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Aluizio Ferreira Elias Ana Cristina Borges Cultura indígena e afro-brasileira Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube Elias, Aluízio Ferreira. E42c Cultura indígena e afro-brasileira / Aluízio Ferreira Elias, Ana Cristina Borges. – Uberaba: Universidade de Uberaba, 2019. 216 p. : il. Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba. Inclui bibliografia. ISBN 1. Cultura indígena – Brasil. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Cultura afro-brasileira – História. 4. Populações indígenas. 5. Nativos. I. Borges, Ana Cristina. II. Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. III. Título. CDD 981.00498 © 2019 by Universidade de Uberaba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba Reitor Marcelo Palmério Pró-Reitor de Educação a Distância Fernando César Marra e Silva Coordenação de Graduação a Distância Sílvia Denise dos Santos Bisinotto Editoração e Arte Produção de Materiais Didáticos-Uniube Editoração Stela Maria Queiroz Dias Revisão textual Érika Fabiana Mendes Salvador Diagramação Douglas Silva Ribeiro Ilustrações Rodrigo de Melo Rodovalho Acervo EAD - Uniube Acervo Getty Images Projeto da capa Agência Experimental Portfólio Edição Universidade de Uberaba Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário Aluizio Ferreira Elias Mestre em História da Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduado em História pela Universidade de Uberaba (Uniube). É professor desta universidade, atuando, principalmente, nas disciplinas de História Antiga e Medieval, História Moderna e Contemporânea, História do Brasil, História da África, História da Educação e Cidadania. Tem experiência nas áreas de História e Educação. Ana Cristina Borges Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em História Contemporânea e graduada em História pela Universidade de Uberaba (Uniube). É professora desta universidade, atuando, principalmente, nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em História, Bacharelado em Ciência Política e nos cursos presenciais, na disciplina institucional de Cidadania. Tem experiência nas áreas de História da América, Culturas Ameríndias, Historiografia, Ensino de História, História da Educação e Cidadania. Sobre os autores Sumário Apresentação ............................................................................................................. VII Capítulo 1 Brasil Indígena: o desafio da diversidade ............................ 1 1.1 Povos indígenas no Brasil de hoje ...........................................................................3 1.2 A política indigenista e a luta por direitos ...............................................................11 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) ..............................................12 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973).............................................................17 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 ....................................................................22 1.3 O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro ....................................28 1.4 Conclusão ...............................................................................................................32 Capítulo 2 Culturas indígenas: artes, religião e literatura ................... 37 2.1 As manifestações culturais indígenas ....................................................................39 2.2 Artes indígenas: patrimônio material e imaterial ....................................................42 2.3 Cosmologia e religiosidade indígena ......................................................................51 2.4 Línguas e Literatura: da oralidade à escrita ...........................................................61 2.5 Conclusão ...............................................................................................................70 Capítulo 3 Brasil Africano e o desafio da igualdade ............................ 75 3.1 A categorização étnico-racial no Brasil ...................................................................78 3.1.1 O debate acadêmico (Sociologia e Antropologia) ........................................79 3.1.2 A controvérsia suscitada pela Genética .......................................................83 3.2 O panorama atual da desigualdade .......................................................................84 3.2.1 O negro e o mercado de trabalho .................................................................85 3.2.2 Criminalidade e crime racial ..........................................................................87 3.3 O legado do período escravagista ..........................................................................90 3.3.1 O regime republicano e a afrodescendência. ...............................................91 3.3.2 Alguns sinais de mudança ............................................................................93 3.4 O mito da democracia racial brasileira ...................................................................95 3.4.1 O afrodescendente e a autopercepção ........................................................96 3.5 Consciência negra e a cidadania plena .................................................................97 3.5.1 O drama étnico-racial em outros países .......................................................98 3.5.2 A educação e os processos de exclusão ......................................................99 3.6 Conclusão .............................................................................................................101 Capítulo 4 Cultura afro-brasileira: arte, religião e literatura ............... 109 4.1 O legado da ancestralidade africana ....................................................................112 4.1.1 Tradições quilombolas: costumes, crenças e valores. ...............................115 4.2 Expressões artísticas da cultura afro-brasileira ...................................................119 4.2.1 O Tambor de Crioula e a identidade nacional.............................................119 4.2.2 A relevância comunitária do Jongo .............................................................122 4.2.3 A Capoeira como símbolo de resistência....................................................125 4.3 Expressões da religiosidade .................................................................................128 4.3.1 A força cultural do Candomblé ....................................................................130 4.4 Literatura afro-brasileira ........................................................................................133 4.5 Conclusão .............................................................................................................135 Capítulo 5 Políticas públicas para as relações étnico-raciais ........... 143 5.1 Uma legislação antirracista ...................................................................................145 5.1.1 As desigualdades sociais e étnico-raciais ..................................................147 5.1.2 Os números da desigualdade .....................................................................148 5.1.3 O Brasil miscigenado ..................................................................................151 5.2 A polêmica sobre “raças” ......................................................................................153 5.2.1 O debate acadêmicosobre cotas raciais....................................................155 5.2.2 As ciências sociais e as políticas públicas ..................................................157 5.3 Como se define uma comunidade negra no Brasil? ............................................159 5.3.1 A legitimidade das políticas de discriminação positiva ...............................160 5.4 Os direitos dos povos indígenas ..........................................................................161 5.4.1 A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas ................................162 5.4.2 O relatório das Nações Unidas (2016) .......................................................165 5.5 Conclusão .............................................................................................................168 Capítulo 6 Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena .. 