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95RBGO - v. 25, nº 2, 2003 Trabalhos Originais 25 (2): 95-102, 2003RBGO Introdução A vaginose bacteriana representa distúrbio ginecológico extremamente comum em nosso meio, sendo causa bastante freqüente de consul- ta médica1. Sua sintomatologia pode ser bastante incômoda para as pacientes, pois além da queixa de corrimento genital refere-se muitas vezes odor vaginal desagradável, que se acentua durante a Tratamento da Vaginose Bacteriana com Gel Vaginal de Aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi): Ensaio Clínico Randomizado Treatment of Bacterial Vaginosis with Schinus terebinthifolius Raddi Vaginal Gel: a Randomized Controlled Trial Melania Maria Ramos de Amorim, Luiz Carlos Santos Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (IMIP) Recife/PE Correspondência: Melania Maria Ramos de Amorim Rua Neuza Borborema de Sousa, 300 – Bairro Santo Antônio 58103-313 – Campina Grande – PB e-mail: melamorim@uol.com.br RESUMO Objetivos: testar a eficácia e a tolerância do gel de aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi) para tratamento da vaginose bacteriana. Métodos: quarenta e oito mulheres com vaginose bacteriana sintomática (de acordo com os critérios de Amsel) foram incluídas em ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado, comparando-se o uso do gel vaginal de aroeira (25 casos) com placebo (23 casos). Os principais desfechos avaliados foram: taxa de cura, presença de lactobacilos na colpocitologia depois do tratamento e efeitos colaterais. Realizou-se análise estatística usando os testes χ2e exato de Fisher, ao nível de significância de 5%. Resultados: adotando-se os parâmetros clínicos de Amsel para vaginose bacteriana, a taxa de cura foi de 84% no grupo da aroeira e 47,8% no grupo placebo (p = 0,008). Observou-se freqüência significativamente maior de lactobacilos na colpocitologia entre as pacientes tratadas com aroeira (43,5%) em relação ao placebo (4,3%) (p = 0,002). Efeitos adversos relacionados ao tratamento não foram freqüentes em ambos os grupos. Conclusões: o presente estudo indica que o gel vaginal de aroeira é efetivo e seguro para o tratamento da vaginose bacteriana. Além disso, sugerem-se potenciais efeitos benéficos na flora vaginal. PALAVRAS-CHAVE: Vaginose bacteriana. Infecções vaginais. Aroeira. Schinus. Ensaio clínico. menstruação e depois do contato com o fluido se- minal. Desta forma, compromete o equilíbrio biopsicossocial, perturbando inclusive o relacio- namento sexual. Refere-se também aumento do risco de doença inflamatória pélvica aguda (DIPA)2,3. Ainda uma complicação importante re- lacionada à saúde reprodutiva é que, durante a gravidez, a presença de vaginose associa-se a ris- co aumentado de amniorrexe e parto prematuro, abortamento séptico e endometrite pós-cesárea4-11. A vaginose bacteriana constitui infecção polimicrobiana, primariamente anaeróbica. Sua presença representa alteração do ecossistema vaginal, ocorrendo significativa redução dos lactobacilos e elevação do pH (maior que 4,5), com crescimento exagerado de bactérias que podem ser 96 RBGO - v. 25, nº 2, 2003 encontradas em baixa concentração em mulhe- res normais, como Gardnerella vaginalis, Mycoplasma hominis e espécies de Mobiluncus e Bacteroides3,12. Como a Gardnerella vaginalis pode fazer parte da flora vagina normal, apenas sua presença isolada não indica vaginose bacteriana. Assim, nem a colpocitologia (Papanicolaou) nem a cultura somente qualitativa representam métodos diagnósticos confiáveis, uma vez que vários microrganismos associados à vaginose bacteriana também podem ser encontrados em pacientes assintomáticas3,13. Recomenda-se portanto a utilização dos critérios de Amsel para o diagnóstico de vaginose bacteriana14. Estes critérios incluem as