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KANT INSERIDO NO DEBATE JUSNATURALISTA MODERNO

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389 
 
Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 
ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 
IX Edição (2013) 
KANT INSERIDO NO DEBATE JUSNATURALISTA MODERNO 
 
Rodrigo Luiz Silva e Souza Tumolo1 
 
RESUMO: A minha exposição será dividida em duas partes lógicas: em um primeiro 
momento, farei uma exposição ampla a título introdutório sobre os principais elementos 
do jusnaturalismo a fim de pôr o terreno sobre o qual nos moveremos; em um segundo 
momento, minha abordagem será estritamente kantiana – na qual buscarei apontar os 
pontos centrais do pensamento político kantiano relativos ao estabelecimento do Estado 
e depois problematizar algumas regiões especificamente polêmicas na questão do 
direito. O que exporei aqui é um “tateio” ou sondagem de terreno, portanto de modesta 
pretensão: o tema do jusnaturalismo é uma pequena parte da pesquisa maior que está em 
andamento; vi neste encontro a possibilidade de sistematizar em um único texto 
informações até então bastante esparsas. 
 
 
1. O JUSNATURALISMO MODERNO: RECUPERANDO PONTOS CENTRAIS 
O desenvolvimento do jusnaturalismo moderno, conforme aponta Bobbio2, está 
estritamente ligado ao debate da limitação do poder e da sua justificação, isto é, à 
preocupação em controlar os excessos do Estado e sua legitimação. Pondo a questão em 
termos mais técnicos, o campo pelo qual nos movemos agora é o campo do direito 
político: nos perguntamos pela justificação do direito chamado de positivo. 
A limitação do poder pode se dar externamente ou internamente ao próprio 
sistema do poder: a teoria jusnaturalista é um exemplo de freio externo; a teorias da 
separação de poderes e a democrática são exemplos de freios internos. Os 
jusnaturalistas acreditavam que o Estado encontra limites em alguns direitos inatos do 
homem, quero dizer, em direitos que subjazem à própria natureza de ser homem e que, 
portanto, não podem ser renegados. É dever do Estado respeitá-los e, inclusive, garanti-
los. Exemplos de freios internos são as teorias de separação dos poderes (na qual os 
poderes constituídos são independentes e exercem controle um sobre o outro – com a 
ressalva do legislativo ser geralmente apontado como proeminente frente aos outros 
 
1
 Mestrando em Filosofia pela USP. E-mail: <rodrigotumolo@gmail.com>. 
2
 Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, pp. 24-27. 
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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 
ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 
IX Edição (2013) 
poderes, caso em que cabe aos cidadãos servir-lhe de freios e vigiá-lo); e a teoria 
democrática (cuja soberania se dilui em todo o povo). 
Não vale a pena nos perguntarmos sobre quais autores são jusnaturalistas e 
quais não são, visto que há uma vasta bibliografia divergente entre si e que também não 
são teorias estanques não miscíveis entre si – Kant, por exemplo, cria seu pensamento 
político influenciado por todas elas3; Rousseau, expoente maior de uma teoria 
democrática, por outro lado também dialoga abertamente com a tradição jusnaturalista 
no seu Contrato Social. O que realmente merece ser dito são os nomes dos principais 
pensadores envolvidos nesse debate mais amplo a fim de que nos situemos: nomes 
muito conhecidos que encabeçam as três principais correntes que citei há pouco como 
Locke e Montesquieu (na separação de poderes), Rousseau (na teoria democrática); 
Hobbes e também nomes como Grotius, Pufendorf, Thomasius, Achenwall e Wolff (no 
direito natural) – pensadores talvez hoje menos divulgados, mas que em sua época 
estabeleceram teorias importantes que influenciaram os demais e com quem percebe-se 
franco debate. Höffe salienta também outro aspecto interessante para se ter em mente: 
os pensadores citados se encontram na tradição do Esclarecimento. 
Outro elemento que gostaria de recuperar nesta rápida introdução é a teoria 
voluntarista. Se antes apresentei as teorias de limitação do poder, agora pergunto sobre 
os fundamentos do poder instituído. Talvez a teoria mais amplamente aceita até então na 
história da humanidade fosse aquela do fundamento teológico do poder, quero dizer, a 
teoria do direito divino; outra teoria também aceita era a da tradicionalidade do poder 
instituído. A teoria voluntarista representa, nesse ambiente, uma ruptura importante: não 
é conclusivo para um voluntarista que fundamento do poder seja divino ou que ele seja 
tradicional e, sim, que seja baseado em um acordo entre os homens. Os teóricos iniciais 
desta corrente foram calvinistas ligados à revolução holandesa4. Logicamente, é na 
teoria voluntarista que se encaixa o pensamento contratualista. Creio que a figura mais 
central neste ponto seja o jurista alemão Johannes Althusius5, também um calvinista: me 
refiro à sua obra Politica Methodice Digesta de 1603, revisada em 1610, na qual escreve 
explicitamente de um contrato (pactum) feito entre as pessoas de maneira que se 
 
