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2 A análise institucional de Georges Lapassade Referimo-nos, na abertura deste livro, à diversidade de teorias e práticas com Psicologia nas instituições. Apresentamos no primeiro capítulo a proposta de J. Bleger, e afirmamos que apenas este autor se utiliza do termo Psicologia Institucional para dar nome à inter venção do psicólogo nesse contexto. Esta foi, inclusive, a razão pela qual o escolhemos para abrir a série das Psicologias Institucionais que visamos ora expor. Georges Lapassade nos permite prosseguir, situando mais uma contribuição teórica à prática da Psicologia em instituição. Análise Institucional é a denominação que ele mesmo dá a essa forma de compreender e intervir em grupos e organizações. Conforme se poderá notar, trata-se de um discurso diferente do de Bleger. Implica, portanto, numa proposta de ação também diferente. No Brasil, o pensamento de Lapassade passa a ser mais conhecido a partir de meados da década de 70. Coloca-se sempre como uma abordagem predominantemente sociológica e política ao trabalho insti- tucional. muito embora tenha se originado da psicossocioíogia ou da psicologia dos grupos. Coloca-se, portanto, como alternativa à abor dagem psicanalítica de Bleger. A análise institucional é trazida, no contexto deste livro, como a maneira singular de entender o que são as relações instituídas, bem como a forma de “trabalhá-las”, ou agir sobre elas enquanto psicólogo. 25 Livros Caixa de texto GUIRADO, M. A análise institucional de Georges Lapassade. In: Psicologia Institucional. São Paulo: EPU, 1987.null Ju Realce Ju Realce Considerada como um “movimento1’, teve sua origem na França, na década de 60, com o próprio Lapassade e René Lourau (39). Parece adequado falar em movimento de Análise Institucional, visto que caminharam, sempre pari passu, tanto as intervenções em instituições ou organizações quanto as teorizações a respeito. Proposta como um método para decifrar as relações que indivíduos e grupos mantêm com as instituições (40), a Análise Institucional tem suas raízes teóricas na intersecção de diferentes disciplinas, como a Psicologia Social, a Sociologia e a Pedagogia. E tem procurado sempre articular os enfoques teóricos do marxismo e da psicanálise. Suas bases concretas encontram-se nas experiências da pedagogia institucional que, criticando uma pedagogia autoritária, procurou constituir uma outra que redimensionasse o espaço, o tempo e a relação educador-educando; encontram-se ainda, essas bases, nas práticas da psicoterapia institucional, esta apontando para uma ação sobre as instâncias institucionais que impedem a cura a que se pro põem; encontram-se, por fim, na psicossociologia, compreendida como o estudo e o trabalho com pequenos grupos. A maioria dessas práticas tinha, em comum, algo que a Análise Institucional retoma de maneira definitiva: a crítica às instituições. E ela o faz, não a partir do questionamento de sua eficácia, ou seja, não se discute sua função ou desfunção porque se reconhece que, de certa forma, as instituições sempre cumprem sua “função social” (até quando aparentam ser ineficazes). Faz, sim, a contestação da “natu reza” mesma das instituições. Este movimento se propõe, no dizer de Guilhon de Albuquerque (41), à ruptura da lealdade institucional. Assim, o termo Análise Institucional acaba por nomear, de um lado, uma determinada concepção do que seja a instituição e uma teoria para sua análise e, de outro, uma forma de intervenção que visa a transformá-la, provocando-a, revelando sua estrutura (42), subver tendo-a. Teoria e intervenção, no entanto, estabeleceram-se sobretudo a partir de experiências concretas e de sua avaliação crítica. São fre qüentemente denunciados, pelos próprios autores e interventores, insucessos e falhas ora atribuídas a situações circunstanciais como, por exemplo, a variedade de instituições analisadas (o que dificulta uma constância nas técnicas utilizadas), ora atribuídas à análise institucional em si, enquanto método. De forma talvez até coerente 26 Ju Realce Ju Realce Ju Realce Ju Realce com sua proposta de provocar e revelar estruturas, este movimento não se-pQUpa. Coloca-se. constantemente em cheque e, quando se revê, não se confirma. Estas avaliações, entretanto, não anulam a importância da proposta da Análise Institucional. De um lado, peia força que historicamente teve este movimento e, de outro, por se constituir, sobretudo, numa forma de análise política da realidade social e institucional (o que tem muito a acrescentar àqueles profissionais ligados à psicologia). Se as implicações práticas desse modelo deixam a desejar àqueles mesmos que o criaram e o efetivaram, isto não nos impede de conhe cê-lo (até em suas críticas), para, inclusive, redimensionar tais críticas a partir de nossa realidade social e profissional. No momento em que nos dispomos a entender esse movimento, tomamos Lapassade, entre tantos, como objeto de estudo. Por quê? Primeiro, porque Lapassade se encontra na origem do pensamento e da prática da Análise Institucional. Depois, porque seus trabalhos são melhor divulgados entre nós. Além disso, é ele quem, de forma mais harmônica e num discurso mais acessível, articula o nível da intervenção ou da análise em situação, ao nível do estudo, da pes quisa, da teoria — a Análise Institucional em si. Por fim, porque ele é, antes de tudo, um provocador: seus trabalhos, contrariamente aos demais, são sempre um convite ao pensar e ao repensar; um convite ao tentar. . . Escolhemos, como textos básicos para a elaboração deste capítulo, Grupos, Organizações e Instituições (43) e “El encuentro institu cional” (44). Neles o autor situa sua teoria sobre as instituições, os grupos e as organizações, buscando, via de regra, retomar as outras teorias a respeito e criticá-las. O ponto de partida para a crítica é a condição que estas teorias apresentam para que se questione o insti tuído, constituinte da vida dos grupos no cotidiano. Com base nisto, Lapassade formula a proposta de intervenção por meio da autogestão. Aí configura o campo político da Análise Institucional. Mais ainda: em meio a todo esse movimento do pensamento e da ação, questiona o que ele mesmo propõe, até não mais permitir que esta Análise Institucional se sustente enquanto proposta teórica e de atuação. .. Vejamos, no decorrer dos subitens que se seguem, como isso se dá. 27 2.1. Os três níveis da realidade social A Análise Institucional considera a realidade social como aconte cendo em três níveis: o do grupo, o da organização e o da instituição. Toda relação social se faz, sempre, nos grupos. Estes, por sua vez, podem vir a configurar organizações e são, ambos, sobredeterminados pelas instituições. O primeiro nível é o do grupo: é a base da vida cotidiana. Na escola, é a classe; no trabalho, é o escritório e a oficina; no resto da vida, a família. Este nível já tem a marca da instituição nos horários, nos ritmos de operação, nas normas, nos sistemas de con