Parece-nos que vem de longa data a preocupação com o relacionamento da língua com o pensamento. A psicolinguística, como todas as ciências, passou por vários períodos em seu desenvolvimento até termos o que hoje é considerado como tal. Com base nisso, entendemos que a psicologia, inicialmente, entendia que a mente possuía estruturas semelhantes às da linguagem e, por isso, lançava mão da teoria e da pesquisa linguística. Surgem, então, duas correntes: a) CORRENTE MENTALISTA (de tradição europeia) – para entender as estruturas mentais, estuda profundamente as estruturas da linguagem. b) CORRENTE COMPORTAMENTALISTA (de tradição americana) – tenta entender o comportamento linguístico, considerando-o no nível de mecanismos de estímulo-resposta. A LINGUÍSTICA, por sua vez, pelo método histórico, por meio dos estudos de Wundt (um dos fundadores da psicologia), já se valia das teorias desenvolvidas pela psicologia para explicar as mudanças linguísticas. Os historicistas tinham como pressuposto básico em seus estudos a teoria evolutiva das espécies e, consequentemente, aplicavam-na aos estudos da linguagem. Para eles, a consciência que a sociedade tem de si mesma é produto de sua memória social, ou seja, de suas lutas e conquistas, e isso cria o que se chama de identidade social. O que mantém a unidade dentro dessa identidade é o conhecimento da origem e do desenvolvimento da própria língua, visto que ela conserva em si todos os matizes de sua própria história, considerando todas as suas variações através do tempo até o estágio atual. Para os comportamentalistas, a linguagem nada mais é do que atos de fala observáveis, sendo secundário o papel das estruturas mentais ou cognitivas, isto é, o que se impõe são as sentenças ouvidas e pronunciadas pelos ouvintes e pelos falantes na situação comunicativa oral. Após essa fase inicial da psicolinguística, vários autores a compreendem como constituída de períodos, segundo a orientação teórica de estudo. Veremos, brevemente, a seguir, como se constituíram esses períodos. Período formativo O primeiro período da psicolinguística foi o PERÍODO FORMATIVO. Para Balieiro Jr. (2005), a preocupação era com os estados das mensagens e os estados dos comunicadores. Entrelaçam-se as pesquisas do campo da psicologia com as do campo da linguística e vice-versa. Por isso, enquanto a linguística se preocupa com os estados das mensagens, a psicologia dá atenção aos estados dos comunicadores. É conferida importância fundamental para o estado emocional (psíquico), tanto do falante quanto do ouvinte. Os processos comunicativos de ambos na comunidade de fala se estabelecem conforme sua posição social. Dessa forma, fica evidente a questão da percepção e da produção da linguagem. Também se levam em consideração a neurofisiologia da linguagem e a relação existente entre pensamento e linguagem. Nesse período, é de fundamental importância a consideração dos danos causados por lesões cerebrais que tenham sofrido os comunicadores e que, de uma forma ou de outra, irão refletir-se no processamento dos códigos linguísticos. Quanto ao estudo das mensagens, os linguistas, por meio de uma metodologia científica apropriada, preocupam-se com tudo o que possa interferir na recepção e na transmissão física da mensagem, com os códigos utilizados e com o conhecimento, que tanto codificador como decodificador devem possuir no que se relaciona à apropriação e ao processamento da leitura e da escrita. Para melhor entendimento desse período de discussões controversas, o autor menciona a teoria da informação, reproduzindo o esquema formulado por Shannan e Weaver. Após a teoria da informação, mais recentemente, em 1957, Chomsky publicaSyntatic Structures, dando início ao segundo momento da psicolinguística, que se chamou período linguístico. Período linguístico Balieiro Jr. enfatiza que o princípio básico postulava, com ênfase, a competência e sua missão na construção e na descrição de uma gramática que permitisse o entendimento do surgimento da linguagem e de como ela se diferencia, em línguas distintas, na mente humana. A esse