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Quim. Nova, Vol. 36, No. 7, 931, 2013 Ed it or ia l O LEGADO DE NIELS BOHR No ano de 1913, três manuscritos publicados no periódico Philosophical Magazine, de autoria do físico dinamarquês Niels Bohr, sob o título “On the Constitution of Atoms and Molecules”, iriam estabelecer as sementes para a descrição quantitativa da estrutura eletrônica de átomos e moléculas. Estes trabalhos pioneiros de Bohr iriam impactar a Química em diversos aspectos fundamentais tais como a estrutura ele- trônica dos elementos e sua relação com o conceito de valência, a relação entre periodicidade e configuração eletrônica, e nos princípios básicos da espectroscopia. Nada mais oportuno, portanto, do que a iniciativa da Química Nova em comemorar o centenário deste marco histórico da ciência e prestar uma homenagem e uma reflexão sobre o legado dos trabalhos de Niels Bohr. Em dois trabalhos deste número da QN, Carlos Alberto Lombardi Filgueiras e João Pedro Braga, conceituados pesquisadores brasileiros na área da Química que cultivam também grande interesse e curiosidade pelo desenvolvimento das ideias e teorias da Química, apresentam, com riqueza de detalhes, os aspectos históricos da contribuição científica de Bohr e o modelo físico idealizado por Bohr para descrever átomos e moléculas simples. Uma série de resultados experimentais obtidos em diversos laboratórios de Física, principalmente na Europa, nos pri- mórdios do século 20, causaram grande rebuliço científico e desencadearam a busca de modelos adequados para descrever a estrutura da matéria do ponto de vista microscópico. Os pri- meiros anos do século 20 vivenciaram também o surgimento do que se convenciona chamar a teoria quântica antiga formulada a partir da interpretação da radiação do corpo negro por Planck e da capacidade calorífica de sólidos por Einstein, e da intro- dução do conceito do fóton. Entretanto, coube a Bohr o grande mérito de propor um modelo teórico para a estrutura eletrônica de átomos, que baseado no modelo planetário introduzido por Rutherford em 1911, era capaz de explicar quantitativamente os espectros de emissão conhecidos na época, notadamente a série de Balmer do hidrogênio atômico, e daqueles que viriam ser observados em anos subsequentes. A abordagem de Bohr partia de uma análise das condições necessárias para que um sistema de elétrons, girando numa órbita circular em torno de um núcleo fixo contendo cargas positivas, atingisse estabilidade mecânica. Bohr concluiu que as equações da mecânica clássica eram incapazes de prever a estabilidade mecânica destes sistemas, e lançou dois postula- dos quânticos importantes: i) a existência de estados estacioná- rios associados com a quantização do momento angular orbital do elétron e a introdução do número quântico principal, e ii) um mecanismo discreto para emissão e absorção de radiação eletromagnética associado a transições entre dois estados estacionários (quânticos). Este mesmo critério de estabilidade mecânica foi utilizado no terceiro artigo de Bohr para descrever a estrutura eletrônica da molécula de hidrogênio, ilustrado no artigo de C. A. L. Filgueiras, J. P. Braga e N. H. T. Lemes nesta edição. Ao contrário da maioria dos físicos da época, Niels Bohr se interessou em problemas mais diretamente relacionados com Química. Este interesse, frequentemente atribuído à grande amizade com o físico-químico húngaro George de Hevesy (ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1943), resultou na extensão da teoria de Bohr não somente para átomos “hidrogênicos”, mas também para átomos polie- letrônicos. A abordagem de Bohr nesta fase consistiu em analisar o número de elétrons passíveis de serem acomodados em sucessivas orbitas. Apesar do sucesso na descrição do átomo de hidrogênio, o modelo de Bohr para átomos polie- letrônicos, e a distribuição de elétrons em sucessivas orbitas, teve que ser ajustado de uma maneira um tanto arbitrária para corresponder a periodicidade e valência dos elementos químicos. Entretanto, as ideias de Bohr foram fundamentais para descrever a tabela periódica dos elementos químicos em função da configuração eletrônica dos átomos. A conexão dos trabalhos de Bohr com problemas mais relacionados com a Química também pode ser associada a sua interação frequente com grandes químicos contemporâneos da Dina- marca como Niels Janniksen Bjerrum, que iria aproveitar os conceitos espectroscópicos de Bohr para estudos pioneiros relacionados com vibrações e rotações moleculares, Johannes Nicolaus Brønsted e Jens Anton Christiansen. Evidentemente, o modelo de Bohr teve o seu maior su- cesso na interpretação de espectros atômicos. De um lado, a sua teoria foi capaz de reproduzir o valor exato da constante de Rydberg, e a sua teoria se mostrou muito útil para explicar fenômenos importantes como a variação do comprimento de onda dos raios-X emitidos pelos elementos químicos e sua relação com a carga nuclear corrigida pela blindagem do elé- tron interno da camada K (lei de Moseley). Este conceito de blindagem pelos elétrons internos foi também utilizado para interpretar os espectros atômicos dos metais alcalinos, e seria eventualmente incluído, algumas décadas depois, por Slater ao propor as chamadas funções monoeletrônicas de Slater utilizadas para cálculos simples de Química Quântica. Apesar do sucesso do modelo de Bohr em reproduzir de maneira exata o espectro eletrônico do hidrogênio atômico e de átomos semelhantes, os químicos da época não foram ime- 932 Quim. Nova diatamente receptivos às ideias de Bohr. A ênfase no critério de estabilidade mecânica para descrever a estrutura eletrônica do átomo foi considerada muito complicada e pouco familiar para químicos acostumados com uma ciência puramente empírica. Este mesmo tipo de modelo para moléculas, baseado num modelo físico dinâmico, contrastava com o modelo estático introduzido por G. N. Lewis que privilegiava o compartilha- mento de um par de elétrons para descrever a ligação química, conceito que iria eventualmente ser amplamente explorado por Pauling. Contudo, os resultados quantitativos dos primeiros cálculos moleculares de Bohr apresentaram grande novidade. Por exemplo, as primeiras experiências de Langmuir, ao