175 6.1 Contextualizando as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 ........................................177 6.2 Educação para as relações étnico-raciais, diversidade e inclusão ......................184 6.3 Práticas de Ensino: subsídios para se trabalhar em sala de aula .......................189 6.3.1 Metodologias de investigação e o uso de diferentes fontes .......................190 6.3.2 Cinema, televisão e literatura......................................................................192 6.4 Conclusão .............................................................................................................201 Prezado(a) aluno(a), é um prazer tê-lo(a) conosco! A proposta deste livro foi pensada como um aporte ao ensino de história africana e indígena, com ênfase no reconhecimento e na valorização das culturas desses povos, matrizes formadoras da nossa sociedade. Enquanto instrumento pedagógico, esperamos que ele possa auxiliar na formação inicial de professores abertos ao debate das relações étnico-raciais. Com uma linguagem didática, procuramos apresentar e problematizar diferentes conceitos que envolvem os direitos humanos e de cidadania das populações negra e indígena em nosso país, bem como levar à reflexão de temáticas sobre diversidade, patrimônio cultural, desigualdade social, etnocentrismo, entre outros. Os capítulos abordam questões que resultaram de uma longa luta dos movimentos sociais, cujas reivindicações por uma educação mais inclusiva foram atendidas pelas Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabeleceram a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas. A partir das respectivas leis, as diretrizes curriculares nacionais estabeleceram parâmetros para a inserção desses conteúdos nos currículos da Educação Básica, além de impulsionar a formação continuada de professores para atender a tal demanda. Nesse sentido, os capítulos foram organizados para que você possa ampliar seus conhecimentos a respeito do protagonismo de índios e negros na formação da sociedade brasileira, bem como refletir sobre Apresentação VIII UNIUBE questões contemporâneas decorrentes do “silêncio” atribuído a esses grupos ao longo da nossa história. Os capítulos foram divididos a partir de temáticas comuns e estão organizados da forma como segue. Os dois primeiros capítulos abordam o indígena brasileiro: o capítulo 1 traz um panorama dos povos indígenas na atualidade e trata dos direitos desses povos e da luta pelo reconhecimento da sua diversidade; no capítulo 2, analisaremos os aspectos culturais que caracterizam a experiência social indígena no Brasil a partir das artes, da religião e da literatura. Seguindo a mesma linha, o terceiro e o quarto capítulos tratam da cultura afro-brasileira: o capítulo 3 propõe um estudo do Brasil africano, avaliando o nível de complexidade das relações étnico-raciais cotidianas e refletindo sobre as estruturas históricas que fundamentam as desigualdades e práticas contemporâneas de intolerância étnico-racial contra os negros; já o capítulo 4 destaca as principais expressões das artes, da religião e da literatura, identificando as permanências e mudanças relativas às manifestações culturais afro-brasileiras de hoje e suas raízes históricas mais profundas. Os capítulos 5 e 6 são trabalhados de forma independente, abordando cada um deles um problema específico, embora voltados para a temática do índio e do negro no Brasil: no capítulo 5, propomos uma problematização das políticas públicas voltadas às questões étnico- raciais, destacando o papel das ações afirmativas no processo de inclusão e de ampliação dos direitos de cidadania, de negros e indígenas no Brasil; por fim, o capítulo 6 trata, de forma específica, do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena a partir dos desafios colocados pela legislação educacional. O capítulo também inclui indicações de leituras e subsídios didático-pedagógicos para atuação em sala de aula. UNIUBE IX A educação brasileira passa por um momento definidor de seus projetos político-pedagógicos, no sentido de abrir o debate diante de questões que envolvem a complexidade das relações humanas, no que se refere aos conflitos étnicos, à xenofobia, ao respeito à diversidade e às diferenças, à reafirmação dos princípios históricos dos direitos humanos, entre tantas outras temáticas que nos colocam diante das realidades do cotidiano escolar. Por isso é tão importante compreender a relevância de uma educação para as relações étnico-raciais, que combata preconceitos e estereótipos que dificultam a construção de uma sociedade democraticamente justa. Compreender a multiculturalidade da nossa formação social pressupõe um processo de revisão das práticas educativas, na formação docente e na relação com os discentes, com o objetivo de formar cidadãos mais críticos de sua realidade. As reflexões que propomos ao longo dos estudos da disciplina visam preencher uma lacuna ainda existente na formação de professores, mesmo decorridos tantos anos de aprovação das legislações referidas. Precisamos ampliar nosso olhar para a questão indígena e para a questão afro-brasileira, problematizar concepções arcaicas, desconstruir visões discriminatórias e práticas excludentes. Esperamos, assim, seguir trilhando nosso compromisso com um Ensino Superior de qualidade, que atenda às diretrizes curriculares e, principalmente, que estimule em você, futuro professor-historiador, uma nova maneira de ver e de pensar as questões étnico-raciais, que leve a uma transformação significativa na sua profissão de educador! Boa leitura! Ana Cristina Borges Introdução Brasil Indígena: o desafi o da diversidadeCapítulo1 Em nossos estudos sobre a questão indígena nas Américas, já abordamos o equívoco do termo “índio”, empregado pelo genovês Cristóvão Colombo para se referir aos povos que encontrou no território americano. A partir de uma revisão da historiografi a, sabemos que tal denominação é insufi ciente para determinar a diversidade e a coletividade desses povos. Por outro lado, considerando que o termo se perpetuou ao longo do tempo, não há como desconsiderá-lo para impor novas denominações, que também podem recair em equívocos, ao nos referirmos às sociedades indígenas. Em algumas abordagens, expressões como “indígena”, “nativo”, “autóctone”, assim como “aborígene”, remetem à ideia de povos originários de determinado país ou região. Portanto, é com esse signifi cado que devemos nos referir a esses grupos, e não como inferiores ou exóticos. Por esta razão, o estudo da temática indígena deve compreender diferentes perspectivas teóricas a partir da Antropologia, da Arqueologia, da História, da Etnologia, da Linguística, entre outras áreas. Assim como outros grupos humanos, culturalmente, “ser indígena” resulta de uma história de relações com o meio em que se vive, 2 UNIUBE A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • Identificar as raízes de nosso pluralismo étnico em sua expressãoindígena. • Conhecer quem são, quantos são e onde vivem os atuais povos indígenas no Brasil. Objetivos que determina seu modo de vida e de ver o mundo. De acordo com Luciano (2006, p. 27), os povos indígenas se autodefinem a partir de alguns critérios que, embora não sejam únicos e nem excludentes, são mais aceitos entre a maioria dos povos: • continuidade histórica com sociedades pré-coloniais; • estreita vinculação com o território; • sistemas sociais, econômicos e políticos bem definidos; • língua, cultura e crenças definidas; • identificação como diferente da sociedade nacional; • vinculação ou articulação com a rede global dos povos indígenas. Como você irá perceber, o estudo dos povos indígenas requer diferentes interpretações e análises, ampliação do olhar para entender as diferentes formas de relações sociais, políticas e econômicas desses povos. Não pretendemos aqui esgotar o tema ou apresentar uma visão única sobre tal história. Ao contrário, nosso intuito é fazer pensar sobre os indígenas e sua contribuição para a história brasileira, suscitar o debate, estimular pesquisas e a busca de novos conhecimentos para uma revisão de visões preconceituosas que concorrem com o exercício ativo e crítico da análise historiográfica. UNIUBE 3 1.1 Povos indígenas no Brasil de hoje 1.2 A política indigenista e a luta por direitos 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973) 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 1.3 O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro 1.4 Conclusão Esquema • Compreender a atuação das políticas indigenistas no sentido de promover uma integração do indígena à sociedade brasileira no período republicano. • Reconhecer a importância da Constituição de 1988 na promoção e ampliação dos direitos e autonomia indígenas, na manutenção de suas culturas e posse dos territórios que ocupam. • Refletir sobre as estruturas históricas que fundamentam as práticas contemporâneas de intolerância étnico-racial com os povos indígenas. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos. [...] Nessa confluência, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, se fundem para dar lugar a um povo novo. Darcy Ribeiro Povos indígenas no Brasil de hoje1.1 Há uma grande diferença cultural e de visão de mundo entre os milhares de povos nativos que habitavam o território antes da chegada dos portugueses e as poucas centenas de povos indígenas que compõem a 4 UNIUBE população brasileira hoje. Dos mais de mil povos existentes, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas, restaram cerca de 255 povos, falantes de mais de 180 línguas diferentes, que, segundo dados do Censo IBGE 2010, compreendiam 896.917 pessoas, das quais 517 383 habitam terras indígenas e 379.534 vivem em outros territórios. Dados mais atualizados da FUNAI (Fundação do Índio) apontam que as etnias já chegam a 305 povos, com registro de 274 línguas, dos quais cerca de 17,5% não falam a língua portuguesa. Ao longo da história nacional, vários episódios provocaram essa drástica redução dos povos indígenas, como escravidão, guerras, doenças, massacres, etnocídios, entre outras práticas de dominação cultural e disputas territoriais. Apesar deste cenário, a grande maioria dos brasileiros desconhece a rica diversidade dos povos indígenas que vivem em nosso País. Para muitos, a denominação “indígena” tem um sentido pejorativo em virtude do longo processo histórico de discriminação contra os povos nativos, que reforçou a ideia de que representariam povos sem civilização, selvagens, sem cultura, indolentes, preguiçosos, incapazes ou, o que é ainda mais preconceituoso, que seriam povos românticos, puros, ingênuos, protetores da floresta, seres lendários. Como dissemos na Introdução, a denominação indígena, apesar de genérica e equivocada, é importante para estabelecer uma compreensão da existência de povos originários e demarcar uma fronteira étnica entre Povo Em geral, é definido, primeiro, como um conjunto de pessoas que vive em sociedade; segundo, como um conjunto de indivíduos que integram uma nação específica ou têm uma origem étnica comum. Etnia O termo surgiu no início do século XIX para designar as características culturais próprias de um grupo, como a língua e os costumes, de modo a diferenciar esse conceito do de raça. A etnia é objeto de estudo da Antropologia e se caracterizou como tema principal da Etnologia, ciência que se propõe a estudar diferentes grupos étnicos, constituindo-se em torno da própria noção de etnia. UNIUBE 5 esses povos e os não indígenas. Porém, é importante compreender que, para além do termo, a denominação indígena traz implícita uma gama de povos e diversidades culturais, que possuem uma autodenominação. Deste modo, não existe nenhum povo, tribo ou clã com a denominação de índio. Na verdade, cada “índio” pertence a um povo, a uma etnia identificada por uma denominação própria, ou seja, a autodenominação, como o Guarani, o Yanomami etc. Mas também muitos povos recebem nomes vindos de outros povos, como se fosse um apelido, geralmente expressando a característica principal daquele povo do ponto de vista do outro. Ex.: Kulina ou Madjá. Os Kanamari se autodenominam Madjá, mas os outros povos da região do Alto Juruá os chamam de Kanamari. (LUCIANO, 2006, p. 30) Nesse sentido, cada povo constitui-se como uma sociedade própria, marcada por sua organização a partir de uma cosmologia particular, que fundamenta sua vida social, seus costumes, as práticas religiosas e econômicas, o que define, num contexto mais amplo, a diversidade do mundo indígena e a multiplicidade de suas formas, existência coletiva e individual. Da mesma maneira, o termo “tribo” deve ser utilizado com cautela, uma vez que também implica uma generalização quanto ao modo de organização dessas sociedades. Em termos de população, os povos indígenas se dividem entre grupos muito reduzidos e outros mais populosos. Cerca de metade desses grupos possuem menos de 100 pessoas, a exemplo dos Jiahui (Amazonas, 97 pessoas), Xetá (Paraná, 86 pessoas) e Bará (Amazonas, 22 pessoas), que, devido ao baixo número de indivíduos, sempre se veem ameaçadas de extinção. A Tabela 1 a seguir indica as 15 etnias com maior população, conforme dados do Censo IBGE (2010): 6 UNIUBE Tabela 1: Relação das 15 etnias com maior número de indígenas no Brasil. Etnia População Tikúna 46.045 Guarani Kaiowá 43.401 Kaingang 37.470 Makuxí 28.912 Terena 28.845 Tenetehara 24.428 Yanomámi 21.982 Potiguara 20.554 Xavante 19.259 Pataxó 13.588 Sateré-Mawé 13.310 Mundurukú 13.103 Múra 12.479 Xucuru 12.471 Baré 11.990 Fonte: IBGE (2010). Desde 1991 o Censo Demográfico do IBGE coleta dados sobre a população indígena brasileira, com base na categoria indígena do quesito cor ou raça. No Censo Demográfico 2010, foi introduzido um conjunto de perguntas específicas para as pessoas que se declararam indígenas, como o povo ou etnia a que pertenciam, as línguas indígenas faladas, entre outras características sociodemográficas. Em virtude disso, os resultados do Censo 2010 permitem um delineamento bastante detalhado acerca das pessoas que se declararam indígenas no Brasil, revelando, assim, um país com uma expressiva diversidade. Para saber mais sobre os dados do Brasil indígena, acesse o link a seguir, que traz um resumo do Censo Demográfico a partir de gráficos e tabelas: https://indigenas.ibge.gov.br/images/pdf/indigenas/folder_indigenas_web.pdf SAIBA MAIS UNIUBE 7 Territorialmente, os povos indígenas se distribuem ao longo de todo o território brasileiro, como podemos identificar no mapa, Figura 1 a seguir: Figura 1: Mapa da população indígena no Brasil. Fonte: Projeto Jimboê (2010). Adaptação. Com este cenário prévio, a primeira questão a se constatar éque a diversidade sociocultural dos indígenas no Brasil é imensa, com tradições e costumes variados, fora o enorme patrimônio ambiental e cultural abrigado em suas terras, que oferecem significativos ganhos na preservação e manutenção do nosso desenvolvimento sustentável. 8 UNIUBE As terras indígenas ocupam atualmente cerca de 13% do território nacional. De acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA), são 720 em diferentes estágios demarcatórios: 74 já declaradas pelo Ministério da Justiça; 486 homologadas e reservadas pela Presidência da República, cujas terras foram adquiridas pela União ou por terceiros; 42 identificadas, com relatório de estudo aprovado pela Funai, e 118 em identificação, cujo estudo está sendo realizado pela Funai. Vale ressaltar que a maior parte dessas terras está localizada na chamada Amazônia Legal (424 terras), onde vivem aproximadamente 60% da população indígena do País. Os outros 40% vivem espalhados ao longo das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e do estado do Mato Grosso do Sul. As terras indígenas nessas regiões possuem áreas territoriais diminutas e maciçamente povoadas, o que gera constantes conflitos entre índios e não índios, resultantes de um inchamento populacional (Figura 2), a seguir. Amazônia Legal É uma área que corresponde a 61% do território brasileiro e engloba a totalidade de nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Tocantins e parte do estado do Maranhão, perfazendo pouco mais de 5 milhões de km². Nela residem 56% da população indígena brasileira. O conceito de Amazônia Legal foi instituído em 1953, pela Lei n° 1806, e seus limites territoriais decorrem da necessidade de planejar o desenvolvimento econômico da região, em virtude de problemas sociais comuns. UNIUBE 9 Figura 2: Mapa das terras indígenas no Brasil. Fonte: Projeto Jimboê (2010). Adaptado. Para informações mais detalhadas a respeito das terras indígenas no Brasil, acesse o site: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/brasil#pesquisa, que traz um painel com vários dados por meios de mapas, gráficos e estatísticas sobre territórios, população, desmatamento e mineração. PESQUISANDO NA WEB 10 UNIUBE Entre os povos indígenas existe outra denominação, utilizada como forma de tratamento, que é o termo “parente”. Mas, ao contrário do que nós entendemos, isso não significa que todos os índios pertençam a um mesmo núcleo familiar. Trata-se de uma maneira de identificar aqueles que compartilham interesses comuns, como os direitos coletivos, por exemplo, a autonomia sociocultural, a história de luta e resistência, as estratégias de sobrevivência, etc. Assim, existe uma aliança política e identitária entre os chamados parentes. Desde a década de 1980, com a expansão dos movimentos sociais indígenas, houve uma preocupação com a reafirmação de identidades. Muitos povos negavam a denominação “índio” ou mesmo negavam suas identidades étnicas e suas origens. A aceitação da denominação indígena foi o primeiro passo para esse processo de reafirmação, que cada vez mais vem reforçando a valorização sociocultural que cada povo deve praticar para recriar suas tradições, como símbolo de recuperação de sua autoestima. O índio de hoje é um índio que se orgulha de ser nativo, de ser originário, de ser portador de civilização própria e de pertencer a uma ancestralidade particular. Este sentimento e esta atitude positiva estão provocando o chamado fenômeno da etnogênese, principalmente no Nordeste. Os povos indígenas, que por força de séculos de repressão colonial escondiam e negavam suas identidades étnicas, agora reivindicam o reconhecimento de suas etnicidades e de suas