características do corrimento vaginal, o pH maior que 4,5, a positividade do teste do whiff e a presença de células-guia na bacterioscopia (exame a fresco ou esfregaço corado pelo Gram). Pelo menos três destes quatro critérios devem estar presentes, sendo que a aplicação desses parâmetros resulta em sensibilidade e especificidade superiores a 90% no diagnóstico da vaginose bacteriana13,14. Em 1999, foi lançado no Brasil o produto farmacêutico contendo o gel de aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi), uma planta medicinal de uso amplamente difundido no Nordeste para tratamento de diversas infecções. O decocto da casca do caule tem sido tradicionalmente utilizado para tratar cervicites e corrimento genital15. Múltiplos mecanismos de ação têm sido descritos para o Schinus, demonstrando-se atividade antiinflamatória não esteróide pela inibição competitiva específica da fosfolipase A2 por dois de seus componentes, o schinol e o ácido masticadienóico16,17. Por outro lado, os biflavonóides, que são dímeros precursores dos taninos, componentes do Schinus, também apresentam ação anti-inflamatória18, e diversas substâncias presentes no extrato do Schinus apresentam atividade antimicrobiana, como a terebinthona, o ácido hidroximasticadienóico, o ácido terebinthifólico e o ácido ursólico. Já se demonstrou, in vitro, atividade contra Klebsiella pneumoniae, Alcaligenes faecalis, Pseudomonas aeruginosa, Leuconostoc cremoris, Enterobacter aerogenes , Proteus vulgaris, Clostridium sporogenes, Acinetobacter calcoacetica, Escherichia coli, Beneckea natriegens, Citrobacter freundii, Serratia marcescens , Bacillus subtilis, Staphylococcus aureus e várias espécies de fungos (Aspergillus)18. Considerando as possíveis implicações des- sa ação antimicrobiana para o tratamento das in- fecções vaginais, realizamos em 2000 um estudo preliminar em que o gel de aroeira foi utilizado por mulheres com diversos tipos de vulvovaginites Amorim et al Gel de Aroeira e cervicites, incluindo 30 pacientes com vaginose bacteriana15. Observou-se percentual de cura de 80% nestas últimas, porém como o estudo não foi controlado, uma das conclusões foi que seria im- portante realizar ensaio clínico randomizado para testar a eficácia da aroeira nesta situação. Desta forma, o presente estudo foi realiza- do, com o objetivo de comparar os resultados do tratamento da vaginose bacteriana com o gel de aroeira em relação a um placebo. Métodos Realizou-se ensaio clínico randomizado in- cluindo 48 mulheres com queixa de corrimento vaginal e diagnóstico de vaginose bacteriana aten- didas no Centro de Atenção à Mulher (CAM) do Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, no pe- ríodo de junho de 2000 a junho de 2001. O tamanho da amostra foi calculado preven- do-se taxa de cura espontânea em torno de 40% no grupo placebo3 contra taxa de cura de 80% no grupo tratado, análoga portanto à taxa de cura para o metronidazol e a clindamicina3,13. Para alcançar poder estatístico de 80% e erro α de 5%, estimou-se a necessidade de 54 pacientes, 27 em cada braço. Devido à chance de perdas de seguimento e exclu- são pós-randomização, preparou-se tabela de randomização para 100 mulheres, sendo 50 desig- nadas aleatoriamente para o tratamento com o gel de aroeira (60 g) e 50 para utilizar o placebo (60 g). No entanto, quando se realizou análise interina de- pois de se completar o seguimento da 50ª paciente, verificou-se superioridade do tratamento em um dos grupos, suspendendo-se a inclusão de novas paci- entes e descontinuando-se o estudo. Excluíram-se dessas 50 duas pacientes que, depois da randomização, desistiram de participar da pesquisa e devolveram a medicação. Os critérios de inclusão foram idade entre 20 e 40 anos, queixa de corrimento vaginal, diag- nóstico de vaginose bacteriana pelos