trole, nos estatutos e papéis. Seu objetivo é manter a ordem, organizar o aprendizado e a produção, segundo Lapassade. Assim, submetidos que estamos, nos grupos nos quais vivemos (da família aos grupos de trabalho), a uma rotina que prevê horas de entrada e saída, formas de trabalho e de relação, respostas aceitas e premiadas ou rejeitadas e punidas, vivemos cotidianamente o insti tuído no contato face a face, na fala direta a outro elemento do mesmo grupo. Há sempre, portanto, a mediatização da instituição no grupo. Ele é, inclusive por isso, o que Lapassade chama de um primeiro nível institucional.Com base nessa compreensão, podemos dizer, por exemplo, que o professor é o representante do Estado na relação com os alunos. segundo nível da realidade ou do sistema social é o da orga nização, com seus regimentos e regulamentos: um estabelecimento de ensino ou administrativo, uma fábrica, e assim por diante. Aqui já existem normas jurídicas fazendo a ligação entre a sociedade civil e o Estado. É nesse segundo nível que Lapassade situa a burocracia em sua mais concreta dimensão ”, apontando para uma estrutura que é a ocasião de relações autoritárias. Nesta medida, determinados grupos encontram-se excluídos da elaboração e prescrição dos regimentos e das normas de conduta, produção e aprendizagem que traduzem, sempre, as leis do Estado. É neste nível que a direção dos estabele cimentos, como uma universidade, por exemplo, representa o poder central e está em relação direta com ele. * Deter-nos-emos a entendê-la melhor no próximo item deste capítulo. 28 Ju Realce Ju Realce Ju Realce Ju Realce O terceiro nível ê o do Estado, a instituição propriamente dita. Ê o Estado, entendido como o conjunto de leis que regem a conduta social, quem criva a organização e o grupo. 2.2. A instituição É interessante notar que Lapassade, definindo dessa maneira os três níveis do sistema social, redefine o conceito de instituição. Em determinado momento dos textos de GrUpos, Organizações e instituições, identifica instituição e instituído. Instituição, nesta abor dagem, é o conjunto do que -está instituído e, enquanto jurisdição e política, pauta toda e qualquer relação. Assim o conceito é depurado, livrando-se daquilo que é, no senso comum, sua identificação maior: a identificação com a organização, o estabelecimento, o equipamento. Lapassade atribui ao termo insti tuição um sentido específico e o distingue de organização, que seria uma forma singular de instituição. Nesse nível (organização), fala-se do equipamento, das condições materiais, do espaço físico, do estabe lecimento e do organograma (que distribui pessoas e grupos, em contato direto, nos diferentes papéis e regiões de poder). O termo instituição não designa as formas materiais do prédio, ou a distribuição hierárquica mais imediata de uma empresa, escola ou hospital. Instituição é algo como “o inconsciente de Freud ( . . . ) não loca- lizável e ( . . . ) imediatamente problemático” (45). Ou seja, está pre sente nas ações aparentemente menos significativas e isso não nos é dado à consciência. Ê aígo como uma forma geral das relações sociais. Em “El encuentro institucional” (46), Lapassade mostra a impor- zação). Caso contrário, corre-se o risco de se estar fazendo uma análise “organizacional” e não “institucional”. Cita, como exemplo, tância da distinção entre os dois conceitos (de instituição e organi- as práticas de Psicoterapia Institucional do início da década de 40: os profissionais que faziam a intervenção chamavam de instituição o estabelecimento em que iriam atuar. Com isso, estabeleciam-se como meta o “cuidado com a instituição que oferecia certos cuidados” , mobilizando seus serviços terapêuticos e permitindo que se curassem os doentes no interior mesmo das práticas de institucionalização. Nesse processo, está se confundindo, segundo Lapassade, as institui ções com os dispositivos e as instalações materiais, e o trabalho 29 Ju Realce Ju Realce Ju Realce institucional com a preservação das instituições, apenas modifican do-as. Deve-se ír além desses limites para poder pensar as instituições. No caso da Joucura, por exemplo, o isolamento, a separação entre loucos e normais, a instituição da doença mental é que deve ser considerada a instituição, e não um hospital em particular. Eáte é apenas um dispositivo material para que a separação se dê. A este nível se definirá o objeto da análise institucional. A análise organi zacional implicaria na análise da situação de um hospital em parti cular. Os hospitais são as formas de se particularizar tal instituição; eles a instrumentam. Da mesma maneira, poder-se*ia falar das instituições de ensino e do seu modo de produção como instituição. Não as escolas ou as fábricas, mas aquilo que sobredetermina o tipo de relação pedagógica ou relação de trabalho é que seria chamado de instituição. Não se deve, entretanto,, ignorar que essa sobredeterminação signi fica a “presença” da Instituição nas formas organizacionais e grupais de relação. Por isso Lapassade usa, às vezes, 3 termos distintos, para significar 3 níveis da realidade social: grupo, organização, instituição. Às vezes, fala em um primeiro, um segundo e um terceirf) níveis institucionais (o grupo seria o primeiro nível institucional, a orgiani- zaçao o segundo e a instituição o terceiro). No curso da conceituação de instituição, ainda, Lapassade faz uma distinção entre dois outros termos: instituído e instituinte. O primeiro significa o que está estabelecido; é o caráter de fixidez e cristalização das formas de relação. O segundo significa o movimento de criação: é a capacidade de inventar novas formas de relação. Embora usúalmente se identifique a instituição com o instituído, Lapassade ressalta que o instituinte é também um movimento da instituição; é ele que garante, em última instância, a possibilidade de mudança. No processo de institucionalização, o instituinte acaba instituído. Mas permanece sempre?. ainda que sob controle, na con dição de retornar como o reprimido, numa analogia a Freud (47). Compreendendo a instituição como o que assim criva o funciona mento do grupo, Lapassade faz a crítica do “lugar” que as instituições ocupam no método marxista de análise da realidade social (48). Na teoria de Marx, como parte integrante das superestruturas, as instituições nada mais são do que um reflexo ou uma forma secun dária (derivada) do modo de produção. O que Lapassade procura destacar é que as próprias relações de produção são instituídas; que, como dissemos acima, o modo de produção é uma instituição. 