3
 Otfried Höffe, Immanuel Kant, pp. 228-229. 
4
 Fato histórico importante foi a revolta holandesa ou “guerra dos 80 anos”, aquela liderada por 
Guilherme de Orange (e sucessores) de 1568 a 1648 contra a Espanha e a Igreja Católica. Merece ser 
mencionada pelo significado político do que veio a resultar: a independência dos Países Baixos, que 
formaram a primeira república europeia em meio aos grandes impérios europeus cuja sustentação teórica 
do poder real era o direito divino. A República das Sete Províncias Unidas durou de 1581 até a invasão 
francesa em 1795. Não é de se estranhar, portanto, que o voluntarismo tenha ganhado corpo lá. 
 
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possibilite a associação (consociatio) e a ele se atribui uma doutrina bastante cara aos 
jusnaturalistas: a doutrina do duplo contrato. Segundo essa doutrina, a instituição do 
Estado se dá com dois contratos sucessivos e diferentes, um pacto social (pactum 
societatis) e um pacto de sujeição (pactum subjectiones), a saber, o pacto social é aquele 
em que indivíduos que vivem de maneira isolada resolvem instituir uma convivência 
pacífica entre si – a rigor, diz-se que é o momento em que a multidão passa a se 
constituir como povo (populus); o pacto de sujeição é aquele em que o povo abre mão 
de sua potência de agir em favor de outro, que se constituirá como poder supremo e 
deterá o monopólio da coação sob a condição de salvaguardar a todos alguns direitos 
como a vida e os bens. 
O pacto de sujeição é merecedor de um aprofundamento conceitual e explico 
desde já o porquê: a partir do estudo das vias pela qual se dá a transferência de 
soberania ou, como me referi há pouco, a transferência da potência de agir torna-se 
possível pensar uma questão muito interessante – o direito de resistência ou, em termos 
mais kantianos, a relação entre a legalidade e a revolução. Há duas vias tradicionais de 
transferência: a que chamarei de “concessão” (concessio imperii) e a que chamarei de 
“transmissão” (translacio imperii). A concessão corresponde à delegação condicionada, 
isto é, se o mandatário não cumprir o acordo estabelecido pode ser destituído – cabe a 
ressalva que não se deve tentar compreender a concessão sucumbindo à tentação de se 
utilizar um paralelo com Rousseau: a concessão pode ser feita dentro de um sistema 
monárquico ou aristocrático, nada tem a ver com os magistrados encarregados do 
governo no Contrato Social daquele. A transmissão é a doutrina que prevê a 
transferêmcia completa e incondicional da soberania no contrato dos contratantes ao 
contratado, do todo que abre mão para o outro que a recebe: é neste campo queestão 
concentrados autores tão díspares como Hobbes (que defende a transmissão voluntária e 
contratual completa para um monarca e, portanto, um Estado absolutista) e Rousseau 