respeito, esclarece Cabral (1976, p. 29): N. Chomsky, ao delimitar o objeto de uma teoria linguística, faz menção à dicotomia saussureana, mas usando uma terminologia diferente, a de competência e performance. Convém, no entanto, precisar o alcance desses dois termos dentro da Teoria da Gramática Gerativa e Transformacional, a fim de não pairarem dúvidas. A teoria da performance foi relegada a segundo plano. A preocupação maior estava voltada para a testagem do modelo gerativista. Para Chomsky, a faculdade da linguagem é própria do ser humano, apresentando diferenciações (variações) muito pouco significativas e não encontrando nenhum outro correspondente em seu domínio. Sobre essa posição, o autor explica que a faculdade humana da linguagem parece ser uma verdadeira propriedade dentro da espécie, variando muito pouco entre os seres humanos e sem um análogo significativo em outro domínio. Os sinais linguísticos são usados para representar o pensamento e servem de instrumentos na interação social do homem. Para ele, a faculdade da linguagem pode ser considerada como “órgão”, como os demais órgãos vitais do corpo humano, tal sua importância no processo de sobrevivência do homem. Sobre isso, afirma o autor: A faculdade da linguagem pode perfeitamente ser considerada um ‘órgão da linguagem’, no sentido queos cientistas conferem ao sistema visual, ao sistema imunológico ou ao sistema circulatório como órgãos do corpo. Entendido dessa maneira, um órgão não é algo que possa ser removido do corpo, deixando o resto intacto. Trata-se de um subsistema de uma estrutura mais complexa. Desejamos compreender a total complexidade, investigando as partes que têm características distintivas e interação entre elas. Em oposição às teorias linguísticas gerativistas, que postulavam a existência de uma gramática universal internalizada na estrutura mental do falante, a teoria léxico-funcional da gramática se apoia na teoria dos fatores de processamentos mentais para explicar a linguagem. Simplificando, podemos afirmar que funciona mais ou menos assim: quando reproduzimos determinados conhecimentos adquiridos, não reproduzimos as estruturas sintáticas e gramaticais utilizadas no momento da recepção de tais conhecimentos, mas o fazemos com novas estruturas que apresentam semelhanças lexicais e semânticas com aquelas que nos foram transmitidas. Sobre essa teoria, afirma Balieiro Jr. (p. 179): Essa teoria exemplifica bem a forma como ocorrem as operações teóricas na Psicolinguística: partindo do estudo de tarefas reais, tais como entender, armazenar e recuperar estruturas linguísticas, os autores elaboraram o pressuposto de que é mais fácil recuperar informações da memória do que executar transformações gramaticais. Levando-se em consideração os aspectos funcionais da linguagem, que não desprezam a teoria léxico-funcional da gramática, afirma Weedwood (2002, p. 149) que a nossa escolha da língua em situação de interação social depende de inúmeros fatores, que se inter-relacionam (como a relação entre locutor e interlocutor, a dinâmica complexa da enunciação e o próprio enunciado em realização). Diz ela, ainda, que a Pragmática e a Semântica, ciências que tratam do significado e da intencionalidade, preocupam-se com as intenções do falante e tudo o mais que constitui o ato enunciativo para a elaboração do discurso. Incluem-se aqui aspectos relacionados à vontade, à necessidade e à intenção do falante, bem como à capacidade intelectual do ouvinte de entender e interpretar a mensagem recebida. Para os teóricos da linguagem, modernamente, tanto o falante quanto o ouvinte possuem uma espécie de léxico, ou mais propriamente, um dicionário mental em que se armazenam as palavras proferidas ou ouvidas por ambos. Para isso, devem ser consideradas as relações que se estabelecem entre as estruturas enunciadas e os contextos vivenciados por eles. Segundo Chomsky (2005), cada linguagem resulta de um estado inicial, quando ocorre a aquisição da linguagem em que a experiência é o input que produz a linguagem como output (ou seja, a competência linguística do falante dinamiza