30 Ju Realce Ju Realce Ju Realce Ainda, h. Althusser íaz uma disiinçáo cnue a infra c a superes trutura, situando, naquela, as condições materiais e as relações econô micas e nesta, as instâncias jurídico-políticas. Tal distinção não permite perceber que a Escola — uma das instituições privilegiadas, no entender althusseriano, para a reprodução das relações de produção — é onde se entrecruzam as dimensões econômica (ela tem um lugar na produção), política (supõe relações de poder e está vinculada ao Estado) e ideológica (produz e veicula a ideologia do saber científico como saber neutro, bem como a da educação “neutra”). Com este raciocínio, Lapassade chama a atenção para o fato de que “a nível de superestrutura de uma instituição, o que se encontra é apenas o aspecto institucionalizado da instituição. E a lei, é o cddigo, é a regra escrita. H a constituição” (49). Para ele, no entanto, a instituição vai além desses limites, para supor-outros instituídos não diretamente percebidos, como, a exemplo, á questão dos horários e das rotinas dos grupos e das organizações. Lapassade afirma que a instituição não é “um nível ou uma mani- festação^^pgnação social” (50), mas é a maneira mesma como a realidade' süaaf se organizar sobredeterminada como está pela me- diaiçãé^^fesfado. Além disso, no marxismo, perde-se de vista o movimento do insti- tuinte nas instituições. Enfatiza-se apenas o instituído, e como reflexo das relações econômicas. - Pará Lapassade, quando se admitem os movimentos do instituído e do instituinte, o conceito de instituição se trans-formae passa a ser um importante instrumento de análise das contradições sociais (50. Esse esforço de eliminação de certas ambigüidades do conceito é uma preocupação central deste autor; isto para que se possam usar, com algum rigor, palavras e termos que permitem definir com maior clareza .o que é o objeto de intervenção na Análise Institucional. Antes, porém, de nos determos na compreensão do que seja este método de análise, convém entender outros conceitos presentes na formulação lapassadiana do Sistema Social. Por essa razão, desta camos a seguir ideologia, Estado e burocracia. 2.3. Estado e Ideologia Lapassade considera o Estado a instituição primeira, aquela que legitima toda e qualquer outra instituição. Em sua condição de 31 Ju Realce Ju Realce Ju Realce instrumenio privilegiado das classes dominantes é a lei e, por ela, a repressão. Até aqui nâo há qualquer novidade. Mas vai surgir quando Lapas- sade originalmente afirma que o que o Estado reprime (e o faz permanentemente) é o sentido daquilo que se faz, o sentido da ação. Não se trata aqui, necessariamente, da repressão física ou policial. Acontece que a prática repetitiva e referida a uma determinada lei, a um conjunto de regramentos, é uma prática que se aliena e aliena os sujeitos nela envolvidos. O impedimento exterior passa a ser interior, esmiuçando como se encontra em infinitas normas que permeiam o vivido. É esse mecanismo coletivo de repressão, determinante do desco nhecimento social, que é a ideologia. Assim, a ideologia não será uma “simples ignorância das estruturas e do funcionamento da sociedade” por parte de seus membros, mas, sim, um “desconhecimento do sen tido estrutural de seus atos, do que determina suas opções, suas prefe rências, rejeições, opiniões e aspirações, pela ação do Estado, através das mediações institucionais que penetram em toda a sociedade” (52). é este um desconhecimento provocado pela repressão social do sentido daquilo que fazemos, pensamos ou falamos no cotidiano. E quem faz esta repressão do sentido é o Estado, a instituição por excelência que, controlando a educação, a informação e a cultura, nos grupos e nas relações face a face, instaura a autocensura e impede a “verdadeira comunicação” . No momento em que Lapassade atribui este “controle central” ao Estado, denuncia a vertente mais radical e ao mesmo tempo mais envolvente de seu pensamento, de sua elaboração teórica. Ele diz que, com isto, o Estado reprime a Revolução. "O cjue é mais reprimido é a Revolução. £ para evitá-la que as ideologias e as instituições dominantes funcionam e mantêm a adesão coletiva ao domínio, ao mesmo tempo em que evita o conflito e a luta que poderiam pôr lermo à dominação" (53). Seu discurso sobre a Revolução, como a libertação da palavra social dos grupos, termina (ou começa?) por propor a destruição do Estado burguês. O Estado é a “cabeça” da sociedade capitalista, e segundo ele, quando esta for decapitada, deixará de existir. O caminho para isto, em sua concepção, não é o golpe de Estado, mas sim a construção de um novo sistema institucional. O Estado seria substituído por uma “sociedade polimorfa” , uma sociedade 32 revolucionária, em que não se permitiria a cristalização em instituições dominantes, nem a centralização do domínio. Lapassade concretiza estas novas formas de vida social quando cita os clubes, as associações, tudo o que permite a expressão e o exercício da ação coletiva (como, por exemplo, as assembléias gerais permanentes). Estas são as instituições da revolução. A revolução supõe, portanto, não apenas a destruição do que existe, mas o esforço instituinte de novas pautas para o exercício social; pautas estas que não se transformarão em instituições acabadas. A regra que se exige cumprir parece ser, inclusive, a de impedir o enrijecimento das novas formas instituídas. Trata-se de uma revolução permanente, gerando instâncias que se articulem de tal forma que “a soberania coletiva não se aliene em instituições que novamente se tomam autônomas” (54). Tal proposta prevê que os grupos se regulem, tenham suas normas. Mas que as tenham não voltadas para as exigências de instituições dominantes centralizadas no Estado e, sim, para garantir sempre o movimento de continuar instituindo e possibilitando a criação. As regras existem sim, mas para regular a não alienação no instituído. Adverte ele, no entanto, sobre o risco de se criarem novas formas de repressão social no seio da revolução permanente: é a contra- -revolução; é o refluxo, a “distorção do sentido, no interior da ideo logia revolucionária, para transformar um discurso verdadeiro sobre a sociedade em ideologia dominante” (55). Da relação entre a força instituinte e o instituído nasce a neces sidade de luta e de ação dos grupos sociais, 2.4, Burocracia e poder Na concepção de organização da vida social, criada pelo Estado, Lapassade atribui um lugar fundamental à burocracia. Normalmente, quando se fala em burocracia pensa-se em papéis, ofícios, demoras e memorandos. Lapassade, no entanto, tem uma concepção diferente. Vai além, situando a burocracia, antes de tudo, como uma questão política: é um certo tipo de relação de poder que atravessa toda a vida social, desde as relações de produção até o lazer, passando pelos partidos políticos, pela pesquisa científica e pela educação. Não se identifica apenas com o corpo administrativo do Estado (como diria Marx), ou da empresa (como se costuma pensar). 