(que defende a completa alienação de tudo e de todos para com todos e, portanto, um 
Estado democrático); Kant, por sua vez, também pode ser inserido aqui. Por ser uma 
transmissão completa e irrestrita, todos os autores têm em comum também a dificuldade 
de aceitar o direito de resistência e/ou a revolução. 
À luz desses dados, desvelam-se mais alguns elementos importantes na 
reflexão jusnaturalista: a tensão relativa à liberdade e a passagem do estado de natureza 
para o estado civil. 
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Com tensão relativa à liberdade quero me referir ao difícil equilíbrio entre 
conservar a liberdade dos indivíduos frente ao poder instituído. Há dois extremos: 
quanto mais liberdade individual menor o poder do Estado, quanto maior o poder do 
Estado menor a liberdade individual. Vê-se, pois, que o conceito de liberdade é central 
no debate político moderno. Abrem-se três possibilidades de constituição de Estados: o 
absoluto (maior poder estatal e menor liberdade dos súditos – como o descrito por 
Hobbes), o democrático (maior liberdade político-civil e menor poder a ser delegado 
aos magistrados que formarão o governo – como o descrito por Rousseau) e o liberal 
(aquele que põe “in thesis” a soberania no povo mas limita esse povo em critérios como 
propriedade ou, no sentido geral mais aceito, que entende liberdade unicamente no 
sentido negativo: liberdade é a menor ingerência do Estado na vida do indivíduo e ser 
livre é fazer tudo aquilo que as leis não proíbam de ser feito – os principais liberais 
seriam Milton, Locke e Montesquieu). 
O estado de natureza é geralmente definido como um estado originário no qual 
os indivíduos viviam dispersos ou em pequenos grupos (sem constituir povo) sendo 
cada um o juiz e executor mais capacitado e indicado nas questões que envolviam seus 
próprios interesses. Era tido confessamente um recurso hipotético. A descrição mais 
usual do estado de natureza é como sendo marcado pela animosidade e insegurança. 
Talvez até pelo caráter hipotético do estado de natureza, tem-se a tendência a pensar o 
estado civil como seu total contraste – o que não é completamente válido. De qualquer 
maneira, é ponto pacífico que o estado civil é aquele estado convencional (no sentido de 
"artificial", apoiado em leis externas fruto de criação humana). 
 
 
2. INSERINDO KANT NO DEBATE JUSNATURALISTA 
É sempre controverso delimitar fronteiras, por isso proponho desde já 
deixarmos de lado a tentação da pergunta “Kant é jusnaturalista?” para nos atermos ao 
fato que Kant, ao menos, dialoga abertamente com o pensamento jusnaturalista 
moderno. A título de ilustração de como seria improdutivo ceder à tentação de delimitar 
claramente a posição kantiana, Bobbio afirma no seu Direito e Estado no pensamento 
de Emanuel Kant que “Rousseau pode ser considerado o último jusnaturalista”6 e o 
 
