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Desafi os Globais Cidadania 2 Desafi os Globais - Aula 1 - Para Superar as Desigualdades Raciais Por Rogério Terra de Oliveira Objetivo do estudo Este módulo tem como objetivo discutir alguns conceitos importantes para o enten- dimento de questões étnico raciais: raça, racismo, etnia, preconceito e discriminação; traçar um panorama histórico da exclusão dos negros no Brasil; e apresentar algumas iniciativas governamentais e da sociedade civil que têm contribuído para a redução das desigualdades raciais.. Introdução Na atualidade, inúmeros debates sobre políticas antirracistas têm ocorrido no contexto brasileiro. É bem verdade que este debate foi bastante intenso no cenário internacional no decorrer das últimas décadas. São debates que servem de tema central para outras tantas discussões que trazem em seu bojo a coibição de um racismo institucional e medidas compensatórias em virtude de uma população afrodescendente brasileira excluída. O debate que versa colocar em prática medidas compensatórias, visa a ressarcir, os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime da escravidão, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de infl uir na formulação de políticas, no pós-abolição. (SECAD, 2006). Desse modo, as medidas compensatórias têm como objetivo reverter de fato, um quadro social fundamentado em discriminação racial e exclusão social da população negra. Nesta aula, conheceremos algumas iniciativas governamentais e da sociedade civil que têm contribuído para a redução das desigualdades raciais. As Constituições e a Garantia dos Direitos Iguais Comecemos, então, por uma análise do construto e da garantia de uma igualdade social do ponto de vista da máxima que um Estado pode ter: as Constituições Federais. 1891 1934 1937 1946 1967 1969 1988 Caixa 1891 Na Constituições de 1891, veio à primeira afi rmativa de tentar nivelar socialmente todos os brasileiros, ainda que permanecemos, todavia, com uma igualdade formal. O artigo 72, incisos 1º e 2º desta mesma Constituição determina a garantia a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, a partir dos seguintes termos: ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; todos são iguais perante a lei. Mais do que isso, fi ca estabelecido que a República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honorífi cas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. Desafi os Globais Cidadania 3 Caixa 1934 Na Constituição de 1934, igualmente como a de 1891, dispôs-se em seu capítulo II intitulado Dos Direitos e das Garantias Individuais, no seu artigo 113 e parágrafo 1 que a Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profi ssões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas. Caixa 1937 A Constituição de 1937 assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Todos são iguais perante a lei e todos os brasileiros gozam do direito de livre circulação em todo o território nacional, podendo fi xar-se em qualquer dos seus pontos, aí adquirir imóveis e exercer livremente a sua atividade. Caixa 1946 A Constituição de 1946, outra vez traz a tona o princípio da igualdade que já fora estabelecida na Constituição de 1934. Repelindo a propagada em favor do preconceito de classes ou raça, foi, na mesma medida, superfi cialmente tratada na Constituição de 1937. Neste contexto – o da Constituinte de 1946 – surgiu no cenário jurídico à lei do silêncio, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e a primeira lei penal sobre a discriminação instaurada em 1951. Em meio a estas leis publicadas no campo sócio jurídico, um aspecto paradoxal continua pairando sobre a cidadania do brasileiro, principalmente em particular no cotidiano dos afrodescendentes. Caixa 1967 Na Constituição de 1967 nada mudou. Permaneceu igualmente o que já havia se estabelecido nas Constituições anteriores. Dispôs-se mais uma vez que todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Não obstante a referida Constituição que acabou de ser citada apresenta características estagnadas em seu sentido jurídico, não podemos negar que outras conquistas dentro deste mesmo período histórico foram alcançadas. Caixa 1969 Foi feita uma emenda constitucional nº 1, de outubro de 1969, referente à Constituição de 1967 podendo ser considerada uma Constituição de 1969. Nela, o conteúdo referente ao caráter de igualdade e discriminação dos cidadãos brasileiros permaneceu igualmente ao da Constituição anterior. Foi enfatizado mais uma vez a intolerância de qualquer discriminação existente na sociedade brasileira. Caixa 1988 A Carta Constitucional de 1988 garante direitos civis, políticos, sociais e econômicos, assim como direitos dos indígenas, dos negros, dos idosos e das crianças – considerados grupos vulneráveis. Esses direitos possuem proteção especial e nem emendas constitucionais podem extingui-los. A abertura política que se seguiu ao fi m do regime militar na década de 1980 fi rmou na Carta Magna o princípio da igualdade entre todas as pessoas e o direito a uma vida digna nos termos do art. 5º, que diz: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O artigo 5º, incisos XLI e XLII, desta Constituição, estabelece punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, acrescentando que a prática do racismo constitui crime inafi ançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Desafi os Globais Cidadania 4 As Constituições seriam um dos principais, se não o principal caminho que talvez pudesse ter impedido a instauração do racismo em nosso país. Ao mesmo tempo, a insistência inexorável de não se fazer valer o que diz a vigente Constituição brasileira, pode ser