33 Mas existe onde quer que se separe a decisão da execução, e o pensar do fazer. Lapassade afirma, com isso, que a burocracia é a ‘'organização da separação’1. Vejamos como se dá essa separação, nas diferentes instâncias da vida social. As excursões programadas pelas agências de viagens, as propa gandas que encorajam o consumo das diversões e do descanso, com temas de “volta à natureza” ou com temas de “desconiração”, ao mesmo tempo em que popularizam o lazer, burocratizam-no. O “prazer” do turista é “planejado” fora e antes dele, pela agência. Orienta-se o que ele pode “admirar”, em que ritmo e como. Burocratizam-se também os trabalhos acadêmicos, à medida em que esíes se organizam nas “panelas” que ratificam o professor “realizado” e o “principiante” , ou à medida em que se baseiam “na recomen dação, no nepotismo, na admiração, na participação em fundos de pesquisa” (56). Até mesmo um certo tipo de pesquisa social evidencia esse .traço de trabalho burocratizado: aquele empirista, em que o processo se caracteriza pela racionalização de cada fase do estudo, baseado como está na estatística, em entrevistas fechadas e resultados computadorizados. Idealiza-se aqui o rigor metodológico e submete-se, com isto, o próprio pensamento. Quanto aos partidos políticos, Lapassade afirma que eles se tornam tão organizados que os eleitos se excedem na autoridade sobre os eleitores, e os delegados sobre os que delegam. A organização do partido torna-se um fim em si, e “esquece-se o projeto inicial, para trabalhar no desenvolvimento do próprio partido. Tudo para o par tido: tal passa a ser o lema, Passa-se a recrutar membros a qualquer preço, a fazer alianças, a fortalecer, de todas as maneiras, a orga nização” (57). Nas relações de trabalho, a burocratizaçâo se manifesta no con trole da gestão produtiva pela forma de trabalho mecanizado, padro nizado, sujeito à cronometragem e à racionalização das normas. Todos os movimentos do homem que produz (o operário) são decididos, normatizados e controlados a partir (e em função) do exterior. A mesma alienação vai se dar nos trabalhos em escritório,enquanto existe uma divisão e especialização cada vez maiores e enquanto se limitam a tarefas repetitivas padronizadas, mecanizadas e, da mesma forma» controladas pelo (e referidas ao) exterior; exterior em relação ao grupo de trabalho que executa a tarefa. >4 Na educação, o traço burocrático se apresenta basicamente na resistência a que os alunos assumam o processo como deles. Este parece ser do domínio dos educadores, nas suas mais diferentes instâncias, desde o professor que mantém relação direta com o aluno, até os ministérios da educação que mediatizam tal relação. As decisões fundamentais (programas e nomeações) são tomadas pela cúpula do sistema hierárquico. Para o professor, de um lado, fica a impressão de que decide a respeito dos conteúdos e normas e, de outro, o “lugar” de representante do Estado. É “da competência” do aluno (é espe rado dele), seguir normas e assimilar conteúdos. E, do conformismo (que é também uma forma de resistência) ao conflito (que é seu contraponto), constitui-se o campo de luta possível para a transfor mação desse (des)equilíbrio de forças. É nessa discussão sobre a burocratização da pedagogia e do tra balho que Lapassade denuncia com mais clareza o que, para ele, é o traço definidor da burocracia: uma forma de organização do poder, em que hã uma alienação da condição de decisão sobre o fazer cotidiano, em favor de grupos (ou dirigentes) que, embora em relação, não alinham seus interesses aos dos grupos ou indivíduos executores. A relação burocratizada é, pois, uma relação entre desiguais quanto ao poder para definir o que deve ser feito, bem assim o como deve ser feito. Essa desigualdade e a alienação, que é seu corolário, são de alguma forma representadas, internalizadas, pelas pessoas. Por isso Lapassade afirma: ‘Tenho subitamente o sentimento de uma impotência, c parece-me que as decisões são, com freqüência, tomadas em outro lugar, sem que eu seja con sultado” (58). Na quase totalidade das vezes, entretanto, sequer esta impressão de estar sendo lesado na sua capacidade de decisão chega à cons ciência do sujeito. É o fechamento do ciclo desigualdade/poder/ decisão/alienação. Apresentada, portanto, como a organização da separação, a buro cracia, em Lapassade, sai do âmbito das organizações econômicas e políticas, para significar a organização, no poder, que “penetra todos os poros da existência social”. Com raízes no modo de produção, a burocracia extrapola os limites do capitalismo, atingindo toda e qualquer organização da produção em que determinados grupos (ou classes) distinguem-se dos demais, 35 para fazer o controle da política, da educação, da informação e da economia, entre outros. Compreendendo desta forma a burocracia, Lapassade detém-se, num certo momento, a conjeturar sobre o destino do mundo: seria ele o da burocratização, ou de alguma outra forma de organização social? Se Hegel está certo, o caminho é o da burocratização generalizada e progressiva, porque a organização é a Razão. Se é Marx quem está correto, ela será dialeticamente superada, porque a organização é a Desrazão. Lapassade se pergunta, então, sobre a significação de um sistema não burocrático, sobre como imaginá-lo. E afirma que a questão continua em aberto. Parece interessante, no entanto, destacar como todo o curso de seu pensamento aponta para a definição de uma “burocracia tradicional”, mas acena com a possibilidade de uma neo-burocracia (“mais flexível e capaz de presidir à mudança”) com jovens dirigentes, o que permi tirá, em seu seio, o movimento autogestionário organizativo das bases. Isto porque considera irrealizável o sonho da burocracia, segundo o qual é possível a existência de formas sociais acabadas que se re cusem à transformação e que se “preservem em seu ser” (60). O inacabado estará, sempre, também presente, de forma mais ou menos implícita., nos diferentes tipos de poder paralelo, de conflito, de ato criador “de novas normas que definem novos estados, consi derados como relativos e como suscetíveis de evolução” , t “méísamos hoje ein dia, ao mesmo tempo, descobrir a importância e a relativa autonomia dos grupos, das organi2ações, das empresas e das insti- ■“ v ' tuições sociais, e descobrir também que esses conjuntos são sempre inaca bados, que a sua finalidade se inscreve igualmente em outra parte, na socie dade global c na história” (61). Com este discurso sobre o inacabado e o instituinte, Lapassade não chega, entretanto, a negar que em determinado momento da História e, especialmente, no momento atual em países do Terceiro Mundo, o instituído e a ordem burocrática mostram-se em toda sua força e vigor. É nessa situação que se expressam aquelas que são as características fundamentais da burocracia tradicional. Lapassade assim as descreve: 1. A burocracia não é uma “doença”, um mau funcionamento ou um desfuncionamento de uma gestão; e o conflito não é uma desordem na auto-regulação do corpo social (modelo biológico de compreensão 36 do social). Pelo contrário, é uma forma determinada de estruturação das relações de poder. ,2. ‘‘A burocratização implica uma alienação das pessoas nos papéis e dos papéis no aparelho” (62), isto porque os papéis são sempre previstos e distribuídos de maneira impessoal, ganhando sentido apenas em função da organização para a qual forem definidos. “O universo burocrático é impessoal” (63). 