territorialidades nos marcos do Estado brasileiro. (LUCIANO, 2006, p. 33) Nesse sentido, os termos “indígena” ou “índio” devem significar uma identidade multiétnica, capaz de unir diferentes povos historicamente distintos na luta por direitos comuns, que lhes garantam um espaço de reconhecimento e visibilidade dentro da sociedade brasileira. Ainda que as distintas formas de aculturação e miscigenação provocaram modificações socioculturais profundas entre os povos indígenas, UNIUBE 11 a crescente revalorização de sua cultura, aliada ao movimento por ampliação de políticas públicas específicas, contribuiu de forma ativa para essa recuperação de um “orgulho de ser indígena” e da reafirmação da identidade étnica. Porém, esse não foi um processo fácil. Como já foi abordado em estudos anteriores sobre a colonização no Brasil, os índios foram os primeiros povos escravizados, sendo denominados “gentios da terra” ou “negros da terra”. Essa foi a alternativa encontrada pelos portugueses para exploração do trabalho que beneficiaria as primeiras exportações de produtos nos territórios dominados no litoral. Somente no século XVIII, um alvará de 08 de maio de 1758 aboliu a escravidão imposta aos índios. No século XIX, já no contexto do Império, o lugar do índio na sociedade foi redimensionado, atribuindo-lhe um papel romanceado, como símbolo da nova nação, enquanto seus direitos básicos eram negados. É a partir da proclamação da República que se começa a tratar de uma política indigenista no âmbito das leis. A política indigenista e a luta por direitos1.2 Segundo o Instituto Socioambiental, a expressão “política indigenista” diz respeito a toda e qualquer ação política governamental que tenha as populações indígenas como objeto. (ISA, 2018). Instituídas oficialmente desde a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), as políticas formuladas e executadas pelo Estado brasileiro estão atualmente sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com outros setores governamentais e não governamentais (ONGs), organizações indígenas e missões religiosas. No entanto, a longa trajetória de luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas trouxe um amadurecimento desses povos e seus representantes, que hoje se estruturam, a partir dos movimentos 12 UNIUBE indígenas, para criar organizações dirigidas pelos próprios índios. O intuito é ampliar sua participação nas questões de cidadania a partir das chamadas “políticas indígenas”, que se distinguem das políticas oficiais justamente por serem elaboradas pela iniciativa indígena, principalmente em prol dos direitos de participação política, de saúde e de educação. “Quando falamos em movimentos indígenas, estamos nos referindo àqueles cujos protagonistas são os próprios índios, seja por meio de associações, representações políticas ou ainda a realização de assembleias e a elaboração de documentos que partem de uma vontade expressa diretamente pelas coletividades indígenas. Já os movimentos ou políticas indigenistas são aqueles elaborados pelo poder público, incentivados pelos apoiadores dos índios, que podem ser antropólogos, historiadores e outros cientistas sociais, além de ativistas. Uma política indigenista, ou seja, uma política voltada para as populações indígenas, deve ser entendida, nesse contexto, como um conjunto de ideias, práticas, programas e projetos políticos dirigidos aos indígenas”. (SILVA; COSTA, 2018, p. 70). EXPLICANDO MELHOR Para compreender a implementação das políticas indigenistas no País, bem como as mudanças empreendidas pelos movimentos indígenas para a conquista e o reconhecimento de seus direitos, é importante conhecermos os diferentes agentes desse processo, que se inter-relacionam com os povos indígenas presentes em todo território nacional. 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) As primeiras legislações republicanas a estabelecerem definições do que era “ser índio” no Brasil foram o Código Civil de 1916 e o Decreto UNIUBE 13 nº 5.484 de 1928. Posteriormente, a Constituição de 1934, promulgada durante o governo de Getúlio Vargas, é o documento nacional mais antigo a tratar sobre políticas indigenistas e a designar à União aproteção dos direitos das populações indígenas e a competência de legislar sobre tais questões. O Código Civil e a tutela dos índios Em 1916, criou-se um Código Civil (Lei 3.071/16) afirmando que “todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. No entanto, esta lei considerava que algumas pessoas não têm a mesma capacidade de exercer seus direitos. O art. 5º desta lei afirmava que os silvícolas (índios), entre outros grupos, eram relativamente incapazes para certos atos e, em função disso, seriam “tutelados” até que estejam integrados à “civilização do país”. Ao considerar os índios como incapazes a lei não reconhecia que os índios são, na verdade, diferentes culturalmente. Ou seja, os índios são plenamente responsáveis de acordo com os seus próprios padrões. Mas na época em que se escreveu o Código Civil, acreditava-se também que os índios seriam extintos e, portanto, não precisariam de ter seus direitos assegurados. Na verdade, imaginava-se que os índios eram seres primitivos que iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até integrarem-se totalmente à sociedade brasileira, deixando, portanto, de serem índios. Esse princípio da incapacidade e da necessidade de tutela permeou todas as legislações promulgadas posteriormente direcionadas aos índios e reforçou as tentativas do Estado em incorporar os índios à “civilização” sob uma perspectiva assimilacionista, que entendia os índios como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. (ISA, 2000, s/p.) PARADA PARA REFLEXÃO Assimilacionismo Corrente que preconiza a assimilação de culturas periféricas pelas culturas dominantes. Na Sociologia: teoria que defende a integração dos diferentes grupos étnicos e culturais a uma sociedade, a fim de evitar situações de conflito. 14 UNIUBE Anteriormente e nesse contexto, foi criado, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) - a partir de 1918 tornou-se apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI) - que tinha por objetivo prestar assistência aos índios em âmbito nacional. A criação do SPI foi produto de um pensamento integrador que via o indígena como “incapaz”, possuidor de uma mentalidade “ingênua”, necessitando, assim, da tutela do Estado, que lhe daria condições de evoluir socialmente para um estágio cultural e econômico superior, sendo incorporado, assim, à nação. Portanto, cabia ao SPI defendê-lo, demarcar suas terras, proteger de invasores e ampará-lo em suas doenças (que, em geral, eram transmitidas pelos próprios agentes). Vale lembrar que um dos principais diretores da agência foi o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, cuja atuação obteve reconhecimento nacional como “pacificador de índios”, o que lhe atribuiu um caráter de heroísmo nas missões realizadas em diferentes estados brasileiros. A política administrativa da agência não utilizava critérios que incluíssem a diversidade dos povos indígenas, atribuindo-lhe um perfil genérico que, de um lado, visava à sua proteção e, de outro, atendia aos interesses territorialistas da política nacional. É possível dizer que o SPI foi formado em continuidade com premissas coloniais. Seu modo de atuação, formado a partir de doutrinas positivistas, incorporou técnicas missionárias, tais como: distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar instrumentos musicais ocidentais. Os valores de bravura, coragem, calma e disciplina militar nas expedições pelos sertões ressoam as clássicas imagens do explorador e do bandeirante. O “governo dos índios”, conforme expressão da época, exigiria também uma boa formação científica e “espírito de dedicação à causa pública”. A produção de informações cartográficas e ambientais era fundamental para subsidiar as atividades de conquista e exploração comercial do interior. Além disso, a proposta de registrar minuciosamente as expedições acabou por contribuir com a formação da antropologia no Brasil e das coleções de cultura material indígena dos museus brasileiros e estrangeiros. (ISA, 2018, s/p.) UNIUBE 15 Na década de 50, a atuação do SPI teve como auge a criação do Museu do Índio no Rio de Janeiro e do Parque Indígena do Xingu (PIX), ambos com atuação do antropólogo Darcy Ribeiro e do Marechal Rondon. A proposta do museu era preservar um acervo artístico e cultural indígena, além de um centro de documentação histórica, etnológica e fotográfica, que serviu de referência para estudos antropológicos. Já o PIX foi concebido como um território único ocupado por diversos povos - incluindo terras dos Xavante, Bakairi, Xinguanos, Kayabi, Munduruku, entre outros grupos autônomos - cuja proposta se diferenciava da política de demarcação de terras que vinha sendo empreendida até então. “A criação do Parque Nacional do