considerado, do mesmo modo, o entrave que poderia nos levar para a desconstrução e, até mesmo, para eliminação do racismo que assola dia a dia as “relações sócias raciais” em nossa sociedade, deixando, portanto, de lançar na prática os fundamentos básicos para a noção universalista de humanidade independentemente de sexo, cor, condição socioeconômica ou credo religioso. Promulgação de Leis Nos últimos anos, leis foram promulgadas na direção de combater o racismo e reparar as dívidas históricas da sociedade brasileira com sua população afrodescendente. Lei nº 9.459/1997 Incluiu novos tipos penais, visando principalmente combater os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Lei nº 10.639/2003 Inclui o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Lei n˚ 3.627/2004 Garante a reserva de vagas nas instituições públicas de educação superior para estudantes egressos de escola pública, em especial negros e indígenas. Lei nº 12.288/2010 Institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivose difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Lei nº 6.067/2011 Dispõe sobre reserva de vagas para negros e índios nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos integrantes dos quadros permanentes de pessoal do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro e das Entidades de sua Administração Indireta. A mudança na legislação e as políticas governamentais não são sufi cientes por si só para mudar as desigualdades históricas que herdamos das gerações passadas, tampouco a inclusão no currículo escolar de novas temáticas modifi ca as práticas educacionais vigentes. De qualquer sorte, as conquistas dos movimentos sociais e as iniciativas governamentais são avanços signifi cativos que gradativamente transformam a sociedade. Atualmente, compreende-se que é preciso mesclar políticas sociais universais e políticas afi rmativas específi cas para reverter este quadro histórico. Desafi os Globais Cidadania 5 Lei nº 9.459/1997 http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1997/9459.htm Lei nº 10.639/2003 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm Lei n˚ 3.627/2004 http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ref_projlei3627.pdf Lei nº 12.288/2010 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm Lei nº 6.067/2011 http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/03027007b98a1171 8325793a0059909b Saiba mais Para saber mais sobre ações afi rmativas e cotas, acesse Cotas raciais - por que sim?, do IBASE, disponível em: http://www.ibase.br/userimages/cart_ibase_cotas_fi nal.pdf Saiba mais Implementação de Ações Afi rmativas Vivemos hoje em um mundo globalizado marcado pela convivência de várias culturas, assim como vivemos em uma sociedade plural permeada por diferentes etnias e grupos sociais. No caso brasileiro esta realidade se intensifi ca. Darcy Ribeiro dizia, como já vimos, que o que nos defi ne como brasileiros é a mestiçagem. Diferente do Inglês ou do Italiano o que nos defi ne é a mistura e a diversidade, logo a nossa sociedade deve ser capaz de incorporar, incluir, interagir com essa realidade plural. Percebemos que mudanças efetivas são realmente difíceis de serem obtidas, uma vez que encontram barreiras “invisíveis” nas práticas sociais e no pensamento das pessoas que ocupam cargos importantes, assim como no cidadão comum. Por tudo isso, a luta política pode ser um instrumento importante de afi rmação do negro e de combate do preconceito e da desigualdade racial. Não uma luta política apenas em termos de políticas públicas ou de novas legislações, mas uma luta política de afi rmação de direitos nas relações sociais, na dignidade da pessoa humana e no cotidiano. É nesse contexto de luta que surgem as ações afi rmativas, entendidas como “um conjunto de ações privadas e/ou políticas públicas que tem como objetivo reparar os aspectos discriminatórios que impedem o acesso de pessoas pertencentes a diversos grupos sociais às mais diferentes oportunidades” (IBASE, 2008, p. 7). As leis citadas anteriormente são exemplos de ações afi rmativas. Outro exemplo é a política de criação de delegacias policiais especializadas no atendimento a mulheres. Inicialmente, as ações afi rmativas se defi niam como um mero “encorajamento”, por parte do Estado, a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como Desafi os Globais Cidadania 6 Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais do Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). Disponível em: http://www.ifrj.edu.br/webfm_send/269 Saiba mais Leia o complementar: “Relações étinico-raciais e cidadania: História e Cultura Afro-brasileira como fatores fundamentais para construção do cidadão afrodescendente a partir do pós-abolição” Saiba mais o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam: a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas (SECAD, 2007). Posteriormente, as políticas de ação afi rmativa passaram a ser implementadas a partir imposição de cotas pré-defi nidas de acesso de “minorias” no mercado de trabalho e em instituições educacionais. Vale lembrar que as cotas são apenas uma das formas de ação afi rmativa. Políticas de ação afi rmativa já foram utilizadas em diversas partes do mundo. O pioneiro foram os Estados Unidos. A luta contra a discriminação racial, nesse país, mobilizou a comunidade negra elegendo políticos, com a participação de religiosos de personalidades negras da vida cultural americana. No Brasil, a implementação de ações afi rmativas é entendida como reparação, indenização devida pela sociedade brasileira aos negros, ante as injustiças raciais, entre outras, de que estes foram e ainda são vítimas (SECAD, 