6
 Cf. Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 70. 
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mesmo autor em seu outro livro Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna7 traz 
incontroversamente Kant ligado à escola jusnaturalista. 
Creio ser oportuno algumas palavras sobre o pensamento político kantiano 
antes de nos debruçarmos em uma análise mais fechada de pontos específicos. Começo 
então por uma breve periodização despretensiosa da evolução dos temas políticos em 
Kant: seus grandes trabalhos políticos datam a maioria da década de 1790 (como a 
“Metafísica dos Costumes”, “À paz perpétua”, “Sobre a expressão corrente: isto pode 
ser correto na teoria, mas nada vale na prática”, “A religião nos limites da simples 
razão” e o “Conflito das Faculdades”); de fora desse período, na década de 1780 vieram 
a público o “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita” e “O 
que é o Esclarecimento?”. É enganoso pensar que os temas políticos não interessaram a 
Kant antes de sua velhice: pelo contrário, na década de 1760 Kant se mostrava bastante 
interessado em conhecer o debate que se desenvolvia proficuamente especialmente entre 
os filósofos-juristas alemães, na França e na Inglaterra. Trabalhos embora menos 
conhecidos, dão um rico testemunho desse interesse os Comentários (“Bemerkungen”) 
e as Reflexões (“Reflexionen”), ambos da década de 1760. Há, inclusive, que se 
reconhecer que também é ponto pacífico entre os comentadores que por volta dessa 
mesma época, Kant tomou contato e deixou-se influenciar grandemente por duas obras 
de Rousseau: O Contrato Social e o Emílio8. Kant demorará para se descolar do mesmo 
entendimento que faz Rousseau de conceitos centrais daquele (como o estado de 
natureza) e criar uma filosofia com caráter mais autoral. Höffe nota que Kant não se 
notabilizou em seu tempo por seu pensamento político, sendo mais lembrado por seu 
trabalho epistemológico e no campo da moral: a prova disso é que a tradição salta pela 
Rechtslehere kantiana para jogar luzes na hegeliana. Tendo procedido a um exaustivo 
estudo na tentativa de periodizar o pensamento político kantiano, Ritter9 refaz a crítica 
que resume bem a impressão geral que vigorava sobre a política kantiana: a Doutrina do 
Direito (e o pensamento político kantiano de maneira geral) é fraca porque Kant 
permanece preso demais ao direito natural metafísico e, principalmente, por não 
proceder criticamente como na razão teórica e na moral. 
 
7
 Cf. Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, pp. 
13-17. 
8
 Ambas as obras de Rousseau datam de 1762. 
9
 Christian Ritter, Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Cf. também os comentários acerca 
do estudo de Ritter feitos de maneira breve por Otfried Höffe em Immanuel Kant, pp. 229-230 e de 
maneira mais rica por Ricardo Terra em A política tensa, pp. 29-30 (nota de rodapé 12). 
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IX Edição (2013) 
Apesar de eu ter falado dos Comentários e nas Reflexões, o Kant a que me 
referirei aqui é aquele maduro das décadas de 1780/90. O caminho que espero percorrer 
é o seguinte: expor a concepção de estado de natureza kantiano e do contrato, chamando 
a atenção para sua especificidade como ideia; a partir da posse do conceito de ideia, 
expor o papel singular do contrato no pensamento kantiano e, enfim, como a noção 
central de liberdade em Kant muda originalmente os termos da questão do 
estabelecimento do Estado (polarizando a discussão no Direito). 
 
2.1. O ESTABELECIMENTO DO ESTADO: ESTADO NATURAL, CONTRATO, IDEIA E 
NATURRECHT 
Kant reestrutura o problema do estabelecimento do Estado de modo que, em sua 
doutrina, o direito ganha um destaque logo de saída que não tivera até então nos autores 
clássicos jusnaturalistas (como Hobbes ou Rousseau). Essa mudança pode ser percebida 
a seguir, agora que trataremos do estado de natureza e o contrato. 
 O estado de natureza é apresentado na Teoria e Prática como “o estado de uma 
plena ausência de leis, onde todo o direito cessa ou, pelo menos, deixa de ter efeito”10, 
na Paz Perpétua como “um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não 
exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça 
constante”11. Essas definições contrastam com a teoria apresentadana Metafísica dos 
Costumes: na introdução à Doutrina do Direito contida nesta, Kant destaca que o objeto 
do presente estudo será o direito natural, estabelecendo uma distinção entre direito 
positivo e direito natural. Cabe ao direito natural a posição de fundamentação racional 
ao direito positivo, isto é, o papel de padrão de medida: se ao direito positivo a pergunta 
“o que é de direito?” receberá uma resposta elaborada a partir das leis existentes, a 
mesma pergunta ao direito natural é entendida como “o que é justo e o que é injusto?”. 
Para dar o passo seguinte em minha argumentação, é necessário introduzir o 
conceito de ideia. Ainda no escrito Teoria e Prática, pode-se ler sobre o contrato 
originário: “este contrato [...] não se deve de modo algum pressupor necessariamente 
como um facto (e nem sequer é possível pressupô-lo); [...] mas é uma simples ideia da 
razão”12. Há quase sete anos antes tinha vindo a público sua segunda edição da Crítica 
da Razão Pura, o que torna razoável supormos que ele estaria fazendo um uso seguro 
 