3. As decisões são sempre tomadas por instâncias anônimas, des conhecidas. 4. As comunicações dão-se, via de regra, num sentido apenas — de cima para baixo — e o retorno não é esperado, recebido ou efetivado; os porta-vozes da base podem até existir, mas não são ouvidos; suas mensagens são “empanadas”; não existeift canais para tanto. 5. A estrutura de poder em dois andares alimenta~s(; na ideologia do saber e apóia-se numa pedagogia diretiva: na cúpula, estão os que sabem, na base, os que ignoram; para se atingir o saber tem-se que passar pelo “batismo burocrático1’. Ou seja, serão “ensinados para que amadureçam” , e a condição de aprendizagem exige que se iniciem nos procedimentos da burocracia, que se coloquem no lugar de quem não sabe, A desigualdade é assim perpetuada. Este sesforço peda gógico” vai formar nos grupos, cada vez mais, indivíduos heterô- nomos, “armados, segundo Riesman, de um radar para se adaptar e se conduzir no terreno social” (64). 6 . Com isso, desenvolve-se o conformismo, preserva-se a falta de iniciativa e ratifica-se a separação nos dois níveis da organização burocrática. 7. Os indivíduos e os grupos heterônomos, voPados para o cumpri mento de normas estabelecidas de fora, a pedagogia da heteronomia, bem como as características até agora apresentadas, ccntribuem para que a autonomia seja, na verdade, a da própria organização. Ela se torna não um meio para que um fim seja atingido (comc, por exemplo, a educação de um grupo de crianças), mas sim, um fim em si mesmo. Há um deslocamento de objetivos. Com isso, a fidelidade dos membros e grupos à organização acaba sendo uma exigência par* que se tenha •satisfações e valores próprios” ; uma exigência que acaba sendo “percebida” como do sujeito: ele se sente pertencendo ao conjunto, quando se toma usuário do discurso e das atitudes desenvolvidas no interior da burocracia. 37 8. A burocracia supõe, portanto, continuamente, a resistência à mudança; mesmo quando certas estruturas ou formas de funciona mento se mostram inadequadas. Assímila-se mais do que se busca modificar. Há aqui, uma recusa do tempo, da história, uma rigidez ideológica, uma reação à crítica e ã novidade, oposição e conflito.9. Assim, a burocracia é a fonte do comportamento desviante e dos grupos fragmentários ou informais. Toda e qualquer forma de organi zação que não “pertença” a esta, que não comungue de seus “vícios” básicos”, será percebida como excluída, como banida. E, no término desse processo, a fração não chega a ser sequer uma fração do grupo; transforma-se num grupo exterior, num corpo estranho à organização. Formam-se subunidades, isto é, subgrupos que acabam por se dedicar a objetivos particulares. 10. Por fim, há que se destacar, na burocracia tradicional, o movi mento dos que se servem da organização para configurar uma “car reira” que brota da função ou do papel ocupado; isto se dá quando um profissional procura, de todas as formas, subir, fazendo conces sões aqui, contornando ali, para obter uma boa posição. Citadas essas dez características, podemos dizer que é a partir de tal compreensão de burocracia que Lapassade desenha o quadro das relações políticas e da dominação ideológica. A inserção dos sujeitos e dos subgrupos nos procedimentos burocráticos é a via preferente para que o cotidiano seja a singularização das instituições sociais. É a maneira privilegiada de os grupos e sujeitos submeterem-se à sobredeterminação institucional (a que nós referíamos no início do presente capítulo). Viver a ordem burocrática é viver a dimensão oculta e, portanto, determinante do que se dá a nível dos grupos e das organizações. A inserção nesta ordem e a fidelidade a ela são a maneira pela qual se dá a conformação ao Estado e suas leis. De uma forma ou de outra, as condições burocratizadas de vida e de trabalho são a alienação primeira, que faz com que pareçam naturais e necessárias todas as outras, e que traijstòrma, em neces sidade Absoluta, o que é necessidade de uma determinada organização social, política e econômica. A burocracia é, portanto, o ritual de iniciação no universo institucional. . . 38 2.5. A Análise Institucional É com vistas à suspensão das instituições dominantes (enquanto dominantes), “provocando” as relações de poder rígidas e hierarqui zadas, que Lapassade propõe a Análise Institucional. É portanto, com vistas ao rompimento do ciclo burocrático que ela se define. Não será fácil, no entanto, apresentar de forma didática e compreensiva ao leitor como Lapassade define Análise Institucional. Seu pensamento muda muito, em função da sua prática e do momento histórico. De início, uma breve colocação a respeito dessas mudanças. Ao que parece, no decorrer da década de 60, Lapassade anuncia a importância de tal tipo de trabalho para que se transforme a natureza mesma das instituições sociais. A rebelião de 1968 na França parece, entretanto, ter-lhe mostrado as limitações do método. E Lapassade, com a mesma força com que o propõe, desacredita-o. Nem sempre fica claro, no entanto, se sua crítica, nessa hora, atinge a Análise Institucional como um todo ou a forma como vinha sendo levada (nos seminários de Formação nas Universidades). Tudo indica que a explicitação da dimensão institucional oculta nas açòes cotidianas, a seu ver, deva acontecer (é a finalidade última da análise). Mas a Análise Institucional, tal conw a pensavam até então seus criadores e os que participavam do movimento como técnicos-analistas, não se mostrava mais o instrumento adequado. É importante, no entanto, esclarecer que Lapassade revê a Análise Institucional enquanto prática e não enquanto teorização (que aqui apresentamos) sobre a burocracia: os três níveis de realidade social, o conceito de instituição de Estado e de Ideologia. Estes permane cem. Ele questiona o alcance de transformação que o método de Análise Institucional possa ter nesse sentido. Os escritos de 1973 trazem Lapassade fazendo intervenções sócio- -analíticas novamente. Quase não usa mais o termo análise institucio nal, exceto como análise institucional em situação, e modifica a técnica. Mas permanece o lugar do analista. Agora, como o detonador da análise. Tem-se a impressão de que a crítica, feita anos antes, com relação ao papel do técnico-analista não se mantém: este profissional pode continuar existindo, desde que reformule os meios para a análise, e desde que não crie vínculos de dependência; deve ao contrário desencadear, com força, a incisão, um processo que o dia-a-dia dos grupos em organizações se encarregarão de prosseguir, fazer ou recriai. 