redor de 1915, indicavam uma energia de ligação de 84 kcal mol-1 para a molécula de hidrogênio, valor não muito distante do va- lor previsto de 63 kcal mol-1 pela molécula de Bohr. A extensão deste modelo para moléculas poliatômicas não foi muito bem sucedida e a estabilidade prevista por Bohr para a molécula duvidosa de H3 só iria ser demonstrada espectroscopicamente por Herzberg em 1979 como sendo uma molécula de Rydberg, melhor representada como um íon H3+ ligado a um elétron num orbital muito distante. Niels Bohr recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1922, mas a sua contribuição para a Química pode ser avaliada pelo fato de ter sido proposto em duas ocasiões, 1920 e 1929, para o Prêmio Nobel de Química por químicos da Alemanha. A partir da década de 1920, e com o declínio da antiga teoria quântica, Bohr começou a se afastar progressivamente de sua conexão com problemas de natureza química. Esta mudança de interesse teve muito a ver com a sua inclinação pela física teórica rigorosa e pelas inconsistências do modelo físico utilizado por Bohr que incorporava condições artificiais e de difícil justificativa para compatibilizar o conceito de es- tabilidade de órbitas progressivamente mais complexas com configurações eletrônicas. Os trabalhos e ideias de Bohr tiveram outras contribuições marcantes na Química, como a derivação do momento mag- nético do elétron e a formulação da grandeza conhecida como magnéton de Bohr, fundamental em fenômenos de ressonância magnética e susceptibilidade magnética. Da mesma maneira, o princípio de correspondênciaou a convergência do compor- tamento quântico para comportamento clássico no limite de números quânticos elevados representou um grande avanço na compreensão da junção suave entre fenômenos quânticos e fenômenos clássicos. Niels Bohr teve uma atuação intensa durante a Segunda Guerra Mundial, atuando na Dinamarca, na Inglaterra e nos Estados Unidos. As suas preocupações humanísticas e a profundidade dos seus pensamentos estão retratadas em duas excelentes coleções de artigos publicadas em 1934 e 1957 sob os títulos de Atomic Theory and the Desciption of Nature e Atomic Physics and Human Knowledge. Nas palavras de cientistas que participaram desta época dourada da ciência, Niels Bohr foi um verdadeiro cavalheiro da ciência. O legado histórico de Bohr é visível até hoje, e seu modelo planetário do átomo, embora totalmente superado, ainda é utilizado rotineiramente em livros textos de Química como uma introdução a uma visão física da estrutura dos átomos. Esta lembrança histórica e a contribuição à descrição atômica dos elementos químicos fazem parte do legado do Niels Bohr à Química. José M. Riveros Instituto de Química, Universidade de São Paulo CCNH, Universidade Federal do ABC Quim. Nova, Vol. 36, No. 7, 1073-1077, 2013 As su nt os G er ai s *e-mail: calfilgueiras@gmail.com O CENTENÁRIO DA TEORIA DE BOHR João Pedro Braga e Carlos A. L. Filgueiras* Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte – MG, Brasil Recebido em 24/6/13; aceito em 1/7/13; publicado na web em 19/7/13 THE CENTENNIAL OF BOHR’S THEORY. The year 2013 marks the centennial of that wondrous year in which Niels Bohr proposed a novel theory about the constitution of atoms and small molecules after which the way we regard atoms and their behaviour began to be drastically altered. Bohr drew on several sources for his original description of the atoms, most importantly on spectroscopy and Balmer’s equation thereof, the new quantum hypothesis advanced a few years earlier by Planck, and the planetary atom proposed by Rutherford. Although Bohr’s ideas were to be eventually overtaken by the advent of quantum mechanics, his theory was the basis of a new thinking about atoms and molecules which constitutes an invaluable asset in the development of science ever since. Keywords: Niels Bohr; Bohr’s Theory of atoms; the constitution of atoms and molecules. INTRODUÇÃO No ano de 2013 completa um século aquele annus mirabilis em que o físico dinamarquês Niels Bohr publicou sua teoria sobre a constituição dos átomos. Essa foi a primeira explicação da estrutura atômica a lançar mão de pressupostos quânticos, criando uma cliva- gem com as teorias clássicas precedentes e abrindo o caminho para o entendimento moderno do átomo. Ao publicar o primeiro de seus artigos de 1913 que subitamente o lançaram à vanguarda da ciência mundial, Bohr era um jovem de 28 anos que só havia até então pu- blicado três artigos de seu tempo de estudante.1 A fórmula do suíço Johann Balmer, de 1885, que explicava nu- mericamente, de forma simples, os valores de absorção ou emissão de energia radiante no átomo de hidrogênio, o conceito de quantum de energia proposto por Max Planck em 1900, e o modelo planetário do átomo de Ernest Rutherford, de 1911, foram os três alicerces fundamentais no desenvolvimento da teoria do átomo de Niels Bohr, elaborada e publicada em 1913. AS PRIMEIRAS DÉCADAS DA VIDA DE BOHR Niels Henrick David Bohr (1885-1962) nasceu em Copenhagen, filho de um professor de Fisiologia na Universidade de Copenhagen, Christian Bohr (1855-1911). Ele teve uma irmã, Jenny (1883-1933), e um irmão, Harald (1887-1951), que se tornou um importante matemático. A Figura 1 mostra os irmãos Bohr e seu pai em 1906. A educação de Bohr se deu na Universidade de Copenhagen, onde ele obteve sua formação científica, defendendo uma tese de doutorado em 1911 intitulada “Estudos sobre a Teoria Eletrônica dos Metais”, cujo tema já tinha sido parcialmente esboçado no mestrado, finalizado em 1909. Em 1912 Niels Bohr se casou com Margrethe Nørlund, com quem teve seis filhos. Um deles, Aage Niels Bohr (1922-2009), ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1975, assim como seu pai em 1922.2 Bohr viria a fundar o Instituto de Física Teórica da Universidade de Copenhagen em 1920, o qual viria a ter seu nome mudado para Instituto Niels Bohr. Bohr tinha um espírito inquieto e sempre se interessou por toda a ciência, e não apenas a Física, o que é bem ilustrado pelo seguinte episódio. O trabalho precoce de Henry Moseley (1887-1915) em Manchester com Ernest Rutherford (1871-1937) mostrou que ao bombardear-se um alvo metálico com raios catódicos, o alvo emitia