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1 MALIRRE ABADI GHADIM A CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO UNIVERSIDADE CATOLICA DOM BOSCO Campo Grande MS 2015 2 MALIRRE ABADI GHADIM A CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Monografia apresentada á UCDB – Universidade Católica Dom Bosco, Curso de Direito, sob a orientação temática do Prof. Renato Ferreira Rocha e orientação metodológica da Prof.ª Arlinda Cantero Dorsa, para efeito de avaliação da disciplina de Monografia Jurídica. CAMPO GRANDE MS 2015 3 Este documento corresponde à versão final da monografia intitulada ‘O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO’, defendida por MALIRRE ABADI GHADIM perante a Banca Examinadora do curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco, tendo sido considerado ________________________________________________. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Me. Renato Rocha Ferreira Orientador ______________________________________________ Profº: ______________________________________________ Profº: 4 ‘Reprovemos os erros, mas respeitemos as pessoas’’. (Dom Bosco 18151888) 5 À Deus, pela oportunidade de evolução através do estudo, e por me dar, todos os dias, forças para perseguir meu sonho; À minha mãe, meu porto seguro, que acredita em mim mais do que eu mesma, e por todo o seu amor incondicional e eterno; 6 AGRADECIMENTOS Á Deus, pelo dom da vida e pela força concedida para lutar por meu sonho. Ao meu orientador Prof. Renato Ferreira Rocha, por sua presteza e dedicação na orientação deste trabalho; À minha família, especialmente minha mãe, minha maior incentivadora, patrocinadora e melhor amiga; Aos meus colegas de faculdade e de estágio, por dividirem comigo suas brilhantes idéias e por estarem ao meu lado durante a jornada acadêmica. 7 GHADIM, Malirre Abadi. A crise do sistema prisional brasileiro.126fl. 2015. Monografia (Curso de Direito Bacharelado) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS. RESUMO Este trabalho se presta ao estudo da crise do sistema prisional, analisando os diversos fatores que contribuem para sua exasperação, com enfoque na análise do aparato prisional brasileiro, promovendo reflexão sobre a crise enfrentada pela sistema carcerário nacional, especialmente no que tange aos fenômenos da superlotação carcerária e à supressão dos direitos fundamentais dos internos do sistema, ambos causados pela deficiência da Justiça Criminal em conciliar a execução de penas com a garantia dos direitos humanos, bem como sua dificuldade para ressocializálos. A dissertação sobre o tema, partirá da análise histórica de constituição do sistema punitivo e das prisões, passará à análise de dados e dinâmica dos sistemas prisionais ao redor do mundo comparando o direito penitenciário, e chegará a reflexão sobre o sistema prisional do Brasil, onde serão estudados separadamente os elementos que constituem a crise do sistema, e o quê transportaa para um nível de caos institucionalizado, e em promoverseão as considerações sobre o sistema prisional do estado de Mato Grosso do Sul, evidenciando seu funcionamento, os focos de avaria de seu funcionamento, bem como as dificuldades enfrentadas pela Justiça Criminal em promover a manutenção não só de um sistema prisional com condições físicas adequadas, mas em proporcionar e garantir aos sujeitos diretos e indiretos do sistema, os direitos fundamentais constitucionalmente previstos, em especial, os direitos humanos. Em verdade, o presente trabalho tem como foco evidenciar a importância de se construir um sistema penal com base na proteção dos direitos humanos, criando mecanismos alternativos a privação da liberdade, como penas alternativas, ressaltando a importância de mudar a lógica encarceradora e vingativa da sociedade, para um discurso de tolerância e compreensão da condição humana do delinquente, dandolhe a oportunidade de se defender dignamente, buscando a aproximação com a real justiça e a pacificação social. Palavraschave: Dignidade humana; Sistema punitivo (des)humanizado; Sistema prisional; Crise penitenciária; Justiça criminal restaurativa; 8 INTRODUÇÃO A atual crise de segurança e violência que enfrenta a sociedade faz surgir, cada vez mais, o anseio de ver processados e punidos aqueles que cometem crimes. Porém, esta punição só gera contentamento se realizada através de uma pena privativa de liberdade, o que se acredita, na maioria das vezes, ser capaz de combater o mal causado com a prática do crime e evitar a reincidência. Contudo, o que foge do conhecimento da massa, é que o processo criminal não termina com a condenação do réu, mas se desdobra em uma nova fase, a execução penal, novo procedimento, que não acontece ás vistas da sociedade, é discreto e só diz respeito ás partes interessadas, cujo cumprimento é que realmente concretiza a justiça buscada na fase investigatória. Nesta trilha, uma vez iniciada a execução da pena aplicada ao réu, sendo esta privativa de liberdade, é importante aplicar rigorosamente os dispositivos legais atinentes á execução penal, fundados em conceitos e princípios criminológicos, a fim de se garantir a correção do condenado, objetivando sua regeneração, ou melhor, ressocialização. Ocorre que este é justamente um dos maiores entraves da justiça criminal, não só do Brasil, mas de muitos países ao redor do mundo. Constatase uma realidade assustadora, uma face do sistema criminal até então rejeitada, o fato de o Brasil acomodar a quarta maior população carcerária do planeta, perdendo somente para países mais populosos, como a Rússia (3º), os EUA (2º) e China (1º), países estes que inclusive instituíram a pena de morte, na tentativa, frustrada, de conter a violência e reduzir o numero de criminosos. De acordo com pesquisa realizada pela Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB – Conselho Federal aponta que no Brasil há mais de 560 mil pessoas atrás das grades. No estado de Mato Grosso do 9 Sul, estimase uma população carcerária de 12.431 presos, conforme relatório da Comissão Provisória de Direito Carcerário da OAB/MS. Igualmente, estudos apontam que quase metade dos detentos do Brasil ainda aguarda julgamento, sem nenhuma expectativa de ter acesso ao direito/princípio da presunção da inocência, tendo privada precocemente sua liberdade, sem nem ter passado pelo devido processo legal. Estes dados revelam uma realidade muito mais cruel do que imaginada pela maioria da sociedade, vivida e enfrentada sem o mínimo de dignidade pelos apenados, que sofrem um efeito colateral muito mais nefasto, o processo de bestialização do individuo que cumpre a pena. Existe um abismo entre o que determina a Lei de Execução Penal e a realidade, aparentemente impossível de ser ultrapassado, ainda mais com a atual configuração do sistema carcerário, o que revela a dificuldade da Justiça criminal em conciliar a execução das penas com a garantia dos direitos humanos. Surge então o interesse em buscar o motivo pelo qual o sistema prisional falhou tanto na busca da ressocialização e combate ao crime. O presente trabalho visaexpor a crise e as condições medievais em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, especialmente do estado de Mato Grosso do Sul, em que os abusos na execução das penas é regra nacional, com base nas suas origens, história e direito comparado, com foco na integração do binômio direito penaldireitos humanos. Para tanto, esta obra conta com três capítulos, que abordam os aspectos mais relevantes do tema, sendo que o primeiro apresentar a origem histórica do sistema prisional, demonstrando sua evolução e refinamento de práticas de acordo com a evolução do conceito de pena e da justiça criminal. O segundo capítulo se presta a analisar o sistema prisional com base no direito comparado, demonstrando as dificuldades enfrentadas pelos países da América Latina que também estão em profunda crise, além de apontar soluções encontradas em países mais 10 desenvolvidos, que conseguiram reduzir á zero o número de presos em prisões, graças á políticas de penas alternativas para crimes não violentos. Em seguida, o terceiro capítulo se volta ao estudo do sistema penitenciário no Brasil, com foco no estado de Mato Grosso do Sul, buscando identificar suas maiores dificuldades e também apontar os raros casos de sucesso na execução das penas através de presídios íntegros que produzem resultados positivos no caminho da ressocialização de seus detentos. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..............................................................................................................08 1 ORIGEM HISTÓRICA DOS SISTEMAS PRISIONAIS..............................................12 1.1 O PODER PUNITIVO..............................................................................................12 1.2 MECANISMOS DO PODER PUNITIVO..................................................................13 1.3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA PRISIONAL............................................14 1.3.1. Idade Antiga................................................................................................14 1.3.2. Idade Média.................................................................................................15 1.3.3. Idade Moderna............................................................................................19 1.3.4 Breve histórico das prisões no Brasil.......................................................22 1.4. A REFORMA DO SISTEMA PRISIONAL..............................................................34 1.4.1. A Reforma de Cesare Beccaria.................................................................35 1.4.2 John Howard e o Penitenciarismo............................................................36 1.4.3 Jeremy Bentham e o Desenho do Panótico.............................................38 2 OS SISTEMAS PRISIONAIS NO DIREITO COMPARADO......................................46 2.1 SISTEMAS PROSIONAIS AO REDOR DO MUNDO..............................................46 2.1.1 Europa.............................................................................................................50 2.1.2 América do Norte: EUA e Canadá................................................................59 2.1.3 A América Latina...........................................................................................65 2.1.4 Ásia, África e Oceania...................................................................................71 3 A CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO................................................ .75 3.1 SISTEMA PENITENCIÁRIO EM NÚMEROS.....................................................79 4 O SISTEMA PRISIONAL DE MATO GROSSO DO SUL..........................................94 4.1 DADOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO.....................................94 4.2 A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO NOS ESTABELECIMENTOS DE MATO GROSSO DO SUL.............................................................................................98 4.2.1 Presídios femininos.......................................................................................98 4.2.2 Presídios masculinos..................................................................................102 4.2.3 A penitenciária federal de segurança máxima de MS..............................105 4.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRISE PENITENCIÁRIA EM MATO GROSSO DO SUL ......................................................................................................................108 CONCLUSÃO.........................................................................................................114 REFERENCIAS......................................................................................................119 12 1. ORIGEM HISTÓRICA DOS SISTEMAS PRISIONAIS Em razão do objeto da presente obra ser o estudo do sistema prisional, antes aprofundar a discussão sobre sua crise, é imprescindível analisar seu processo de construção ao longo da história, juntamente com a própria evolução da sociedade e da Justiça criminal. 1.1 O poder punitivo Por meio da teoria do Contrato Social1, os cidadãos concedem ao Estado, o poder de regulamentar a sociedade, protegendoa contra a maldade nata do ser humano, que poderia por em risco a segurança e ordem sociais a tal ponto, que seria capaz de promover a reversão do processo civilizatório. O Estado assim, revestido da legitimidade que fora concedida por seus próprios criadores, desenvolve mecanismos para auxiliálo na árdua tarefa de manter sob rígidas rédeas a organização social e a civilização, por meio de regramentos, ou melhor, leis, as quais uma vez violadas desencadeiam um dos principais e mais eficazes dos poderes deste Estado, o poder punitivo. É o exercício do poder punitivo que permite ao Estado, por meio das penas, controlar e retribuir as agressões ao ordenamento jurídico e claro, ao corpo social. É através dele que se permite a criação das penas, os castigos institucionalizados, a serem aplicadas aos ‘homensmaus’ que, por motivos vários, desviaramse da conduta geral definida na lei. 1 ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social,. Saraiva. 2011. 13 1.2 Mecanismos do poder punitivo Para que o Estado consiga exercer este poderdever, são criados instrumentos capazes de assegurar a aplicação das punições devidas aos transgressores do sistema social. Relevante contribuição para o estudo das origens do sistema punitivo, foi a obra de Michel Foucault, que na década de 1920, escreveu o livro ‘Vigiar e Punir’2, no qual traz a definição do sistema punitivo como sendo ‘instrumentos destinados à punição do delinquente através do castigo corporal, a fim de reprimir os erros e impedir o cometimento de novos atos que possam oferecer risco á paz social e afrontar a autoridade estatal’3. Assim, verificase que o sistema punitivo, baseado na teoria clássica do contrato social, se concretiza quando o Estado cria meios de garantir a execução da punição imposta ao criminoso, que conjuga a privação da liberdade com castigos sobre o corpo do apenado. Porém, o grande passo evolutivo deste poderdever, reside na finalidade a que se propunham tais castigos, sendo que o nos primórdios deste mecanismo punitivo, no período da Idade Média, por exemplo, a reclusão dos condenados em locais específicos, não consistia na punição em si, mas no meio que se utilizava para aplicala. O entendimento de que a reclusão dos acusados ou condenados constituise por si só, em castigo capaz de retribuir o mal cometido, surgiu séculos depois, na Idade Moderna, após a evolução do pensamentopolíticosocial, motivado por movimentos como o Iluminismo. 2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão (Surveiller et punir)– 20ª ed. – Petrópolis: Vozes, 1999. 3 Idem, p.545 14 1.3. Evolução histórica do sistema prisional 1.3.1. Idade Antiga O conceito de pena na Idade Antiga guarda relação direta com o conceito de sistema prisional, já que nesta época, a prisão não era considerada como sanção penal, servindo apenas para objetivos de contenção e guarda de réus, para preserválos fisicamente até o momento de serem julgados ou executados4. Neste sentido, verificase que até fins do século XVIII, a prisão era um meio usado para manter o réu sob a custódia da autoridade até que se lhe aplicasse o castigo, bem definido por Foucault como ‘suplício’, uma ‘espécie de antessala do suplício’5. Assim, as antigas civilizações como a Grécia e Roma, mantinham em seu ordenamento penas corporais e capitais, de modo que as prisões eram destinadas a impedir que o ‘culpado pudesse subtrairse do castigo. ’6 Cumpre ressaltar que, em termos de estruturação do mecanismo punitivo, em sede de execução penal, na Idade Antiga já era comum o hábito de as autoridades criminais reservarem os piores estabelecimentos para acondicionar os condenados que aguardavam a aplicação de suas penas. Nesta mesma narrativa, destaca Bittencourt sobre as condições em que eram postos os condenados, que já naquele tempo, sofriam duas punições, uma na espera pela execução e outra, com a própria aplicação do castigo: 4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. 2001, p. 07 5 Idem,p. 04 6 Idem, p. 08 15 [...] Os lugares onde se mantinham os acusados até a celebração do julgamento eram bem diversos, já que naquela época não existia uma arquitetura penitenciária própria. Os piores lugares eram empregados como prisões: utilizavamse horrendos calabouços, aposentos frequentemente em ruínas ou insalubres de castelos, torres, conventos abandonados, palácios e outros edifícios. [...] 7 Ocorre que, mesmo com o fim da Idade Antiga, após invasão dos bárbaros na Europa, o costume do Estado em manter seus condenados em locais aviltantes foi importado para a organização do poder punitivo medieval, que inclusive potencializou tais más condições, ganhando o posto da Idade das Trevas, também pelos horrores praticados em nome do exercício do poder de punir. 1.3.2. Idade Média A temática da aplicação da pena através da criação e funcionamento do sistema penitenciário na Idade Média reúne todas as seqüelas ruins do método de prisãocustódia, implementados pelo sistema de prisãocustódia da Idade Antiga. Assim, mais uma vez, para compreender a sistemática do sistema prisional neste período histórico, devese recorrer ao significado da pena, definir o conceito de prisãocustódia, já que as sociedades medievais não haviam ainda concebido a idéia de pena privativa de liberdade como sanção penal em si. Nesta trilha, podese afirmar que as penas inseridas no ordenamento jurídico medieval se constituíam em ‘terríveis tormentos’’8, os quais serviam de entretenimento à população, que alimentava o sadismo das sanções, dando papel secundário á medida da segregação física do condenado através da privação de liberdade, o que originou a legitimação da pena de suplício. 