2007), garantindo, dessa forma, o que é proposto pela Constituição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Conclusão Neste módulo, tivemos a oportunidade de conhecer alguns conceitos indispensáveis para o entendimento das relações étnico raciais. Vimos que os discursos sobre as relações raciais no Brasil variaram ao longo do tempo, mas que muitos pensamentos e práticas preconceituosas se perpetuam até hoje. Se no passado o discurso racial trazia uma interpretação negativa sobre nossa formação étnica, atualmente a mestiçagem tem sido prestigiada como elemento diferenciador do nosso povo. Identifi camos algumas políticas adotadas que a partir da década de 1980 buscaram diminuir as desigualdades sociais. Observamos que mesmo assim, a desigualdade racial ainda permanece como um problema para nossa sociedade. O preconceito no Brasil se apresenta de uma maneira velada porque não aponta diretamente para o negro, mas para um contexto relacional que se torna ainda mais cruel e desafi ador. Portanto, o enfrentamento da questão racial no Brasil aponta a necessidade para políticas públicas que diminuam a pobreza e ofereçam melhores serviços de educação e cultura para a sociedade em geral, mas também, políticas afi rmativas específi cas que permitam ao negro ampliar suas chances no mercado de trabalho. A luta contra o preconceito racial e a discriminação não é fácil de ser realizada porque ela se estabelece no plano ideológico de maneira dissimulada e quase imperceptível o que requer uma mobilização constante da sociedade civil e principalmente dos negros do movimento negro no sentido da sua afirmação social e na defesa dos direitos individuais. Desafi os Globais Cidadania 7 Aula 2 - Identidade Indígena, Direitos e Questão Territorial Introdução Prezado aluno, Nesta aula você irá saber mais sobre a questão do índio no Brasil. Este é um assunto vasto, e com muitas informações para que possamos compreender de forma adequada todos os detalhes que estão relacionados a sua situação social. Lembre-se que o fórum de discussão é um ótimo local para debater ideias e tirar suas dúvidas sobre os temas estudados. Vamos em frente? Considerações iniciais: a população indígena A palavra “índio” é utilizada desde o descobrimento da América para designar o nativo, os habitantes originários do continente. Durante séculos, o termo também fez referência a pessoas vistas como exóticas, que andavam nuas, relacionadas à natureza, ou seja, selvagens sem cultura que se organizavam em tribos sem uma identidade e sem unidade. Mesmo na atualidade, predomina ainda na sociedade brasileira em termos de senso comum uma conceção do indígena construída a partir de rotulações, generalizações e estereótipos, chamada pelos antropólogos de índio genérico, onde a riquíssima diversidade étnica e cultural das populações indígenas em território brasileiro è considerada totalmente em favor de uma ideia preconcebida e irreal dos descendentes daspopulações pré-cabralinas. São exemplos das generalizações e estereótipos que caracterizam esse índio genérico. Ideias como: indígenas não trabalham, são indolentes e preguiçosos, por conseguinte, são primitivos, não evoluíram, são puros vivem de acordo com a natureza, no passado, não têm noção de propriedade e têm muita terra, quando trabalhadores não indígenas sem terra alguma.1 Desafi os Globais Cidadania 8 Associado a esse índio genérico manifesta-se também em nossa sociedade a visão de que as populações indígenas no território brasileiro estariam em processo de desapare- cimento, embora, desde a década de 1980 tenha-se observado que a população indígena tem crescido, inclusive com taxas de crescimento superiores à média nacional, não correndo, por tanto, em seu todo, risco de extinção, embora existam etnias em processo de desaparecimento. É fundamental, contudo, observar que, apesar de esse crescimento, as condições de vida dessas populações continuam a ser bastante precárias, demandando esforços urgentes de sociedade nacional abrangente e de órgãos governamentais no sentido de apoiá-las em sua luta pela sobrevivência e pelo respeito às suas identidades e modos de vida. A população indígena Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população indígena brasileira era de 294.131 em 1991, tendo em 2000, alcançado o quantitativo de 734.127, perfazendo um cresci- mento populacional de aproximadamente 150% (440 mil pessoas) num ritmo de crescimento anual de 10,8% no período. Esse incremento populacional refl etiria não só as altas taxas de fecundidade entre as populações indígena, mas também o aumento das pessoas que ao responder no quesito raça ou cor, no questionário do censo 2000, declararam-se índios, ou seja, passaram a se identifi car como indígenas, deixando-se de identifi car em outras categorias. A esse fenômeno chama-se de etnogênese ou reetinização. (...) povos indígenas que, por pressões políticas, econômicas e religiosas ou por terem sido despojados de suas terras e estigmatizados em função de seus costumes tradicionais, foram forçados a esconder e a negar suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência assim amenizando as agruras de preconceito e da discriminação estão reassumindo e recriando as tradições indígenas. (LUCIANO, apud, IBGE,2012, p.8) Saiba mais Nesse processo, grupos étnicos que haviam, por alguma razão, deixado de assumir suas identidades étnicas, conseguem reassumi-las e reafi rmá-las, recuperando aspectos importantes de sua cultural tribal tradicional. (IBGE, 2012, p.4). De acordo com o IBGE, contrastando com a literatura antropológica - que identifi ca cerca de 220 etnias indígenas falantes de cerca de 180 línguas no Brasil – no país haveria 305 