Xingu em 1961, no governo do Presidente Jânio Quadros, veio quebrar o modelo até então vigente de demarcação das terras indígenas. Fruto de uma luta iniciada ainda nos anos 50 e da qual participaram diversas personalidades, como Darcy Ribeiro e os irmãos Villas-Boas, o Parque tinha como fundamento de sua criação a necessidade de se preservarem as condições em que viviam diversos povos indígenas da região do Xingu, incluindo o seu meio ambiente. Criava-se assim uma figura que iria inspirar um novo paradigma nos anos 80, quando o conceito de terra indígena passaria a incorporar outros elementos visando à reprodução sociocultural dos povos indígenas. Naquele momento, tratava-se, como diziam os próprios defensores da criação do Parque, de preservar um pedaço do ‘Brasil prístino’, onde os índios ainda mantinham as suas culturas de forma harmoniosa com a natureza e longe da influência do chamado mundo civilizado. [...] Além disso, o Parque do Xingu rompia com a visão predominante desde o final do século XIX: a de que os índios eram seres fadados à extinção, na medida em que deveriam evoluir e perder a sua condição de índios, sendo SAIBA MAIS 16 UNIUBE definitivamente assimilados pela sociedade envolvente. Embora a legislação nesse momento ainda servisse de base para a assim chamada política assimilacionista, o Parque do Xingu foi pensado para ser uma exceção a esta política e ao próprio modelo de integração dos índios. Os índios do Xingu deveriam viver no Parque sob um forte aparato estatal de proteção, o que lhes garantiria, pelo menos em tese, a manutenção de suas formas de vida intactas. [...] Anos depois da sua criação, o Parque Nacional do Xingu foi renomeado Parque Indígena do Xingu”. (ARAÚJO, 2006, p. 28-29). Apesar das políticas implementadas e de avanços na prática indigenista, o SPI não conseguiu impedir a invasão das terras, evitar ataques armados e a drástica redução da população indígena, que na década de 50 eram pouco mais de 100 mil, voltando a crescer lentamente somente a partir da década de 1970. Por outro lado, como afirma Gomes (2012, p. 100), A principal contribuição do SPI ao indigenismo nacional está na efetivação de uma política de respeito à pessoa do índio, de responsabilidade histórica por parte da nação brasileira, pelos destinos dos povos indígenas que habitam o território nacional e no modo dedicado e altruísta pelos quais seus agentes foram treinados para respeitar a autonomia inerente dos índios e a atender as suas necessidades básicas. Que os resultados tenham ficado muito aquém do esperado constitui um óbice não somente de uma política que sempre foi pouco valorizada pelo poder (e também por seus desvios pessoais), mas também se deve à falta de força política entre os aliados históricos dos índios diante das forças anti-indígenas predominantes. Devido à má gestão, falta de recursos e corrupção funcional, no final da década de 60, o SPI sofreu uma série de denúncias sobre irregularidades administrativas e fraudes, em especial em relação às terras indígenas e aos recursos naturais. Em meio às investigações, o governo federal acabou por extinguir oficialmentea agência em 1967, criando um novo UNIUBE 17 órgão para centralizar a prestação de serviços aos povos indígenas: a Fundação Nacional do Índio (Funai), com competência para exercer o papel de tutor dos índios e, entre outras funções, “garantir a posse permanente” das terras habitadas pelos índios e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. (ARAÚJO, 2006, p. 31). 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973) A Funai é o órgão indigenista oficial responsável pela proteção dos índios e promoção dos seus direitos em âmbito nacional. Entretanto, sua criação no contexto da Ditadura Militar condicionou os interesses do órgão aos planos de defesa nacional e à expansão político-econômica para o interior do País, o que gerou inúmeros conflitos. A própria atuação da Funai até o ano de 1985 esteve vinculada a aparelhos responsáveis por implementar políticas que visavam à construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de minérios, principalmente na região amazônica, a exemplo do Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Vale destacar ainda que os presidentes nomeados entre as décadas de 1970 e 1980, em grande maioria, foram militares ou políticos de carreira que pouco se comprometiam com a questão indígena, sendo, por vezes, contrários ao reconhecimento de seus direitos. Em termos administrativos, a Funai se estruturou em bases semelhantes ao SPI, embora com uma gestão mais rígida e burocrática, com atuação em nível nacional, regional e local. Com a aprovação do Estatuto do Índio em 1973 (Lei nº 6.001), que dispõe sobre as relações do Estado e da sociedade brasileira com os índios, as premissas de integração dos indígenas foram reafirmadas, mas com o intuito de isolá-los e afastá-los de áreas consideradas de interesse estratégico para o governo. Para tanto, seguiu-se o 18 UNIUBE princípio do Código Civil de 1916 de que os índios eram “relativamente incapazes” e deveriam ser mantidos em regime tutelar pelo Estado até que estivessem “integrados à comunhão nacional”. Dentro dessa perspectiva assimilacionista, competia à Funai centralizar os projetos de assistência, saúde, educação, habitação, etc., além de limitar o acesso de pesquisadores, órgãos vinculados à Igreja, entre outros apoiadores, às terras indígenas. Na prática, a Funai defendia mais os interesses do governo que dos índios, que não tinham autonomia para buscar seus próprios direitos. Conforme análise do Instituto Socioambiental, O órgão [Funai] foi permeado, em todos os níveis, por redes de relações pessoais, clientelistas e corporativas, que remetem ao paternalismo e ao voluntarismo que dominaram o velho SPI. A criação da Funai foi marcada pela ineficiência, desinteresse e dificuldade de operação, o que levou o órgão a limitar sua intervenção a favor dos índios a situações altamente críticas, conflituosas e emergenciais, consequentes dos planos de colonização e exploração econômica que chegavam aos extremos do país. (ISA, 2018 s/p.) Apesar desse cenário político desfavorável, foi nesse contexto da década de 1970 que surgiu a maior parte das organizações de apoio aos povos indígenas, entre as quais se destacam as Comissões Pró-Índio (CPIs), as Associações Nacionais de Apoio ao Índio (ANAIs), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Operação Amazônia Nativa (OPAN), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), sendo que estas duas últimas se juntaram para fundar o atual Instituto Socioambiental (ISA). Os objetivos dessas organizações eram de conferir apoio à questão indígena, questionar as políticas oficiais, formular alternativas para a causa indigenista e manter a interlocução entre os índios e a Funai. Com o apoio dessas entidades, diversas manifestações indígenas passaram a ter visibilidade a partir da década de 1980, que culminaram no marco jurídico da Constituição de 1988 - da qual trataremos mais adiante. UNIUBE 19 Ainda sobre o Estatuto do Índio, um dos principais pontos do documento é a questão das terras. O Art. 19 determina que as terras indígenas serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob orientação da Funai e homologação do Poder Executivo. O artigo, assim como o Estatuto, vigente até hoje se constitui em base jurídica para outros decretos que surgiram posteriormente para tratar dos procedimentos de demarcação. A questão da terra “Boa parte do Estatuto é dedicada ao tema das terras indígenas, as quais se subdividem, nesta lei, em três categorias: Terras Ocupadas Tradicionalmente, Terras Reservadas e Terras de Domínio dos Índios. O conceito de Terras Ocupadas Tradicionalmente pelos índios advinha dos termos das Constituições de 1967 e 1969. Já as Terras Reservadas seriam aquelas destinadas para os índios pela União em qualquer parte do território nacional, com o fim de permitir a sua posse e ocupação, ficando expressamente consignado na lei que estas não se confundiam com a figura jurídica das terras tradicionais. Isso pressupunha, por exemplo, dependendo do caso, a necessidade de serem indenizados os donos dos eventuais títulos incidentes sobre uma terra que viesse a ser reservada para os índios. Por fim, as Terras de Domínio dos Índios seriam aquelas obtidas pelos meios normais de aquisição, como a compra e a venda, por exemplo. Mas o Estatuto previa que os índios poderiam também adquirir terras por meio do instituto da usucapião que, neste caso, poderia ocorrer quando os índios ocupassem como sendo seu, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a 50 hectares, excluída logicamente, uma vez mais, a ocupação sobre terras tradicionais. No que se refere às Reservas Indígenas, o Estatuto prevê que poderiam se organizar sob diferentes modalidades, entre as quais a Reserva propriamente dita, nos moldes acima explicitados, o Parque Indígena, a