7 BITTENCOURT, Op. cit, p. 07 8 Idem, p. 09 16 Corroborando com este entendimento, Foucault explora a importância que tiveram os suplícios, para o desenvolvimento do sistema penal e carcerário, conceituandoo em sua obra da seguinte forma: [...] uma pena, para ser considerada um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos, apreciar, comparar e hierarquizar; [...] o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências, em relação à vítima, ele deve ser marcante: destinase a [...] tornar infame aquele que é a vítima. [...] e pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. [...]9 Desta maneira o filósofo traz o entendimento do que representava para o próprio Estado, no exercício de seu poder punitivo, a aplicação das penas de suplício, como se estas servissem de dispositivos de manutenção do poder oriundo do contrato social. Para ele, a administração dos suplícios sobre os corpos dos condenados, servia de amostra da ‘’[...]força soberana que dá origem ao direito de punir, diante da qual, todas as vozes devemse calar. ’’10 Portanto, dentro da lógica de um sistema embasado na crença de que a repressão dos atos delituosos se dá pela opressão física do condenado, administrandolhe castigos graduados conforme a gravidade de suas condutas, os estabelecimentos prisionais eram apenas parte de todo o espetáculo promovido pela justiça, que comumente estava ‘‘submetida ao arbítrio dos governantes’’11. Igualmente, pelo fato de a política da Idade Medieval ter sido fortemente influenciada pela religião, criando um sistema judicial em que a lei e o místico se fundiam, não raro era possível identificar uma divisão dentro deste sistema, levando á existência de espécies de prisões. 9 FOUCAULT, idem, p. 37 10 Idem, p. 55 11 BITTENCOURT, op cit, p. 09 17 Conforme aponta Bittencourt, ‘‘nessa época surgem a prisão de Estado e a prisão eclesiástica’’12, sendo esta última destinada á punição de membros da Igreja, que por influencia do direito canônico, apresentavam estrutura e funcionamento diferente da primeira, sendo inclusive mais branda. Foi tão forte o direito canônico para a constituição do sistema punitivoprisional deste período, que é possível identificálo facilmente na filosofia de organização do judiciário medieval, como bem demonstra Bittencourt: [...] Santo Agostinho, em sua obra mais importante, A Cidade de Deus, afirmava que o castigo não deve orientarse à destruição do culpado, mas ao seu melhoramento. Essas noções de arrependimento, meditação, aceitação íntima da própria culpa, são idéias que se encontram intimamente vinculadas ao direito canônico ou a conceitos que provieram do Antigo e do Novo Testamento. [...]13 Ocorre que, por força da influência exercida pela Igreja e o Direito Canônico, muitos dos juízes medievais, passaram a selecionar e separar os delitos que receberiam a aplicação dos suplícios dos que poderiam ser cumpridos mediante paga, como ocorria com a venda das indulgências. 14 Contudo a adoção deste sistema, ainda excluía grande parte dos condenados, os quais miseráveis e doentes, não reuniam condições de livrarse da custódia prisional para poderem cumprir as penas recebidas. Desta maneira, o sistema medieval, já nos últimos anos, na tentativa de conciliar os métodos de punição comuns com o sistema eclesiástico, somente acelerou a processo de exclusão daqueles que se viam condenados e não possuíam bens pagar as multas e livrarse do encarceramento, que aos poucos se revestiu de caráter seletivo, o que agrava mais ainda o sofrimento dos condenados. 12 BITTENCOURT, idem. 13 Idem p. 13 14 Idem, p. 1011. 18 Os princípios de pena medicinal, nas quais a reclusão tinha como objetivoinduzir ao arrependimento pelas faltas e emendar através da compreensão da gravidade das culpas15, apesar de ainda restrito ás condições préfixadas pelo Estado, com base em interesses financeiros, foram timidamente dando espaço á idéia de reforma do sistema punitivo prisional. E ainda, diante da gradativa redução da sensibilidade do público aos suplícios, causada pelas guerras religiosas, a grande fome e a peste, o foco do sistema punitivo desviarase da repressão aos bárbaros escárnios, para a contenção de delitos mais discretos, em grande maioria, voltados ao patrimônio, devido ao crescimento da mendicância e das desigualdades sociais.16 Entretanto, seria ingênuo afirmar que esta mudança no sistema punitivo e no aparato prisional se deu forma autônoma e desembaraçada no período de transição entre a Idade Média e Moderna. De acordo com os arquivos judiciários, ‘[...] o duplo movimento pelo qual, [...] os crimes parecem perder violência, enquanto as punições, reciprocamente, reduzem em parte sua intensidade se deu ás custas de múltiplas intervenções’’, as quais foram enfrentadas somente a partir de ideais reformadores do próprio sistema punitivo.17 É por causa deste lento processo de transformação, que todo o sistema era contagiado, do início ao fim, pelo abuso da punição, traço marcante deste período. O sistema prisional já nascia fadado á caminhar por rumos tortuosos, pois as penas a que fora destinado a executar, foram impostas aos seus sujeitos por um processo confuso e obscuro. A exemplo disto, assevera Foucault, na seguinte passagem: 15 BITTENCOURT, Cesar Roberto, idem, p. 13 16 FOUCAULT, Michel, op cit, p. 98 17 Idem, p. 96; 19 Na França, como na maior parte dos países europeus [...] todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a imputação, os depoimentos, as provas.[...] A forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um poder exclusivo.18 Ora, resta evidente a complexidade e profundidade da crise enfrentada pelo sistema prisional, o qual tinha como tarefa cumprir a execução de penas desmedidas extraídas de um processo arbitrário, inquisitivo, o que logicamente não poderia dar certo, não havendo outro fim senão o colapso enfrentado. Nessa perspectiva, para adentrarmos no estudo do sistema prisional na Idade Moderna, devemos nos atentar ao importante serviço prestado pelos reformadores criminais que deram o pontapé inicial para a transição da prisãocustódia para prisãopena. Esta análise será feita na seção a seguir. 1.3.3. Idade Moderna O início dos séculos XVI e XVII foi marcado pela pobreza generalizada, em especial na Europa, o que forçou o Estado a abandonar certas medidas, e adotar outras, mais eficazes para manter o controle social. Deste modo, principalmente por razões de política criminal, os suplícios, ou melhor, as penas corporais e a de morte perderam eficácia e se tornaram inviáveis, já que ‘’no ano de 1556 os pobres formavam quase a quarta parte da população’’19, e a delinqüência crescera vertiginosamente, a ponto de impedir a aplicação das punições a este grande número de pessoas. 18 FOUCAULT, Michel, op cit, p.38. 19 BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 15 20 Estabeleceuse então uma sensação de instabilidade generalizada, principalmente por parte do Estado, que viu seu poder ameaçado pela multiplicação da pobreza e delinqüência. Neste sentido, confirma Bittencourt ao relatar o seguinte: [...]. Eram muitos para serem todos enforcados, e sua miséria, como todos sabiam, era maior que a sua má vontade. [...] contudo, como em algum lugar tinham de estar, iam de uma cidade a outra. [...] Na Europa, cindida de em numerosos Estados minúsculos e cidades independentes, ameaçavam, só com uma massa crescente, dominar o poder do Estado. [...]20 Foi a partir deste quadro que ‘’iniciouse um movimento de grande transcendência do desenvolvimento das penas privativas de liberdade, na criação e construção de prisões organizadas para a correção dos apenados. ’’ 21 Frisese a idéia de correção embutida nesta nova abordagem da política criminal desenvolvida neste período, que assume caráter reformador a partir do reconhecimento pelo Estado das causas do crime. Sob esta ótica, verificase o desenvolvimento das primeiras linhas do estudo da criminologia, quando são considerados, para métodos de aplicação das penas dentro de um sistema punitivo, os fatores contributivos da conduta do criminoso. Segundo Foucault, as condições em que se encontrava a massa marginalizada e delinqüente, maior parte, foram determinantes para esta transição do sistema prisional. Assim dispõe: [...] os criminosos do século XVII são homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera, criminosos de Verão; os do XVIII, velhacos, espertos, matreiros que calculam, criminalidade de marginais, modificase enfim a organização interna da delinqüência: os grandes bandos de malfeitores (assaltantes formados em 20 BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 15 21 Idem. 21 pequenas unidades armadas, tropas de contrabandistas que faziam fogo contra os agentes do Fisco, soldados licenciados ou desertores que vagabundeiam juntos) tendem a se dissociar; mais bem caçados, sem dúvida, obrigados a se fazer menores para passar despercebidos — não mais