10
 Teoria e Prática, A259. 
11
 À paz perpétua, B18. 
12
 Teoria e Prática, A249 (grifos do autor) 
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do conceito de ideia: Ricardo Terra13 nos esclarece que Kant buscou inspiração em 
Platão para definir o que seja ideia – um conceito puro do entendimento juntamente com 
as categorias, mas enquanto estas são condição de possibilidade da experiência, a ideia 
pode nunca encontrar um referencial empírico e não há nenhum problema com isso. A 
função da ideia é, então, reguladora, quero dizer, pode-se servir-se dela como uma 
métrica ou prumo; não exatamente como constitutiva do conhecimento. 
Nos primeiros escritos que citei, estado de natureza era um estado selvagem 
sem leis. Na Metafísica dos Costumes, uma análise mais acurada mostra uma mudança 
de posição: existem, sim, leis no estado de natureza, a grande diferença é que essas leis 
não são externas garantidas por instituições públicas. No original em alemão é possível 
distinguir três conceitos contidos na Metafísica e dois deles são de tradução 
problemática (porque podem ser traduzidos da mesma maneira – se não forem tomadas 
as devidas cautelas): Kant fala em um Naturrecht, que corresponde ao direito natural 
enquanto ideia; um natürliche Recht, que é o que reconhece como “direito privado” na 
medida em que vige no estado de natureza e, sendo assim, não tem a garantia de 
instituições públicas e o caráter coercitivo do öffentliche Recht – o “direito público”, 
quero dizer, aquele garantido por instituições públicas que garantem o caráter 
coercitivo. É possível o entendimento que a religião ou mesmo acordos entre indivíduos 
façam lei do ponto de vista social, de modo que Kant parece recuar da posição que o 
estado natural não tenha leis: seria mais adequado dizer que não tenha leis externas 
garantidas publicamente. Naturrecht e natürliche Recht aceitam a tradução em comum 
de “direito natural” e podem conduzir a erro – ao mesmo erro que cometeu o jurista 
francês Michel Villey na sua introdução à Metafísica dos Costumes da edição francesa 
da Vrin, a saber: de ligar o conceito de sociedade ao estado civil unicamente e tomar o 
“direito natural” a que Kant se refere como se fosse um único (aquele que aqui 
nomeamos de direito privado). Ignorando o direito natural enquanto ideia e, portanto, 
como fundamentador ou padrão de medida para o direito positivo, Villey projeta um 
Kant “positivista-legalista”: o oposto do que aponta o espírito da obra kantiana, pois o 
positivista-legalista toma os textos jurídicos, somente eles, como suficientes em si 
mesmos para pensar o Direito14. 
 
