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adequadamente esse ―colapso ontológico‖ (que de fato se realiza plenamente com o modernismo), então talvez seja preciso retroce- der no tempo e considerá-lo dentro de uma ―grande onda de cultura‖, como propõe Vassíli Tolmachóv13, ao lado de Robert Curzius, Arnold Joseph Toinbee e Michel Foucault. A subjetividade baseada na liberdade do criador, ou a separação do sujeito e o objeto, que no modernismo se separa de si mesmo, teria começado entre os sé- culos XVIII e XIX. O simbolismo, nesse fluxo cultural, traz em si um processo de reco- nhecimento do subjetivo iniciado com o romantismo, e não se exclui o naturalismo disso (a propósito, conceito de escola pouco útil à literatura russa): [...] foi precisamente o simbolismo que problematizou a experiência da sub- jetividade, acumulada no século XIX, e tentou desenvolvê-la, partindo de um princípio seu, o esteticismo e a utopia conservadora, para outro – a revolu- ção, a utopia liberal do futuro. (TOLMACHÓV, 2005, p.33) Essa subjetividade acumulada no simbolismo, de acordo com Tolmachóv, já não é clássica, pois não traz o todo. Pela sua definição clássica, o símbolo é a possibi- lidade de alcançar a totalidade ideal: O verbo ―simbolon‖ significa ―ligar‖. E ―símbolo‖ é a manifestação dessa liga- ção, ligação da parte imperfeita e do ideal, o todo perfeito. [...] O símbolo, desse modo, é um atributo da aspiração à beleza superior, um signo material de reconhecimento de Deus, o qual abarca em maior ou menor grau todas as esferas da atividade humana, inclusive a criação. (TOLMATCHÓV, 2005, p.20) _____________ 12 McGUINESS, Patrick (Org. e prefácio). Symbolism, Decadence and the Fin de siècle: French and European Perspectives. Exeter: UK, University of Exeter Press, 2006. 13 TOLMACHÓV, V. Sobre as fronteiras do simbolismo. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.) Tipologia do simbolismo do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. 20 No platonismo a busca do ideal envolve uma ―subjetividade clássica‖, na qual o criador não se coloca como criador, mas como parte da criação, e a mimetização mostra-se um meio coerente de se chegar à ―beleza superior‖. No simbolismo do século XIX esse ―todo perfeito‖ é a busca de um artista que se sabe artista, ―o ‗eu‘ estabelece uma auto-referência‘‖, e tudo se articula já por outro tipo de subjetivi- dade, ―não clássica‖. Por isso, diz Vassíli Tolmachóv (2005, p.22), o simbolismo do sé- culo XIX ―é radicalmente diferente do que havia na cultura medieval‖. A ideia de um aprofundamento de uma subjetividade ―não clássica‖ na cultura ocidental, ou de que entre os séculos XVIII e XX houve ―uma extensão cultural à parte [...] em que a história se transforma em contemporaneidade‖ (TOLMACHÓV, 2005, p.21), certamente liberta de alguma maneira o estudioso da velha divisão de estilos, mas, imbuído apenas dessa perspectiva, particularidades acabam por diluir-se. E não se quer perder a chance de entender por que, por exemplo, um simbolista teria cla- mado por sinestesias e aliterações, enquanto um futurista pela abolição da métrica e da pontuação. O estudioso da arte precisa tentar articular sua análise, por mais singular que seja o tema, em vários planos de leitura. É preciso pensar que a subjetividade eviden- ciada no simbolismo traz também uma forma única de expressão, assim como car- rega marcas de um processo de subjetivação que nasce junto com a poética. A se- miologia russa, cuja formação deve muito aos estudos de Vladímir Propp (1895- 1970), hoje representada por nomes como Iuri Lótman (1922-1993) e Eliazar Meletínski (1918-2005), articula com muita competência e originalidade elementos que se perpetuam ao mesmo tempo em que se transformam, sendo sobretudo por essa lógica que a pesquisa tentará se orientar. A propósito, Lótman enxerga no símbolo o paraíso da semiótica, uma semiótica simbolista. Ele assim o coloca: O símbolo atuará como algo não homogêneo ao seu espaço textual circun- dante, como mensageiro de outras épocas culturais (=outras culturas), como 21 recordação das bases antigas (=eternas) da cultura. Por outro lado, o sím- bolo correlaciona-se ativamente com o contexto cultural, transforma-se sob a influência deste e também o transforma 14 . 