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A Invencao Do Psicológico quatro séculos de subjetivação

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Lu ís C láudio Mendonça 
Figueiredo, em A inveru;ão do 
psico!ó,::ico - Quatro stculos de 
sul~;e tivação, problematiz.a o 
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas 
concepçôcs contemporâneas da 
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o 
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo 
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a 
uma intensificação da vivência 
da diversidade e da mptura, que 
acontece desde o final do século 
XV, acompanhada de d iferentes 
tentativas de ordenação e de 
costura, que vão desembocar na 
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito 
mode rno '. I~ este sujeito que, no 
fi nal do século XIX, vive seu 
apogeu e, ao mesmo tempo , o 
início de sua dissohu~ão : c omeça 
a desmoronar a ilusão de que o 
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le 
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O 
'psicológico', segu ndo o auto r. 
teria sido inventado e.x:namente 
a partir do que fo i expurgad o 
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias. 
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que 
veiculam uma visão negativa do 
caos, rrodul.idas desde o século 
XVI ao XIX, na li teratura , na 
filosofia, na pintura e na música. 
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a 
Figueiredo, na.-.cido no R i o de 
Janeiro, em 1945, é psiçóloco 
mestre c doutor em ps icolo~i~ 
pela L:SP. C professor na L:niv~r­
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', 
aonde coo rdena os cursos de 
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- • 
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa 
em Psicologia e EducAção. F. 
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da 
psicologia como cié11cia ( bluc, 
1991 ) c Matrizes do pensamento 
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além 
de diversos trabalhos em rcvisl<ts 
cspcc i ai izadas. 
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e 
al~uns t írulos do <.:atálogo da 
E.duc enc<)ntr::un-sc no final 
deste I ivr0. 
Lu ís C láudio Mendonça 
Figueiredo, em A inveru;ão do 
psico!ó,::ico - Quatro stculos de 
sul~;e tivação, problematiz.a o 
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas 
concepçôcs contemporâneas da 
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o 
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo 
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a 
uma intensificação da vivência 
da diversidade e da mptura, que 
acontece desde o final do século 
XV, acompanhada de d iferentes 
tentativas de ordenação e de 
costura, que vão desembocar na 
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito 
mode rno '. I~ este sujeito que, no 
fi nal do século XIX, vive seu 
apogeu e, ao mesmo tempo , o 
início de sua dissohu~ão : c omeça 
a desmoronar a ilusão de que o 
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le 
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O 
'psicológico', segu ndo o auto r. 
teria sido inventado e.x:namente 
a partir do que fo i expurgad o 
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias. 
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que 
veiculam uma visão negativa do 
caos, rrodul.idas desde o século 
XVI ao XIX, na li teratura , na 
filosofia, na pintura e na música. 
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a 
Figueiredo, na.-.cido no R i o de 
Janeiro, em 1945, é psiçóloco 
mestre c doutor em ps icolo~i~ 
pela L:SP. C professor na L:niv~r­
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', 
aonde coo rdena os cursos de 
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- • 
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa 
em Psicologia e EducAção. F. 
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da 
psicologia como cié11cia ( bluc, 
1991 ) c Matrizes do pensamento 
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além 
de diversos trabalhos em rcvisl<ts 
cspcc i ai izadas. 
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e 
al~uns t írulos do <.:atálogo da 
E.duc enc<)ntr::un-sc no final 
deste I ivr0. 
~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo 
© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 
7• edição: setembro/2007 
EnrroRES 
Manoel Tosta Bcrlinck 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA (ARTe HNAL) 
Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb 
PRODUÇÃO EotTOIUAL 
Araide Sanches 
Catalogação na Fonle - Biblioteca Central / PUC-SP 
Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça 
A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação 
( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : 
Escuta, 2007. 
184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) 
Bibliografia. 
ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) 
I . Psicologia- história. I. Título 
CDD 19• 150.9 
EDITORA ESCUTA L TDA. 
Rua Dr. Homem de Mello, 446 
05007-001 São Paulo, SP 
Telef 11x: (OI I) 3865-8950/3675- 1190 I 3672-8345 
e-mail: escuta @uol.com.br 
www .editoracscuta.com.br 
Luís Cláudio Mendonça Figueiredo 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500- 1900 
• escuta 
~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo 
© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 
7• edição: setembro/2007 
EnrroRES 
Manoel Tosta Bcrlinck 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA (ARTe HNAL) 
Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb 
PRODUÇÃO EotTOIUAL 
Araide Sanches 
Catalogação na Fonle - Biblioteca Central / PUC-SP 
Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça 
A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação 
( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : 
Escuta, 2007. 
184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) 
Bibliografia. 
ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) 
I . Psicologia- história. I. Título 
CDD 19• 150.9 
EDITORA ESCUTA L TDA. 
Rua Dr. Homem de Mello, 446 
05007-001 São Paulo, SP 
Telef 11x: (OI I) 3865-8950/3675- 1190 I 3672-8345 
e-mail: escuta @uol.com.br 
www .editoracscuta.com.br 
Luís Cláudio Mendonça Figueiredo 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500- 1900 
• escuta 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500 - 1900 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500 - 1900 
AGRADECIMENTOS 
A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu 
a participação de uma quan tidade signi fi cativa de colaboradores . 
Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o 
ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo 
nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, 
Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, Yara Ca:z.nók 
c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para 
Maria Inês Neves de Oliveira. que datilografou os originais. permitindo 
as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena 
Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely 
Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta. 
É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com 
entusiasmo e bom humor o meu curso ' A gestação do espaço 
psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama 
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-S P, que c~:~ 
dedico o trabalho. 
AGRADECIMENTOS 
A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu 
a participação de uma quan tidade signi fi cativa de colaboradores. 
Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o 
ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo 
nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, 
Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, Yara Ca:z.nók 
c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para 
Maria Inês Neves de Oliveira. que datilografou os originais. permitindo 
as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena 
Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely 
Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta. 
É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com 
entusiasmo e bom humor o meu curso ' A gestação do espaço 
psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama 
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-S P, que c~:~ 
dedico o trabalho. 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO ..... ................................ ......................................... 13 
AD~lÊNCIA ........ ................................................................... ...... 19 
A DESNATIJRE2A HUMANA 
OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ....................... ....................... 21 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ................. 'ZI 
A multiplicação das vozes ...................................... ...................... 'ZI 
A variedade das coisas ........... .............. ................ .................. ...... 32 
Identidade e conversão ........... ............... ................ ................. ...... 40 
A nostalgia dos anos dourados ............ ............... ... ..................... .f'! 
Refonnas ................................ ............................... ................. ....... 51 
Refonnadores católicos ........ ................. .................. ...................... 58 
Uma santa católica na idade da polifonia .............. ....................... õl 
Notas ...................................................... .................. .............. ....... 79 
IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ........................... ...................... 81 
A atualidade de Cervantes ..................... ............... .................. ...... 81 
Imagens da civilização ............ .............. ........................................ 88 
Subterrâneos da civilização .................. ........................................ 96 
A dupla filiação da psicologia ................................................ .... 100 
Notas .................... ................................. .................. ................ .... 102 
A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ........................................ 105 
O público e o privado: raízes de uma cisão ......... ........................ l<Xi 
A consolidação da privacidade ........... ................. ...................... l<E 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO ..... ................................ ......................................... 13 
AD~lÊNCIA ........ ................................................................... ...... 19 
A DESNATIJRE2A HUMANA 
OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ....................... ....................... 21 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ................. 'ZI 
A multiplicação das vozes ...................................... ...................... 'ZI 
A variedade das coisas ........... .............. ................ .................. ...... 32 
Identidade e conversão ........... ............... ................ ................. ...... 40 
A nostalgia dos anos dourados ............ ............... ... ..................... .f'! 
Refonnas ................................ ............................... ................. ....... 51 
Refonnadores católicos ........ ................. .................. ...................... 58 
Uma santa católica na idade da polifonia .............. ....................... õl 
Notas ...................................................... .................. .............. ....... 79 
IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ........................... ...................... 81 
A atualidade de Cervantes ..................... ............... .................. ...... 81 
Imagens da civilização ............ .............. ........................................ 88 
Subterrâneos da civilização .................. ........................................ 96 
A dupla filiação da psicologia ................................................ .... 100 
Notas .................... ................................. .................. ................ .... 102 
A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ........................................ 105 
O público e o privado: raízes de uma cisão ......... ........................ l<Xi 
A consolidação da privacidade ........... ................. ...................... l<E 
A privacidade militante ............................................................... 113 
Do iluminismo ao romantismo: 
a floração da privacidade na Alemanha ................................... 118 
A síntese mesmeriana ................................................................. 123 
Os usos da privacidade ............................................................... 126 
Notas ........................................................................................... 128 
A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO 
SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E 
REGIME DISCIPLINAR .................................. ............................... ... 129 
As vicissitudes do liberalismo e do jndividualismo ................... 129 
O romantismo: promessas e realizações ...................................... 139 
O território da ignorância ......................................................... .. . 146 
Notas ......................................................................................... .. 150 
PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A 
PSIOOLOOIA ........................................................ ............................ 151 
O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ................................... 152 
Estilismo e excentricidade ........................................................... 157 
Para a 16m do estilo ...................................................................... 161 
Notas ....... ..... ............................................................................... 165 
REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ........................ ......................... 167 
APRESENTAÇÃO 
A coleção 'Linhas de Fuga' 
O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência 
de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena 
transformação o modo como esta experiênc ia o afeta. Em outras 
palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta 
transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em 
sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, 
efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos 
é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte 
(mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, 
individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência 
a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma 
d iferenciação e uma complexificação cada vez maiores. 
Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conternpo-
raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano 
do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como 
negativo da ordem e, portanto. como fatal , torna-se menos aterrador. 
Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída 
na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-
lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo 
de suhjetivação constituído na base da aberturapara o outro e, por-
tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual. 
Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: 
I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao 
13 
A privacidade militante ............................................................... 113 
Do iluminismo ao romantismo: 
a floração da privacidade na Alemanha ................................... 118 
A síntese mesmeriana ................................................................. 123 
Os usos da privacidade ............................................................... 126 
Notas ........................................................................................... 128 
A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO 
SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E 
REGIME DISCIPLINAR .................................. ............................... ... 129 
As vicissitudes do liberalismo e do jndividualismo ................... 129 
O romantismo: promessas e realizações ...................................... 139 
O território da ignorância ......................................................... .. . 146 
Notas ......................................................................................... .. 150 
PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A 
PSIOOLOOIA ........................................................ ............................ 151 
O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ................................... 152 
Estilismo e excentricidade ........................................................... 157 
Para a 16m do estilo ...................................................................... 161 
Notas ....... ..... ............................................................................... 165 
REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ........................ ......................... 167 
APRESENTAÇÃO 
A coleção 'Linhas de Fuga' 
O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência 
de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena 
transformação o modo como esta experiênc ia o afeta. Em outras 
palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta 
transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em 
sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, 
efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos 
é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte 
(mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, 
individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência 
a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma 
d iferenciação e uma complexificação cada vez maiores. 
Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conternpo-
raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano 
do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como 
negativo da ordem e, portanto. como fatal , torna-se menos aterrador. 
Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída 
na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-
lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo 
de suhjetivação constituído na base da abertura para o outro e, por-
tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual. 
Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: 
I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao 
13 
caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de 
experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda 
como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo 
em nós e ao nosso redor func iona como força a favor. 
A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar 
a ci rculação de textos que veiculem afetivamente esta transição, 
podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa 
natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em 
torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo 
às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos 
trazerem, d ireta ou indiretamente. recursos de articulação e e laboração 
desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmen te, o fato de que 
cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, 
mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é 
com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz 
destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia. 
A invenção do psicológico 
A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação, 
de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha 
estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação 
contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas 
da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo 
da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, 
encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua 
dissolução. Para o autor, a experiênc ia subjetiva no sentido moderno, 
instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação 
da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final 
do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e 
de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se 
convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no 
fi nal do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de 
sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa 
o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode, 
ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, 
teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste 
14 
sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constitu iu no objeto 
das psicologias. 
Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as 
psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este 
fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas 
que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito 
(ou seja. salvar o sujeito moderno) e. de outro, aquelas que buscam 
sustentar a emergênc ia de uma s ubjetividade indissociável do caos e, 
portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da 
psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em 
nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para 
este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o 
que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para 
a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o 
autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: 
também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, 
tende a naturalizá-lo. 
Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza 
uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa 
do caos, prod uzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma 
sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de 
acesso a tais figuras : não só textos, numerosos e variados (de santos 
a ti lósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral 
português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a 
pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo 
de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados 
em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez 
estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção 
de l·fídex a cada aula). ./ 
Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material esco-
lh ido s inais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o 
hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo ho-
mem do séculoXVI, por não suportar o fato de que nas margens anu-
lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se 
está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-
gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, 
quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a 
15 
caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de 
experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda 
como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo 
em nós e ao nosso redor func iona como força a favor. 
A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar 
a ci rculação de textos que veiculem afetivamente esta transição, 
podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa 
natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em 
torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo 
às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos 
trazerem, d ireta ou indiretamente. recursos de articulação e e laboração 
desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmen te, o fato de que 
cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, 
mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é 
com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz 
destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia. 
A invenção do psicológico 
A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação, 
de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha 
estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação 
contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas 
da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo 
da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, 
encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua 
dissolução. Para o autor, a experiênc ia subjetiva no sentido moderno, 
instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação 
da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final 
do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e 
de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se 
convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no 
fi nal do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de 
sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa 
o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode, 
ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, 
teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste 
14 
sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constitu iu no objeto 
das psicologias. 
Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as 
psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este 
fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas 
que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito 
(ou seja. salvar o sujeito moderno) e. de outro, aquelas que buscam 
sustentar a emergênc ia de uma s ubjetividade indissociável do caos e, 
portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da 
psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em 
nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para 
este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o 
que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para 
a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o 
autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: 
também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, 
tende a naturalizá-lo. 
Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza 
uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa 
do caos, prod uzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma 
sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de 
acesso a tais figuras : não só textos, numerosos e variados (de santos 
a ti lósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral 
português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a 
pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo 
de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados 
em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez 
estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção 
de l·fídex a cada aula). ./ 
Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material esco-
lh ido s inais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o 
hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo ho-
mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu-
lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se 
está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-
gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, 
quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a 
15 
diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros 
conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados 
portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí-
rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do 
século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização 
da memória, nas autobiografias quinhentistas. como instrumenlo mais 
existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através 
da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-
nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'instru-
mento antimisrura' . Indício, já num outro momento, desta mesma con-
cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do 
mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem-
plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um 
romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um "es-
tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-
do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· 
sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos 
aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa 
do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· 
gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer. 
O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como 
o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece , às 
veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a 
escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal 
evidente de que prevalece no auto r a inclinação a reconhecer o caos 
em sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo 
precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; 
em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a 
géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o 
próprio auto r. ci tando Auerbach, através de "um isolamento 
atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo 
mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado 
o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor 
se propõe cartografar o 'campo psi' , elegendo como crilério para avaliar 
as várias ' linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de 
uma ''d isposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças 
em conflito". 
16 
Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor 
em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de 
todo o livro. por iss o não cabe ria evocá-las no co ntexto de uma 
apr~sentação. assim como, tampouco, ca beria evocar e discuti r alguns 
momentos - muito mais raros,é verdade - em que o autor parece 
veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe 
colocar é que tais osci lações fazem pensar que é como se, através da 
presente invest igação, Lu ís Cláudio M. Figuei redo estivesse se 
cksvcnc i!hando das figura~ portadoras de uma quali ficação negativa 
do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua 
positi vidade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano 
inte lectual, as oscilações do texto não d i1.em respeito a uma fa lta 
qualquer de rigor concei tual , provavelmente e las constituem marcas 
elas oscil<~ções deste processo na experiênc ia do autor. Marcas de que, 
no si lêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente 
se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá 
onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura. 
Sucly Rolnik 
17 
diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros 
conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados 
portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí-
rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do 
século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização 
da memória, nas autobiografias quinhentistas. como instrumenlo mais 
existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através 
da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-
nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'instru-
mento antimisrura' . Indício, já num outro momento, desta mesma con-
cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do 
mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem-
plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um 
romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um "es-
tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-
do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· 
sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos 
aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa 
do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· 
gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer. 
O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como 
o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece , às 
veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a 
escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal 
evidente de que prevalece no auto r a inclinação a reconhecer o caos 
em sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo 
precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; 
em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a 
géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o 
próprio auto r. ci tando Auerbach, através de "um isolamento 
atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo 
mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado 
o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor 
se propõe cartografar o 'campo psi' , elegendo como crilério para avaliar 
as várias ' linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de 
uma ''d isposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças 
em conflito". 
16 
Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor 
em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de 
todo o livro. por iss o não cabe ria evocá-las no co ntexto de uma 
apr~sentação. assim como, tampouco, ca beria e vocar e discuti r alguns 
momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece 
veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe 
colocar é que tais osci lações fazem pensar que é como se, através da 
presente invest igação, Lu ís Cláudio M. Figuei redo estivesse se 
cksvcnc i!hando das figura~ portadoras de uma quali ficação negativa 
do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua 
positi vidade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano 
inte lectual, as oscilações do texto não d i1.em respeito a uma fa lta 
qualquer de rigor concei tual , provavelmente e las constituem marcas 
elas oscil<~ções deste processo na experiênc ia do autor. Marcas de que, 
no si lêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente 
se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá 
onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura. 
Sucly Rolnik 
17 
ADVERTÊNCIA 
Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a 
junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo 
com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios 
independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da 
redação, porém, descobri que apenas ' Uma santa católica na idade da 
polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se 
engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos 
formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer 
que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem 
lacunas (v iva a lacuna !). Estes ensaios podem se desdobrar em 
irlUmcrávcis outros. o que , al ias. é meu projeto e meu convite. 
Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já 
tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos 
cursos de mes trado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia 
S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos 
acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande 
pr.1.1.er e que parte do meu esforço fo i para transmitir um pouco deste 
prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem! 