critérios de Amsel3 e consentimento pós-informação para par- ticipar do estudo. Foram excluídas mulheres com atraso menstrual ou gravidez confirmada, integri- dade himenal, outras infecções vaginais (candidíase, tricomoníase) ou doenças sexualmen- te transmissíveis associadas, doença inflamató- ria pélvica, lesões cervicais debaixo ou alto grau e câncer cervical, bem como história de tratamen- to prévio com qualquer medicação (tópica ou sistêmica) ou terapia alternativa no último mês. Realizou-se VDRL para pesquisa de sífilis e ELISA para pesquisa de infecção por HIV. Não foram rea- lizadas culturas específicas para clamídia, 97RBGO - v. 25, nº 2, 2003 Amorim et al Gel de Aroeira gonorréia e outras infecções cervicais, excluin- do-se todavia aquelas que apresentassem clínica sugestiva, especialmente secreção cervical mucopurulenta. Tanto o gel de aroeira como o placebo foram preparados pelo Laboratório Hebron. O gel de aroeira consiste na mistura do extrato hidro-al- coólico do Schinus terebinthifolius Raddi (300 mg) com gel de carbopol (1 grama), glicerina (10 gra- mas), benzoato de sódio (0,125 grama), trietanolamina q.s.p. (pH 4,0-5,0) e água destila- da (2,5 gramas). O placebo foi preparado da mes- ma forma, sem o extrato de Schinus, e colorido artificialmente com corante caramelo, de forma a se tornar semelhante, em aspecto e coloração, ao gel contendo o Schinus. As bisnagas preparadas não foram identifi- cadas previamente como aroeira ou placebo; seu recipiente foi acondicionado em caixas de papelão lacradas, numeradas seqüencialmente de 1 a 100, de acordo com a lista de números randômicos já gerada em computador. Apenas o farmacêutico res- ponsável tinha conhecimento dos códigos da randomização, cuja listagem foi arquivada em lo- cal seguro. Apenas depois de completado o segui- mento da 50a paciente o sigilo foi parcialmente que- brado para que os formulários fossem digitados em computador como grupo A ou B. A análise interina foi realizada sem o conhecimento de qual dos tra- tamentos (A e B) correspondia à aroeira ou ao placebo. Somente depois do término da análise, comprovando-se a diferença entre os grupos, é que o sigilo foi definitivamente quebrado e os grupos identificados (26 no grupo tratado com aroeira e 24 no grupo placebo). Consideraram-se para análise as variáveis: independente - uso de aroeira ou placebo – e de- pendentes - adesão ao tratamento (cumprimento da prescrição), freqüência de vaginose bacteria- na após o tratamento, efeitos colaterais referi- dos (ardor vaginal, queimação, assadura, edema, eritema, exulceração, prurido, sangramento genital), achados colpocitológicos (bacilos de Döderlein e Gardnerella no esfregaço corado pelo Papanicolaou) e freqüência de candidíase vagi- nal pós-tratamento. Diagnosticou-se vaginose bacteriana em pacientes sintomáticas (com queixa de corrimen- to vaginal e/ou odor vaginal desagradável) pelos critérios de Amsel14, quais sejam: corrimento branco ou branco-acinzentado, fluido, recobrindo as paredes vaginais, ou espumoso (microbolhas), geralmente de odor desagradável; teste das aminas positivo (liberação de odor de peixe podre após adi- ção de hidróxido de potássio à lâmina em que se espalha o conteúdo vaginal); pH vaginal maior que 4,5 e achados característicos no exame microscó- pico a fresco (aumento de 40 vezes) do esfregaço vaginal (células-guia ou clue-cells). Além do exame a fresco do conteúdo vaginal, realizou-se ainda colpocitologia (Papanicolaou), VDRL e anti-HIV em todas as pacientes. Depois da randomização, cada paciente recebeu um kit contendo a caixa de papelão com o produto (aroeira ou placebo) e dez aplicadores descartáveis, sendo orientada a usar a medicação por dez dias (um aplicador intravaginal cheio, com 6 gramas do gel, ao deitar), logo após o término da menstruação, na