etnias indígenas e seriam faladas 274 línguas, sendo a etnia Tikuna a de maior contingente contando com 46.045 integrantes que corresponderiam a 6,8% da população indígena total. Desafi os Globais Cidadania 9 Para saber mais: dados do Censo sobre a população indígena no Brasil No Censo de 2010, 817.963 indivíduos se autodeclararam indígenas2, marcando um crescimento de 11,4% (aproximadamente 84 mil pessoas) desde o censo anterior, crescimento menos expressivo do que no período de 1991 a 2000, mas ainda superior à média nacional. Somada as 789.900 que no último censo residiam em terras indígenas e se declaravam de outra cor ou raça, principalmente pardos, mas se consideravam indígenas de acordo com tradições, costumes e antepassados, a população indígenas total, segundo o IBGE, chegava em 2010 a 896.900. Analisando a população autodeclarada indígena, observa-se que, em termos de distribuição geográfi ca, a região norte concentra a maior parcela (37,4%), residindo a maior população indígena no estado do Amazonas (168.700 pessoas ou 20,6% da população indígena do país) e a menor no Rio Grande do Norte (2.500 indivíduos 0,3%). Atualmente, ainda pelos dados do último censo e com base na autodeclaração, 47,7% da população consideram-se brancos, 7,6% pretos, 1,1% amarelos, 43,1% pardos e 0,4% indígenas. (IBGE,2012) Saiba mais Contrariamente aos dados obtidos pelo Censo de 2010, o Instituto Socioambiental, em levantamento divulgado em 2006, identifi ca a existência no Brasil de 225 etnias ou povos indígenas, com uma população de 600 mil indivíduos, ocupando aproximadamente 1,08 milhões de km2, o que corresponde a 12,7% do território nacional. Essas etnias, segundo o mesmo instituto, falam cerca de 180 línguas. A maioria desses povos é composta por populações de até 500 pessoas, sendo que somente 9% dos povos indígenas têm contin- gentes de até 5 a 20 mil indivíduos. Cumpre observar que esses dados dizem respeito às populações indígenas vivendo em aldeias. (GOHN, 2010, pp. 112-113) Um dado relevante è a presença na sociedade brasileira atual de índios citadinos que correspondem, também de acordo com o IBGE, a 315.180 pessoas e normalmente não estão associados a grupos étnicos específi cos, embora se assumam como índios, mesmo não sendo capazes de identifi car sua etnia de origem. Com esse fenômeno, surge e é vivenciada uma identidade indígena não mais baseada na ideia de pertencimento a uma etnia indígena específi ca, mas ao sentimento de pertencimento a uma “raça” indígena. Essa situação se manifesta particularmente entre os índios chamados urbanos. São índios urbanos aqueles que, pressionados pelas precárias condições de vida no meio rural, migram para os centros urbanos neles se estabelecendo à procura de melhores meios de sobrevivência. O censo de 2000 já identifi cava os efeitos desse fenômeno: das 734.131 pessoas que se identifi caram como indígenas àquela época, quase 50% viviam em cidades e não em aldeias rurais. A sobrevivência de esse segmento da população é particularmente precária, habitando geralmente bairros periféricos, em pobreza extrema e discriminados pelos moradores das cidades. Isto se refl etiria, inclusive, no campo dos estudos acadêmicos sobre as populações indígenas, nos quais predominariam ainda os trabalhos sobre os índios “tradicionais”, “étnicos”, ou seja, aqueles vivendo em suas aldeias e comunidades originais. Com o passar do tempo foi sendo construído o discurso da indianidade que reivindica os direitos da população indígena ao longo dos séculos e denuncia as injustiças cometidas contra ela. A identidade das comunidades indígenas foi negada ou reestruturada de acordo com a conveniência dos Estados Nacionais ou o próprio capitalismo fundiário que historicamente vem ocupando as terras que originariamente pertencem aos indígenas. Desafi os Globais Cidadania 10 Os Direitos indígenas Em 1537, o Papa Paulo III produziu um Breve no qual afi rmava serem os índios “verda- deiros homens e livres”, “entes humanos como os demais homens”, opondo-se, portanto, aqueles que os consideravam não dotados de alma e no discurso que os tratava como “negros da terra”3, ou seja, nativos passíveis de escravização e abrindo campo para o projeto catequético. No período Colonial brasileiro, a Coroa portuguesa proibia a escravidão indígena, escravidão essa que não era aceita pela Igreja Católica, mas a autorizava basicamente em duas situações, a “guerra justa” e o “resgate”. Assim, como afi rma Perrone-Moisés (1992): (...) a liberdade era garantida aos índios aliados dos coloniza- dores e aqueles na condição de aldeãos, enquanto a escravidão era o destino dos inimigos, sendo a “guerra Justa” a principal causa de escravidão legal no Brasil Colônia. Por “guerra justa” entendia-se o combate aos grupos indígenas considerados insubmissos tendo como causas principais (...) a recusa à conversão ou o impedimento da propagação da Fé, a pratica de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses (...) e a quebra de pactos celebrados. (PERRONE-MOISÉS, 1992, p.123) Já o “resgate” era a situação na qual era permitida a escravi- zação de índios cativos de outros nativos. Portanto, na Colônia “a escravidãonão é lícita apenas para os bárbaros hostis. Também podem ser escravos homens que não são inimigos, mas sendo cativos dos índios forem comprados, ou “resgatados”, para serem salvos” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p.127) No processo de reconhecimento e, principalmente, de construção de uma identidade indígena pela sociedade nacional abrangente devemos destacar o século XIX quando, com o advento do Império e com o processo de formação do Estado brasileiro, os índios passam a