que um punhado de homens, muitas vezes — contentamse com operações mais furtivas, com menor demonstração de forças e menores riscos de massacres [...]22 Faziase urgente a criação de um sistema prisional que comportasse o contingente de criminosos, de modo a buscar outro meio de sanção que não fossem as penas capitais, caso contrário, o Estado promoveria um extermínio de sua população sob a justificativa de exercício do poder punitivo. Uma alternativa encontrada foi a instituição de locais destinados ao recolhimento e custódia destas pessoas, que serviam inclusive de abrigo para miseráveis, semtetos, os quais, todos, eram submetidos á métodos disciplinadores pertinentes à realidade enfrentada pela sociedade da época. Estes estabelecimentos espalharamse rapidamente pela Europa, muitos deles conduzidos com pulso firme pelo clero, que recebeu a concessão do poder punitivo do Estado, já que este sozinho não atingia a contenção suficiente da delinqüência capaz de manter a ordem social. Em geral, estas ‘novas prisões’, mantinham a ‘’ convicção [...] de que o trabalho e a férrea disciplina são um meio indiscutível para reforma do recluso’’, demonstrando a clara disposição de mudança da lógica punitiva tida até então, que falhara diante das adversidades sociais. Na Inglaterra, por exemplo, em Londres, surgiram prisões denominadas workhouses ou houses of correction, que estabeleciam uma rotina de trabalho disciplinado, voltado para retirada de mendigos e andarilhos das ruas e emenda de ladrões, através do trabalho e produção.23 22 FOUCAULT, Michel, op. cit, p. 96 22 Logo em seguida, em Amsterdã, os países baixos aperfeiçoaram este sistema de reclusão, dividindo em unidades masculinas, femininase posteriormente para jovens, em que se realizavam atividades compatíveis com as condições dos condenados, reservando os castigos físicos como punição somente àqueles que cometiam delitos mais graves.24 Concluise, portanto, que este contexto de mudanças na legislação penal européia desencadeou a inquietação de operadores do direito, filósofos, pensadores, cujas idéias eram norteadas por um sendo humanitário e racional exaltados por movimentos sociais como a Revolução Francesa a o Iluminismo. 1.3.4. Breve histórico das Prisões no Brasil Os registros históricos sobre a justiça criminal brasileira, em especial do seu sistema penitenciário são escassos, principalmente em relação ao período compreendido entre o descobrimento (1500) e chegada da Família Real (1808). Contudo não é difícil obter um panorama do ‘que’ se tratava o mecanismo punitivo do Brasil dos séculos XV a XVIII. Amaral, em seu artigo desenvolvido em parceria com o Grupo de Estudos Carcerários Aplicados da USP – Universidade de São Paulo, faz sucinta análise deste período: [...] No período que vai do descobrimento à chegada da família real ao Brasil (1808), só se pode falar em um sistema penal de organização incipiente, e assim mesmo restrito aos últimos 60 anos desse período. Menos ainda se pode falar em um sistema carcerário. Como em boa parte do Mundo nesse período, aqui a prisão também era usada como um local infecto e lúgubre onde se aguardava pelo julgamento, ou onde os acusados eram esquecidos até que morressem. O aprisionamento não era pena autônoma, mas medida de contenção do imputado até que este recebesse uma pena, que quase sempre era a capital ou infamante. [...]25 23 BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 17; 24 Idem. 25 AMARAL, C. A evolução histórica e perspectivas sobre o encarcerado no Brasil como sujeito de direitos.2013, p. 02. http://www.gecap.direitorp.usp.br/index.php/20130204135003/201302041348 23 Como se sabe, durante a época de colonização do Brasil, o país era regido pelas leis de Portugal, que durante os anos de 1446 e 1603 editou três ‘Ordenações’, sendo a primeira as ‘Ordenações Afonsinas’, depois as ‘Manoelinas’ e por último as ‘Filipinas’, já que estas vigeram até 1824, ano em que foi editada a primeira Constituição do Brasil. Em que pese a coroa portuguesa ter editado três Ordenações ao deste período, não houve grande inovação quanto ao seu conteúdo, já que as penas bem como o sistema processual mantinhamse arraigados em princípios medievais, sendo que, além disso, deixavase a encargo dos Governadores das Capitanias Hereditárias a livre aplicação da lei penal, o que tornava ainda mais abusivo o sistema no Brasil Colônia. Neste sentido, é interessante transcrever as palavras de Amaral, as quais explicam um pouco da lógica da legislação que deu origem a todo o sistema criminal brasileiro, e que talvez ajude a explicar a atual crise do sistema penitenciário: [...] O Livro V das Ordenações Filipinas são um modelo do sistema penal daquele período, prevendo e aplicando penas desproporcionais em relação ao delitos, cruéis e injustas, além de continuar fazendo da pena de morte comum para os crimes. Um autêntico balaio de gatos entre moral, religião e direito. Pior, a desigualdade de tratamento penal conforme o sexo e a posição social era uma instituição, como se pode verificar, por exemplo, na previsão de que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar, assi a ella, como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adultero Fidalgo ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade”.26 Com o advento do iluminismo, ocorreu a mitigação das penas cruéis, previstas nas Ordenações portuguesas, e ainda, devido aos acontecimentos sóciopolíticos entre o Brasil colônia e a coroa, que embalaram os anos de 1800 e seguintes, abriuse caminho para a edição do marco legislativo em matéria de direito penal: a Constituição de 1824. 55/artigospublicados/13artigoevolucaohistoricaeperspectivassobreoencarcerado nobrasilcomosujeitodedireitos> 26 AMARAL,C., op cit, p. 3 24 Com a edição da Constituição de 1824, ‘criaramse todas as condições para [...] uma legislação penal mais humana e gerada no Brasil’27, e ainda, podese afirmar que nela esteve registrada o embrião do Princípio da Presunção da Inocência dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ao que se constata da análise do art. 79, inciso IX da referida Carta: IX. Ainda com culpa formada, ninguem será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idonea, nos casos, que a Lei a admitte: e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fóra da Comarca, poderá o Réo livrarse solto.28 Pelo mesmo viés, é importante citar outro dispositivo inserido na Constituição de 1824, que inaugurou uma legislação voltada para a melhoria das instalações carcerárias, como meio próprio de se assegurar a eficácia do cumprimento da pena prisão, qual seja, o art. 179, inciso XVIII, que em linhas gerais, prescrevia as condições físicas em que deveriam ser mantidas as penitenciárias, de forma a manter a segurança, higiene, celas adequadas, além de prever a fiança como meio alternativo para os crimes de menor ofensividade.29 Apesar de a Carta de 1824 ter inserido timidamente princípios penais mais brandos, pouca foi a repercussão de seus dispositivos sobre o mundo prático da execução penal, já que desde aquele tempo enfrentavase o problema da administração insuficiente das prisões, no que muitas das vezes, constatavase péssimas condições de habitualidade nas cadeias pelas Comissões Fiscalizadoras envidas pelo governo para verificar o cumprimento da lei. Por conseguinte, é relevante esclarecer que, no ano de 1830, foi editado o primeiro Código Penal do país, dotado de um perfume humanista típico daquele período, este ainda não trouxe as mudanças esperadas, já que não abolira a pena de morte, muito menos as cruéis ou infamantes. 27 AMARAL,C., op cit, p. 03. 28 Idem. 29 Idem. 25 Contudo, tal dispositivo, se prestava a condicionar as prisões brasileiras, em seu aspecto externo, já que, claramente influenciado pelos ideais de Bentham, tratava da organização arquitetônica das penitenciárias mais do que da própria política criminal, o que na verdade é compreensível, já que o pais ainda não dispunha de um aparato prisional pleno e eficaz. Se por um lado o Código Penal de 1830 avançou em relação á infraestrutura prisional, o Código que o sucedeu, no ano de 1890, confirmou o que há muito já vinha sendo proposto mundo afora, a condução de um sistema penal mais qualitativo e eficaz, o que se evidenciou com o afastamento30 da pena de morte como pena usual dentro do mecanismo punitivo brasileiro. Igualmente, foi o Código de 1890 que, além de estipular as espécies de penasprisão, foi o primeiro a traçar ‘[...] as primeiras linhas para um sistema progressivo’, na qual se previa a possibilidade evolução do isolamento total para a autorização de exercício de alguma atividade laboral, tal como ocorria no sistema auburniano31. Mais adiante, os reformadores brasileiros adotaram o sistema penitenciário Progressista Irlandês, que consistia numa espécie de fusão dos sistemas pensilvânico e auburniano, o que se verifica nitidamente nos arts.45 e 50 do referido código, cuja análise faz oportuna: Art. 45. A pena de prisão cellular será cumprida em estabelecimento especial com isolamento cellular e trabalho obrigatorio, observadas as seguintes regras: a) si não exceder de um anno, com isolamento cellular pela quinta parte de sua duração; b) si exceder desse prazo, por um periodo igual a 4ª parte da duração da pena e que não poderá exceder de dous annos; e nos periodos sucessivos, com trabalho em commum, segregação nocturna e silencio durante o dia. Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que houver cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderá ser transferido para alguma penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena. 30 AMARAL,C., op cit, p. 03 31 Idem. 26 § 1º Si não perseverar no bom comportamento, a concessão será revogada e voltará a cumprir a pena no estabelecimento de onde sahiu. § 2º Si perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter livramento condicional, comtanto que o restante da pena a cumprir não exceda de dous anos.32 Além disso, de acordo com Amaral, ‘o código de 1890 também previa o livramento condicional, deixando clara a ideia de que deve haver o ganho de uma liberdade vigiada durante o cumprimento da pena, caso o condenado assim faça por merecer. ’33 Ocorre que os códigos penal e de processo penal da república já se encontravam distantes da realidade carcerária do Brasil, sendo que Engbruch e Santis apontam, como tentativa de corrigir eventuais desvios entre a lei e realidade, o art. 409 do mesmo código que permitia a execução da pena de prisão em locais diversos das penitenciárias, caso o magistrado constatasse que estas não cumpriam com os requisitos mínimos de infraestrutura. 34 Sob esta ótica, os dispositivos supramencionados muito se assemelham com os dispositivos que regulamentam a progressão de regimes prisionais do moderno Código de Processo Penal, porém não se pode dizer que foram suficientes para resolver os entraves da execução penal da época. A exemplo, verificase que desde antes mesmo da edição do Código de 1890, já se enfrentava o problema da falta de estabelecimentos prisionais que comportassem o grande número de detentos, além de que suas instalações já estavam prejudicadas pela ação do tempo, carecendo, em sua maioria, de reformas. 32 ENGBRUCH, W.; SANITS, B. M. D, A., A evolução histórica do sistema prisional e a Penitenciária do Estado de São Paulo, Revista Liberdades, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais, 2012, p.3. Disponível em:< http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/145HISTRIA> 33 AMARAL,C., op cit, p. 03 34 BRASIL. Código Penal. 1890 Art. 409. Enquanto não entrar em inteira execução o systema penitenciario, a pena de prisão cellular será cumprida como a de prisão com trabalho nos estabelecimentos penitenciarios existentes, segundo o regimen actual; e nos logares em que os não houver, será convertida em prisão simples, com augmento da sexta parte do tempo. 27 Contudo, fora somente no ano de 1905 que surge nova alternativa para a crise que se instalara no sistema prisional, com a iniciativa de edição de nova lei (Lei nº. 267A, de 24/12/1905), no Estado de São Paulo, a fim de substituir uma da maiores e mais antigas penitenciárias do Brasil, a do estado de São Paulo, a qual fora finalmente inaugurada em 1920, tendo como projeto vagas para 1.200 detentos, celas individuais com espeço adequado, boa ventilação e iluminação.35 É relevante citar a evolução desta penitenciária pelo fato de ter sido considerada entre as décadas de 20 e 40 uma prisão modelo, em que ‘’a organização laboral foi um dos carroschefes para a boa opinião’’36 do público, fazendo contraponto com a má impressão causada pelo sistema implantado pelo Código de 1830 que se externava pelas ‘’Casas de Correção’’. Os pesquisadores apontam como fatores preponderantes para a mudança de opinião em relação ao estabelecimento prisional do estado de São Paulo, que à época representava o que havia de mais moderno no aparato estatal quando se falava em controle social e criminológico, os fatores a seguir transcritos: [...]o indivíduo preso teria um pouco mais de dignidade no aspecto da saúde, onde não teriam celas com pessoas amontoadas como se objetos inanimados fossem e onde, precipuamente, regenerarseiam seres humanos, de sorte que poderiam recompor o corpo social, criase a melhor das expectativas. [...] Nada melhor aos olhos da sociedade (frise se: a elite paulista, em especial) do que um preso trabalhando, produzindo, estando fora do estado ocioso para pensar no cometimento de novos crimes ou algo do gênero (pensamento ainda constante na sociedade brasileira). [...]Além de auxiliar a economia paulista, tinhase a ideia de autossustentabilidade econômica (instituições dessa natureza custam muito ao erário público) da Penitenciária e, de forma subsidiária, ao próprio Estado, fornecendo riquezas e produtos aos órgãos públicos. [...] voltando à esfera pedagógica, entendiase que a disciplina laboral auxiliava a própria disciplina do preso com seus pares e com a própria administração e, em um plano futuro, com a sociedade. Outra característica positiva era, ainda na organização laboral, o cultivo de alimentos naturais via horta cultivada pelos próprios presos e que servia o presídio em quase sua totalidade. [...]37 35 ENGBRUCH, W.; SANTIS, B. M. D, A, op cit, p.4 36 Idem, p. 5 37 ENGBRUCH, W.; SANTIS, B. M. D, A, op cit, p.5 28 Essa nova maneira de conduzir uma penitenciária repercutiu positivamente na sociedade naquele tempo, de forma que a nova prisão de São Paulo chegou a ser considerada além de modelo, um sistema ‘perfeito’ de prisão, pois além de enclausurar criminosos, traziamlhe nova perspectiva ao inserir em seu regime de cumprimento de pena a atividade laboral, em especial a produção industrial, casando perfeitamente os interesses socioeconômicos da sociedade em expansão econômica daquele período. Contudo, é importante destacar que, em que pese os muitos elogios tecidos ao sistema de São Paulo, a tese de um sistema penitenciário perfeito se viu mitigada diante dos entraves práticos encontrados durante seu funcionamento. Assim, apesar de implantar o sistema de reclusão aliada ao trabalho, e de propor uma arquitetura voltada para a melhor acomodação dos presos, visando a manutenção de sua saúde, evitando mortes e rebeliões, infelizmente, a própria mentalidade no modo de conduzir o sistema de execução penal paulista não permitiu que na prática se atingisse as maravilhas lançadas no projeto daquela penitenciária. Ilustrativamente, a desconstrução do ‘mito’ de prisão modelo se deu pela involução da maneira como os indivíduos que estavam inseridos no sistema eram vistos, e na própria deficiência do Estado em conciliar seus interesses com os direitos individuais dos detentos. Assim afirmam Engbruch e Santis: A liberdade de expressão era suprimida na Penitenciária do Estado. Em análise históricodocumental, autores afirmam a existência de movimentos de presos a fim de reivindicar algo (ato de expressão natural, inerente à pessoa humana), mas não de forma violenta, apenas de forma petitória. Tais manifestos eram a “força motriz deflagradora” para a imposiçãode punições internas (notem: em contraposição à lei penal da época), como privação de alimentos, submissão à degradação da pessoa mediante a enclausuração por tempo indeterminado ou, a mais branda de todas, perda de vantagens regulamentares.38 38 ENGBRUCH, W.; SANTIS, B. M. D, A, op cit, p.6 29 Não obstante, outros problemas de gestão de política criminal começaram a aparecer no funcionamento da penitenciária, dentre eles, o mais relevante, foi a dificuldade encontrada pelos detentos em progredir de regime quando atingiam os requisitos para pleitear este direito, que no fundo representava a evolução de sua ressocialização e uma boa alternativa para desafogar as celas, que já estavam com números maiores de detentos do que o previsto. Tal entrave se encontra bem descrito em estudo aprofundado que Engbruch e Santis realizaram sobre o aparato do sistema prisional paulista, que se segue: [...] Os estágios do regime progressivo nem sempre eram concedidos de “ofício” pelo juiz. Muitas vezes o preso ou seus representantes legais requeriam ao Magistrado a progressão do regime. Quando deste pedido, é de rotina que se expede um exame criminológico do preso, ora requerente. No caso da Penitenciária do Estado, tais exames eram exarados pelo competente da área médica designado e pela diretoria. Espera se, do Estado – ora aprisionador ora detentor – que adote, no mínimo, justos critérios ao expedir tal exame, reservadas as ordens técnicas do instituto em comento. A diretoria, durante o período observado, utilizou critérios espúrios, quando não eram apócrifos, nos pareceres tendentes a rejeitar a maioria dos pedidos de progressão de regime, em especial a liberdade condicional. [...] Cumpre esclarecer que o problema apresentado na penitenciária de São Paulo não se limita somente a esta instituição, já que ainda hoje vemos isto acontecer nos estabelecimentos modernos, porém a diferença provavelmente resida no fato de que ainda não foi encontrada uma forma de construir um sistema prisional que se adapte às necessidades da justiça criminal, e nem que se expanda para comportar a demanda de presos, o que consequentemente incha os presídios e também o Judiciário, que por isso não consegue julgar em tempo hábil os processos criminais. Nesta trilha, retomando a sequência histórica de desenvolvimento do sistema prisional brasileiro, cumpre mencionar que posteriormente, no ano de 1937 foi editada nova Constituição, que segundo historiadores representou um ‘’retrocesso penal e humanitário’’39 ao restabelecer a pena de morte. 