39 Ju Realce Ju Realce Ju Realce Ju Realce Além disso, na mudança da proposta observa-se também uma osci lação do referencial teórico: logo após 68, a análise sociológica e política do papel do analista é o ponto de partida das críticas de Lapassade; um ou dois anos depois, resgata a compreensão psicana- lítica das relações instituídas e do possível lugar do analista; dois ou três anos mais, depois, revê a análise concebida desta forma e a redimensiona com base na teoria das técnicas da psicologia existen- cial-humanista e da bioenergética (a via de libertação das amarras institucionais não será a palavra, mas o corpo). Em meio a toda esta variação, para que se possa dar a conhecer ao leitor a análise institucional de Lapassade com um mínimo de continuidade, apresentaremos seus textos na ordem quase inversa do tempo em que foram escritos. Partimos do Chaves. . . (1971) e do “El encuentro institucional’' (1973), para chegar ao “Prólogo à 2.“ Edição de Grupos, Organizações e Instituições (1970). Esta é uma linearidade meramente formal, construída da nossa perspectiva enquanto estudiosos de Lapassade, visando a facilitar a compreensão do conceito. Ê importante, no entanto, reafirmar que isto em nada corresponde ao movimento mesmo do pensamento e da prática lapassadiana. Tanto quanto possível, tentar-se-á retornar a esse movimento. Convida-se assim, o leitor, ao tortuoso caminho desta linearidade forjada. . . Refaz-se o convite, para que não se prenda a ela, a fim de que não perca a riqueza das contribuições de Lapassade. 2.5./. A análise institucional c o Estado Em Chaves da Sociologia (1971), Lapassade define a análise insti tucional como um métodQ_ de análise da realidade social, bem como um método de intervenção. Enquanto método de análise, a análise institucional, conforme dissemos anteriormente, redefine o conceito de instituição, afastan do-se. até certo ponto, da teoria marxista clássica. Com isso, permite compreender o que se passa nos grupos e nas organizações como sobredeterminado pelas instituições de uma sociedade. Permite .com preender a experiência cotidiana como estando aprisionada num_ sistema institucional. Enquanto intervenção« propõe-se ser a condição concreta para que se revele a determinação institucional, oculta pela repressão do sen tido e pelo encobrimento ideológico. Provocando o grupo a falar e 40 atuar, promove-se a análise em situação e desvendam-se as instituições determinantes do discurso e da ação grupai. Como se pode notar, ao definir Análise Institucional em 1971, (em Chaves da Sociologia) Lapassade confirma muitos dos pressu postos sobre organização social que desenvolve em 1970 no “Prólogo à 2.“ edição” de Grupos, Organizações e Instituições. Ele considera a sobredeterminação do que se passa nos grupos, a redefinição do conceito de instituição, a repressão do sentido e o envolvimento ideológico. E é sobre isto que se dará a intervenção ou ação do analista institucional. Lapassade afirma, em 1970, que '‘há uma dimensão oculta, não analisada e, portanto, determinante” , nos grupos: a dimensão insti tucional. A análise institucional é o método que “visa a revelar nos grupos, esse nível ocultode sua vida e de seu funcionamento” (65). Com isso, o que a análise institucional faz é chegar ao Estado que criva o cotidiano das instituições. Mas o Estado a que se chega é o Estado de Classes. Assim, a análise institucional, uma vez efetiva, atingirá, em cada grupo, a questão das relações sociais de classe. Lembramos que a repressão do sentido acontece nos grupos, para que neles se cale a possibilidade de revolução e que o símbolo da revolução é o rei decapitado, porque se corta à sociedade o poder centralizador do Estado. Ora, a análise institucional, em princípio, é esse caminho para destacar a presença desse Estado no fazer diário dos grupos e das organizações. Esta é a instituição por excelência que se quer desvendar. É, no entanto, sobretudo nesse momento — ainda sob o efeito do fervilhar dos movimentos sociais de 1968 na França — que Lapassade menciona o Estado como alvo da Análise Institucional. Em outras ocasiões, especialmente nos trabalhos posteriores a 1971, são as “instituições mediadoras” as que mais cita: a educação, a sexualidade, o casamento, os partidos políticos, a Igreja entre outros. Parece claro, no entanto, que permanece como objetivo da análise institucional a revelação da presença da “instituição-primeira” . Além dessas colocações sobre o fim último da análise institucional, outras nos parecem também significativas e a elas nos dedicamos a partir de agora. 2.5.2. Análise Instiiucional x Análise Organizacional Em Chaves da Sociologia (1971), Lapassade estabelece uma dife renciação entre a análise institucional e a organizacional. Embora 41 Ju Realce Ju Realce no primeiro caso seja o grupo, ial como se configura nas organizações, o lugar da intervenção, devc-se, no trabalho com ele, colocar em questlo sua dimensão institucional e não, buscar a reorganização ou a recuperação da burocracia. A análise organizacional parece calcada numa concepção das orga nizações como totalidades fechadas, a-histórícas, “Tem, muito fre qüentemente, a tendência a tratar a empresa como uma ilhota social e cultural, com suas leis próprias, sua vida interna, algo parecido com o que os biólogos chamam de meio interior do organismo, com sua auto-regulação relativamente independente do meio exterior' (66). Daí, até fazer da análise um instrumento de reorganização das rela ções e de recuperação da estrutura é apenas um passo sutil. Com isso, este trabalho nega sua finalidade última, que é o de explicitar o quanto as relações que se criam na empresa sofrem um corte transversal de outras instituições, sobretudo do Estado. Deixa-se de lado todo o movimento histórico que perpassa o conjunto das relações instituídas e, com ele, o interjogo da contradição no “interior” de uma dada organização (como uma empresa, uma escola, um hospital). Para Lapassade, “o sentido das organizações e dos grupos é sempre externo a eles; está na história, no modo de produção e na formação social em que esta organização é constituída” (67). Por essa razão, ele propõe a análise institucional como um instrumento de análise das contradições sociais*, enquanto, como dissemos, revela a dimensãç oculta do que se passa nos grupos. Ele enfatiza que esse “aspecto oculto nada tem de misterioso ou metafísico”. Ê o que não se sabe; e o não saber é determinado pelo lugar que se ocupa na produção e nas relações de classe. Desse lugar, o que é conhecido só o é da perspectiva que esse lúgar permite e, jamais, da perspectiva de quem está acima da estrutura e com a “visão do todo” . Assim, pela posição que se ocupa no modo de produção, pela classe a que se pertence, tem-se determinada possibilidade de “saber” sobre o que se passa nas. relações. E isso é verdadeiro até para aqueles que ocupam lugares privilegiados na ordem das coisas. Há, sempre, e para todos, uma região de “não-saber” . Desenvolvendo este raciocínio em Chaves da Sociologia, Lapas sade requinta o seu entender sobre o que é objeto de análise nos grupos. Ele afirma que o que é analisável é, exatamente, a “relação com o não-saber”. 