ser associados à identidade nacional que se preconizava construir enquanto símbolos de essa identidade. Assim, na busca da legitimidade como nação, legitimidade essa que tinha como uma de suas dimensões, de acordo com CUNHA (2012) a procura de títulos que fossem contrastantes com aqueles que a Coroa portuguesa podia reivindicar, (...) a pretensão de uma continuidade genealógica com os indígenas foi o mecanismo simbólico de maior força nos anos que se seguiram à Independência. O índio passou a representar o Brasil como um todo e a população brasileira passou a enfatizar raízes – sobretudo imaginárias - indígenas. Nas caricaturas da primeira metade do século XIX, nos monumentos públicos celebrando a Independência, era o índio que simbolizava a nova nação. (CUNHA, 2012, p. 107) (...) contrastando com os negros vistos como obstáculos à constituição de uma nação homogênea “mameluca”, os índios, graças a seu status simbólico privilegiado (que era o reverso de seu status concreto), entravam como conquistados no projeto de uma nação homogênea evidentemente no plano ideológico. (CUNHA, 2012, p. 110) Desafi os Globais Cidadania 11 Discursos e obras políticas, literárias, históricas, científi cas e artísticas desse período caracterizavam- se pela idealização dos indos no passado, enquanto tornavam invisíveis ou demonizavam os grupos ou indivíduos indígenas ainda muito presentes no território brasileiro. (ALMEIDA, 2010, p. 137) Saiba mais Almeida (2010) alerta que, no contexto da In- dependência e da formação do Estado nacional brasileiro, buscava-se “instituir no país uma uni- dade territorial, política e ideológica, criando uma memória coletiva que unifi casse as populações em torno de uma única identidade história e cultural” (ALMEIDA, 2010, p.135). Nesse processo de cons- trução, diferentemente do que tende a acontecer na atualidade, a pluralidade étnica e cultural não era valorizada, sendo mesmo considerada um entrave para a construção de uma nação composta por um território, um povo, uma língua, uma cultura e uma história únicas. Com isso, a grande diversidade das populações indígenas no território nacional obs- taculizava “a construção de uma única imagem de índio condizente com os ideais da nova nação” (ALMEIDA, 2010, p.136) e, assim, será uma imagem idealizada do índio que possibilitará transformá-lo em símbolo nacional, imagem que pouco ou nada tinha a ver com os verdadeiros indígenas, e: Relacionado ao acima exposto, a política indigenista, também sofrerá transformações no período imperial. Em esse momento acontece: (...) o estreitamento da arena em que se discute e decide a política indigenista. Se durante quase três séculos ela oscilava em função de três interesses básicos, o dos moradores, o da Coroa e o dos jesuítas, com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a distância ideológica entre o poder central e o local encontra-se na proporção da distância física. (CUNHA, 2012, p. 133) Embora o primeiro projeto de Constituição brasileira fi zesse referência à criação de estabelecimentos para a catequese e civilização dos índios e o constituinte José Bonifácio de Andrada e Silva houvesse elaborado um anteprojeto tratando da “civilização dos índios bravios” no qual apontava a necessidade de integrá-los “ a nascente nação brasileira”, a Constituição outorgada em 1824 não fazia referência aos indígenas uma vez que seria mais conveniente aos legisladores negar a existência deles. Já o Ato Adicional de 1834 transferiu a competência para promover “a catequese e a civilização do indígena e o estabelecimento de colônias as Assembleias Provinciais (Artículo 11, Parágrafo 5. SANTOS, 1998, p.94). Santos (1998) observa que a preocupação dos legisladores era, todavia, com o estabelecimento de colônias de imigrantes europeus e não com os índios, uma vez que essa colonização seria realizada por médio da expropriação das terras indígenas, notadamente na região sul do território nacional. Desafi os Globais Cidadania 12 Com a proclamação da República, surgiu uma proposta de Constituição em 1890 que, reconhecia a existência dos povos indígenas e procurava-se com a proteção dessas populações e com a não violação de seus territórios. Apesar disso, a Constituição de 1891, a primeira Carta republicana, não fez qualquer menção aos indígenas. Sob a inspiração positivista, foi criado em 1910 o Serviço de Proteção Indígena (SPI), órgão governamental através do qual o Estado brasileiro tomou como sua responsabilidade a proteção e a tutela dos indígenas. Em 1911, seguindo essas diretrizes, o exercício da tutela foi concedido aos funcionários do SPI, mas essa instituição enfrentou uma série de problemas, perdendo sucessivamente sua efi cácia. O estatuto da tutela foi regulamentado por vários decretos no longo do período republicano, inclusive a Lei 6.001 (1973), conhecida como Estatuto do Índio, que em seu Art.3º considera: “Índio ou Silvícola a todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifi ca e é identifi cado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional e Comunidade Indígena ou Grupo Tribal a um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados. Conheça o estatuto do Índio - .Lei 6001. 