19 
ADVERTÊNCIA 
Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a 
junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo 
com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios 
independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da 
redação, porém, descobri que apenas ' Uma santa católica na idade da 
polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se 
engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos 
formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer 
que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem 
lacunas (v iva a lacuna !). Estes ensaios podem se desdobrar em 
irlUmcrávcis outros. o que , al ias. é meu projeto e meu convite. 
Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já 
tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos 
cursos de mes trado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia 
S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos 
acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande 
pr.1.1.er e que parte do meu esforço fo i para transmitir um pouco deste 
prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem! 
19 
A DESNATUREZA HUMANA 
OU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO 
Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre 
~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa: 
Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que 
lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ 
vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no 
entanto, fam iliar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. 
O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo 
que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o 
eu, a luz e o fogo d istinguem-se nitidamente e , apesar disso, nunca se 
tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de 
loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que 
não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade: 
perfeito em seu ~entidoe perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920) 
1963; p.l9) 
Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da 
experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a 
expe riência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. 
Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica, 
a perplex idade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas 
promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo 
aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito 
durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado 
pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" 
c pel a questão de sabe r "quem salvará a civilização ocidental''. 
conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962. 
21 
A DESNATUREZA HUMANA 
OU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO 
Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre 
~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa: 
Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que 
lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ 
vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no 
entanto, fam iliar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. 
O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo 
que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o 
eu, a luz e o fogo d istinguem-se nitidamente e , apesar disso, nunca se 
tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de 
loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que 
não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade: 
perfeito em seu ~entido e perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920) 
1963; p.l9) 
Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da 
experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a 
expe riência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. 
Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica, 
a perplex idade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas 
promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo 
aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito 
durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado 
pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" 
c pel a questão de sabe r "quem salvará a civilização ocidental''. 
conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962. 
21 
Neuro
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Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da 
modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da 
abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da 
muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a 
guerra total. 
Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora 
já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser 
acolhida c comentada com orgulho e altivez. 
Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt, Giovanni Pico Della 
Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola 
pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam 
o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres. 
Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para 
esta avaliaçãu. 
Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me 
satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente 
por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem 
vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; 
pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do 
intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a 
~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo 
e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas 
c:~tas. sem dúvida. ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que 
consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. 
PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os 
bcatissi lllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49) 
Não. Não é por ter uma naturc1..a, posto que natureza complexa, 
que o homem é o mais digno de nossa admiração. 
Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e 
magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia 
Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser 
modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente 
para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c 
possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por 
fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence 
naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza 
indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo: 
22 
Ó Aó~o . não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que 
te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fi m de que obtenhas c 
po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente 
dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem 
llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. 
pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-Ja-
;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te 
nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no 
mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l . nem monal nem inwrtal. a 
lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. art ífice de li me~mo. te plasmas.~es e 
l c inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás 
degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as 
realidades superiores que são divinns. por dcd s3n de teu ânimo. Clbid.; 
1> • .í2) 
Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do 
mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos 
reconhecer nus palavras de Gi ovanni Pico o antigo geo c 
tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o 
centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele 
que tudo pode mas nada é, o lugar privilegi ado do não-ser. O centro 
está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente 
localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a 
possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá 
sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para 
a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo 
inlinitu de Giordano Bruno ( I 54N-1 6Cl0). Universo definitivamente 
desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584) 
1978): 
. .. existe um campo inlini tQ c um espm;n continente que compreende c 
penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não 
estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 
11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens. 
O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. 
que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto 
ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que 
m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve 
depender sempre mais de sua " consciência do que do juízo dos 
23 
Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da 
modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da 
abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da 
muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a 
guerra total. 
Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora 
já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser 
acolhida c comentada com orgulho e altivez. 
Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt,Giovanni Pico Della 
Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola 
pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam 
o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres. 
Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para 
esta avaliaçãu. 
Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me 
satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente 
por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem 
vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; 
pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do 
intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a 
~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo 
e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas 
c:~tas. sem dúvida. ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que 
consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. 
PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os 
bcatissi lllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49) 
Não. Não é por ter uma naturc1..a, posto que natureza complexa, 
que o homem é o mais digno de nossa admiração. 
Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e 
magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia 
Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser 
modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente 
para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c 
possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por 
fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence 
naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza 
indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo: 
22 
Ó Aó~o . não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que 
te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fi m de que obtenhas c 
po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente 
dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem 
llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. 
pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-Ja-
;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te 
nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no 
mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l . nem monal nem inwrtal. a 
lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. art ífice de li me~mo. te plasmas.~es e 
l c inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás 
degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as 
realidades superiores que são divinns. por dcd s3n de teu ânimo. Clbid.; 
1> • .í2) 
Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do 
mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos 
reconhecer nus palavras de Gi ovanni Pico o antigo geo c 
tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o 
centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele 
que tudo pode mas nada é, o lugar privilegi ado do não-ser. O centro 
está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente 
localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a 
possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá 
sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para 
a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo 
inlinitu de Giordano Bruno ( I 54N-1 6Cl0). Universo definitivamente 
desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584) 
1978): 
. .. existe um campo inlini tQ c um espm;n continente que compreende c 
penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não 
estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 
11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens. 
O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. 
que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto 
ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que 
m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve 
depender sempre mais de sua " consciência do que do juízo dos 
23 
outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros 
para neste confronto construir sua própria identidade. 
É es te mesmo homem que, embora associado à idéia da posição 
intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi 
(1462- 1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a 
imortalidade da alma: 
O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de 
uma nawreza certa, mas ambígua ( ... ) ele não é puramente temporal nem 
puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o 
homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr 
de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([1516 1 1977; p. 393- irifo 
meu) 
A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu 
desenrai zamento do mundo das coi sas e seres naturalmente 
detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". 
Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se 
nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e 
realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida 
de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey 
[1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que 
nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas". 
Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das 
virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É 
ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem 
garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, d a ilusl o, do 
erro, da d~vida e da suspeita. 
Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas 
ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, 
tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que 
estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se 
ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em 
animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está 
fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens 
normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se 
entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta 
aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à 
indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável, 
24 
imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as 
virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se ape nao; 
toleravelme nte porque este é exatamente o terreno das idéias nunca 
completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, 
das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da 
natureza, o homem perde a medida que lhe poderia ser imposta pelo 
reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e 
limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador 
político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della M irando! a, no 
seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 
1991 ; p. 135) coloca a questão claramente: 
De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais 
insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os 
alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não 
procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) 
Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria, 
pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos 
devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifomeu ) 
Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e 
se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo. 
É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando 
regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, 
por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX. 
O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo 
de honra e dignidade tem s ido freqüentemente uma carga a ser 
suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos 
livrarmos dela. Sistemas fil osóficos, dispositivos: macro e 
micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para 
descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes 
impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais 
era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos 
teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e 
tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado 
• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · 
pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· 
dade humana em relaçao à vida inscint iv:1 dos animais. 
25 
outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros 
para neste confronto construir sua própria identidade. 
É es te mesmo homem que, embora associado à idéia da posição 
intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi 
(1462- 1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a 
imortalidade da alma: 
O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de 
uma nawreza certa, mas ambígua ( ... ) ele não é puramente temporal nem 
puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o 
homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr 
de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([1516 1 1977; p. 393- irifo 
meu) 
A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu 
desenrai zamento do mundo das coi sas e seres naturalmente 
detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". 
Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se 
nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e 
realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida 
de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey 
[1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que 
nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas". 
Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das 
virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É 
ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem 
garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, d a ilusl o, do 
erro, da d~vida e da suspeita. 
Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas 
ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, 
tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que 
estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se 
ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em 
animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está 
fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens 
normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se 
entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta 
aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à 
indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável, 
24 
imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as 
virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se ape nao; 
toleravelme nte porque este é exatamente o terreno das idéias nunca 
completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, 
das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da 
natureza, o homem perde a medida que lhe poderia ser imposta pelo 
reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e 
limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador 
político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della M irando! a, no 
seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 
1991 ; p. 135) coloca a questão claramente: 
De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais 
insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os 
alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não 
procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) 
Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria, 
pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos 
devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifo meu ) 
Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e 
se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo. 
É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando 
regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, 
por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX. 
O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo 
de honra e dignidade tem s ido freqüentemente uma carga a ser 
suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos 
livrarmos dela. Sistemas fil osóficos, dispositivos: macro e 
micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para 
descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes 
impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais 
era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos 
teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e 
tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado 
• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · 
pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· 
dade humana em relaçao à vida inscint iv:1 dos animais. 
25 
às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam 
ganhando, assim, uma densidade e profundidade novas. Experiências 
radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, 
historicamente constituídas como objetos de cogitação e 
conhecimento. Já pertencem, de fato , ao século XVI inúmeras 
afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração 
erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo 
privado como objeto de pesquisa: 
Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em 
contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém. 
como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de 
dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn. 
1Valdés. 1535; p. 727J 
De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está 
entrelaçada à história da modernidade e às suas vicissitudes. São 
múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com os movimentos de expansão 
e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes 
morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 
'psicológico'. 
Os ensaios que se seguem tratam destas ques tões. Mais 
particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo 
histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de 
psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento. 