PONTO-CHAVE 20 UNIUBE Colônia Agrícola Indígena e o Território Federal Indígena. O Território seria uma unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população fosse formado por índios. Embora a sua aplicação seja possível em algumas regiões do estado do Amazonas, inclusive nos dias de hoje, e no próprio estado de Roraima ao tempo em que ainda não havia adquirido este status político, nenhum Território Federal Indígena foi jamais criado”. (ARAÚJO, 2006, p. 32-33). Por outro lado, o Estatuto determina, em seu Art. 25, que o reconhecimento do direito dos índios à posse das terras não depende de sua demarcação, colocando-o como preexistente. Por esse entendimento, a demarcação das terras é um ato de reconhecimento de uma situação já existente. Contudo, não define claramente que as terras pertençam aos indígenas independentemente de qualquer reconhecimento oficial. Essa interpretação gerou algumas das problemáticas que permeiam as reivindicações dos movimentos indígenas que dizem respeito ao não reconhecimento do seu direito à terra, bem como das invasões e do garimpo em seus territórios. Apesar dos dispositivos legais, na prática o que ocorreu foi um processo de negação dos direitos territoriais indígenas, cuja herança histórica remonta aos tempos coloniais. A demarcação das terras reservada aos índios por vezes eram terras diminutas, sem produtividade, permitindo que grandes áreas e as riquezas ali existentes fossem exploradas por empresas com grande poder econômico. Os inúmeros conflitos e debates políticos que surgiram a partir dessa questão ainda são refletidos nos dias de hoje, sendo a principal pauta de luta pelos direitos indígenas. Somado aos massacres e à desagregação desses povos, definitivamente, o saldo do período militar não foi positivo para os índios. UNIUBE 21 Relatório Figueiredo Depois de45 anos desaparecido, o Relatório Figueiredo, que apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o País – principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) –, ressurgiu quase intacto em abril de 2013. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais. Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno –, o texto, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, deve ser analisado agora pela Comissão da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão avançavam para o interior do país, o SPI era ligado ao Ministério do Interior e funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os únicos registros do relatório disponíveis até então eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para detalhar o que fora constatado por Jader e sua equipe. (MINISTÉRIO Público Federal. ) AMPLIANDO O CONHECIMENTO 22 UNIUBE O Ministério Público Federal, a fim de possibilitar que a população brasileira tenha acesso a tais informações, disponibiliza em sua página a íntegra do relatório. Acesse: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/ grupos-de-trabalho/ violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro- militar/docs-1/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf Obs.: o link para acesso também será disponibilizado na semana de estudos do capítulo. PESQUISANDO NA WEB 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 Como vimos até aqui, os direitos dos povos indígenas foram sendo conquistados e amadurecidos ao longo da formação da nação brasileira, com avanços e retrocessos. Mas a principal conquista se efetivou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após o fim do governo militar, no contexto de criação da nova república. A partir das mobilizações dos movimentos indigenistas e das organizações de apoio, a Constituição rompeu com a tradição assimilacionista legitimada pelas legislações anteriores e reconheceu, pela primeira vez, os direitos à autodeterminação, à diferença, à posse originária sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com usufruto exclusivo, definidos a partir de seus usos, costumes e tradições. Com isso, os índios deixaram, definitivamente, de ser tratados como “relativamente incapazes” e, por conseguinte, o “poder de tutela” do Estado perdeu sua validade. Apesar disso, o Estatuto do Índio ainda UNIUBE 23 vigente mantém o princípio da tutela. Daí a necessidade urgente de promover mudanças na lei ou de se criar um estatuto novo, que esteja em consonância com o ordenamento jurídico atual. A existência da tutela atrapalha a livre expressão política dos índios, a administração direta dos seus territórios, o seu acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito etc. Além de reduzir a capacidade civil dos índios, a tutela é um obstáculo à autogestão das terras e dos projetos de futuro dos povos indígenas. (ISA, 2000, s/p.) Vale ressaltar que, para além dos direitos específicos, a Constituição de 1988 também inclui os indígenas entre os sujeitos de direitos comuns a todo cidadão brasileiro, sendo mencionados em diferentes dispositivos ao longo do texto, a saber: • assegura os direitos fundamentais, entre eles, o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade (Art. 5); • a responsabilidade de defender judicialmente os direitos indígenas inclui-se dentre as atribuições do Ministério Público Federal (Art. 129, V); • legislar sobre populações indígenas é assunto de competência exclusiva da União (Art. 22. XIV); • processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas é competência dos juízes federais (Art. 109. XI); • o Estado deve proteger as manifestações das culturas populares, inclusive indígenas (Art. 215, § 1); • respeito à utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (Art. 210, § 2). Os direitos específicos reservados aos índios são tratados no Capítulo VIII “Dos Índios” (Título VIII Da Ordem Social). Um dos principais pontos diz respeito ao direito originário à posse e ao usufruto da terra. O texto 24 UNIUBE constitucional traz no caput e nos primeiros parágrafos do Artigo 231 a seguinte afirmação: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Portanto, o direito à posse da terra existe e se legitima independente de qualquer dispositivo legal, o que significa dizer que “a demarcação de uma terra indígena, fruto do reconhecimento feito pelo Estado, é ato meramente declaratório, cujo objetivo é simplesmente precisar a real extensão da posse para assegurar a plena eficácia do dispositivo constitucional.” (ISA, 2018 s/p.) No que se refere às Terras Indígenas, a Constituição de 88 ainda estabelece que: • incluem-se dentre os bens da União (art. 20, XI); • são destinadas à posse permanente por parte dos índios (art. 231, § 2); • são nulos e extintos todos os atos jurídicos que afetem essa posse, salvo relevante interesse público da União (art. 231, § 6); • apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 2); UNIUBE 25 • o aproveitamento dos seus recursos hídricos, aí incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, só pode ser efetivado com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra (Art. 231, § 3, Art. 49, XVI); • é necessária lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos nas terras indígenas (Art. 176, § 1); • as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e o direito sobre elas é imprescritível (Art. 231, § 4); • é vedado remover os índios de suas terras, salvo casos excepcionais e temporários (art. 231, § 5). As constituições brasileiras, referentes ao período republicano, reconheceram aos índios alguns direitos sobre os territórios por eles habitados. Somente a Constituição de 1891 não tratou dos interesses relativos aos direitos indígenas. A única referência consta do Art. 64, que transferiu para os Estados o domínio das terras devolutas, entre as quais incluíam-se também as terras indígenas. Vejamos o que determinava as constituições anteriores: Constituição de 1934 “Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”Constituição de 1937 “Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. RELEMBRANDO 26 UNIUBE Constituição de 1946 “Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.” Constituição de 1967 “Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”. Emenda Constitucional número 1/ 1969 “Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes”. (Fonte: ISA, 2018) Apesar dos dispositivos bastante claros e definidos a respeito dos direitos territoriais indígenas, as demarcações ainda hoje são um assunto pendente e polêmico. Embora o texto constitucional, em suas disposições transitórias, tenha fixado um prazo de 5 anos para que todas as terras indígenas estivessem demarcadas, o não reconhecimento desses territórios passa, por vezes, pelo não cumprimento da legislação e pelos mais diversos interesses econômicos que simplesmente ignoram a existência desses povos. O próprio Estatuto do Índio já foi alterado diversas vezes a respeito dessa questão. Uma das últimas propostas pretende transferir a responsabilidade sobre a demarcação das terras do Poder