30 Em seguida no ano de 1940, foi criado o novo Código Penal brasileiro, o qual vige até hoje, que não manteve a pena de morte, mantendo sistema progressivo no regime de cumprimento das penas, contudo ainda não trazia disposições específicas sobre a execução das penas no Brasil.40 Seguindo uma linha cronológica, o desenvolvimento do sistema prisional brasileiro temos como um dos períodos mais marcantes, o que compreende a metade final do século XX, especialmente entre os anos de 1964 a 1985, pois foi este o de instituição da Ditadura Militar no país. Assim, Mattos, estudioso sobre o tema que desenvolveu trabalho conjunto com o Conselho de Serviço Social de Minas Gerais, pondera que a crise do sistema prisional brasileiro, acentuouse devido ao regime militar, período da história brasileira que foi muito bem retratada em suas palavras: Se a tortura não foi inventada pelos militares, ela foi certamente institucionalizada pela ditadura militar, que a adotou como método de governo, como política de Estado. Vinte e um longos anos de ditadura militar: aumento desenfreado dos meios de violência do Estado, que nunca abre mão de suas conquistas neste terreno. Estão aí como evidencias empíricas o paudearara, os choques elétricos, afogamentos, os desaparecimentos forçados, as execuções ditas extralegais [...] A tortura tornouse a instituição central da ditadura militar e permanece como uma das instituições mais sólidas e mais longevas do país. [...]41 Com vistas ao que expôs o autor, verificase que neste período, a justiça criminal brasileira, caminhou para um modelo prisional que muito se assemelhava às práticas punitivas da Idade Média, transformando o que deveria ser o exercício de um deverpoder legitimo do Estado, em abuso escancarado dos direitos fundamentais daqueles que estavam sob sua custódia, em nome de possíveis transgressões contra o ordenamento jurídico. 39 AMARAL,C., op cit, p. 03 40 Idem. 41 MATTOS, Virgílio. Desconstrução das Práticas Punitivas. Editora e Gráfica O Lutador, 2010, p.29. 31 Complementarmente, o autor demonstra que o mecanismo punitivo desenvolvido pelo Estado militar, deixou frutos envenenados que hoje, repercutem em nosso atual sistema, tais quais ‘ a cultura do terror, do extermínio, da impunidade, do sigilo’42, e que inclusive correspondem às mais recorrentes dificuldades enfrentadas por aqueles que desejam promover uma reforma basilar do sistema prisional moderno no país. Adiante, no ano de 1984, foi elaborada a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), que apesar de viger já no final do regime militar brasileiro, perpetuou a mentalidade encarceradora e castigadora que movia o sistema criminal do Regime, perceptível ao longo de sua redação, a começar pela ‘primeira das faltas qualificadas como graves’43, constante no inciso I do art. 50 da referida lei44. Neste viés, segundo o autor, os termos inseridos no corpo do texto da nova lei, representavam na verdade, modalidades de abuso do poder punitivo em sede de execução das penas, no que as penalidades impostas àqueles que infringem as regras de conduta dentro da prisão, como o isolamento na própria cela, p.ex., levam a um mundo paralelo, um subsistema em que há uma espécie de ‘prisão dentro da prisão’, o que constitui encarceramento duplo dos apenados. 45 Isso porque, segundo Mattos ‘’ [...] o isolamento na própria cela [...] vulnera o postulado da proporcionalidade, ao impor, para meras transgressões disciplinares, condições de privação de liberdade ainda mais rigorosas do que [...] as impostas diante da prática de crimes. ’’46 De forma semelhante, ainda cita a Lei nº 10.792/2003, que instituiu o sistema de regime disciplinar diferenciado, cujo problema apontado também foi a previsão de infração disciplinar, que também incide no vocábulo ‘subversão da ordem ou disciplina’, só que desta vez, aplicada à presos provisórios e outros indivíduos considerados nocivos ao 42 MATTOS, Virgílio, 2010, op cit, p. 21; 43 Idem. 44 BRASIL. Lei 7.210/84 – ‘Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; ’ 45 MATTOS, Virgílio, 2010, op cit, p. 21; 46 Idem. 32 próprio sistema, promovendo o que denomina de ‘alargamento da prisão dentro da prisão’.47 Cumpre transcrever a justificativa pela qual Mattos defende a inconstitucionalidade de tais medidas inseridas no sistema de execução penal, instituídos a partir das referidas leis: [...] sua aplicação [...] desautorizadamente prevê a imposição de uma pena antecipada seja para quem apenas é atribuída a prática de um crime sem que haja reconhecimento definitivo desta prática em um processo regularmente desenvolvido, seja para quem é vagamente apontado como perigoso.Por conseguinte, em relação ao breve apanhado histórico que se pretende fazer nesta seção, não há como falar em história do sistema prisional no Brasil, sem passar por um dos acontecimentos que mais marcaram a história das penitenciárias no país, o massacre do Carandiru, ocorrido em 02 de outubro de 1992. O evento ocorrido na prisão, que era considerada uma das maiores da América Latina e contava com mais de 7 mil detentos, recebeu o nome de massacre, pois segundo o escritor do livro ‘Carandiru’ e médico da Casa de Detenção na época, Dráuzio Varella, ‘’qualquer massacre, qualquer contenda, que resulte em 111 mortes, sem nenhum ferido, não recebe outro nome que não seja massacre’’48. Em verdade o massacre representa o excesso cometido pela Estado brasileiro no exercício do seu poder punitivo, pois, ao tentar conter as infrações disciplinares de certos detentos, as medidas adotadas sob comando do conjunto de profissionais que deveriam bem administrar a prisão, causaram impacto considerável, já que violaram gravemente direitos humanos em detrimento do frio cumprimento de regulamentos administrativosdisciplinares. 47 MATTOS, Virgílio, 2010, op cit, p. 21; 48 GARCIA, J; FUJITA, G. Massacre do Carandiru foi um marco, mas cadeias ainda não recuperam presos, diz Drauzio Varella. 2013. Acesso: junho/2015. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2013/04/06/massacredocarandirufoi ummarcomascadeiasaindanaorecuperampresosdizdrauziovarella.htm> 33 Dentre todas as informações divulgadas sobre o evento, o que mais chama a atenção são as circunstâncias e as condições em que se encontrava a Casa de Detenção, no estado de São Paulo, ensejadoras do massacre, as quais revelam as falhas que mais afetam o sistema prisional transpondoo a um patamar caótico. Conforme registros, o local onde se iniciou uma briga entre detentos, o Pavilhão 09, servia de alojamento de presos primários, os quais, em maioria, ainda aguardava julgamento, sendo ainda o pavilhão, assim como todos os outros, mantido em rarefeitas condições de habitalidade, colocando os internos em completa carência de direitos básicos, o que no mínimo despertava sua revolta e servia de combustível para conflitos entre si e, principalmente, com os carcerários e policiais49. Não obstante, a forma como era conduzida a relação entre dominador e dominado, ou seja, o tratamento dispensado aos detentos pelos carcerários e policiais, igualmente contribuiu para o embate, expondo também outro problema dentro do sistema penitenciário que ainda persiste, o pensamento maniqueísta construído fora dali, que divide os sujeitos entre maus (os detentos) e bons (o resto da sociedade) e incita o ódio, afastando ainda mais da concretude o ideal de ressocialização do egresso. É plausível concluir, a exemplo do massacre do Carandiru e de seu emblemático julgamento, ocorrido em 2013, que os problemas enfrentados pelo sistema prisional são apenas reflexos de um problema maior, o colapso da justiça criminal brasileira, que se apega ainda a princípios punitivos antiquados que pouco servem para afastar a violência, e dispõe de estruturas pouco desenvolvidas para abrigar a demanda de presos, estimulada pelo ânimo encarcerador. Por fim, é interessante trazer à baila deste trabalho, no encerramento desta seção, a opinião de dois grandes pensadores brasileiros, que expressam com competência, a situação de ‘extermínio da juventude negra e pobre’50 que representa a mais aguda relação entre 49 GARCIA, J.;FUJITA,G.2013, op cit. 34 as desigualdades sociais e as relações de poder que foi o massacre do Carandiru, assim descrita: “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos” (Caetano Veloso e Gilberto Gil) 1.4. A reforma do sistema prisional e as contribuições para a contemporaneidade Muitos foram os pensadores dispostos á promover a discussão e desenvolvimento de teses sobre o sistema prisional do século XVIII, porém destacaramse os que trouxeram análise mais profunda e liberta dos conceitos conservadores da época. Dentre eles, destacamse Beccaria, Howard e Benthan, que dedicaram parte de sua vida á compreensão do funcionamento do sistema criminal e seu aperfeiçoamento. Dada às relevantes contribuições trazidas por cada um deles, passase a estudar suas teses separadamente: 1.4.1. A Reforma de Cesare Beccaria Alguns autores definem a tese criminal de Beccaria com uma junção do contratualismo com o utilitarismo, contudo suas idéias são inovadores em relação ao estudo penológico que demonstrou em sua 50 Justiça Global. Após 20 anos do Massacre do Carandiru pouca coisa mudou no sistema penitenciário brasileiro e no tratamento de jovens negros e pobres. Rio de Janeiro. 