o complexo sistema que constitui a linguagem), sendo este último representado internamente, ou seja, na mente ou cérebro. Para melhor esclarecer essa teoria, ele propõe que se estabeleça relação com a Gramática Gerativa. Fazendo referência às bases e aos princípios dessa gramática, afirma ter demonstrado através de suas pesquisas que a criança sabe muito mais do que a experiência ofereceu a ela. Isso é verdadeiro mesmo em relação a palavras simples. Em períodos de pico de aquisição da linguagem, a criança adquire palavras numa média de cerca de uma palavra por hora, com exposição muito limitada e sob condições muito ambíguas. As palavras são entendidas de maneiras delicadas e intrincadas, as quais estão muito além do alcance de qualquer dicionário, e apenas no início de sua investigação. Chomsky também explica que que a Gramática Gerativa procura descobrir os mecanismos usados para facilitar a compreensão de modo criativo pelo ser humano normal e ainda conclui que todos esses mecanismos continuam como grandes mistérios para todos na atualidade. A questão da relação entre a linguagem e a mente é discutida com exaustão por Chomsky em vários de seus artigos. Dando continuidade à nossa discussão, chegamos ao terceiro momento das teorias que envolvem a linguagem e a mente, o período que se denominou decognitivo. Período cognitivo Sobre isso nos diz Balieiro Jr. (p.179): As estruturas linguísticas (ou sintáticas) não são adquiridas separadamente de conceitos semânticos e funções discursivas, além de estarem submetidas ao governo de princípios cognitivos. A aquisição da linguagem é explicada como o resultado da interação entre vários fatores, de tal forma que os sistemas linguísticos são, em última análise, um produto de estruturas cognitivas mais básicas ou profundas. O que podemos deduzir dessa afirmação é que as estruturas linguísticas estão atreladas aos significados que elas representam e que se dão conforme as funções inerentes à própria linguagem (emotiva, conativa, expressiva, etc.). Além disso, dependem de como se processa sua aprendizagem, considerando-se a percepção dos indivíduos e ainda a capacidade que cada um tem ao usá-las. Temos como teóricos de renome nesse período: Kess, Chomsky, Fodor, Garret e Bever. Todos eles confirmam a relação da linguística com outras ciências, como a psicologia, a antropologia e a filosofia da linguagem. A partir da década de 1960, vamos encontrar, a respeito da visão que liga linguagem e mente, as teorias do grande linguísta russo Bakhtin, falecido em 1975, as quais criticam essa relação, gerando, assim, novas discussões. Para ele, a língua se realiza na mente e é influenciada pelos estados psíquicos dos indivíduos. Weedwood nos apresenta as seguintes afirmações de Bakhtin sobre essa concepção: 1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (energia), que se materializa sob a forma de falas individuais. 2. As leis de criação linguística são essencialmente leis individual-psicológicas. 3. A criação linguística é uma criação racional análoga à criação artística. 4. A língua, na qualidade de produto acabado (‘ergon’), na qualidade de sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava esfriada da criação linguística, abstratamente construída pelos linguístas em vista de sua aquisição prática como ferramenta pronta para o uso. Como podemos inferir, a primeira afirmação de Bakhtin atribui à língua a qualidade de ser inerente ao ser humano, uma vez que só ele tem o dom da fala. Em seu segundo postulado, o autor afirma a questão da individualidade e dos estados emocionais (psicológicos) do indivíduo na produção das estruturas linguísticas. Em sua terceira posição, Bakhtin defende que as estruturas linguísticas são produtos da razão, portanto da mente. Por fim, afirma que a linguagem (tomada como produto acabado e como sistema estável) é resultante de uma criação abstrata adquirida como instrumento a serviço da comunicação. Para finalizar nosso estudo sobre psicolinguística, vale salientar sua importância para as ciências cognitivas e as contribuições que trouxe para elas, bem