Executivo para o Legislativo. Além disso, são recorrentes as tentativas de aprovar medidas que facilitem a exploração de recursos em terras indígenas e a retirada do direito de consulta aos povos originários, UNIUBE 27 que são contrárias à Constituição e à própria Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse sentido, é importante reconhecer que a nova Constituição estabeleceu novos marcos legais para a manutenção das relações entre os povos indígenas, a sociedade não indígena e o Estado. Mas assegurar na prática o que está posto na Carta Magna ainda é um desafio, pois trata-se de um processo lento e gradual que passa pela conscientização não somente dos órgãos estatais como da própria sociedade brasileira. Nos últimos anos, os indígenas têm se organizado a partir dos movimentos sociais para ampliar a base legal no que se refere aos seus direitos e à sua participação política representativa como cidadão brasileiro. Ao aprovar um capítulo para os índios, a Constituição de 1988 estabeleceu que a política de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois os índios deveriam existir para sempre, vivendo segundo seus usos, costumes, tradições, suas formas de vida e de organização. Esta mudança trazida pela Constituição fez com que o Estatuto do Índio virasse uma lei velha, obrigando o governo a mudar sua política para índios. Por isso, hoje os povos indígenas precisam de uma nova lei, de um novo Estatuto, que exija do governo a proteção e o apoio de que os índios precisam, para que possam tomar suas próprias decisões sem ter que pedir autorização para a FUNAI. Este novo Estatuto deve garantir aos povos indígenas sua sobrevivência como sociedades diferenciadas, incumbindo o governo de prestar serviços básicos de educação e saúde e a apoiar os projetos culturais, econômicos e ambientais dos índios. (ISA, 2000, s/p.) A criação de um novo Estatuto do Índio passa pela necessidade de que sejam incluídas questões já consolidadas por debates jurídicos nacionais e internacionais sobre os direitos indígenas. Em 1994, foi aprovada, por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, uma proposta para criação do “Estatuto das Sociedades Indígenas” (PL nº 2057/91), mas sua 28 UNIUBE tramitação está paralisada. Em 2009, por iniciativa da Comissão Nacional de Políticas Indígenas – que a partir de 2016 se instituiu como Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) –, foi elaborado um projeto substitutivo para criação do “Estatuto dos Povos Indígenas” , que também permanece parado na Câmara dos Deputados. Recentemente, uma nova proposta apresentou uma revisão deste último estatuto por meio de um projeto de Lei (PLS nº 169/2016) que tramita no Senado. O documento, com 175 artigos, define o indígena e trata dos princípios básicos que devem ser garantidos aos povos indígenas quanto à igualdade jurídica, à proteção social, cultural e territorial. CNPI O Conselho Nacional de Política Indigenista, criado pelo Decreto n.º 8.593, de 17/12/15, instalado no dia 27 de abril de 2016, é um órgão colegiado de caráter consultivo, responsável pela elaboração, acompanhamento e implementação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. O CNPI é uma conquista dos povos indígenas na busca por ampliar sua participação na elaboração e execução da política indigenista brasileira. O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro1.3 Diminuir, mistificar e desmerecer o comportamento e o pensamento indígena foi, ao longo da história do Brasil, quase uma necessidade, uma justificativa para o processo civilizador. E, ainda hoje, esses estereótipos nos perseguem. Na maioria das vezes pelo quase desconhecimento que temos sobre os povos indígenas e suas práticas sociais e culturais. Por vezes sequer sabemos como nos referir a eles sem colocá-los numa posição distinta, sem considerá-los como brasileiros, como pertencentes à nossa sociedade. É fato que esses povos, por sua característica étnica marcante, possuem um modo de vida particular. Mesmo com o processo de miscigenação e as inúmeras tentativas de aculturação, os povos indígenas buscaram se integrar à nação brasileira por sua sobrevivência. Isso refletiu no seu UNIUBE 29 modo de vida, nas suas crenças, no seu comportamento social, que levou muitos indígenas a abandonar suas comunidades e viver nas cidades. Os que permaneceram em seu habitat buscam, constantemente, manter seus costumes como forma de preservação de uma cultura milenar. Isso não faz deles seres inferiores ou exóticos. Não os torna cidadãos brasileiros menores, de segunda ou terceira classe. Embora seja esse o pensamento que predomina no senso comum. Ao longo da nossa formação, os índios foram interpretados de diferentes maneiras para atender aos interesses de dominação e submissão desses povos. Essas visões foram elaboradas por um pensamento ideológico predominante desde o período colonial, que ainda hoje permeia o imaginário coletivo, seja por meio da literatura, do cinema ou mesmo da limitada abordagem dos livros didáticos, que, infelizmente, é a principal fonte de informação da maioria dos brasileiros sobre a história dos povos indígenas. É urgente avançarmos no debate dessa questão. Antes de se tornarem os “bons selvagens” pelo olhar dos filósofos iluministas, os índios permaneceram por um longo período entre a barbárie e a humanidade, entre a inocência e a selvageria, entre a indolência e a domesticação, entre o pecado e a salvação. As missões jesuíticas foram o primeiro empreendimento na tentativa de integrar e assimilar o índio à sociedade brasileira. O resultado da catequese foi o produto do sincretismo religioso que hoje está presente em nosso cotidiano. Após a independência, quando se buscou um projeto de identidade nacional, buscou-se a partir de um pensamento liberal integrar o índio à nova nação por meio de um movimento literário indigenista. Os poemas e romances de Gonçalves Dias, José de Alencar, entre outros, contribuíram para compor uma visão romântica sobre os índios, na qual eram representados de forma idealizada, como seres puros, altivos e 30 UNIUBE honrados que estariam na base da formação da nação brasileira. Por esta razão, prevalecia a ideia de um evolucionismo, no qual o indígena seria o mito da criaçãodo Brasil. Posteriormente, em meados do império, as rebeliões e a nova Lei de Terras de 1860 aumentaram o processo de perseguição e extermínio de inúmeras comunidades indígenas. A visão romântica novamente cedeu lugar ao espectro da barbárie e à crença de que a civilização não deveria ser imposta ao índio, pois este não era digno de humanidade. Embora integrado à nação, seu status jurídico passa a ser de “órfão de nacionalidade”, colocado como dependente, relativamente incapaz, considerado como indivíduo irresponsável ou que não teria condições de assumir integralmente suas responsabilidades. Para o positivismo republicano, o índio é uma “criança rebelde”, que precisa ser pacificada. Em razão disso, deveriam ser “protegidos” pelo Estado paternalista, até que estivessem aptos a conviver em sociedade. O resultado desse processo foi a implementação das políticas indigenistas que tratamos nos itens anteriores. Embora o assimilacionismo, o poder tutelar e o assistencialismo ainda estejam presentes nas relações entre índios e não índios, após cinco séculos de lutas e reivindicações, os povos indígenas conquistaram legalmente os direitos de respeito à sua organização social, aos costumes, ao reconhecimento de suas línguas, às crenças e tradições. Ou seja, reconhece-se aos índios no Brasil o direito a serem diferentes culturalmente, de existirem e se manifestarem como índios, seja dentro de seus territórios ou não, sem sofrer qualquer tipo de discriminação. Em 1969 foi realizada uma Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), da qual o Brasil é signatário e reconhece sua competência no combate à discriminação UNIUBE 31 indígena. Sob este aspecto, o Comitê CERD (ISA, 2018) orienta os Estados para que reconheçam e assegurem em suas legislações: • o respeito às culturas, às histórias, às línguas e aos modos de vida indígenas como forma de enriquecer a identidade cultural dos Estados e promover sua preservação; • que os membros dos povos indígenas sejam livres e iguais em dignidade e direitos e estejam livres de qualquer discriminação, em especial da discriminação fundada na sua origem ou identidade indígena; • a garantia aos povos indígenas das condições que permitam o desenvolvimento econômico e social sustentável e compatível com suas características culturais; • que os membros dos povos indígenas tenham direitos iguais no tocante à efetiva participação na vida pública e que nenhuma decisão relacionada a seus direitos e interesses seja tomada sem o seu consentimento informado; • que as comunidades indígenas exercitem seu direito de praticar e revitalizar suas tradições culturais e costumes e que preservem e usem suas línguas. Ao