2012. Acesso em: Junho/2015. Disponível em: < http://global.org.br/programas/apos20anosdomassacredocarandiru poucacoisamudounosistemapenitenciariobrasileiroenotratamentodejovens negrosepobres/> 35 célebre obra Dos Delitos e Das Penas, segundo o qual, o sistema penitenciário deve despirse do caráter confuso e abusivo para alcançar a ressocialização de seus internos e prevenir a propagação da violência.51 Nesta seara, aborda a temática da pena com base na administração de forma proporcional aos atos praticados, recomendando que sua aplicação estivesse anteriormente prevista, propagando um dos princípios do processo penal, a anterioridade da lei penal. Assim explica Beccaria acerca da tendência por ele lançada a respeito da proporcionalidade das sanções penais: [...] para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei’’. 52 Ademais, traz a luz da nova mentalidade criminal, a restrição da pena de morte, não a sua exclusão, mas o seu condicionamento á circunstâncias cuidadosamente verificadas pelo magistrado ao longo o processo. Complementarmente á este pensamento, é oportuno citar a observação que o autor faz a respeito de um silogismo, de autoria de Viceno Facchinei de Corfu, do convento de Vallombreuse, citado em sua obra, que permite compreender claramente do que se trata a reforma por ele proposta: Não se deve impor a pena de morte, se esta não é realmente útil e necessária; contudo, apena de morte não é necessária nem realmente útil. Portanto, não se deve inflingir a pena de morte.53 Esta observação trazida por Beccaria é pertinente á reforma do sistema prisional pelo fato de este silogismo representar a economia do poder de castigar54, desenvolvido na obra de Foucault, demonstrando a 51 BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 3233 52 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, tradução de Torrieri Guimarães, São Paulo, Ed Hemus, 1983, p. 33. 53 BECCARIA, C., op cit, p. 37 36 relação de eficácia que a sanção penal guarda com a administração da pena exercida pelo Estado através da execução da pena. Embora as idéias de Beccaria tenham se concentrado na reforma da filosofia do sistema criminal, também trouxe importantes considerações sobre a estruturae organização das prisões, argumentando sempre que nos estabelecimentos prisionais ‘não devem predominar a sujeira e fome, defendendo uma atividade humanitária e compassiva na administração da justiça’.55 Cumpre ressaltar que os ideais implantados pela proposta de reforma de Beccaria são atemporais, tendo inclusive inspirado outros grandes reformadores, que inspirados em sua teoria, aperfeiçoaram o sistema prisional. 1. 4. 2 John Howard e o Penitenciarismo John Howard foi um reformador inglês que desenvolveu seu trabalho baseado na proposta de humanização das prisões, tendo inclusive se inspirado nas idéias de Beccaria, citandoo muitas vezes em suas obras. Segundo Bittencourt, Howard inspirou a ‘’ corrente penitenciarista, preocupada em constituir estabelecimentos apropriados para o cumprimento da pena privativa de liberdade’’56, sendo o pioneiro no estudo do aparelho prisional, considerando seu melhoramento uma modalidade de política criminal. Atribuemlhe um enorme senso humanitário, pelo fato de nunca conformarse com ‘’ as condições deploráveis em que se encontravam as prisões inglesas’’57, e já naquele tempo, enfrentava o problema da falta de interesse dos governantes pelo tema. 54 FOUCAULT, Michel. op cit, p. 101 55 BITTENCOURT, Cesar Roberto. op cit, p. 38 56 Idem, p. 40 57 BITTENCOURT, Cesar Roberto. Op. cit, p. 40 37 Apesar de ter se esforçado para reestruturar o sistema prisional, não obteve êxito pelo fato de faltar estrutura capaz de por em pratica sua teoria e promover a ressocialização ao invés mero controle e punição. Contudo, seu pensamento inovou quando trouxe á discussão do sistema, uma estrutura de prisões celulares, em que o ponto principal de sua tese é o ‘’ isolamento noturno, que se mantém em vigor’’58 sendo inclusive adota pela Convenção de Direitos Humanos de Genebra de 1955. Demonstrou também a necessidade de recrutar pessoal específico para vigiar a carceragem dos condenados, explicando que os carcerários devem ter como principal qualidade a honra e humanidade. Além disso, evidenciou que convém á organização das prisões, a sua fiscalização a fim de manter seu funcionamento organizado, que se faria na pessoa de um juiz criminal especializado na execução das penas. Este sistema também é adotado atualmente, de forma aperfeiçoada é claro, sendo defendido por ele nos seguintes termos: [...] A administração de uma prisão é coisa muito importante para abandonála completamente aos cuidados de um carcerário. Em cada condado, em cada cidade, é preciso um inspetor eleito por eles ou nomeado pelo Parlamento cuide da ordem das prisões.59 Impende destacar que a contribuição de Howard para o atual sistema penitenciário foi extremamente relevante para o direito penal, pois, ao subdividir o direito penal, em direito material e direito de execução penal, facilitou a sistematização do estudo deste sistema. 58 BITTENCOURT, Cesar Roberto. Op. cit, p. 40 59 Idem, p. 43 38 Igualmente, ao apresentar a proposta de um sistema carcerário celular, baseado no isolamento, inclusive noturno, bem como, ao adotar o fim reformador da prisão, conseguiu definir o marco ‘da luta interminável para alcançar a humanização das prisões e a reforma do delinquente’’, dando origem ao que hoje se conhece por penitenciarismo. 1.4.3 Jeremy Bentham e o Desenho do Panótico Bentham (17481832) citado por Bittencourt60, trouxe profundas modificações para o sistema prisional através de sua obra, voltada mais para o aparato prisional do que para a mudança de pensamento e conceituação da penologia. Entretanto, não se pode negar que também contribuiu para o assentamento da teoria da finalidade reformadora da pena, já que não considerava ‘’a crueldade da pena um fim em si mesmo’’ afastandose da tese de que a pena deveria causar profunda dor e sofrimento61. Contudo, sua tese filosófica não abria tanta margem para a investigação quanto suas considerações sobre o instrumento que compõe o sistema carcerário. Desta feita, Bentham foi o pioneiro no desenvolvimento de um estudo voltado para a estrutura física do sistema prisional, ‘’ já que as prisões considerava ‘’ com suas condições inadequadas e seu ambiente de ociosidade, despojavam o réu de sua honra e hábito laboriosos’’62. O autor acreditava que a prisão servia como meio para alcançar a regeneração do recluso, era um mal necessário para evitar danos maiores á sociedade. Sendo assim, desenvolveu o projeto do panótico, uma nova modalidade de arquitetura prisional, que influenciou consideravelmente a construção das prisões ao redor do planeta e permanece ditando regras para o sistema atual63. 60 BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 43; 61 Idem, p. 49; 62 Idem. 39 Nas palavras de Foucault, ‘’ o efeito mais importante do Panoptico era induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegurava o funcionamento automático do poder [...]’’ e complementa, explicando que o sistema desenvolvido por Bentham tornava dispensável que o detento fosse vigiado o tempo todo, já que causavalhe a sensação de estar sempre observado devido à arquitetura da prisão.64 Na verdade, o sistema do panotico desenvolvido por Bentham, constituíase em uma construção, de acordo ainda com Foucault, muito semelhante a um zoológico, em especial o de Le Vaux, pertencente ao palácio de Versalhes na França, tendo como base para seu desenho ‘’ a preocupação com a observação individualizadora e com disposição analítica do espaço.’’ 