2. Anotações do simbolismo russo Ainda que a pesquisa não se oriente fixamente por uma divisão de escolas, não há como evitá-la, por isso ela será considerada, mas entre fronteiras fluidas. Além disso, a definição em si de simbolismo é um pouco lacunar, pois, como observou Tolmachóv (2005), apesar de haver excelentes estudos isolados, não se fez ainda uma tipologia do simbolismo que tenha levado em consideração seus diferentes repre- sentantes entre meados do século XIX e início do XX. Ainda se sustenta como selo simbolista a imagem de um grupo de dândis alienados e da França como sua grande mentora intelectual: [...] a literatura francesa é reconhecida como o centro do simbolismo mun- dial, e os tímidos esboços de simbolismo, em outros países, reduzem-se ao estabelecimento ou à negação da influência francesa. (TOLMACHÓV, 2005, p.16) A expressão multifacetada do movimento é normalmente ignorada: apesar da ascendência francesa, em cada parte se refletiu um contorno do simbolismo – houve o simbolismo alemão, o simbolismo italiano, o simbolismo belga, o simbolismo ro- meno, entre outros tantos. Além de assumirem características particulares, esses sim- bolismos não pertenceram ao mesmo período nem tiveram o mesmo impacto em suas culturas. O simbolismo russo evidenciou marcas muito singulares, pois, afora o fato de tratar-se de uma realidade sociocultural muito diferente da europeia, embebeu-se mais da própria cultura do que de influências externas: Os simbolistas russos aceitaram Dostoiévski como um mestre e precursor, ao lado de Vladímir Solovióv. Com efeito, não obstante as origens francesas, o _____________ 14 LÓTMAN, I. O símbolo no sistema da cultura. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.) Tipologia do simbolismo do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p.50. 22 simbolismo russo logo encontrou raízes nacionais para a sua reação ao posi- tivismo, ao naturalismo e ao materialismo vulgar da época 15 . E a Rússia devolveu ao mundo um simbolismo ampliado, com perspectivas e conceituações originais, tornando-se ―um espelho do simbolismo ocidental‖: Ou seja, precisamente na Rússia, no primeiro decênio do século XX, o simbo- lismo, inicialmente calcado no francês, foi em seguida enriquecido e apre- sentou-se como problema de toda a cultura, que superou as fronteiras naci- onais. (TOLMACHÓV, 2005, p.33) O movimento simbolista russo foi organizado na passagem do século XIX para o XX, e seu momento de evidente efervescência aconteceu no primeiro decênio dos 1900. O poeta Dmítri Merejkóvski (1866-1941), com o ensaio de 1892 O pritchínakh upádka i o novykh tetchiéniyakh sovremiénnoi russkoi literatury (Sobre as causas do declínio e as novas tendências contemporâneas da literatura russa), é comumente apontado como o precursor do simbolismo russo, seguido de Nikolai Mínski (1855- 1937), Konstantin Balmont (1867-1942) e Valiéri Briussóv (1873-1924), sendo os dois últimos representantes de Moscou. Fiódor Sologub (1863-1927) é normalmente identificado com a primeira geração de simbolistas de Petersburgo. Com o fim da década de 1910, obras ligadas unicamente à corrente tornaram-se mais raras, tendo quase desaparecido na década seguinte, contrariamente aos reflexos do movimento. O simbolismo na Rússia,