como para os estudos que tratam da relação entre a linguagem e o funcionamento do cérebro, dos aspectos biológicos da fala e do processamento de sinais, das questões relacionadas com o signo e suas significações lexicais e da aprendizagem de uma segunda língua. Cabe aqui a transcrição de um trecho do texto de conclusão de Balieiro Jr. (179 - 180): E hoje, com a emergência e a influência das ciências cognitivas, as metáforas e modelos têm apontado para um paradigma ‘computacional’ em que a linguagem é entendida como um processo simbólico, que opera símbolos e toma decisões baseadas em conhecimento armazenado e/ou deduzido deste. Essa postura envolve a Psicolinguística (e a Linguística também) com questões mais amplas, como a natureza do conhecimento, a estrutura das representações mentais e seu papel no processamento. Parece-nosque a questão central é a que diz respeito às unidades constituídas de significado e sua identificação no processo da linguagem, isto é, a preocupação é com o modo como se dão a recepção e a produção da fala e seu processamento na ordenação da sentença, conforme seus constituintes e sua relação com os objetos a que se referem de maneira lexical, segundo o contexto em que estão inseridos. Para que melhor se compreenda esse difícil esquema de recepção e produção da fala, Garman, citado por Balieiro Jr. (179), diz que distingue três níveis de análise do processamento linguístico. O primeiro deles refere-se à codificação e à decodificação da mensagem, a que ele chamou nível linguístico, relacionado aos aspectos morfológico, semântico, lexical e sintático; o segundo, mais voltado para a anatomia dos comunicadores, diz respeito à produção e à recepção da fala, portanto, se dá no chamado nível fonológico; o terceiro, que se relaciona ao entendimento e à identificação dos constituintes sonoros, é denominado nível acústico. Esses três níveis estão inter-relacionados e são indissociáveis. Como pudemos perceber pelo estudo que fizemos, é muito complexa a análise referente à linguagem e à mente. É necessário que tenhamos sempre claro que critérios e linhas teóricas serão adotados para o estudo da psicolinguística, e que existem na área várias correntes de pesquisa. BALIEIRO JUNIOR, A. P. Psicolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística 2: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005, p. 171-201. CABRAL, L. S. Introdução à linguística. 3ª ed., Porto Alegre: Globo, 1976. CHOMSKY, A. N. Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente. São Paulo: Ed. da Unesp, 2005. OSGOOD,C.E & SEBEOK, T.A. (orgs.). Psycholinguistics: a survey of theory and research problems. 2ª ed., Baltimore, Indiana University Press, 1954. WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002. WUNDT. W. An introduction of physiological psychology. London: Swan Sonnesnehein, 1910. Introdução Este capítulo tem como objetivo mostrar que o texto, com base nos pressupostos teóricos desse campo de pesquisa, é muito mais que a simples soma das frases e, após propor um resgate histórico da constituição desse novo ramo da linguística, ainda coloca em discussão conceitos que vêm romper com uma proposta restrita de ensino e aprendizagem da língua. Independentemente da área que queiramos abordar na ciência linguística, sempre devemos estar atentos à linha teórica adotada, visto serem diversas as tendências que orientam cada uma delas. Estudar Linguística Textual não segue um caminho diferente. Vimos, em capítulos anteriores, que dois aspectos são determinantes em qualquer abordagem: um, de cunho essencialmente formalista, e outro, de caráter funcionalista. No que se refere à Linguística Textual (doravante LT), será nossa intenção dar ênfase, principalmente, à segunda orientação. O que podemos afirmar é que, conforme Bentes (2005), a LT aparece a partir da década de 1960, em oposição à interpretação saussuriana estruturalista de que a língua deve ser entendida como sistema e como código, a serviço da informação na interação social. Outros autores, como Fávero e Koch (1988), apontam como causas prováveis e determinantes