primeira fase do ciclo. Não se fez restrição a atividade se-xual durante o tratamento. Agendou-se o retorno para depois da primei- ra menstruação que se seguisse ao término da medicação. Todas as pacientes receberam car- tões telefônicos para se comunicar com os pes- quisadores em caso de efeitos colaterais, bem como para efetuar a marcação das consultas sub- seqüentes, e vales-transporte para garantir o re- torno na data aprazada. No retorno, todas as pacientes deveriam apre- sentar os aplicadores usados, devidamente condi- cionados em sacos plásticos descartáveis (entre- gues junto com a medicação), para controle e veri- ficação do cumprimento da prescrição. Na consul- ta médica, além da anamnese para pesquisa de sintomas associados, realizou-se novo exame es- pecular, com exame a fresco e coleta de material para colpocitologia oncótica do colo uterino. Anota- ram-se ainda os eventuais efeitos colaterais ou motivos referidos para interrupção do tratamento. O tratamento foi considerado completo quan- do a paciente referiu (e mostrou os aplicadores usados) o uso do medicamento por pelo menos oito dias, e incompleto abaixo de oito dias, anotando- se a duração total. Estabeleceu-se que seriam ex- cluídas da análise de eficácia as pacientes que utilizassem a medicação por menos de cinco dias. Na persistência do diagnóstico de vaginose bacteriana pelos critérios de Amsel em pacientes sintomáticas, realizou-se o tratamento conven- cional com metronidazol gel vaginal 0,75% (5 g/ dia) durante sete dias19. A análise estatística foi realizada com o pro- grama de domínio público Epi-Info 2000, utilizan- do-se os testes χ2 de associação e exato de Fisher, se necessário, considerando-se significativo um erro α menor que 5%. O presente estudo atendeu aos requisitos da Declaração de Helsinque e às recomendações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saú- de. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IMIP e todas as pacientes concordaram voluntariamente em participar do estudo, assinando o termo de consentimento li- vre e esclarecido. 98 RBGO - v. 25, nº 2, 2003 Resultados Não houve diferença estatisticamente significante entre os dois grupos em relação a idade (média em torno de 28 anos), paridade (me- diana de 2), número de parceiros (mediana de 1), escolaridade (mediana de 7 anos completos de es- tudo no grupo placebo e 8 anos completos de es- tudo no grupo da aroeira), uso de contraceptivos hormonais (21,7% no grupo placebo e 28% no gru- po da aroeira) e DIU (8,7% no grupo placebo e 4,0% no grupo da aroeira) e consultas prévias no Am- bulatório de Ginecologia do IMIP (em torno de 48% nos dois grupos). A mediana em dias do tempo transcorrido entre tratamento e reavaliação clí- nica também foi semelhante nos dois grupos (42 dias no grupo placebo e 44 dias no grupo que re- cebeu aroeira). Analisando-se o cumprimento da prescrição, não se observaram diferenças entre as pacientes que usaram aroeira e as que usaram o placebo. Duas pacientes, uma em cada grupo, abandona- ram o estudo sem usar a medicação. Das restan- tes, 25 tinham sido randomizadas para tratamen- to com aroeira e 23 para o grupo placebo, e todas utilizaram o gel vaginal por no mínimo cinco dias, sendo que mais de 80% realizaram o tratamento completo (10 dias). Todas estas foram incluídas na análise de eficácia. Depois do tratamento, verificou-se que 84% das pacientes que utilizaram aroeira e 47,8% das que utilizaram o placebo não apresentavam mais vaginose bacteriana pelos critérios de Amsel, sen- do essa diferença estatisticamente significativa (Tabela 1). Amorim et al Gel de Aroeira Não houve diferença significativa na fre- qüência de efeitos colaterais entre os dois grupos, e o único efeito colateral referido durante o uso de aroeira foi ardor em um caso (4%) (Tabela 