19/12 /1973 (LINK) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm Saiba mais Desafi os Globais Cidadania 13 O regime de tutela4 imposto aos índios como instrumento de proteção seria positivo, não estivesse associado à proposta de integração das sociedades indígenas à “comunhão nacional”, o que implicava o projeto de levar os povos indígenas ao desaparecimento por intermédio de sua incorporação à sociedade nacional abrangente, isto é, o estatuto de tutela estabelecido pela legislação indigenista tinha como base as teses de aculturação e assimilação, não mais aceitas na atualidade. Nessa medida, segundo Santos, “o indivíduo que na condição de funcionário do SPI e, depois, da Fundação Nacional do Índio, exercia o papel de tutor acaba efetivamente cerceando os direitos de seu tutelado e esbulhando o patrimônio da comunidade indígena, sob sua guarda” (SANTOS, 1998, p.94). A tutela não impediria o exercício dos direitos do cidadão; como brasileiros natos, os índios têm direitos políticos, podendo votar e ser votados, ter propriedade, administrar seus próprios negócios, participar da administração do patrimônio indígena que è gerido pela FUNAI e de organizar associações. Todavia, na pratica, nem sempre esses direitos eram respeitados sob a alegação de que a FUNAI como tutora dos índios devia autorizar determinadas ações destes, como o que ocorreu quando da visita do cacique Mário Juruna à Holanda, que a referida instituição não queria autorizar. Convém lembrar que o mesmo líder indígena, valendo-se de interpretação positiva da lei, conseguiu candidatar-se e se eleger deputado federal em 1982. Atualmente, vários indígenas exercem mandato de vereador em vários municípios, tendo alguns chegado ao cargo de prefeitos. A Constituição promulgada em 1934 estabelecia a competência privativa da União em legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (Art.5), estipulando, ainda, que “Será permitida a posse de terra dos silvícolas que neles se achem perma- nentemente localizados, sendo-lhes, no entanto,vedado aliená-los” (Art. 129). A carta outorgada em 1937 por Getúlio Vargas manteve na integra esse último artigo. Na Constituição de 1946, inserida no processo de democratização do país que se segue ao término do Estado Novo (1937-1945), foi mantida a proposta de incorporação dos indígenas à “comunhão nacional”, reconhecendo-lhes o direito de posse “sobre as terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não as transferirem” (Art. 216). Em 1967, a nova Carta reafi rmou o propósito de incorporação dos indígenas à sociedade nacional, estabelecendo que: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitavam, e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e todas as utilidades nela existentes” (Art.186). Em 1969, a Constituição de 1967 sofreu alterações e fi cou defi nido que “as terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e fi cando reconhecido seu direito de usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes” (Art. 198). Faz-se mister observar que a questão das terras indígenas, como observado por Santos (1998), aparece na maioria das Cartas constitucionais brasileiras, inclusive reconhecendo, como as Constituições de 1937 e 1967, os direitos dos índios sobre suas terras. A Constituição Federal de 1988, a primeira Carta brasileira a incluir um capítulo inteiro tratando especifi camente sobre as populações indígenas- Capítulo VIII, intitulado Dos Desafi os Globais Cidadania 14 Índios- estabelece a competência do Estado em demarcar as terras dessas populações e de garantir os seus direitos básicos, contudo, não estabelecendo critérios sobre a identidade indígena5. No entanto, em 2004, o governo brasileiro incorporou à legislação a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estipula que a consciência da identidade indígena ou tribal defi ne quem são os indígenas. Reconhecendo aos índios o direito histórico às terras que ocupam e de serem respei- tados como comunidades nações dotadas de história e cultura própria, a atual Carta constitucional pode, em tese, ser entendida como um passo importante em direção a um Estado pluricultural e à superação do conceito tutelar dos índios como objetos de políticas governamentais para reconhecê-los como sujeitos políticos. Nesse sentido, ela procura estabelecer uma ruptura com a legislação indigenista anterior, baseada em conceitos assimilacionistas tendo como fundamentação políticas de caráter integracionistas, defensoras da ideia de que os indígenas deviam ser assimilados à “comunhão nacional”, ao considerar os indígenas como um segmento social transitório, e consequentemente destinado ao desaparecimento, como preconiza, por exemplo, o Estatuto do Índio (1973), legislação muito claramente alinhada à ideologia do governo militar que vigorava no país época de sua promulgação. Historicamente, essa legislação e as políticas integracionistas e assimilacionistas vigentes no país pelo menos até a promulgação da Carta de 1988 se explicam pelo processo de formação e expansão do Estado- nação brasileiro, no qual não era admitida a existência de grupos com identidades e culturas particulares, pois só deveria existir no país uma identidade nacional única e genérica onde só caberia uma cultura nacional única e homogeneizada, abrindo espaço para e justifi cando diversas violações à integridade social e cultural dos grupos indígenas em nosso território. A atual Constituição foi elaborada e promulgada no período imediatamente após o governo militar (1964-1985), ou seja, dentro de um contexto de redemocratização da nação. Aproveitando positivamente dessa ambivalência, lideranças indígenas de diferentes etnias atuaram no sentido de pressionar a Assembleia Constituinte a reconhecer e incorporar ao texto constitucional os direitos que deveriam garantir a continuidade histórica e cultural dessas etnias, reivindicações essas que tiveram o apoio de diversos segmentos da sociedade brasileira, como indigenistas, jurídicos, antropológicos e religiosos articulados ou não em associações e organização não governamentais. (SANTOS, 1998, p. 87) Explicitando de forma bem mais clara que as legislações anteriores a relação