do surgimento das gramáticas regidas pelos princípios da LT os grandes vazios que apresentaram as gramáticas voltadas para o estudo da frase em suas relações correferenciais, recorrenciais e sequenciais, que se manifestam quando tomadas em função de um texto ou aplicadas a um determinado contexto, conforme a situação em que elas ocorram. A esse respeito, informam as autoras: Entre as causas que levaram os linguistas a desenvolverem gramáticas textuais, podem-se citar: as lacunas das gramáticas de frase no tratamento de fenômenos tais como a correferência, a pronominalização, a seleção dos artigos (definido ou indefinido), a ordem das palavras no enunciado, a relação tópico-comentário, a entonação, as relações entre as sentenças não ligadas por conjunções, a concordância dos tempos verbais e vários outros que só podem ser explicados em termos de texto ou, então, com referência a um contexto situacional. (p. 12) A partir da colocação das autoras, parece-nos claro que somente uma gramática textual seria capaz de compreender e interpretar esses fenômenos, porque ela traria, em seu bojo, a consideração sobre os aspectos semânticos, pragmáticos e sintáticos que envolvem o ato elocutório. Com isso, podemos concluir que as gramáticas de frase encerram sua análise nos limites da sentença, ou seja, trabalham com os componentes frasais como simples estruturas, que compõem isoladamente um enunciado e que têm seus limites nos sinais de pontuação, que determinam o final do enunciado. Hoje compreendemos que uma frase só tem sentido se estiver relacionada ao contexto ao qual ela faz referência e se houver a interação dos indivíduos como participantes da construção. Pelas informações encontradas em Bentes e em Fávero e Koch, entendemos que foram diversos os momentos de surgimento das teorias da LT e, também, que vários são os teóricos que lhe fazem referência. Cada um deles contribui com um enfoque específico dentro da nova linha de abordagem da língua. Considerando a amplitude do objeto de estudo e da abordagem da LT, Bentes aponta três momentos fundamentais para o seu desenvolvimento: Em um primeiro momento, o interesse predominante voltava-se para a análise TRANSFRÁSTICA, ou seja, para fenômenos que não conseguiam ser explicados pelas teorias sintáticas e/ou pelas teorias semânticas que ficassem limitadas ao nível da frase; em um segundo momento, com a euforia provocada pelo sucesso da Gramática Gerativa, postulou-se a descrição da competência textual do falante, ou seja, a construção de GRAMÁTICAS TEXTUAIS; em um terceiro momento, o texto passa a ser estudado dentro de seu contexto de produção e a ser compreendido não como um produto acabado, mas como um processo, resultado de operações comunicativas e processos linguísticos em situações sociocomunicativas; parte-se, assim, para a elaboração de uma teoria do texto. (p. 246-247) Como podemos perceber, a preocupação das linhas teóricas até hoje identificadas vai desde a impossibilidade de explicar certos fenômenos linguísticos − que vão além daquilo que registram as frases proferidas em um discurso − e passa pela dicotomia chomskyana competência/performance, com ênfase especial na competência textual do sujeito. Melhor explicando cada um desses momentos, podemos afirmar que, para Bentes, no primeiro momento, ou seja, na ANÁLISE TRANSFRÁSTICA, a direção adotada para o estudo da língua parte da constituição da frase até atingir a totalidade do texto. Sob essa perspectiva, percebe-se que as gramáticas de base não determinam as referenciações que se dão entre as frases dentro do texto, como é o caso da referência que se faz através de um pronome em relação a um nome antecedente, além do que é estabelecido pela Sintaxe ou pela Semântica. Essas gramáticas estabelecem apenas que o pronome é um substituto do nome. A relação de co-referenciação, segundo a autora, só pode ser entendida se a frase for analisada dentro de um texto. Exemplificando, é o que ocorre quando realizamos a seguinte construção: O que a TRANSFRÁSTICA pretende demonstrar é que, na informação dada, o pronome ele não é apenas