2). Analisando-se os achados colpocitológicos relativos à presença de bacilos de Döderlein e Gardnerella vaginalis, verificaram-se diferenças significativas entre o grupo da aroeira e o placebo, com maior freqüência de bacilos de Döderlein en- tre as pacientes tratadas com aroeira (43,5% versus 4,3%) e maior freqüência de Gardnerella vaginalis entre os casos que usaram placebo (69,6% versus 32%) (Tabela 3). Discussão Os resultados do presente estudo evidenci- am uma taxa de cura de 84% empacientes com vaginose bacteriana sintomática tratadas com o gel de aroeira, constatando-se diferença estatistica- mente significativa em relação ao percentual de cura encontrado entre pacientes que receberam o placebo (47,8%). Não houve efeitos colaterais im- portantes e os achados colpocitológicos evidencia- ram uma maior freqüência de bacilos de Doderlein no grupo tratado com aroeira. Os resultados encon- trados sugerem que o gel de aroeira pode consti- tuir uma alternativa terapêutica segura e eficaz para os casos de vaginose bacteriana. Esses achados não são surpreendentes quan- do se analisam os diversos mecanismos de ação pro- postos para o princípio ativo do Schinus terebinthifolius Raddi. Vários componentes do Schinus apresentam atividade antimicrobiana16-18, de forma que a aroeira pode atuar efetivamente no controle da vaginose bac- teriana, reduzindo a população anaeróbia da vagina e eliminando os sintomas decorrentes, sem, possi- velmente, prejudicar a flora endógena. Tabela 2 - Efeitos colaterais do tratamento da vaginose bacteriana de acordo com o uso do gel de aroeira ou do placebo em 48 mulheres. Ardor Dor pélvica Mal-estar % 4,0 - - Aroeira (n = 25) n 1 - - Placebo (n = 23) % 8,7 13,0 8,7 n 2 3 1 p 0,46 0,10 0,47 Tabela 3 - Achados colpocitológicos (Papanicolaou) depois do tratamento da vaginose bacteriana de acordo com a utilização do gel de aroeira ou do placebo em 48 mulheres. Bacilos de Döderlein Cocos Bacilos Candida Gardnerella Trichomonas % 43,5 60,0 60,0 8,0 32,0 8,0 Aroeira (n = 25) n 10 15 15 2 8 2 Placebo (n = 23) % 4,3 47,8 69,6 - 69,6 4,3 n 01 11 16 - 16 1 p 0,0018 0,39 0,49 0,27 0,009 0,53 p=0,0079 Tabela 1 - Avaliação dos critérios de Amsel depois do tratamento com gel de aroeira ou placebo em 48 mulheres. Sem vaginose Com vaginose % 84,0 16,0 Aroeira (n = 25) n 21 4 Placebo (n = 23) % 47,8 52,2 n 11 12 Tratamento Critérios de Amsel 99RBGO - v. 25, nº 2, 2003 Amorim et al Gel de Aroeira Até onde chega o nosso conhecimento, esse é o primeiro ensaio clínico randomizado publicado no mundo utilizando aroeira para tratamento da vaginose bacteriana. Revisando tanto o banco de dados Medline como o LILACS/SciELO, não encon- tramos qualquer referência na literatura pertinen- te sobre o uso clínico do Schinus com essa finalida- de. Talvez por se tratar de planta medicinal de uso consagrado pela população, raros ensaios clínicos têm sido realizados em seres humanos. De qualquer forma, sabe-se que é freqüente a utilização vaginal do decocto da aroeira pelas mulheres nordestinas, com o propósito de tratar corrimentos e cervicites. Na experiência pessoal de vários ginecologistas, é raro encontrarem-se cervicites ou colpites em mulheres referindo uso de aroeira. Parece ocorrer melhora da flora vagi- nal com redução na proporção de microrganismos potencialmente patogênicos e aumento dos bacilos de Döderlein15. Em Recife, o primeiro estudo publicado so- bre o uso ginecológico da aroeira data de 1974, um ensaio clínico aberto, não randomizado, em que Wanick e Bandeira20 utilizaram o produto em 100 mulheres com cervicite e cérvico- colpite, relatando o que acreditam ser “bons re- sultados”, em termos de achados colposcópicos e citológicos. Infelizmente, como não foram apre- sentados os achados colposcópicos e citológicos antes do uso do Schinus, nada