raios X com uma frequência característica do metal. Os quadrados das frequências dos raios X emitidos dão uma sequência numérica, chamada série de Moseley. Esta sequência é hoje a série de números atômicos, que vieram a substituir as massas atômicas no ordenamento dos elementos na Classificação Periódica. O trabalho de Moseley cobriu desde o alumínio (Z=13) ao ouro (Z=79), prevendo a existência dos elementos 43, 61, 72, 75, 85, 87 e 91. Com base em seu conhecimento da estrutura atômica dos ele- mentos, Niels Bohr previu que o elemento 72 seria quimicamente diferente do lutécio, ou seja, não seria uma nova terra rara, mas sim um elemento análogo ao zircônio. O químico francês Georges Urbain (1872-1938) havia tentado por muito tempo, infrutiferamente, encontrar o elemento 72 em resíduos de terras raras. A partir de sua teoria quântica, Bohr havia construído uma Tabela Periódica com Figura 1. Niels Bohr, seu irmão, o matemático Harald Bohr, e o pai de ambos, Christian Bohr, professor de Fisiologia na Universidade de Copenhagen, em foto de 1906. Foto cedida gentilmente pelo Arquivo Bohr, Copenhagen Braga e Filgueiras1074 Quim. Nova os grupos dispostos horizontalmente e os períodos na vertical, ao contrário das tabelas modernas. Com o conhecimento de sua teoria de constituição dos átomos, ele opinou que o novo elemento deveria ser quadrivalente, e não trivalente, por isso não deveria ser uma nova terra rara, e sim um elemento do grupo do zircônio. Ele então aconselhou o húngaro George de Hevesy (1889-1966) a procurar o elemento 72 em minerais de zircônio, o que de Hevesy e o holandês Dirck Coster (1889-1950) fizeram em Copenhagen, isolando o novo elemento em 1923. Ele ganhou o nome de Háfnio em homenagem à cidade de Copenhagen, cujo nome latinizado é Hafnia.3,4 Hoje, outro elemento, o de número atômico 107, é chamado bóhrio em homenagem a Niels Bohr. Bohr gostava de usar as palavras da forma mais precisa possível, como os termos de uma fórmula matemática. Quando jovem, após seu doutorado em Copenhagen, foi a Cambridge em 1911 estudar com Joseph John Thomson (1856-1940), o famoso Cavendish Professor of Physics daquela universidade britânica. Bohr tinha alguma dificuldade no uso da língua inglesa. Ninguém o entendia quando falava de uma propriedade do elétron que ele chamava de “load”. Só algum tempo mais tarde ele próprio descobriu que a palavra inglesa para carga era “charge”. Para corrigir seus erros, comprou um dicionário e a obra completa de Charles Dickens, lendo tudo e anotando as palavras que não conhecia, com ajuda do dicionário.5 Seu inglês defeituoso fez com que ele não causasse boa impressão em J. J. Thomson, levando-o, em parte, a decidir mudar de instituição e trabalhar com Ernest Rutherford na Universidade Victoria, em Manchester. Sua ligação com Rutherford mostrou-se providencial. Ele foi um dos primeiros físicos a perceber a importância do conceito de quantum de Max Planck, introduzido em 1900, o que lhe foi de suma importância quando se propôs a en- tender teoricamente o modelo atômico planetário de Rutherford,que descartava o modelo atômico anterior de J. J. Thomson, comumente chamado de pudim de passas, que supunha as partes positivas e os elétrons em contacto íntimo. Entre as muitas histórias anedóticas a respeito de Bohr, é inte- ressante relatar a seguinte. Em 1916, criou-se para ele uma cadeira de Física Teórica na Universidade de Copenhagen. De acordo com a praxe, os novos catedráticos eram apresentados ao Rei da Dinamarca, Christian X. Este, ao cumprimentar Bohr, disse como estava feliz de encontrar um jogador de futebol tão famoso. Bohr retrucou que Sua Majestade deveria estar pensando em seu irmão Harald, que tinha jogado pela Dinamarca nos Jogos Olímpicos de 1908. O Rei ficou irritado de ser desmentido em público, o que fez Bohr dizer que ele também jogava como goleiro, mas não era o famoso jogador a que o Rei se referira. Ao ouvir isto o Rei exclamou: “A audiência acabou!”6 O MISTÉRIO DA DESCONTINUIDADE NAS RAIAS ESPECTROSCÓPICAS É interessante que a espectroscopia atômica estava bem menos ligada ao resto da física na segunda metade do século XIX que hoje, embora fosse tão fundamental para os químicos, que a usaram para descobrir vários elementos novos, desde que Robert Bunsen e Gustav Kirchhoff se uniram para inventar o espectroscópio em 1859.7 A partir de experimentos realizados com o sódio, Kirchhoff publicou em 1859 suas três leis da espectroscopia: 1. Um corpo incandescente emite um espectro contínuo; 2. Um corpo excitado, como o sódio em forma de vapor, emite um espectro discreto, formado por linhas brilhantes; 3. Quando a luz branca passa através do vapor de um elemento, o espectro resultante apresenta linhas escuras de absorção, nas frequências em que o vapor emite linhas brilhantes.8 Usando o novo espectroscópio por eles inventado, Bunsen e Kirchhoff descobriram dois novos elementos, o césio, em 1860, e o rubídio, em 1861. O césio foi descoberto em águas minerais de Dürkheim, e o rubídio em resíduos alcalinos extraídos do mineral lepidolita. O césio apresenta linhas na faixa do azul, donde seu nome (cesius era a cor do firmamento em latim), ao passo que o rubídio tem suas linhas no vermelho, por isso o nome derivado de rubi.8 Vários outros elementos foram descobertos sucessivamente pela espectroscopia atômica, mas o caso mais espetacular aconteceu em 1868. O astrônomo francês Pierre Janssen (1824-1907) foi naquele ano à Índia para observar um eclipse total do sol e realizar o primeiro estudo espectroscópico de sua cromosfera. Ele percebeu no espectro solar uma linha na faixa do amarelo (D3), que não coincidia com a linha D do sódio, e que ele era incapaz de repetir no laboratório. O astrônomo inglês Sir Norman Lockyer (1836-1920) interessou-se pelo assunto e mostrou que a nova linha era distinta das linhas de qualquer elemento conhecido, atribuindo-a a um novo elemento desconhecido na terra, e chamando-o hélio, do nome do deus grego do sol. Finalmente, em 1895, Sir William Ramsay (1852-1916) conseguiu mostrar que quando o mineral de urânio denominado cleveíta é tratado com ácidos fortes, libera uma mistura de gases, compreendendo o nitrogênio, o argônio e um outro gás com linhas espectrais diferentes. Enviando