uma substituição pura e simples do nome João. O pronome tem função coesiva, conectiva, entre a segunda predicação e seu referente, que está explícito na declaração anterior (João). Conforme essa teoria, o leitor/ouvinte estabeleceria de imediato a relação entre ele (pronome) e seu antecedente (João). Outra situação em ocorrência na transfrástica, abordada por Bentes(2005), contempla a ausência de conectores em algumas operações frasais complexas, em que a relação coesiva se dá não pelo tipo lógico, mas de forma discursivo-contextual. Sobre essa possibilidade, afirma a autora: “Nesse caso, caberia ao ouvinte/leitor construir o sentido global da sequência, estabelecendo mentalmente as relações argumentativas adequadas entre os enunciados (p. 249). Seguindo essa orientação teórica, a ocorrência se daria nas seguintes construções: Na sentença (1), percebemos a ausência do articulador mas, que estabelece uma relação de contrariedade, de adversidade, em relação à primeira informação e que é facilmente identificável pelo leitor/ouvinte. Na construção (2), a relação explicativa é fácil de ser detectada, embora haja ausência do articulador por isso, que também se faz presente através dos diversos significados e da ênfase dada a algum elemento da frase ou a uma determinada frase. Já na construção (3), a circunstância conclusiva se define, ainda que esteja ausente o articulador logo, pelo sentido constituído pelo contexto. Não devemos esquecer que, além das pronominalizações e do uso de articuladores, outros processos transfrásticos existem, conforme citamos anteriormente. Devemos ter claro que a intenção da autora é fazer prevalecer a noção de que trabalhamos por muito tempo com o significado dos constituintes frasais, e isso levou à construção de gramáticas textuais. Sobre essas gramáticas, afirma Bentes: Nas primeiras propostas de elaboração de gramáticas textuais, nas palavras de Marcuschi (1998), tentou-se construir o texto como objeto da Linguística. Apesar da ampliação do objeto dos estudos da ciência da linguagem, ainda se acreditava ser possível mostrar que o texto possuía propriedades que diziam respeito ao próprio sistema abstrato da língua. (p. 249) Segundo a autora citada, o texto, como a língua, era uma entidade abstrata, homogênea e não constituída de transformações, por isso, diferente do discurso, que apresenta um caráter vivo, com função determinada dentro do processo de comunicação e construído pelos sujeitos participantes da ação. Para Fávero e Koch, a importância da transfrástica é relevante, tanto que afirmam: Embora se deva reconhecer que, nesse primeiro momento, deu-se um passo à frente, ao se superarem os limites da frase, e que se preparou, de certa forma, o terreno para uma gramática textual, não se pode dizer, porém, que se tenha chegado a um tratamento autônomo do texto, nem que se tenha construído um modelo teórico capaz de garantir um tratamento homogêneo dos fenômenos pesquisados. (p. 13-14) Vemos, portanto, que ambas compreendem a importância daquele momento e chamam a atenção para os rumos que, a partir de então, deveriam ser observados na análise linguística frasal. Salientam ainda que não estavam prontas, neste momento, as diretrizes teóricas que iriam embasar todos os fenômenos estudados. O que destacamos no estudo de Fávero e Koch é a preocupação de estabelecer uma relação direta com as teorias chomskyanas ao se referirem à gramática textual. Em princípio, elas deixam claro que não há uma continuidade entre a frase e o texto, porque entre ambos há que se considerar aspectos qualitativos que são determinantes para a compreensão do contexto e do próprio enunciado. Tanto que a quantidade não é fator determinante, pois o texto não deve ser tomado como um simples aglomerado de sentenças, mas tomado como tal a partir da competência textual do falante, que lhe possibilita distinguir um texto coerente de um amontoado de frases desconexas. Quanto à competência, ressaltam as linguistas, é ela que permite ao falante a capacidade de resumir, retextualizar, parafrasear, identificar a completude ou a incompletude