se pode concluir sobre sua eficácia. Em dissertação de Mestrado realizada no Departamento de Farmácia da UFPE utilizou-se tanto o gel como a emulsão à base do decocto da aroeira a 20% e o próprio decocto para o tratamento de 100 mulheres com queixa de corrimento genital (51% com colpite difusa e 98% com corrimento branco ou amarelado)21. As pacientes foram divi- didas aleatoriamente em 10 grupos, utilizando o gel, emulsão ou o decocto quer da aroeira-da-praia quer da aroeira-do-sertão, ou ainda diversas me- dicações específicas (metronidazol, secnidazol, doxiciclina, tetraciclina e outras), associadas ou não ao uso local da aroeira. Além dessa grande heterogeneidade de grupos-controle, o estudo não foi cego e, infelizmente, não houve definição ade- quada do termo “colpite” ou “corrimento”, de for- ma que se torna difícil a interpretação de seus resultados, que não evidenciaram diferenças sig- nificativas entre todos esses grupos em relação à freqüência de corrimento e à composição da flora vaginal pós-tratamento. Em ensaio clínico fase II realizado em 2000 em nossa instituição, observou-se percentual de cura de 80% quando a aroeira foi utilizada para o tratamento da vaginose bacteriana em 30 paci- entes15. A conclusão na época foi que o uso do Schinus com essa indicação terapêutica parecia promissor, requerendo-se no entanto a comprova- ção da eficácia da medicação em ensaio fase III. No estudo atual, optamos por comparar a efi- cácia do gel de aroeira com um placebo nos casos de vaginose bacteriana sintomática, uma vez que persistem controvérsias em relação ao tratamen- to convencional com quimioterápicos ou antibió- ticos, sobretudo em pacientes assintomáticas22,23. De acordo com o CDC, os benefícios estabelecidos do tratamento da vaginose bacteriana em não ges- tantes seriam basicamente o de alívio dos sinto- mas e sinais vaginais e redução do risco de com- plicações pós-histerectomia ou aborto. Outros po- tenciais benefícios incluiriam a redução de ou- tras complicações infecciosas (HIV e outras DST). Desta forma, todas as mulheres com doença sin- tomática requerem tratamento19. Utilizam-se classicamente drogas como metronidazol e clindamicina no tratamento da vaginose bacteriana, tanto por via oral como por via vaginal. Estas medicações visam a erradicação dos microrganismos anaeróbios que acompanham a Gardnerella vaginalis, sendo responsáveis pelo quadro clínico. O esquema terapêutico preconiza- do pelo CDC admite como opções igualmente efe- tivas tanto o gel de metronidazol a 0,75% (5 g/dia por cinco dias) como o metronidazol oral (500 mg 2 vezes ao dia por sete dias), sendo a clindamicina vaginal a 2% (5g/dia por sete dias) menos eficaz do que os esquemas com metronidazol. Os regi- mes alternativos com metronidazol oral em dose única (2 g) ou clindamicina oral (300 mg 2 vezes ao dia por sete dias) apresentam menor eficácia19. Em relação ao tratamento durante a gravi- dez, este deve ser realizado em todas as pacientes sintomáticas, porém não há evidências de que o rastreamento e tratamento da vaginose bacteria- na em pacientes assintomáticas reduzam o risco de parto prematuro, exceto em um subgrupo de pacientes com história de prematuridade em ges- tação anterior19. O tratamento, quando indicado, deve ser realizado com metronidazol oral, uma vez que os dados existentes não apóiam o uso da me- dicação tópica na gravidez, além do que numero- sos estudos e metanálises não demonstram asso- ciação consistente do uso de metronidazol com efeitos teratogênicos ou mutagênicos nos recém- nascidos19,24,25. Uma vez que o tratamento do parceiro não oferece benefícios do ponto de vista da recorrência de VB, este não é habitualmente recomendado19,26, embora alguns autores indiquem o co-tratamento em casos de vaginose bacteriana recidivante13,27. O grande