uma ampola com amostra deste gás para Lockyer e William Crookes (1832-1919), que dispunham de melhores espectroscópios, foi possível provar sem qualquer dúvida que se tratava do mesmo elemento descoberto 27 anos antes no sol.9 Esta descoberta de um novo elemento no sol quase três décadas antes de o mesmo ser descoberto na terra mostrou a imensa importância da espectroscopia na análise química e na identificação das propriedades individuais de cada elemento. Um grande problema que permanecia insolúvel, contudo, era como relacionar entre si os diferentes valores das frequências das raias espectrais de cada elemento. Várias tentativas foram feitas, supondo algum modelo vibracional harmônico ou anarmônico, mas todas essas tentativas levaram ao fracasso. A EQUAÇÃO DE BALMER O problema da relação entre as frequências espectrais foi muito discutido por físicos, químicos e astrônomos, mas foi um mate- mático, o suíço Johann Jakob Balmer (1825-1898), que conseguiu resolvê-lo. Balmer obteve um doutorado em matemática e passou a vida como professor dessa disciplina numa escola secundária para moças em Basiléia. Como já se disse aqui, os físicos tentavam achar uma relação para as linhas espectrais baseando-se numa analogia mecânico-acústica, e buscavam expressões harmônicas simples que explicassem essas relações. Talvez por não ser físico e sim matemáti- co, isto é, por não partir de posições preconcebidas, Balmer chegou em 1885 à equação que hoje traz seu nome e que expressa perfeitamente a relação numérica das linhas do espectro conhecido à época para o hidrogênio. A equação de Balmer, que todo estudante de química geral aprende, é modernamente formulada como: em que λ = comprimento de onda correspondente à linha espectral (em cm); R = constante, chamada hoje de constante de Rydberg, que provou ser igual a 109 677 cm-1; n = 3, 4, 5, 6,... A equação de Balmer descreve adequadamente os valores das frequências dos espectros de emissão ou absorção do hidrogênio na região visível, mas pode ser modificada para incluir também as outras regiões espectrais. Para outros elementos podem ser usadas equações análogas, mas a precisão é tanto menor quanto mais pesado for o elemento. Os comprimentos de onda (ou as energias) correspondentes O centenário da Teoria de Bohr 1075Vol. 36, No. 7 às linhas que resultam da absorção ou emissão de energia estão rela- cionados entre si por números inteiros (n é a variável independente da equação, com valores dados por 3, 4, 5, 6...). Consequentemente, os ganhos ou perdas de energia nos átomos são discretos e também guardam uma relação de números inteiros.7 A DESCONTINUIDADE QUÂNTICA A teoria quântica de Max Planck (1858-1947) foi um dos pilares da descrição que Bohr daria para o átomo em seu modelo teórico de 1913. Antes de falar de Planck, é preciso, contudo, mostrar a situação a respeito de um grande problema do final do século XIX, qual seja, a questão da radiação do corpo negro, um objeto hipotético capaz de absorver ou emitir radiação sem quaisquer perdas. Várias formulações surgiram, uma baseada na Termodinâmica clássica, a Lei de Rayleigh-Jeans, bastante discrepante da realidade à medida que diminuía o comprimento de onda da radiação, e a outra, a Lei de Wien, uma aproximação bastante de acordo com os dados experimentais. LEIS DE RAYLEIGH-JEANS (1900-1905) E DE WIEN (1893) A Lei de Rayleigh-Jeans, derivada de pressupostos da termo- dinâmica clássica, leva a uma expressão analítica que mostra, em representação gráfica, a intensidade da radiação contra o comprimento de onda para cada temperatura considerada.10 O gráfico de intensidade de radiação contra comprimento de onda está mostrado na Figura 2. Bλ(T) = intensidade da radiação de comprimento de onda λ à tem- peratura T k = constante de Boltzmann T = temperatura em kelvins c = velocidade da luz Pela Lei de Rayleigh-Jeans, para pequenos comprimentos de onda a intensidade da radiação se aproximaria de infinito. Esta é a chamada catástrofe do ultravioleta. O universo deveria estar inun- dado de uma quantidade infinita de radiação de alta energia, isto é, de pequenos comprimentos de onda. Como isso não ocorre, a lei de Rayleigh-Jeans, obtida de suposições clássicas, não descreve corre- tamente o fenômeno. A Lei de Wien (1893),11 é uma aproximação que satisfaz os dados experimentais: λmax = b/T, em que: λmax = comprimento de onda do pico de uma curva de radiação T = temperatura em kelvins b = constante de Wien A HIPÓTESE QUÂNTICA DE PLANCK Supondo que a Lei de Wien dá uma boa descrição da radiação do corpo negro, sobretudopara comprimentos de onda menores, Planck se dispôs a reexaminar as premissas usadas por Wien em sua derivação. Sem dar aqui a derivação de Planck, que estenderia demasiada- mente este tópico, basta dizer que no limite de valores de λ maiores, a Lei de Planck coincide com a Lei de Rayleigh-Jeans, ao passo que no limite de valores de λ menores ela tende à aproximação de Wien. Planck supôs um experimento imaginário em que para um oscilador com uma determinada frequência, sua energia só poderia ser dada em múltiplos integrais de E = hν, em que h é uma constante conhecida hoje como constante de Planck. Quando ocorre variação de energia nos osciladores atômicos, isto é, emissão ou absorção de energia, esta variação só se dá em “pacotes” discretos, e não conti- nuamente. A fórmula E = hν corresponde a dizer que as quantidades discretas de energia que um oscilador pode emitir ou absorver são diretamente proporcionais a sua frequência. Os osciladores de baixa frequência só aceitam energia em pacotes pequenos, ao passo que os osciladores de alta frequência aceitam pacotes grandes. Há uma distribuição estatística dos osciladores, eliminando a catástrofe do ultravioleta: em temperaturas mais altas, as oscilações atômicas se tornam mais energéticas e a radiação emitida desloca-se para fre- quências mais altas. O contrário ocorre ao diminuir a temperatura. Cada pacote de energia é denominado um “quantum”. Os valores discretos da energia de um oscilador são dados como E = nhν, em que n = 1, 2, 3, 4, ... 