26 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA 
A multiplicação das vozes 
"Não sei como se pode desejar 
viver. sendo tudo tão incerto." 
Sallta Tuesa d·Ávila 
"Non podrio anar plus mau. 
Nyga Nyga Nyga." 
Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI 
Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos 
maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e 
também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra.Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523- 1589) 
re latou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em 
primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e 
estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. 
Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas 
por ele. 
Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: 
"Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se 
ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos 
encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189) 
Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e 
diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais 
nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. 
É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e 
fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de 
expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas: 
27 
às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam 
ganhando, assim, uma densidade e profundidade novas. Experiências 
radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, 
historicamente constituídas como objetos de cogitação e 
conhecimento. Já pertencem, de fato , ao século XVI inúmeras 
afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração 
erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo 
privado como objeto de pesquisa: 
Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em 
contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém. 
como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de 
dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn. 
1Valdés. 1535; p. 727J 
De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está 
entrelaçada à história da modernidade e às suas vicissitudes. São 
múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com os movimentos de expansão 
e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes 
morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 
'psicológico'. 
Os ensaios que se seguem tratam destas ques tões. Mais 
particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo 
histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de 
psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento. 
26 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA 
A multiplicação das vozes 
"Não sei como se pode desejar 
viver. sendo tudo tão incerto." 
Sallta Tuesa d·Ávila 
"Non podrio anar plus mau. 
Nyga Nyga Nyga." 
Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI 
Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos 
maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e 
também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra. 
Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523- 1589) 
re latou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em 
primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e 
estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. 
Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas 
por ele. 
Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: 
"Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se 
ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos 
encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189) 
Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e 
diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais 
nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. 
É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e 
fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de 
expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas: 
27 
Neuro
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Direi que na AntuéJpia há, em primeiro lugar, além do povo do pafs 
que em grande n6mero para aqui vem e habita, e além dos franceses que 
em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principai:s 
que aqui residem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de 
mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há 
alemães, dinamarqueses. junto a mercadores ingleses e porcugueses ... 
Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no 
mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. 
Na verdade, há na Antuérpia e em todos os pafses baixos mais liberdade 
para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim 
maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir 
tal variedade de lfnguas tão diferentes umas das outras, de forma que, 
se for do desejo. pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de 
vida e costumes de muitas nações. (lbíd.; p. I 89) 
Os nativos não se fazem de rogados: 
Os habitantes desta cidade estão, na maior pàrte, metidos no comércio 
( ... ) Eles são corteses. civis, engenhosos, rápidos para imitar os 
estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer 
negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres 
( ... ),sabem falar três ou quatro lfnguas, para não mencionar os que falam 
cinco, seis ou até sete. (lbid.; p. 187) 
É esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que 
me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das 
principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. 
Outros grandes centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como 
Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma. 
poderiam ter sido escolhidos, igualmente. 
De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos 
de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos 
textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no 
século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua 
Opus maius, no estudo das línguas. dando para isso uma grande 
variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a 
expansão do comércio ultramarino e a polftica colonialista de Portugal 
haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das 
línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato 
europeu com a Ásia, África e América. durante muito tempo a cargo 
28 
de portugueses e, Jogo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos 
de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) 
como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, 
trazendo, inclusive, para o português, tennos populares como 'sacana' 
e 'banzé'. importados do Japão (cf. Barreto, 1989). 
Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos 
hennenêuticos ganharam enonne relevo na cultura humanista (cf. 
Dihhey [ 1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam 
as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas 
exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, 
sejam as dos selvagens africanos e americanos. É preciso saber 
aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, 
alguns dos quais são mesmo concebidos como nãofalantes, dada a 
sua radical diferença em relação ao europeu (c f. Todorov, 1983; cap. 3). 
É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os 
conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de 
tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e 
ex.tra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, 
mesmo Já, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os 
mal-entendidos proliferam e freqüentemente se transformam em 
contendas mais ou menos sérias, tanto nos terrenos teóricos da 
filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes,da organização poUtica e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem 
dúvida. foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre 
massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas 
de extennínío, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf. 
Todorov, 1983; cap .. 7). 
A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram 
uma expressão cristalina na música contrapontista que começou ·a se 
desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no 
século XV, no estilo flamengo da composição polifônica. 1 A partir dos 
países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na 
época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou 
escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias. 
Em contraposição à música sacra medieval -a voz coletiva, 
repetitiva, envolvente e funcional do cantochão -,às músicas profanas 
e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já 
se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e 
29 
Direi que na AntuéJpia há, em primeiro lugar, além do povo do pafs 
que em grande n6mero para aqui vem e habita, e além dos franceses que 
em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principai:s 
que aqui residem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de 
mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há 
alemães, dinamarqueses. junto a mercadores ingleses e porcugueses ... 
Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no 
mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. 
Na verdade, há na Antuérpia e em todos os pafses baixos mais liberdade 
para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim 
maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir 
tal variedade de lfnguas tão diferentes umas das outras, de forma que, 
se for do desejo. pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de 
vida e costumes de muitas nações. (lbíd.; p. I 89) 
Os nativos não se fazem de rogados: 
Os habitantes desta cidade estão, na maior pàrte, metidos no comércio 
( ... ) Eles são corteses. civis, engenhosos, rápidos para imitar os 
estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer 
negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres 
( ... ),sabem falar três ou quatro lfnguas, para não mencionar os que falam 
cinco, seis ou até sete. (lbid.; p. 187) 
É esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que 
me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das 
principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. 
Outros grandes centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como 
Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma. 
poderiam ter sido escolhidos, igualmente. 
De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos 
de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos 
textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no 
século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua 
Opus maius, no estudo das línguas. dando para isso uma grande 
variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a 
expansão do comércio ultramarino e a polftica colonialista de Portugal 
haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das 
línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato 
europeu com a Ásia, África e América. durante muito tempo a cargo 
28 
de portugueses e, Jogo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos 
de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) 
como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, 
trazendo, inclusive, para o português, tennos populares como 'sacana' 
e 'banzé'. importados do Japão (cf. Barreto, 1989). 
Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos 
hennenêuticos ganharam enonne relevo na cultura humanista (cf. 
Dihhey [ 1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam 
as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas 
exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, 
sejam as dos selvagens africanos e americanos. É preciso saber 
aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, 
alguns dos quais são mesmo concebidos como nãofalantes, dada a 
sua radical diferença em relação ao europeu (c f. Todorov, 1983; cap. 3). 
É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os 
conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de 
tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e 
ex.tra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, 
mesmo Já, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os 
mal-entendidos proliferam e freqüentemente se transformam em 
contendas mais ou menos sérias, tanto nos terrenos teóricos da 
filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes, 
da organização poUtica e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem 
dúvida. foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre 
massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas 
de extennínío, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf. 
Todorov, 1983; cap .. 7). 
A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram 
uma expressão cristalina na música contrapontista que começou ·a se 
desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no 
século XV, no estilo flamengo da composição polifônica. 1 A partir dos 
países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na 
época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou 
escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias. 
Em contraposição à música sacra medieval -a voz coletiva, 
repetitiva, envolvente e funcional do cantochão -,às músicas profanas 
e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já 
se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e 
29 
funcionais que eram, fundamentalmente, suportes sonoros para textos 
poéticos-, a polifonia namcnga institui a dispersão e a autonomia das 
vo:t.cs (cf. Caznók. 1992). Vozes humanas e instrumentos entoam 
diferentes melod ias, às ve1.es com textos diferentes, sendo uns 
profanos e outros sagrados, uns cívicos e oulros líricos, às vezes em 
língua" diferentes e ... tudo ao mesmo tempo. Há composições escritas 
para mais de trinta vo7.cs, o que excede em muito a nossa ~pacidade 
auditiva 
A polifonia flamenga impõe uma audição horizontal; não hli uma 
clara c pennanente segregação de figura e fundo. Todas as vozes re-
cebem o mesmo status e o ouvido transita entre elas sem jamais percc-
hcr que uma se destaca u superfície enquanto as demais acompanham 
a um nível de maior profundidade. São vozes não hierarquizadas con-
correndo em condi~ões de igualdade pela atenção do ouvinte. 
As vozes falam muito. mas pouco se fazem entender em qualquer 
sentido extmmusícal. A funcionalidade sagrada ou lírica se perde junto 
às mensagens dos textos que se t<•rnam ininteligíveis. As vozes, ao se 
fazerem autônoma.o; instituem a autonomia da música em relação às 
palavras e da aud ição musical em relação às funções sociais c 
religiosa~. O que vale são os sons nas suas móveis e cambiantes 
hannonias. Há uma ênfase na composição, com tudo que o termo 
carrega de t~cnica artesanal c artifíc io. Há uma preocupação com o 
deleite sensorial. com o experimental e com o lúdico. 
O canto gregoriano tem, enquanto gênero, urna identidade tão 
bem definida que todos os cantos se parecem uns com os outros: na 
polifonia da escola horgonhcsa, não só diferentes compositores 
imprimirão seus estilos pessoais à.<i suas ohras, como a identidade foi 
de tal forma trabalhado que cada composição, no limite, não se parece 
nem consigo mesma, no sent

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