de um texto. Também lhe dá possibilidades muito maiores na análise e produção de textos, o que justificaria a construção das gramáticas textuais. Para os autores, as tarefas principais de uma gramática de texto são: Continuando em seus comentários, as autoras referenciam os linguistas Lang e Petöfi, citados por Fávero, como representantes defensores da gramática de texto. A teoria de textos, que corresponde ao terceiro momento da LT, tem como postulado o entendimento do texto a partir de sua utilização, ou seja, considera os aspectos pragmáticos e tem por princípio entender, em primeiro lugar, o seu contexto de realização num sentido amplo, destacando seus aspectos macroestruturais, como as condições de produção, recepção e interpretação. O que podemos compreender, neste momento, é que a preocupação está mais voltada para a relação que o texto estabelece com o produtor e o receptor, levando em consideração, além da competência textual, todas as regularidades que constituem o texto. Dentre elas, podemos considerar o uso adequado da linguagem em sintonia com o contexto em que o texto irá circular e com as condições que estarão presentes no que se refere tanto ao produtor como ao receptor do texto. É o uso do texto que irá determinar como ele deverá estar constituído pragmática, sintática e semanticamente, segundo Oller, citado por Fávero e Koch (p. 19) Com o surgimento da ideia de construção de gramáticas textuais, tornou-se necessário estabelecer um conceito para texto. Em torno desse propósito, são múltiplas as discussões e são variadas as linhas teóricas. Passemos, então, para uma outra fase de nossos estudos. Vemos que não é tão simples conceituar o texto,e, como vem todas as outras áreas da linguística, a definição do objeto de pesquisa dependerá da visão teórica adotada pelo pesquisador. Encontramos linguistas, como Stammerjoham (1975), que consideram texto todo enunciado que esteja constituído de, pelo menos, dois signos linguísticos, na forma oral ou escrita, podendo, também, ter uma extensão máxima não determinada. A referência encontrada em Bentes discute tanto o seu conteúdo quanto a sua delimitação, o que o torna um produto acabado e não existente em outro contexto que não o de sua produção ou de sua recepção. Podemos compreender, a partir disso, que os constituintes textuais e os constituintes frasais devem ser analisados isoladamente, ao mesmo tempo que as condições do seu isolamento. Outros autores são mencionados pelas linguistas citadas anteriormente, sendo que cada um defende uma posição e princípios incontestáveis ao propor suas próprias definições de texto. Contemporaneamente, encontramos a definição de Koch (2002, p. 16), que leva em consideração a importância das concepções que temos de língua e de sujeito. Para justificar sua posição, ela esclarece: No primeiro caso, o texto é produto do pensamento, portanto, racional, lógico, e o sujeito é senhor absoluto de seus pensamentos e de sua fala (discurso). Ele diz o que pensa, o que acredita, sem preocupação de agradar o sistema. Ele tem a sua verdade e acredita nela. Cabe ao leitor/ouvinte apenas receber sua mensagem, sem questioná-la. A este cabe apenas o papel de receptor da mensagem, sem discuti-la. Na segunda concepção, o texto é um produto codificado por um agente que reproduz o que o sistema quer, o que a sociedade quer ouvir; suas ideias estão explícitas, não importando suas ideologias e seus valores. O leitor/ouvinte é mero receptor, basta-lhe apenas conhecer os códigos linguísticos utilizados na transmissão da mensagem. Na última concepção, temos, então, o texto como agente da interação entre o produtor e o receptor, pois ambos são formadores de opiniões e, portanto, elementos ativos dentro da sociedade na qual convivem. O texto é rico em informações implícitas e leva-se em conta a capacidade de compreensão e interpretação de ambos os participantes do ato comunicativo. Como vimos, são vários os conceitos e as concepções do que seja texto. Mais adiante, em nossos estudos, teremos a oportunidade
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