12 Assim como a fórmula de Balmer, a teorização de Planck era derivada de dados empíricos. Não se sabia nem a razão de as frequ- ências das raias do espectro atômico seguirem a equação de Balmer, nem tampouco a origem da hipótese quântica de Planck. O ÁTOMO PLANETÁRIO DE RUTHERFORD O primeiro emprego acadêmico do físico neo-zelandês Ernest Rutherford (1871-1937) foi como professor na Universidade McGill, em Montreal, no Canadá. Ele havia sido recomendado por seu mentor científico, J. J. Thomson. Rutherford viera da Nova Zelândia em 1895, onde cursara a Universidade em Wellington, para trabalhar em Cambridge com J. J. Thomson, diretor do Laboratório Cavendish de Física, e futuro descobridor do elétron em 1897. Em McGill, onde permaneceu até 1907, Rutherford se destacou por seus experimentos com o decaimento de substâncias radioativas, o que lhe valeu o Prêmio Nobel de Química em 1908. A concessão do prêmio não deixa de ser irônica, em vista de sua baixa estima pela Química. Aliás, ele disse a respeito do Prêmio Nobel que lhe foi conferido que ele tinha observado em seu trabalho sobre o decaimento radioativo muitas transformações, mas nenhuma tão rápida como a sua, de físico em químico.13 Entre 1907 e 1919 ele foi professor em Manchester, de onde retornou a Cambridge, como sucessor de Thomson, até sua morte em 1937. Foi depois de ganhar o Prêmio Nobel que ele fez sua descoberta mais conhecida, a do átomo nuclear, em 1911. Este é um caso singular na história da ciência, de alguém que tenha feito seu Figura 2. Intensidade de radiação contra comprimento de onda (cortesia de Nelson H.T. Lemes) Braga e Filgueiras1076 Quim. Nova trabalho mais importante depois de já ter recebido o Prêmio Nobel em sua área de pesquisa. Trabalhando em Manchester em colaboração com o físico alemão Hans Geiger (1882-1945) e o então estudante de graduação Ernest Marsden (1889-1970), Rutherford realizou o famoso experimento de bombardeamento de uma delgada folha de ouro com partículas alfa. Desse experimento, amplamente relatado na literatura e em livros-textos, resultou que a imensa maioria das partículas alfa passava pelo metal sem sofrer qualquer deflexão. Uma primeira conclusão foi que o átomo tem um grande volume vazio. Com relação àquelas que sofriam deflexão, foi possível mostrar que esta deflexão resultava de interações com uma parte maciça e carregada positivamente no átomo, que tinha um volume de apenas 10-4 vezes o volume do átomo. Consequentemente, os modelos atô- micos anteriores, inclusive o de Thomson, perderam a validade. A partir daí, Rutherford propôs seu novo modelo, o do átomo nuclear, com os elétrons dispostos em torno de um núcleo positivo.14 Em seu modelo ele supôs uma situação análoga à do sistema solar, que não agradou em nada a J. J. Thomson, pois o modelo tinha dificuldades incontornáveis para a física da época. Num modelo planetário, o número de órbitas possíveis é infinito. Ademais, ao sofrer rotação em torno do núcleo, o elétron devia irradiar energia, como ocorre com cargas em movimento. Consequentemente, a energia total do elétron devia diminuir continuamente e eventualmente ele seguiria um movimento em espiral e cairia no núcleo. Em outras palavras, o átomo planetário seria altamente instável. A Figura 3 mostra o jovem Bohr aos 26 anos de idade, em 1911, dois anos antes de publicar sua teoria sobre o átomo e as pequenas moléculas. O MODELO DE BOHR Foi no início do ano de 1913 que Bohr teve sua atenção atraída pela fórmula de Balmer, lendo sobre ela no livro de Stark, Prinzipien der Atomdynamik, de 1911.15 Neste mesmo ano de 1913, ele daria ao mundo sua mais importante contribuição científica, conhecida como o modelo atômico de Bohr. O trabalho de Bohr sobre a constituição do átomo foi publicado em três artigos, todos saídos à luz no ano de 1913.16-18 Esses três artigos seminais, os mais importantes de toda a carreira de Bohr, estão disponíveis em tradução para o português num único volume, sob o título geral de Sobre a Constituição de Átomos e Moléculas,19 e os subtítulos: Parte I – Ligação de Elétrons por Núcleos Positivos; Parte II – Sistemas que Contêm um só Núcleo; Parte III – Sistemas que Contêm Vários Núcleos. Esse conjunto de três artigos inaugurou a ciência moderna do átomo. O primeiro deles, sobre a constituição do átomo de hidrogênio, introduziu o conceito de estados estacionários, órbitas eletrônicas em que os elétrons não absorveriam ou emitiriam energia, o que aconteceria quando passassem de um estado para outro. A partir daí Bohr pôde chegar a uma fórmula idêntica à equação de Balmer. Até então Bohr só tinha publicado três artigos, todos de seu tempo de estudante.19 Esse primeiro artigo de 1913, dedicado a átomos com um elétron, foi sucedido por um segundo sobre átomos multieletrônicos. O terceiro, como diz o próprio título, trata de sistemas de mais de um núcleo, isto é, moléculas. Como ressalta o historiador da ciência Helge Kragh, o tratamento das moléculas por Bohr ficou historicamente relegado a um plano inferior, com muito pouca ênfase comparado a seu trabalho sobre os átomos individuais.20 Da mesma forma, embora Bohr tenha tido bastante sucesso entre os químicos no que respeita à aplicação de suas ideias na construção da Tabela Periódica, usando o Princípio do Aufbau, que todo estudante aprende hoje em dia, em outros aspectos sua teoria quântica dos átomos foi largamente ignorada pelos quími- cos até o final dos anos 20. Isto porque estes preferiam muito mais modelos estáticos do tipo daqueles de Gilbert Lewis (1875-1946), como se vê em seu livro clássico Valence and the Structure of Atoms and Molecules, de 1923,21 em que os elétrons nos átomos se disporiam segundo os vértices de um cubo, bem diferente do modelo dinâmico de Bohr, com os elétrons movendo-se rapidamente em suas órbitas. Nos modelos químicos, com os elétrons ocupando posições fixas nos vértices de um cubo, era muito mais fácil imaginar as ligações químicas formadas por compartilhamento eletrônico e a geometria de moléculas que tivessem, por exemplo, um carbono tetraédrico. No modelo físico de Bohr, isto simplesmente não era possível imaginar.22 Como bem disse Helge Kragh, havia uma dicotomia intransponível entre a forma de pensar química e aquela dos físicos.20 Sómuito mais tarde, após o aparecimento da mecânica quântica, que veio substituir o átomo de Bohr pelo modelo atual, e com o advento da química quântica a partir de 1930, em que os fenômenos atômicos e moleculares passaram a ser vistos sob uma óptica distinta daquela dos físicos, isto é, sob um ponto de vista químico, é que foi possível uma reaproximação dos dois campos. Esse foi o trabalho de vários químicos notáveis, entre os quais ressalta a figura de Linus Pauling (1901-1994).23 AGRADECIMENTO Os autores agradecem o suporte do CNPq. REFERÊNCIAS 1. Pais, A.; Niels Bohr’s Times, in Physics, Philosophy and Polity, Clarendon Press: Oxford, 1991, p. 146. 