entre o Estado e as sociedades indígenas e reconhecendo a legitimidade das reivindicações das populações indígenas e dos setores da sociedade civil que as apoiavam, a Carta de 1988 inicia, então, uma nova fase desse relacionamento Estado / populações indígenas, procurando garantir a elas o direito à diferença cultural e étnica, uma vez que lhes reconhece o direito à educação bilíngue e aos processos indígenas de aprendizagem. Por conseguinte, pela primeira vez na legislação brasileira, os povos indígenas passaram a ter reconhecidos seus direitos enquanto sociedades diferenciadas inseridas na sociedade nacional abrangente. Desafi os Globais Cidadania 15 Direitos indígenas sobre as terras Ao reconhecer os direitos originários dos índios às terras por eles tradicionalmente ocupadas, a Constituição reconheceu que existem relações jurídicas entre os povos indígenas e essas terras que são anteriores formação do Estado nacional brasileiro. Além disso, a mesma Carta garantiu por parte das comunidades indígenas o usufruto exclusivo das riquezas existentes nas terras tradicionalmente por elas ocupadas e, com isso, estipulou, também, ser preciso a prévia anuência das comunidades indígenas à exploração dos recursos hídricos e minerais existentes nos territórios indígenas. Com isso, de forma inovadora, reconher-se-ia a autonomia relativa dessas comunidades lhes reconhecendo o poder de vetar projetos de exploração desses recursos, fi cando o Estado impossibilitado de simplesmente impor tais projetos, como era possível pela legislação anterior. Contudo, os índios não são proprietá- rios das terras que ocupam no sentido tradicionalmente dado à propriedade, pois não podem usar as terras que ocupam para, individual ou coletivamente, vendê-las ou realizar transações comerciais a elas relacionadas. O Estatuto das Sociedades Indígenas, que revê e substitui o antigo Estatuto do Índio (1973), e que, embora aprovado pela Câmara dos Deputados desde 1994, ainda não sancionada, marca uma evolução na situação jurídica dos índios, substituindo a tutela vigente desde o Código Civil de (1916) “por um conjunto de instrumentos que tem como base o princípio de que a proteção da União deve ser exercida a partir dos direitos e bens coletivos das sociedades e comunidades indígenas”. Essa evolução se confi gura na medida em que “eles deixam de serem indivíduos ‘relativamente incapazes’ que devem ter a proteção do Estado até que se integrem à ‘comunhão nacional’, para assumir a condição de membros de sociedades distintas e diferenciadas que possuem direitos especiais, os quais devem ser protegidos nas relações com o Estado e com a sociedade brasileira”. (Lidia Luz, apud, SANTOS, 1998,p.93) O Estatuto das Sociedades Indígenas, proposto para garantir e execução da atual Constituição no que tange aos direitos indígenas, e que, como acima observado, ainda se encontra em tramitação no Congresso, reconhece e garante novos direitos às populações indígenas, Contudo, os interesses dessas populações entram em choque com os interesses econômicos e políticos de diversos segmentos da sociedade brasileira como os dos representantes das ma- deireiras, dos mineradores e do agronegócio. A difi culdade na aprovação do documento em questão pelo Congresso Nacional expressa, portanto, esses confl itos de interesses. Isso posto, verifi camos que, atualmente, apesar das grandes conquistas que as populações obtiveram especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, verifi ca-se que, ainda há uma grande distância entre o que estabelece a legislação e o que de fato ocorre na sociedade brasileira onde se observa, lamentavelmenteuma grande distância entre legislação e prática com o não cumprimento do que as leis indigenistas estabelecem e na precariedade na defi nição das políticas públicas a elas relacionadas. Desafi os Globais Cidadania 16 Ao mesmo tempo que essa distância entre a legislação e sua efetivação continua ocorrendo no tocante à questão indígena, os povos indígenas se tornam cada vez mais visíveis na sociedade e essas populações, respaldadas pela legislação vigente, vem-se organizado de forma a lutar pela defesa de seus direitos e procurando, dentre eles, destacar sua identidade. Assim sendo, desde as últimas décadas do século passado, os movimentos sociais indígenas têm destacado como ponto central a vigência de reconhecimento e respeito a seus direitos enquanto sociedades etnicamente diferenciadas inseridos na sociedade nacional abrangente e, por conseguinte, o reconhecimento de suas identidades étnicas e culturais. Analisando a atuação dos movimentos sociais indígenas no Brasil Contemporâneo, Gohn (2010)6 observa que esses movimentos diferem das mobilizações que ocorrem em outros países da América Latina uma vez que, no passado, a maioria da população indígena foi ou eliminada ou confi - nada em áreas afastadas do território brasileiro, diferindo, então, do que acontece nos países latino-americanos onde não ocorreu ou ocorreu de forma reduzida a escravidão africana, nos quais, por conta disso, a maioria da população pobre tanto rural quanto urbana é indígena ou descendente direta de índios, populações essa que vem promovendo rebelião em vários desses países. Para a autora, no Brasil, em que pese a mobilização ascendente dos índios, suas demandas ainda se centralizam na questão da terra. (GOHN, 2012, p. 113).6 A questão das difi culdades relativas à inserção e sobrevivência das populações indíge- nas na sociedade brasileira è um fenômeno percebido por todos que refl etem sobre o segmento indígena do país. Como tal essa questão è tratada e percebida co “problema indígena”. Analisando-a, Oliveira (1998) concorda com Darcy