42 Ju Realce Ju Realce “A análise institucional assume por objetivo o fazer surgir na sua reali dade concreta (na expressão dos atores), o aspecto dialético, ao mesmo tempo positivo e negativo de todo grupamento organizado’' (p. 151). A tarefa da análise institucional é “provocar” (suscitar) a palavra social liberta, torná-la audível, de tal maneira que esses ‘'atores” tenham diante de si “o negativo da imagem que formam de si mesmos e da sociedade” (68). Aquilo que não se sabe, uma vez defrontado, faz mover a prática social. Fica cada vez mais definida, então, a diferença entre a Análise Institucional e a Análise Organizacional. São métodos de compre ensão e de intervenção na realidade social, com fins e justificativas teóricas, se não opostas, no mínimo, diversas. Julgamos oportuno trazer à luz tais diferenciações, considerando-se a utilização cada vez mais freqüente da Análise Organizacional por profissionais de Psicologia, dizendo-se fazer Análise Institucional. 2.5.3. As vias de Análise: palavra x ação Além das questões relativas à definição da Análise Institucional, de seu objeto e de seu âmbito, existem outras ainda, trazidas por Lapassade — sempre em função da reflexão que ele faz sobre sua prática. Por isso, em geral, conflitivas. Uma delas, a que nos interessa mais de perto no momento, pelo lugar central que ocupa no movimento da Análise Institucional, é a questão das “vias” de análise, ou seja, das técnicas mesmas pelas quais se procede a análise. Até a escritura de Chaves da Sociologia (1971), a intervenção dos analistas nos grupos apresenta-se como calcada na palavra, visando inclusive a libertação da palavra social. Quando, entretanto, lê*se “Hl encueníro institucional” (1973), essa direção não se mantém. Embora permaneça como “norte” a revelação do oculto (institucional) e, como contraponto da cristalização do instituído, a autogestão dos grupos, Lapassade revê a maneira de se atingir isto. Propõe a utilização de técnicas^originadas da Bionergétíca e da. Psicologia do Potencial Humano, em oposição ao que ele passa a chamar Socioanálise, baseada no discurso, na linguagem. A Socioanálise, segundo ele, só romperá com a cultura e estabele cerá a novidade e a possibilidade de transformação quando se utilizar do trabalho com o corpo, quando se utilizar do grito, dos momentos críticos de transe, da terapia de ataque à exacerbação das emoções. 43 Ju Realce Ju Realce dos elementos da gestait-terapia e da bioenergia. Assim, ela provoca a autogestão em ato e não só em palavras; uma ação política, de fato. Assim, ela é mais “ativa”, mais subversiva. E o rompimento a este nível é o verdadeiro rompimento, para Lapassade. É a condição de análise das “amarras institucionais”, ao mesmo tempo em que se dá sua efetiva negação. Note-se, inclusive, que o autor, nesta data, 1973, já quase não fala em Análise Institucional. Prefere o termo Sócio-análise, definido como análise institucional em situação, mais especificamente, como um encontro institucional (conforme se esclarecerá adiante). Lapassade retorna, nesta redefinição da técnica, os grupos de en contro de Rogers (com maratonas e happenings). Como uma forma de intervenção, originalmente concebida para promover mudanças individuais e grupais, passa a ser pensada como uma força de inter venção que possibilita mudanças na organização e na instituição. Para isso, é necessário reconsiderar os grupos de encontro da perspec tiva teórica que formula a relação entre organização e instituição, É necessário ainda, fazer, o enxertoa estas técnicas de trabalho corporal. Conservando, portanto, os fins últimos da sócio-análise, transfor- mam-se as vias de acesso, tendo em vista um rompimento que se dê pelo impacto e pela provocação. Só assim se reverte a apatia, a inatividade e a desistência que, segundo Lapassade, é o mal das instituições no momento histórico em que escreve sobre isto (década de 70). Má alguns anos (provavelmente a década de 60), as carac- íerísticas do movimento social eram outras e, portanto, as técnicas podiam ser outras também. Agora não. Para quebrar o “fazer nada”, só por meio de um “fazer direto, breve e ruidoso”. Afirma, então, categoricamente; Que fazemos? Crise-anãlise. Instituímos, no tempo breve (três dias ao ritmo de mara tonas) de uma intervenção, uma crise na organização-cliente e pensamos que logo eles poderão apropriar-se da análise e começar a praticá-la. Este é o aspecto didático de nossas intervenções. Não sabemos, exatamente, como é desencadeada artificialmente esta crise; às vezes, de fato, no limite do transe coletivo; assim, obtemos efeitos análogos ao que ocorre em certos grupos de encontro ( . . . ) onde já se sabe desde o início que haverá muitos gritos, lágrimas e ‘teatro’. Vêm a nós para serem provocados, para encontrar os provocadores institucionais ( . . . ) e seus amigos, seu clã, os ‘impugnados do lugar’. Com freqüência, nossas intervenções são também ocasião de reencontros da família institucionalista. São ocasião de uma festa. O cliente, 44 Ju Realce Ju Realce atônito, sobretudo se se compòe de adultos instalados nas instituições (fami liares, profissionais), sente-se culpado e não quer parecer reacionário ou reformista, ou ainda, agente da repressão (sexual, cultural). Como também se questiona sobre sua 'instituição', provoca e festeja. Se descrevo assim nossas situações, não é para deplorá-las. Pelo contrário, penso que devemos levá-las mais longe ainda e que os ‘potencialistas’ o fazem, com efeitos interessantes. Mas, nesse movimento, há técnicas espe cíficas, elaboradas sobretudo para conduzir grupos, como se vê nos grupos de encontro, de gestalt e de bioenergia. Hm socioanálise, no contrário, com muita freqüência, permanece-se na composição, pratica-se como diz R. Hen, à deriva institucional” (42). Os recursos às técnicas corporais e de grupos de encontro, bem como a duração breve (maratonas de fins de semana), retiram da intervenção a idéia “analítica” de mudança progressiva e de longa duração. A “análise” institucional, portanto, transforma-se num “encontro” institucional e, enquanto intervenção, Lapassade lhe atribui o mesmo sentido de remeximento das instituições, como se o fato de ser uma análise ou um encontro não alterasse as condições de possibilidade, a natureza e a intensidade da mudança provocada. Fica claro, ao contrário, que no “encontro” o lugar do analista é o de “provocador” de um processo que, pretende-se, seja tomado nas mãos pelos atores institucionais, finda a intervenção. Daí, como afirma Lapassade, o seu caráter didático. Se ele é o detonador da mudança, a hipótese é a de que a análise seja uma ação do grupo sobre si mesmo (e especialmente) na ausência do analista. 