2. Ref. 1, p. 107. 3. Ihde, A. J.; The Development of Modern Chemistry, Harper & Row: New York, 1964, p. 589. 4. Weeks, M. E; Leicester, H. M.; Discovery of the elements, 7th ed., J. Chem. Educ. Press: Easton, 1968, p. 816-822. 5. Cline, B. L.; Men Who Made a new Physics – Physicists and the Quantum Theory, The New American Library: New York, 1969, p. 80. 6. Ref. 1, p. 166-67. Figura 3. Niels Bohr em 1911, dois anos antes de publicar os três artigos sobre a constituição dos átomos e moléculas. Foto cedida gentilmente pelo Arquivo Bohr, Copenhagen O centenário da Teoria de Bohr 1077Vol. 36, No. 7 7. Filgueiras, C. A. L., Química Nova na Escola 1996, 3, 22. 8. Ref. 3, p. 235. 9. Ref. 4, p. 757-764. 10. a) Braga, J. P.; Quim. Nova 2001, 24, 693; b) Braga, J. P.; Fundamentos da Química Quântica, Editora da Universidade Federal de Viçosa, 2007, p. 9. 11. Hund, F. H.; The History of Quantum Theory, Harrap: London, 1974, p. 23. 12. Guillemin, V.; The Story of Quantum Mechanics, Scribner’s: New York, 1968, p. 50-52. 13. Ref. 5, p. 27. 14. Ref. 1, p. 121-129. 15. Ref. 1, p. 143-144. 16. Bohr, N.; Phil. Mag. 1913, 26, 1. 17. Bohr, N., Phil. Mag. 1913, 26, 476. 18. Bohr, N.; Phil Mag. 1913, 26, 867. 19. Bohr, N; Sobre a Constituição de Átomos e Moléculas, Textos Funda- mentais da Física Moderna, 2ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1979. No original inglês, não consta o subtítulo da primeira parte, dado na versão portuguesa aqui citada. 20. Kragh, H.; Physics Today; http://www.physicstoday.org/resource/1/ phtoad/v66/i5/p36_s1?bypassSSO=1, acessada em Julho 2013. 21. Lewis, G. N.; Valence and the Structure of Atoms and Molecules, Dover: New York, 1966, p. 29. 22. Kasha, M., Pure Appl. Chem. 1990, 62, 1615. 23. Gavroglu, K.; Simões, A.; Neither Physics nor Chemistry – A History of Quantum Chemistry, MIT Press: Cambridge, 2012. Quim. Nova, Vol. 36, No. 7, 1078-1082, 2013 As su nt os G er ai s *e-mail: calfilgueiras@gmail.com O CENTENÁRIO DA MOLÉCULA DE BOHR Carlos A. L. Filgueiras* e João P. Braga Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 31270-901 Belo Horizonte – MG, Brasil Nelson H. T. Lemes Instituto de Química, Universidade Federal de Alfenas, 37130-000 Alfenas – MG, Brasil Recebido em 24/6/13; aceito em 1/7/13; publicado na web em 19/7/13 THE CENTENNIAL OF BOHR’S MOLECULE. A hundred years ago, a twenty-eight year old Danish scientist published a series of three papers in which electron motion was quantized. The Bohr atomic model is surely known by every chemistry student. Nevertheless in this same 1913 trilogy, Bohr studied atoms with several electrons as well as molecules. Chemistry students, in general, are not aware of the Bohr molecule. The present paper aims at rescuing this important classical model. A review of the Bohr atomic model for both one and several electrons is discussed, together with a theoretical presentation of the Bohr molecule. Keywords: Niels Bohr; Bohr’s atoms and molecules; the constitution of atoms and molecules. INTRODUÇÃO Todo aluno de química conhece o átomo de Bohr. O assunto é abordado no ensino médio, nas disciplinas universitárias de Química Geral e de Química Quântica. Entretanto, ao perguntar a esse mesmo aluno se ele tem conhecimento da molécula de Bohr a resposta é, quase sempre, negativa. Essa pergunta foi feita na sala de aula de quatro disciplinas de Físico-Química nas respectivas universidades dos autores e, na verdade, a resposta foi negativa em todos os casos. Portanto, o aluno de química não sabe o que é a molécula de Bohr, mas tem conhecimento do átomo de Bohr. É também bastante curioso que o título do trabalho original de Bohr é: “Sobre a constituição de átomos e moléculas”. A conclusão é simples, são poucos os que real- mente recorrem ao texto original para entender o trabalho de Bohr.1,2 O trabalho original de Bohr é dividido em três partes. Na parte I é apresentado o que se conhece por átomo de Bohr. Na segunda parte, Bohr explora átomos multieletrônicos e antecipa o conceito de carga atômica efetiva. Na parte III é apresentada a molécula de H2, que, por analogia com o átomo de Bohr deve ser denominada de molécula de Bohr. Para deixar este ponto claro deve-se prestar atenção aos títulos e subtítulos desses trabalhos: 1. Sobre a constituição de átomos e moléculas. Parte I - Ligação de elétrons por núcleos positivos; 2. Sobre a constituição de átomos e moléculas. Parte II - Sistemas que contêm um só núcleo. 3. Sobre a constituição de átomos e moléculas. Parte III - Sistemas que contêm vários núcleos. Os pontos principais das partes II e III serão aqui apresentados, com descrição inicial da parte I, pois nessa parte são introduzidas as equações básicas. O modelo molecular de Bohr, além de sua impor- tância histórica,3 oferece também aspectos importantes para o ensino de ligação química e a superfície de energia potencial. Espera-se que o presente trabalho motive o estudo da molécula de Bohr e que esse modelo seja explorado no curso de química, a exemplo do que já é feito com o átomo de Bohr. O ÁTOMO DE BOHR As ideias de Bohr foram desenvolvidas antes da mecânica quântica, num período após a descoberta de Planck e antes da equa- ção de Schrödinger. Ideias clássicas, como o movimento orbital do elétron, eram permitidas nesse período. A quantização da ação era o ponto importante desse período, pois a constante de Planck tem unidade de ação, o quantum de ação. Assumia-se que propriedades periódicas eram proporcionais à constante de Planck. A teoria dessa época, que envolve uma mistura de mecânica clássica e quântica pela quantização da ação, é hoje conhecida como a mecânica quântica antiga. Niels Bohr inaugurou esse período. As ideias de Bohr foram baseadas nos trabalhos de