Ribeiro, afi rmando que essa problemática não existe em si mesma, mas surge do contato entre etnias indígenas e sociedade nacional abrangente. Em relação a ela, o antropólogo observa também que, diferentemente de outros problemas sociais, não è consequência da existência do índio em si mesmo, mas sim do dito homem branco que promove e determina sua intenção com as populações tribais de maneira que ela ocorra de forma confl ituosa, caracterizando-se como um choque entre culturas, choque esse caracterizado por Roberto Cardoso de Oliveira (1978) como um processo de fricção interétnica. Sendo assim, a solução desse “problema indígena”, ainda de acordo com Oliveira (1998), passaria forçosamente pela resolução de graves problemas nacionais, a saber, a alteração da estrutura agrária calcada no latifúndio, a questão da necessidade de proteção ambiental, a corrupção, a impunidade e a falta de “vontade política” das autoridades” ( OLIVEIRA, 1998, p. 64) Considerações fi nais Para fi nalizar, convém lembrar que garantir o cumprimento da legislação indigenista possibilitando que as comunidades exerçam integralmente o direito que o texto cons- titucional lhes reconhece, especialmente o direito de posse e usufruto da terra que historicamente ocupam, é condição essencial para a sobrevivência física e cultural das sociedades indígenas no Brasil. Embora garantido pela atual constituição, esse direito e muito questionado mediante o pequeno percentual da população nacional representado Desafi os Globais Cidadania 17 pelos povos indígenas mesmo ocorrendo nas últimas décadas um grande crescimento no número de indivíduos que se autodeclaram índios, como observamos no presente artigo-, particularmente reduzido em relação às terras para eles ocupadas. Por conta dessa visão e dos interesses políticos e econômicos sobre os territórios tribais, direito à terra e um dos mais contestados dos direitos indígenas e, assim, a alegações de que há “muita terra para pouco índio” ainda é muito freqüente e costumeiramente associada á ideia distorcida de que a demarcação e a homologação desses territórios seriam um empecilho para o desenvolvimento econômico rural. Todavia, é preciso observar que as terras ocupadas pelos índios são uma pequena parcela de território nacional – cerca de 12% - , havendo, portanto, muita terra no Brasil para ser utilizada e, deste modo, as terras indígenas não ameaçam de maneira alguma a necessária reforma agrária e o desenvolvimento rural. Ou seja, o problema está na estrutura fundiária do país, caracterizada pelo latifúndio e pela concentração fundiária e não no acesso dos indígenas a suas terras, às quais, segundo a Constituição em vigor têm direito histórico. Assim sendo, é necessário que se tenha clareza de que o governo, ao demarcar as terras indígenas e ao garantir o direito dos índios a elas, não está realizando nenhuma concessão ou favor, mas garantindo aos povos indígenas um direito original seu, anterior mesmo à formação jurídico-política do Estado Brasileiro, e não permitindo que eles sejam espoliados do que lhes é seu. Alem disso, não basta só demarcar esses territórios, cabe ao governo assegurar aos índios a garantir de manterem a integralidade e a integridade de suas terras, para que não ocorra o que acontece em muitas comunidades indígenas, que têm seu território legalizado, mas, contudo, não conseguem impedir a invasão e a exploração sistemática dessas terras por garimpos, madeireiras, por exemplo. Enfi m, em palavras do cacique pataxó hã-hãe Wilson de Jesus de Souza, proferidas por ocasião dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil: A história diz que o Brasil foi descoberto, mas os índios já estavam aqui. A gente tem 500 anos de sofrimento, tempo em que eles tentaram exterminar os povos e dominar. Mas, apesar disso, nós queremos resistir mais quinhentos anos, e depois mas quinhentos e mais quinhentos, e assim, por toda a vida. A questão da sobrevivência das nações indígenas è uma questão de toda a sociedade brasileira porquanto garantia à alteridade. Defender os direitos dos índios, inclusive o de não se assimilarem, mantendo suas identidades tanto no sentido étnico quanto “social”, isto é, não perdendo ou tendo que abdicar de suas culturas e modos de vida, è defender o direito mas amplo de todas as minorias presentes na sociedade brasileira a continuarem mantendo sua integridade física e cultural. Desafi os Globais Cidadania 18 Chegamos ao fi m deste módulo. No link “referências bibliográfi cas você entrará os artigos e materiais utilizados para a elaboração deste material. Leia ainda o texto complementar a seguir, para encerramento de estudo. Referências Bibliográfi cas ALMEIDA, Maria Regina Celestino de, Os índios na História do Brasil – Rio de Janeiro: FGV, 2010 CUNHA, Manuela Carneiro da, Política Indigenista no Século XIX, in CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.), História dos Índios no Brasil – São Paulo: Companhia de Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992 ________________________ – Antropologia do Brasil. 2 ed. 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Desse modo, o exercício da tutela fi ca, inevitavelmente, condicionado à política indigenista do Poder Federal”. (DALLARI, apud SANTOS, 1998, p.98) 5 - “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcá-los, proteger e fazer respeitar todos os seus bens,” (Constituição da República Federativa do Brasil) 6 - No trabalho citado, Gohn faz uma interessante síntese do processo de mobilização e organização das populações indígenas no Brasil contemporâneo, relacionando esse processo à legislação indigenista.
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