problema de medicações antibióti- cas ou quimioterápicas como as acima citadas é que, embora efetivas na erradicação dos anae- 100 RBGO - v. 25, nº 2, 2003 róbios, com taxas elevadas de cura clínica e mi- crobiológica, elas não atuam no sentido de melho- rar a flora vaginal. Na verdade, o uso destas dro- gas pode inclusive piorar a flora vaginal, uma vez que, além das bactérias patogênicas, podem des- truir também os lactobacilos naturais, importan- tes mecanismos de defesa contra infecções28. Sendoassim, não é surpreendente a eleva- da taxa de recidivas que se seguem ao tratamen- to, em torno de 30% a 40%3,24, além do que é fre- qüente o desenvolvimento de sintomas de candi- díase vaginal, também em decorrência das alte- rações da ecologia local provocadas pelo próprio antibiótico utilizado4. Existem mesmo evidências que demonstram piora do prognóstico perinatal depois do tratamento com o creme de clindamici- na durante a gravidez29, o que pode ser explicado pela redução dos lactobacilos endógenos e pelo crescimento exagerado de Escherichia coli e Enterococcus3. Evidentemente, não pretendemos esgotar a polêmica envolvendo o tratamento da vaginose bacteriana, mesmo porque o presente estudo apre- senta algumas limitações que devem ser discuti- das. Primeiro, o número de pacientes envolvidas foi pequeno, uma vez que se trata de ensaio clíni- co preliminar; segundo, não pudemos analisar adequadamente a flora vaginal por meio da cultu- ra, por limitações inerentes à própria instituição, além de questões financeiras que impossibilita- ram um estudo pormenorizado por outros testes além do exame a fresco e da colpocitologia, e, fi- nalmente, ainda não dispomos dos dados de se- guimento dessas pacientes, para determinar a taxa de recorrência, problema freqüente após o tra- tamento da vaginose bacteriana. Destacamos, outrossim, que apesar de se tratar de pequeno ensaio clínico, a taxa de cura observada no presente estudo com o uso do Schinus é comparável aos resultados publicados para metronidazol e clindamicina em diversos outros estudos3,13,30, sendo significantemente superior no grupo tratado em relação ao grupo placebo, de for- ma que o poder da amostra foi suficiente e ade- quado para evidenciar esta diferença. Vale ainda ressaltar que não houve diferença significativa na freqüência de efeitos colaterais entre os dois gru- pos. Estes foram até mais comuns no grupo que recebeu o placebo, o que pode ser atribuído, talvez, à persistência do quadro de vaginose bacteriana nessas pacientes. Embora não tenhamos avaliado a taxa de recorrência após tratamento com aroeira, o acompanhamento dessas pacientes prossegue e, depois de um ano, poderemos determinar o nú- mero de episódios de vaginose bacteriana Amorim et al Gel de Aroeira recidivante, comparando com o grupo placebo. Acreditamos que a freqüência de vaginose deverá ser significativamente maior nesse último, con- siderando as diferenças na composição da flora vaginal encontradas depois do tratamento com aroeira ou placebo. Sabe-se que o balanço entre os lactobacilos e os microrganismos anaeróbios pode determinar o surgimento de vaginose bacte- riana, que se torna mais freqüente quando os lactobacilos encontram-se inibidos ou deficientes, e a escassez de lactobacilos foi a tônica dominan- te em pacientes que utilizaram o placebo. Entre- tanto, devemos reconhecer que a colpocitologia não constitui método adequado para avaliação da flora vaginal, o que eventualmente pode ter distorcido essa avaliação, sendo necessário, em estudos ul- teriores, o uso de metodologia mais adequada com essa finalidade. Cumpre salientar que, embora alguns auto- res tenham sugerido que o uso de placebo em gel possa apresentar efeitos benéficos sobre a flora vaginal22, nossos achados contradizem essa idéia, uma vez que encontramos