Planck, Rutherford e na espectroscopia atômica. Nas Figuras 1 e 2 são apre- sentadas duas fotografias de Niels Bohr. A primeira delas, com Max Planck, foi tirada em 1930 no Instituto Niels Bohr de Copenhagen. Na segunda das fotografias, de 1933, Niels Bohr caminha com Ernest Rutherford durante o Congresso Solvay de 1933 em Bruxelas. Dentro de um contexto da mecânica quântica antiga, considera- se um elétron girando em torno do núcleo, conforme a Figura 3, representando o átomo de Bohr. Se o núcleo tem carga Z pode-se igualar a força centrífuga com a eletrostática para fornecer, . Figura 1. Niels Bohr e Max Planck em 1930 no Instituto Niels Bohr. Foto gentilmente cedida pelo Arquivo Bohr, Copenhagen O centenário da Molécula de Bohr 1079Vol. 36, No. 7 Por conseguinte, a energia cinética será, . A energia potencial da interação do elétron com o núcleo é dada por, , indicando que . A relação –2Ec = Ep é consequência do teorema do virial na mecânica clássica e como tal foi explorada por Bohr em seu trabalho.2 O equilíbrio de forças, , pode ser reescrito na forma m2v2r2 = mrZe2 para se usar a quantização do momento angular, L = mvr = nħ. Portanto, n2ħ2 = mrZe2 ou , em que r é conhecido como raio de Bohr. As equações básicasda parte I são,1,3 (1) A frequência é estabelecida pelo raio de Bohr e energia, pois usando Ec = –E retira-se v e pode-se calcular a frequência angular, . Essas equações equivalem às equações (3) da página 100 da tradução do trabalho de Bohr para o português.1 Somente essas equações são apresentadas ao aluno de química. Elas constituem a base teórica do modelo do átomo de Bohr. ÁTOMOS COM DOIS ELÉTRONS Ainda na parte I, Bohr descreve átomos de muitos elétrons, mas concentra-se no assunto na parte II da trilogia. Bohr descreve a estabilidade de um sistema com um só núcleo, mas com vários elé- trons numa única camada. Primeiramente reescreve as equações (1) mudando o número atômico Z para outro símbolo, que ele denotou por F. Nesse ponto iguala a força centrífuga a , (2) antecipando assim o conceito de carga atômica efetiva. Por um ra- ciocínio completamente análogo ao de átomos de um elétron obtém as relações, (3) equivalentes às equações (1). Estas são as equações (1)-(3) da parte II, página 136 da versão em português.1 Uma ilustração inicial para átomos de dois elétrons, com número atômico Z, pode ser feita igualando-se a força centrífuga de uma ór- bita circular de raio a com as forças elétron-elétron e elétron-núcleo, conforme Figura 4. Para elétrons diametralmente opostos com raio a, tem-se, , ou, (4) Logo, por comparação com (2) retira-se . Para o átomo de hélio tem-se, (5) em excelente concordância com o cálculo variacional quântico que fornece para a carga atômica efetiva, .4 A aproximação de Bohr é excelente, pois . É interessante comparar o resultado da energia quântica exata com o resultado calculado por Bohr.4 Essa comparação é feita na Tabela 1, indicando novamente a excelente previsão clássica feita por Bohr. Figura 2. Niels Bohr em 1933 com seu mentor, Ernest Rutherford. Os dois se encontraram no Congresso Solvay em Bruxelas. Foto gentilmente cedida pelo Arquivo Bohr, Copenhagen Figura 3. Modelo atômico de Bohr Figura 4. Modelo atômico de Bohr para o átomo de hélio Filgueiras et al.1080 Quim. Nova FORMAÇÃO DA MOLÉCULA DE H2 No final da parte III, no item Formação de sistemas, Bohr discute qualitativamente a formação de moléculas.1,2 Niels Bohr não publica na trilogia um desenho feito a mão bastante ilustrativo, sobre a for- mação de diversas moléculas. Entretanto, essa figura foi feita no seu caderno de anotações1,2 e uma reprodução do original é apresentada na Figura 5. Bohr considera a formação de várias moléculas, H2, H2O, O3, CH4 e H2C2, de acordo com seu modelo. A formação da molécula de H2, com base nos argumentos apresentado por Bohr, será discutida. Primeiro Bohr apresenta argumentos qualitativos para em seguida passar para o trabalho teórico. Inicialmente são considerados dois átomos de hidrogênio afasta- dos um do outro, como na Figura 6. Por meio de forças externas um núcleo se aproxima do outro. Bohr considera esse deslocamento dos núcleos tão lento que as órbitas individuais não são afetadas. Isso seria o equivalente a não ocorrer transições eletrônicas durante o processo de aproximação, coerente com a aproximação de Born-Oppenheimer.4 Para uma certa distância entre os dois núcleos os planos das órbitas se tornam coincidentes, formando assim a molécula diatômica. Uma ilustração dessa discussão qualitativa, e inspirada no texto de H.A. Kramers,5 é apresentada na Figura 6. A MOLÉCULA DE BOHR A Figura 7 representa uma visão frontal da molécula de H2. Para que haja o equilíbrio, a força total deve ser nula. Três forças devem ser consideradas: a força atrativa dos elétrons com os núcleos, Fen , a repulsiva entre os dois elétrons, Fee, a repulsiva entre os núcleos, Fnn e a centrífuga, Fc. Para o equilíbrio de forças na direção horizontal, considerando o ângulo θ como na Figura 7 tem-se, (6) Como são dois elétrons deve-se igualar 2 × Fen, horizontal = Fnn, horizontal, ou seja, (7) De forma análoga, para as três forças na direção vertical, (8) O equilíbrio entre as forças será descrito por, 2 × Fen, vertical – Fee, vertical = ou (9) A notação aqui usada, R e Q, é a mesma usada por Bohr. A procura da solução do sistema, (10) foi o próximo passo dado por Bohr. Bohr resolveu o sistema por substituição. De R(a,b) = 0, isto é, retira-se 8b3 = (a2 + b2)3/2. Tomando a potência 2/3 dos dois lados pode-se desenvolver, (11) Tabela 1. Energias (au) exatas e previstas pelo modelo de Bohr Z Eexata EBohr 2 -2,9036 -3,0625 3 -7,2800 -7,5625 4 -13,6556 -14,0625 5 -22,0310 -22,5625 6 -32,4063 -33,0625 Figura 5. Figura do caderno de anotações do Bohr, gentilmente cedida pelo Arquivo Bohr, Copenhagen Figura 6. Formação da molécula de H2 Figura 7. Diagrama de forças na molécula de H2 O centenário da Molécula de Bohr 1081Vol. 36, No. 7 Tabela 2. Modelo de Bohr, Heitler/London e Coulson para o H2 Modelos teóricos De / eV Re / Å Bohr, 1913 2,732 0,5820 Heitler/London, 1927 3,140 0,869 Coulson, 1937 2,681 0,740 O resultado a = √–3b deve ser substituído em Q = 0 para se obter a solução geral. Usando, (a2 + b2)3/2 = (a2 + a2 / 3)3/2 = (4a2 / 3)3/2 = (4 / 3)3/2 a3 calcula-se, (12) ou após pequeno rearranjo, (13) Por comparação com a equação (2) pode-se retirar o valor de F, (14) como calculado por Bohr, no parágrafo 3 da parte III.1 TESTE DO MODELO: ENERGIA DE DISSOCIAÇÃO DO H2 O modelo clássico de uma molécula diatômica estava construí- do, em completa analogia com o também modelo clássico atômico. Para um teste do modelo, Bohr calculou teoricamente a energia de dissociação da molécula de H2. Usando fez a diferença da energia da molécula de H2 em relação a 2H,6 (15) pois F = 1 para o átomo de hidrogênio. Com o valor já calculado, EH = –0,5 au, calcula-se em unidades atômicas, De = E(H2) – 2E(H) = (F2 – 1) (16) Usando F = 1,049, também já calculado, Bohr estabeleceu De = 0,1001 au, ou, De = 2,732 eV (17) Pelas equações (3) calcula-se o valor de r = b. Após substituição em a = √ —(3)b , retira-se a distância de equilíbrio, pois Re = 2b. O valor encontrado foi de Re = 1,1 au ou Re = 0,5820 Å. Esses resultados são impressionantes para a época, como será discutido. COMPARAÇÃO COM CÁLCULOS QUÂNTICOS Os valores tabelados de energia de dissociação e distância de equilíbrio para o H2 são De = 4,747 eV e Re = 0,741 Å e serão aqui usados como referência.7 O resultado obtido por Bohr, se comparado com os dados tabelados, fornece erro percentual relativo de 42% para a energia. Para a posição de equilíbrio esse valor vale 22%. Essa comparação pode parecer desanimadora, mas esse confronto não é prudente no momento. Uma análise dos primeiros resultados quânticos deve ser feita, antes de uma conclusão sobre o modelo. O primeiro cálculo quântico para a molécula de H2 foi elaborado por Heitler e London em 1927.8 Para uma tradução para a língua inglesa desse artigo o leitor pode consultar o livro de Hettema.9 Esse trabalho de Heitler e London é considerado um clássico no contexto da química, pois inaugura a área da química quântica, em especial a teoria de ligação de valência. Após um longo cálculo de integrais para a solução da equação de Schrödinger, Heitler e London obti- veram De = 3,140 eV e Re = 0,869 Å. Portanto, esse dois resultados teóricos eram compatíveis com o modelo de Bohr e de certa forma indicavam que havia algo importante no modelo semi-clássico mo- lecular de Niels Bohr. Em contraste com a teoria de ligação de valência, o método dos orbitais moleculares foi também aplicado à molécula de H2, por Charles Coulson em 1937.10 Nesse cálculo Coulson encontrou De = 2,681 eV e Re = 0,740 Å. Não havia praticamente erro na distância de equilíbrio, mas o valor da energia de dissociaçãoera o mesmo (com dois algarismos significativos) do encontrado por Bohr. Um resumo da situação da molécula de Bohr e cálculos quânticos até 1937 é apresentado na Tabela 2. Os cálculos quânticos foram se aprimorando com novos métodos e novas tecnologias. O valor previsto pelo resultado quântico recente fornece os mesmos resultados tabelados.11 Entretanto, a descrição clássica da molécula de Bohr também sofreu avanços teóricos. Se a órbita dos átomos é não coincidente, como na Figura 6, e se as fases relativas dos elétrons são consideradas,11 a previsão teórica de molécula de Bohr modificada fornece De = 4,490 eV e Re = 0,714 Å. Esse resultado representa um erro de aproximadamente 5% na energia ou posição de equilíbrio. CONCLUSÕES A descrição teórica e clássica da molécula de H2 foi feita por Niels Bohr na sua célebre trilogia de 1913. Ao contrário do átomo de Bohr, o estudo molecular não é conhecido pelo estudante de quí- mica. O presente trabalho é uma tentativa de divulgar esse brilhante trabalho de Bohr. A crença comumente aceita de que o modelo de Bohr não funcionava para átomo de dois elétrons deve ser abandonada no que diz respeito ao cálculo da energia. O erro para o átomo de hélio, no contexto de Bohr, vale 5% e tende a cair com o aumento do número atômico. Para o íon Li+ esse erro vale 4%, decrescendo para 1% com Z = 10. Essa tendência de queda no erro mostra que o modelo de Bohr se adapta melhor para um número atômico maior, pois nesse caso a perturbação da repulsão elétron-elétron se torna menos significativa. O modelo molecular, o ponto principal do presente artigo, indica que este modelo oferece uma grande vantagem para o ensino, pois ilustra classicamente a formação da ligação química. Os resultados da energia de ligação e distância de equilíbrio são comparáveis em precisão com os cálculos quânticos da época, elaborados por Heitler e London, usando teoria de ligação de valência e por Coulson, usando a teoria dos orbitais moleculares. Da mesma forma que o modelo quân- tico foi refinado, o modelo molecular de Bohr pode também sofrer modificações, fornecendo resultados compatíveis com os cálculos quânticos atuais. O erro nesse modelo modificado de Bohr equivale a aproximadamente 5% se comparado com os resultados exatos. AGRADECIMENTOS Gostaríamos de agradecer ao CNPq pelo apoio financeiro e ao Niels Bohr Archive, Copenhagen, pela permissão para reproduzir as fotos e o desenho feito por Niels Bohr. Filgueiras et al.1082 Quim. Nova REFERÊNCIAS 1. Bohr, N. Sobre a constituição de átomos e moléculas, Textos Fundamen- tais da Física Moderna, 2nd ed., Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1979, vol. 2. 2. Bohr, N. Em Niels Bohr: Collected Works; Rosenfeld, L.; Hoyer, U., eds.; North-Holland Publishing Company: Amsterdam, 1981, vol. 2. 3. Braga, J. P.; Filgueiras, C. A. L.; Quim. Nova 2013, (Submetido). 4. Braga, J. P.; Fundamentos de Química Quântica, Editora UFV: Viçosa, 2007. 5. Kramers, H.; The atom and the Bohr theory of its structure, an elemen- tary presentation, Gyldendal: London, 1923. 6. Kragh, H.; J. Chem. Educ. 1977, 54, 208. 7. Herzberg, G.; Molecular Spectra and Molecular Structure, 2nd ed.,Van Nostrand: Princeton, 1950. 8. Heitler, W.; London, F.; Zeitschrift für Physik 1927, 44, 455. 9. Heitler, W.; London, F. Em Quantum Chemistry: Classic Scientific Papers; Hettema, H., eds.; World Scientific: Singapore, 2000, vol. 8. 10. Coulson, C. A.; Trans. Faraday Soc. 1937, 33, 1479. 11. Svidzinsky, A.; Scully, M.; Herschbach, D.; Proceedings of the National Academy of Sciences 2005, 102, 11985. capa36-7 01(1) 24 24-AG13441
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