2.5.4, A crítica ao movimento e ao conceito de Análise Institucional Como vimos, no texto de “Hl encuentro institucional” (1973), Lapassade critica a questão da técnica, ou melhor, critica a íorma pela qual vinha se dando a análise institucional. No “Prólogo à 2.a Edição” de Grupou, Organizações e Instituições (1970), no entanto, acontece, surpreendentemente, no mesmo texto em que se define o conceito, a mais cristalina “derrubada” da análise institucional, por seu criador. Isto causa surpresa até porque a “derrubada” é anterior à proposta de “Encontro” , o que sugere que Lapassade, em certa medida, recon siderou o destino a que lançara a análise institucional em 1970. Em 1970, numa revisão crítica do movimento de 1968 na França, Lapassade contrapõe à análise institucional (tal como desenvolvida nos Seminários de Formação nas universidades e mobilizada por 45 especialistas ou técnicos) a ação direta dos grupos cuja palavra social é reprimida. É esta ação que libera, não a análise. É ela que trans forma. É ela a prática subversiva. Há, fundamentalmente, aqui, o questionamento de um tipo de prática em que os técnicos se colocam como preceptores da mudança, repetindo, muitas vezes, a relação de poder que condenam, ou que sc propõem terminar. Há, também, o questionamento da própria análise, quando entendida como um ‘‘fazer pela palavra” e na ação “artificial” de grupos monitorados por esses técnicos. Ela não téria a força transformadora da ação que é diretamente pensada e exe cutada pelos grupos a quem as decisões são impedidas. Embora não fique claro neste “Prólogo...", parece, entretanto* que o que ele critica é a experiência sócio-analítica ou de análise insti tucional por meio dos chamados Seminários de Formação em que o sociólogo ou psicólogo denunciava a “traição dos dirigentes” ou apontava para os “defeitos burocráticos da instituição” (69). Se chamamos de análise institucional ao trabalho a nível da autogestão (ou seja, a nível da aproximação entre o decidir e o executar, o pensar e o fazer, num mesmo grupo) há, também ao que parece, o que resgatar nesse movimento. Mesmo assim, permanece a crítica à artifi cialidade desses trabalhos, no caso de a autogestão acontecer pela ação liberadora primeira do analista, determinando, com sua pre sença, a “condição de possibilidade*’ da autogestão. Essa critica encontra-se forte e “calorosamente” colocada pelo autor em alguns trechos de seu discurso. Vamos reproduzi-los, para que o leitor se coloque em contato com seu estilo: "Utopia, reformismo, ilusões quanto às possibilidades de intervenção socio- anaíítica: eis o que se tornou evidente quando a transformação que pensá vamos preparar com a nossa prática institucional veio de outra parte, de outra origem — quando outros descobriram a primeira brecha. A nossa contestação permanecia encerrada em artigos, em livros, em seminários, nos guetos dos ideólogos e dos que se ocupam da prática, nossos colegas que a tratavam — aliás como uma aberração — até o dia em que con troles institucionais estouraram no nível de um poder que as nossas inter venções não chegaram jamais a atingir. Quando os estudantes e os operários praticaram a ação direta, a ocupação dos lugares institucionais do poder, a libertação da criatividade de instituir, em vão esperada nos grupos de análise, invadiu a vida de todos os dias (70). “Algumas tentativas experimentais ( . . . ) dos Seminários de Formação e das intervenções sócio-analíticas já sugeriam que as sociedades poderiam e deveriam ser o contrário rigoroso do funcionamento social habitual. A per cepção experimental dessas possibilidades era, no entanto, reprimida por 46 todo um aparato técnico e conceituai das ciências e de suas aplicações prá ticas. Viu-se isto muito bem quando as primeiras tentativas de autogestão se chocaram com a burocracia universitária. Cinco anos depois, nas facul dades ocupadas, a autogestão tornou-se o programa aceito por todos, durante os meses de ocupação. Ao mesmo tempo, experimentava-se a autogestão nas práticas. Em todo lugar, a ordem burocrática era ameaçada. Redescobrimos e experimentamos o que significava a ‘volta à base’, não mais na linguagem burocrática, da consulta ou da eleição, mas como uma prática de todos os dias que se situa na 'base', a fonte única de soberania. Rejeitou-se assim a instituição da separação em todos os níveis da vida social e política. A partir daí, a alienação da soberania popular em favor de um pequenonúmero de eleitos não apareceu mais como uma evidência, como uma necessidade natural. Aprendemos a ver nela apenas uma forma de organização característica de um certo tipo de sociedade” (71). A ação direta, da transgressão ã autogestão, parece ser para Lapassade, então, a alternativa possível de retomada do sentido do que acontece no cotidiano. 2.6. Eis um livro ambíguo. . . É com esta frase que Lapassade inicia o último parágrafo do “Prólogo à 2.a edição” de Grupos, Organizações e Instituições. Considerando “sua” análise institucional que, num esforço de cla reza buscamos apresentar neste capítulo, considerando o movimento de seu pensamento, bem como as lacunas que permanecem a um leitor atento de seus trabalhos e a um profissional que procura em suas idéias respaldo e ocasião de reflexão, poderíamos diíer que o que ele chama de ambigüidade, estende-se não apenas ao livro em questão, mas ao conjunto de seu discurso, aos três trabalhos que aqui utilizamos para compreender a análise institucional. Lapassade, o político-anarquista do “Prólogo à 2? edição” que propõe a decapitação do rei, a destruição das instituições dominantes, a autogestão e o emparelhamento entre o decidir e o executar, parece ter pouco a ver com o autor ponderado do capítulo sobre Burocracia no mesmo livro. Parece, ainda, ter pouco a ver com o analista que assina o capítulo sobre análise institucional no Chaves da Sociologia, falando sobre o “negativo e o positivo” nos grupos, e sobte o caráter “fantástico” do desconhecimento das determinações institucionais. Parece, finalmente, ter pouco a ver com aquele que propõe a “ revo lução Mo sentido” pela libertação do corpo, no “El encuentro insti tucional”. 47 Causa surpresa e sensação de insuficiência, perceber que depois de sua formulação sobre os três níveis de realidade social, sobre burocracia e autogestão, Lapassade atribui a uma maratona de fim de semana o papel de promover a análise e a transformação. Pare ce-nos que atribuir ã crise-análise, tal como a propõe, a condição de fazer contraposição à ordem institucional e social e de romper com ela é, no mínimo, uma questão de fé . . . Em nenhum momento, no entanto, deixa de ser desafiador e apaixonante o contato com seus trabalhos. Entre o anarquista e o analista, Lapassade nos confunde. Talvez esteja aqui o grande valor de se conhecerem suas idéias. Talvez, inclusive, esteja aqui sua coerência: ele sempre provoca! E finaliza: ‘ Eis um livro ambíguo. A publicação de uma obra sobre esses domínios ainda incertos justifica-se essencialmente por sua capacidade de provocação, ainda mais do que por sua função de informação. Em lermos mais tranqüilizadores, dir-se-á que tal obra, de intenções essencialmente críticas, justifica-se basicamente na medida em que rçode provocar mudanças. O futuro dirá se essa função ainda lhe cabe, ou se devemos considerar este livro e, sobretudo, aquilo de que trata, como a expressão de uma etapa já ultrapassada na história de uma crise da qual conhecemos apenas os pontos iniciais” (73).
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