13
 Ricardo Terra, A política tensa, pp. 15-25. 
14
 Cf. Soraya Nour, À paz perpétua de Kant, pp. 3-7: neste trecho pode-se encontrar parte da tradução de 
Villey e os valiosos comentários da autora sobre a questão da tradução. Ainda sobre o assunto do direito 
natural como fundamento do direito positivo, Höffe (Immanuel Kant, pp. 233-243) utiliza-se da expressão 
“conceito racional do Direito” para dizer algo muito semelhante ao que expus aqui. 
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Uma vez que estamos falando de ideia, voltemos ao contrato originário. Li há 
pouco um trecho da Teoria e Prática, em que Kant afirmava que o contrato não se 
tratava de um fato e sim de uma ideia. Outro trecho do mesmo livro apresentará a 
“pedra de toque” de toda a legislação pública: “[o contrato] obriga todo o legislador a 
fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo 
inteiro. [...] É esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública”15. 
Este me parece ser o ponto crucial e original que diferencia Kant de outros 
jusnaturalistas: enquanto ideia, o contrato simula um plebiscito democrático que 
legitima qualquer governante (não democráticos incluídos). Isto é, qualquer governante 
pode fazer leis justas e incontestáveis16. Entre a total rendição dos súditos em Hobbes e 
a total democracia em Rousseau, Kant escolheu o caminho do meio: o respeito à 
universalidade contida na vontade geral pode garantir que um governante déspota crie 
leis justas e de acordo com a autonomia de cada um dos seus cidadãos – por mais 
indigesto que possa soar em um primeiro momento, se tivéssemos mais tempo e 
pudéssemos analisar na Fundamentação da Metafísica dos Costumes os conceitos de 
autonomia e reinos dos fins perceberíamos facilmente, enfim, como a argumentação 
kantiana se pauta toda sobre a razão (que é universal e universalizante). 
Como nota Höffe17, “Kant fundamenta Direito e Estado a partir de princípios 
de uma razão (jurídico-)prática pura. Sua filosofia política pertence ao direito natural no 
sentido de um direito racional crítico” e a darmos crédito a Bobbio é por conta de Hegel 
que tradicionalmente, quando se fala em direito racional, costuma-se referir 
estritamente à doutrina kantiana18. 
 
3. ÚLTIMAS PALAVRAS 
Espero ter logrado êxito em demonstrar uma aproximação ou talvez até mesmo 
filição kantiana ao debate jusnaturalista, pois não encontrei farta bibliografia de estudos 
específicos nesse sentido escrita por filósofos e não juristas. 
 
 
15
 Teoria e prática, A250. 
16
 Wolfgang Kersting, "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy" in: Paul Guyer (org.), 
Cambridge Companion to Kant, p 355: “But what is decisive - and here is the difference between Kant's 
political philosophy and the politicoethical conception of ‘discourse ethics’ that it has inspired in Jürgen 
Habermas and Karl-Otto Apel - is that for Kant this procedure of a genesis through a democratic 
plebiscite can be simulated and replaced by the thought-experiment of universalizability. By this means 
Kant makes it possible for nondemocratic rulers to provide just laws without having to give up power.” 
17
 Otfried Höffe, Immanuel Kant, p. 233 
18
 Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna, p. 16. 
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BIBLIOGRAFIA: 
PRIMÁRIAS 
KANT, I. “À paz perpétua”. In: ______. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 
Edições 70. 
______. Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012. 
______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Barcarola, 2010. 
______. Ideia de uma históriauniversal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: 
Martins Fontes, 2011. 
______. Metafísica dos Costumes. Petrópolis: Vozes, 2013. 
______. “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na 
prática”. In: KANT, I. ______. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 
70. 
SECUNDÁRIAS 
BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 
2000. 
BOVERO, M. Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna. 4ª ed. São Paulo: 
Brasiliense, 1996. 
HÖFFE, O. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 
KERSTING, W. "Politics, freedom and order: Kant’s political philosophy". In: 
GUYER, P. (org.) Cambridge Companion to Kant. Cambridge: CUP, 1995. 
NOUR, S. À paz perpétua de Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 
TERRA, R. A política tensa. In: ______. Ideia e realidade na Filosofia da História de 
Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995. 
_______. Passagens. In: ______. Estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: 
Editora da UFRJ, 2003. 
RITTER, C. Der Rechtsgedanke Kants nach den frühen Quellen. Frankfurt: 
Klostermann, 1971.

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