65 Sob esta análise, o projeto arquitetônico de Bentham permitia que a autoridade penitenciária vigiasse o maior número de pessoas, de modo a controlar melhor e garantir a segurança do estabelecimento, além de conceder aos detentos condições mínimas de humanidade para suportar a pena de reclusão. É possível observar com clareza essas características marcantes no sistema arquitetônico desenvolvido pelo cientista criminal, através das figuras inseridas na obra de Foucault, que se seguem: Figura 1 – ‘Projeto de Penitenciária’66 63 BITTENCOURT, Cesar Roberto. Op cit Idem, p. 4650 64 FOUCAULT, Michel. Op cit, p. 224 65BITTENCOURT, Cesar Roberto, op cit, p. 50; 66 FOUCAULT apud N. HarouRomain. Projetos de penitenciárias, idem, p. 47 40 Fonte: FOUCAUL, 1999, p. 47 Figura 2 – ‘Composição celular de isolamento do Panoptico’67 Fonte: FOUCAUL, 1999, p. 48 É justamente o objetivo principal do projeto arquitetônico que deu nome á arquitetura por ele desenvolvida, pois de acordo com Bittencourt: ‘’ [...] o nome ‘panótico’ expresso em uma só palavra sua utilidade essencial, é a faculdade de ver com um olhar, tudo o que nele se faz’’68. Complementarmente à finalidade de onipotência da vigilância, o projeto também se direcionava á promoção do resgate dos condenados através de atividades laborais, intelectuais, recreativas e espirituais ao longo do dia, evitando que os internos ficassem isolados o dia todo nas células que compunham as galerias da prisão. 67 FOUCAULT apud N. HarouRomain. Projetos de penitenciárias, idem, p. 48 68 BITTENCOURT, Cesar Robert, op cit, p. 51; 41 Pelo mesmo viés, Bentham aliava ao projeto, recomendações, ainda na esfera prática e funcional, que acreditava surtirem efeitos relevantes para a reabilitação dos detentos, dentre eles: ‘’ uma disciplina severa, uma vestimenta humilhante euma alimentação grosseira’, que considerava ‘castigos moderados’ capazes de gerar bons resultados tanto do ponto de vista da prevenção geral quanto da especial’’69. Com base nos conceitos acima analisados, podese concluir que o panótico de Bentham alterou substancialmente a essência dos sistemas prisionais, que a partir de então, agilizou a implementação da prisãopena, ao passo em que se estabeleceu como ‘’ uma espécie de laboratório do poder’’70. Neste sentido, Bittencourt explana que o desenho do panótico representa algo além de simples arquitetura prisional, ele ‘’ proporciona os elementos básicos das prisões atuais’’71, o que é bem verdade, posto que nos estabelecimentos contemporâneos é fácil identificar a presença de tais elementos, que sofreram alterações tecnológicas apenas. Foucault evidencia essa característica de múltipla utilidade e praticidade do panótico, quando diz que ‘’ o desenho de Bentham resolve os problemas de vigilância, não só das prisões, mas de hospitais, indústrias, escolas, [...] porque consegue estabelecer uma relação importante entre arquitetura e poder.’’72 Em que pese Bentham ter dispendido esforços durante grande parte de sua carreira cientifica, no sentido de buscar soluções para a crise do sistema prisional, a materialização do panótico restou frustrada, porém o desenho representa um divisor de águas dentro do sistema prisional. Sua proposta de reforma abriu precedentes para o aperfeiçoamento de outros sistemas penitenciários ao redor do mundo. 69 BITTENCOURT, Cesar Robert, op cit, p. 53; 70 FOUCAULT, op cit, p. 228 71BITTENCOURT, op cit, p. 54 72 FOUCAULT, Michel. Op cit, p. 11; 42 Assim, em análise mais atenta às instituições prisionais já na Idade Contemporânea, tanto na Europa quanto na América, esta, principalmente nos Estados Unidos, constatase a indubitável contribuição dos juristas reformadores para o aperfeiçoamento dos seus mecanismos de execução das penas. Neste sentido, verificase que nestes sistemas jurídicos a adoção de princípios penais conjugados com uma política criminal mais aberta para as condições sociais, tais quais a tentativa de reforma do delinquente, através da reclusão em si, cominada com a rígida disciplina e direcionamento para o trabalho e atividades produtivas, começou a apresentar resultados satisfatórios. Cumpre destacar dois expoentes do século XIX, ambos sistemas norteamericanos, que incorporaram ideais progressistas reformadores, o sistema de ‘congregação’ de Auburn (Nova Iorque) e o sistema ‘de isolamento’ da Filadélfia (Pensilvânia), os quais serviram de parâmetro para críticas ao sistema francês.73 Estes dois sistemas penitenciários contemporâneos, foram estudados em 1838 por Alexis de Tocqueville, historiador francês, que em viagem para a américa observou as prisões estadunidenses mais famosas, tendo identificado inclusive certa competição entre os estados de Nova Iorque e Pensilvânia pelo título de mais eficiente e segura penitenciária.74 Em seu estudo, Tocqueville descreveu a ‘Auburn State Prision’ como uma instituição em que os detentos ficavam isolados apenas a noite, sendo que durante o dia, executavam trabalhos coletivos, os quais geravam lucros para industriários que exploravam sua mão de obra e, para a própria penitenciária. 73 SANTOS, M. S.A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da Era Republicana. 2004,p. 141. Disponível: <http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi08/topoi8a4.pdf> 74 Idem. 43 Já o sistema pensilvânico, adotado pela penitenciária da Filadélfia, assumia a postura de isolamento integral dos internos, sendo permitido a eles a execução de trabalhos menos lucrativos e individuais, apresentando inclusive custo mais elevado do que a sistema de Auburn e maiores índices de mortalidade, contudo segundo Tocqueville, este último sistema se prestava melhor ao fim de recuperação dos detentos, já que sua capacidade de intimidação e transformação moral eram maiores. 75 Se faz necessário ressaltar que as conclusões extraídas do estudo e observação de Tocqueville permitiram implantar dentro do sistema europeu, inicialmente na França, aperfeiçoamentos que otimizaram os sistemas prisionais do século XIX. Complementarmente, é interessante citar o exemplo da prisão de Norfolk, também localizada no estado da Pensilvânia nos Estados Unidos, criada ainda no período colonial, que se destacou por conjugar os dois sistemas penitenciários, o de Auburn e o da Filadélfia, criando um sistema ‘misto’ baseado na adoção de métodos que levassem à evolução de estágios da pena prisão dos condenados, criando assim, precedentes para o que hoje denominase ‘progressão de regime’. Os autores Engbruch e Santis explicam através de publicação realizada no boletim periódico do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, doravante IBCCRIM, que a prisão de Norfolk conduzia seu sistema da seguinte maneira: [...]O regime inicial funcionava como o Sistema da Filadélfia, ou seja, de isolamento total do preso; após esse período inicial o preso então era submetido ao isolamento somente noturno, trabalhando durante os dias sob a regra do silêncio (sistema de Auburn). Nesse estágio, o preso ia adquirindo “vales” e, depois de algum tempo acumulando esses vales, poderia entrar no terceiro estágio, no qual ficaria em um regime semelhante ao da “liberdade condicional” e, depois de cumprir determinado prazo de sua pena, seguindo as regras do regime, obteria a liberdade em definitivo. [...]76 Ainda de acordo com os pesquisadores, este sistema de Norfolk, obteve tanto êxito, que foi capaz de levar a inovação do sistema 75 SANTOS. M.S., op cit, p. 141142 76 ENGBRUCH, W.; SANITS, B. M. D, A. op cit, p. 02. 44 penitenciário nele instituído, da colônia para a metrópole, a Inglaterra, e posteriormente para a Irlanda, onde foi lapidado, dando origem a um ‘quarto sistema’ o qual também foi adotado pela Suíça, em que os prisioneiros trabalhavam em locais sem barreiras físicas, ao ar livre, e em seguida recebia a ‘liberdade condicional’.77 Fotografias históricas retratam o cotidiano vivido nesta instituição localizada na colônia inglesa da Pensilvânia, traduzindo o espírito de ressocialização projetado pelos reformadores, como bem se observa a seguir: Figura 3 – Jogo de baseball no pátio da prisão de Norfolk78 Fonte: Sweeney, 2013. Figura 4 – Detentos trabalhando em marcenaria dentro da Norfolk Prison.79 Fonte: Sweeney, 2013. 77 ENGBRUCH, W.; SANITS, B. M. D, A, 2012, op cit. 78 SWEENEY, E. Warden’s son recalls life at state prison. 2013. Acesso: Maio/2015. Disponível em: < http://www.bostonglobe.com/metro/regionals/west/2013/01/13/secrets norfolktalksecretsnorfolksecretsbarsnorfolkprisonwardenrecallsunorthodox childhoodnorfolkprisonsecretsbehindtalksecretsnorfolksecretsprison behind/Th1V3ZsB3LgMrIP2iPlC4H/story.html> 79 SWEENEY, op cit, 2013. 45 Nesta trilha, um caminho de refinamento dos sistemas prisionais iniciouse na Europa, dando origem a vários outros sistemas, tais como o ‘Sistema de Montesinos na Espanha que tinha trabalho remunerado e previa um caráter ‘regenerador’ da pena’80, que inclusive pode ser considerado como o embrião das modernas Colônias Penais Industriais ou Agrícolas. É possível afirmar que os referidos sistemas trouxeram importante contribuição para a administração dos recursos
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