significativa diferença na proporção de bacilos de Döderlein, benefician- do as pacientes tratadas (43,5%) em relação ao placebo (4,3%). Evidentemente, tornam-se necessários no- vos estudos, incluindo maior número de pacien- tes, em centros diversos. Devem ser realizados ensaios clínicos comparados, em que ao invés de placebo se utilize qualquer das medicações con- vencionais, comparando-se os resultados tanto em termos de eficácia como segurança (efeitos cola- terais), efeitos sobre o ecossistema vaginal e recorrência. Até que estes estudos estejam disponíveis, nossa conclusão é que o gel de aroeira pode ser utilizado com a indicação de tratamento da vaginose bacteriana em mulheres não gestantes, sintomáticas. O percentual de cura neste ensaio foi de 84%, constatando-se também melhora da flora vaginal autóctone, o que deve minimizar o problema das recidivas. Destacamos, ainda, que essa indicação te- rapêutica é muito interessante para as pacientes com vaginose bacteriana, uma vez que o uso me- dicinal da aroeira vem sendo descrito desde o iní- cio do século por estudiosos da Fitoterapia no Bra- sil e está bastante difundido entre a população nordestina. Assim, o tratamento com aroeira é bem aceito pela maioria das mulheres em nosso meio, por se tratar de uma terapia natural já conhecida, e evidências científicas para seu uso começam a surgir, a partir desse primeiro ensaio clínico ran- domizado. 101RBGO - v. 25, nº 2, 2003 Conflito de interesses: este estudo foi parci- almente financiado pelo Laboratório Hebron, que for- neceu tanto a medicação como o placebo utilizados, além de ressarcir a Instituição pelos gastos com mate- rial de consumo e exames laboratoriais e fornecer bol- sas aos pesquisadores e aos profissionais envolvidos no projeto durante o período de 12 (doze) meses. ABSTRACT Purpose: to test the efficacy of and tolerance to Schinus terebinthifolius Raddi gel in the treatment of bacterial vaginosis. Methods: forty-eight women with symptomatic bacterial vaginosis (according to Amsel’s criteria) were enrolled in a randomized, double-blind, controlled trial comparing Schinus terebinthifolius Raddi gel (25 cases) with placebo (23 cases). The main outcome parameters were: rate of cure, presence of lactobacilli in Pap smear after treatment and side effects. Statistical analysis was performed using the χ2 and the Fisher exact test at 5% level of significance. Results: using Amsel’s clinical parameters of bacterial vaginosis, the cure rate was 84% in the Schinus group and 47.8% in the placebo group (p=0.008). A significant increase in the frequency of lactobacilli was observed in the Pap smear of the group treated with Schinus (43.5%) compared to the patient group (4.3%) (p=0.002). Treatment-related adverse events were not frequent in either group. Conclusions: the present study indicates that Schinus vaginal gel is effective and safe in the treatment of bacterial vaginosis. In addition, potential beneficial effects on the vaginal flora are suggested. KEYWORDS: Bacterial vaginosis. Vaginal infections. Schinus. Clinical trial. Amorim et al Gel de Aroeira Referências 1. Santos LC, Porto AM, Amorim MMR, Guimarães V. Atualização – Ginecologia e Obstetrícia Básica (Programa de Saúde da Família). 1a ed. Recife: IMIP- Instituto Materno-Infantil de Pernambuco; 2001. 2. Hay PE, Ugwumadu A, Chowns J. Sex, thrush, and bacterial vaginosis. Int J STD AIDS 1997; 8:603-8. 3. Hay PE. Recurrent bacterial vaginosis. Dermatol Clin 1998; 16:769-73. 4. Gravett MG, Nelson HP, DeRouen T, Critchlow C, Eschenbach DA, Holmes KK. Independent associations of bacterial vaginosis and Chlamydia trachomatis infection with adverse pregnancy outcome. JAMA 1986; 256:1899-903. 5. Gravett MG, Hummel D, Eschenbach DA, Holmes KK. 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