contrário do que se pensava, os indígenas não desapareceram nem foram totalmente assimilados pela cultura ocidental que herdamos. Nos últimos anos, muitas etnias vêm recuperando suas origens e costumes. Muitos indígenas mudaram seu comportamento perante a sociedade brasileira e buscam conviver em meio aos demais. O índio não se parece mais com o “bom selvagem”, como nós o romanceamos. Isso causa um certo “estranhamento” e não se sabe mais como interpretá-lo. Nos últimos 30 anos, a vida dos povos indígenas mudou. As relações das comunidades indígenas e de suas lideranças com o mundo dos brancos se tornou muito mais frequente. Os índios passaram a compreender muito melhor como vivem os brancos e quais são suas leis. Os índios também criaram organizações e passaram a estar presentes em reuniões e eventos nacionais e internacionais para 32 UNIUBE defender seus direitos. Hoje, muitas comunidades indígenas veem televisão, ouvem rádio e acompanham o mundo que gira fora de suas aldeias. Muitos índios ocupam cargos importantes como funcionários da FUNAI. Talvez possamos afirmar que as mudanças nas relações entre índios e brancos nestes últimos 30 anos foram mais profundas que as dos 470 anos anteriores. (ISA, 2000, s/p) Este talvez seja o grande desafio da historiografia atual: reinterpretar o indígena, desvencilhando sua imagem dos estereótipos e preconceitos construídos socialmente. Não podemos considerar os povos indígenas como sociedades do passado, estáticas. Ao contrário, devemos reconhecer e valorizar sua identidade étnica, compreender a especificidade de suas culturas, as formas tradicionais de organização e uso das terras e recursos e, acima de tudo, respeitar os direitos coletivos e individuais como forma de se promover um intercâmbio cultural. Seus conhecimentos, territórios e valores ajudaram a construir o Brasil, portanto os povos indígenas fazem parte da nossa sociedade, cujos direitos e modos de vida devem ser assegurados, assim como os de qualquer cidadão brasileiro. Conclusão1.4 Compreender o indígena com elemento fundador da sociedade brasileira não tem sido tarefa fácil. A História aliada a outras ciências, como a Antropologia e a Sociologia, tem se esforçado em promover uma visão da historiografia nacional que não seja excludente ou ufanista. Daí a importância de se abordar a temática indígena (e também a africana) sob um viés sociocultural, que aprofunde o debate sobre o respeito e a convivência mais tolerante com as diversidades. Nesse processo, os movimentos indígenas têm papel fundamental em buscar o reconhecimento de seus atores políticos e exigir mudanças significativas nas políticas públicas, principalmente educacionais, no UNIUBE 33 sentido de garantir sua cidadania étnica, ou seja, a inclusão do indígena nas instituições políticas e sociais existentes. Esta talvez seja a pauta mais recente no processo de conquista de direitos que tratamos aqui. O conceito de cidadania étnica inclui não só a participação política, mas defende condições materiais de existência e sobrevivência dos povos nativos, a defesa contra a violência e a preservação de sua identidade e tradições culturais. Este é um movimento que já existe em diferentes países da América Latina em que comunidades indígenas reivindicam direitos de autodeterminação e lutam por seu reconhecimento junto ao Estado. A garantia de direitos de cidadania a segmentos sociais marginalizados ganhou maior expressividade a partir da Declaração Universal do Direitos Humanos (1948) e, mais recentemente, pela aprovação, em 2007, da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (DDPI), cujo documento reconhece o direito de autonomia e autogoverno dos povos indígenas como nações preexistentes aos Estados nacionais. Mas o que isso quer dizer? Significa que a temática indígena deixou de ser uma questão étnica, antropológica e social para se tornar também política. Para além de seus direitos referentes às constituições de cada país, os povos indígenas possuem direitos universais orientados por uma política internacional. Particularmente, no caso da América Latina, que abriga cerca de 10% da população indígena mundial, a fundamentação desses direitos afeta um alto índice de pessoas que ainda vive sob o signo da exclusão social. Cabe a nós, enquanto sociedade, a corresponsabilidade de que as políticas públicas e de cidadania referentes aos indígenas sejam efetivadas na prática, reafirmando nosso compromisso de construir uma sociedade democraticamente justa. 34 UNIUBE Resumo Neste capítulo, dedicamo-nos a apresentar os dados da população indígena no Brasil: quem são? Quantos são? Onde estão?, entre outras informações relevantes com base nos dados organizados pelo Censo do IBGE, pela Funai e outros órgãos governamentais, a exemplo do Instituto Socioambiental. Conhecemos também a trajetória histórica das principais políticas indigenistas e de que maneira elas atuaram no sentido de promover uma integração do índio à sociedade brasileira. A ampliação dos direitos indígenas a partir da Constituição de 1988 é o ápice das conquistas empenhadas pelos movimentos indígenas e que hoje passa por um momento de reafirmação. Por fim, propomos uma reflexãoa partir da “visão do outro”, no sentido de anular estereótipos socialmente construídos, reconhecer sua cidadania e promover uma conscientização sobre o respeito à diversidade étnica indígena como matriz cultural fundadora da nossa sociedade e identidade nacional. Referências AFONSO, Germano Bruno (Org.). Ensino de história e cultura indígenas. Curitiba: InterSaberes, 2016. ARAÚJO, Ana Valéria [et all]. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Acesso em: 15 out. 2018. BRASIL. Ministério da Justiça. Estatuto dos Povos Indígenas. Proposta da Comissão Nacional de Política Indigenista. Brasília: CNPI, 2009. 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Assim, é importante considerar que um povo indígena se difere de outros principalmente no que diz respeito à diversidade de visões de mundo. Apesar de possuir alguns elementos em comum, as identidades indígenas se constituíram historicamente dentro de cada etnia, adquirindo traços particulares que as diferenciam entre si. Mediante tal diversidade, não pretendemos aqui abarcar todas elas. Vamos priorizar algumas manifestações que já são de conhecimento geral dos brasileiros, por estarem também inseridas em nossa cultura popular, e outras mais específi cas, presentes nas diferentes etnias, no intuito de nos aproximarmos das culturas indígenas, conhecê-las mais de perto e reduzir visões estereotipadas e preconceituosas. 38 UNIUBE Objetivos A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • Analisar as principais tradições, costumes, crenças e valores culturais que caracterizam a experiência social indígena no Brasil. • Conhecer as formas de expressão cultural indígena mais significativas, no que tange às artes, à religiosidade e à literatura. • Reconhecer as manifestações culturais indígenas como patrimônio material e imaterial. • Compreender a diversidade dos saberes indígenas e valorizá- los como parte integrante da nossa formação sociocultural. • Adquirir subsídios sobre o conhecimento da cultura indígena que possibilitem ampliar a abordagem sobre essa temática em sala de aula. Esquema 2.1 As manifestações culturais indígenas 2.2 Artes indígenas: patrimônio material e imaterial 2.3 Cosmologia e religiosidade indígena 2.4 Línguas e Literatura: da oralidade à escrita 2.5 Conclusão Os Povos Indígenas têm direito a que a dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações, sejam adequadamente refletidas na educação pública e nos meios públicos de informação. Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas [Art.15] UNIUBE 39 As manifestações culturais indígenas2.1 O reconhecimento pela Constituição de 1988 de que os povos indígenas possuem especificidades culturais e que têm o direito de viver conforme suas visões de mundo, de ter autonomia sobre sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (Art. 231) trouxe consequências diretas às políticas educacionais no sentido de promover novos saberes sobre esses povos e permitir o desenvolvimento de uma educação escolar indígena. Ainda hoje é bastante comum que as pessoas vejam os índios atuais com as ideias que lhes foram passadas na escola básica, de que são povos que pertencem ao passado, com culturas atrasadas e primitivas, não produtores de saber científico. O “índio autêntico” é aquele descrito na Carta de Pero Vaz de Caminha, nu ou de tanga, que vive no meio da floresta, de arco e flecha. Não o índio que convive conosco, até porque “brasileiro não é índio”, já que predomina entre nós a cultura ocidental. Aos índios não foi dado o direito de se modificar, de se transformar culturalmente, como qualquer povo. A principal consequência desse pensamento foi o isolamento histórico, que não nos
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