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Sidney Ferreira de Moraes Neto Módulo Perda de Sangue Campo Grande 2017 Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Resumo de Perda de Sangue Problema 1 Metabolismo e Efeitos do Álcool Depois da administração oral, o etanol é rapidamente absorvido no estômago e no intestino delgado e levado à corrente sanguínea, onde se distribui na água corporal total (0,5-0,7 L/kg). Os níveis sanguíneos máximos ocorrem cerca de 30 min depois da ingestão do etanol quando o estômago está vazio. Como a absorção ocorre mais rapidamente no intestino delgado que no estômago, os fatores que retardam o esvaziamento gástrico (p. ex., presença de alimentos) prolongam a absorção do etanol. Em virtude do metabolismo de primeira passagem, cujas reações são dependentes das álcool-desidrogenases (ADHs) gástrica e hepática, a ingestão oral do etanol resulta em NSA menores do que seriam observados se a mesma quantidade fosse administrada por via intravenosa. O metabolismo gástrico do etanol é menor nas mulheres que nos homens e isso pode contribuir para a maior sensibilidade das mulheres ao álcool. O ácido acetilsalicílico aumenta a biodisponibilidade do etanol porque inibe a ADH gástrica. O etanol é metabolizado principalmente pela oxidação hepática sequencial, primeiro em acetaldeído pela ADH e depois em ácido acético pela aldeído- desidrogenase (ALDH). Todas as etapas metabólicas necessitam de NAD+; deste modo, a oxidação de 1 mol de etanol (46 g) em 1 mol de ácido acético requer 2 mol de NAD+ (cerca de 1,3 g). Essa quantidade é muito maior que o suprimento de NAD+ no fígado; na verdade, a disponibilidade deste composto limita o metabolismo do etanol a cerca de 8 ou 10 g/mL (cerca de 170 mmol) por hora em adultos de 70 kg, ou cerca de 120 mg/kg/h. Desse modo, o metabolismo hepático do etanol esgota-se funcionalmente com níveis sanguíneos relativamente baixos, em comparação com os NSAs elevados atingidos; além disso, o metabolismo do etanol é um processo de ordem zero (quantidade constante por unidade de tempo). Quantidades pequenas de etanol são excretadas na urina, no suor e no ar expirado, mas o metabolismo em acetato é responsável pela excreção de 90-98% do etanol ingerido, principalmente devido ao metabolismo hepático pela ADH e pela ADLH. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Uma enzima do citocromo P450 hepático, CYP2E1, também pode contribuir, especialmente quando as concentrações de etanol são mais altas e em condições como o alcoolismo, no qual sua atividade pode estar induzida. A catalase também pode converter o etanol em acetaldeído, mas a disponibilidade de H2O2 no fígado geralmente é muito pequena para resistir ao fluxo significativo de etanol por essa via metabólica. Embora geralmente não seja um fator significativo no metabolismo do etanol, a CYP2E1 pode ser uma enzima importante nas interações do etanol com outros fármacos. Essa enzima é induzida pelo consumo crônico de etanol, aumentando a depuração dos seus substratos e a ativação de algumas toxinas como o CCl4. Entretanto, a depuração dos mesmos Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 fármacos pode ser reduzida depois do consumo agudo de etanol, porque o álcool compete com eles pela oxidação por meio desse sistema enzimático (p. ex., fenitoína e varfarina). O aumento expressivo da relação entre NADH:NAD+ hepáticos durante a oxidação do etanol tem consequências profundas, além de limitar sua taxa de metabolismo. As enzimas que dependem do NAD+ são inibidas e, desse modo, o lactato acumula-se, a atividade do ciclo do ácido tricarboxílico diminui e a acetilcoenzima A (acetil-CoA) acumula-se (e é produzida em quantidades maiores a partir do ácido acético derivado do etanol). A combinação dos aumentos do NADH e da acetil-CoA favorece a síntese dos ácidos graxos e o armazenamento e a acumulação dos triacilglicerídeos. Os corpos cetônicos são formados em seguida e agravam a acidose láctica. O metabolismo do etanol pela CYP2E1 produz quantidades aumentadas de NADP+, limitando a disponibilidade do NADHP para a regeneração da glutationa reduzida (GSH) e, desse modo, acentuando o estresse oxidativo. Os mecanismos responsáveis pela doença hepática induzida pelo consumo maciço de etanol provavelmente refletem uma combinação complexa desses fatores metabólicos, a indução da CYP2E1 (e o aumento da oxidação das toxinas e da formação de H2O2 e radicais do oxigênio) e, possivelmente, a liberação de quantidades aumentadas de endotoxina em consequência do efeito do álcool na flora gram-negativa do trato GI. Os efeitos da ingestão maciça de etanol nos diversos órgãos estão resumidos a seguir; a lesão dos tecidos quase certamente reflete o estado nutricional precário dos alcoólicos (desnutrição e carências das vitaminas A e D e de tiamina), a supressão da função imunológica pelo etanol e vários outros efeitos generalizados. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Efeitos do Etanol nos Sistemas Fisiológicos William Shakespeare descreveu os efeitos farmacológicos agudos da ingestão de etanol na cena do Porteiro (ato 2, cena 3) de Macbeth. O Porteiro, despertado do sono induzido por álcool por Macduff, explica os três efeitos do álcool e depois fala sobre um quarto efeito que combina os aspectos contraditórios do excesso de confiança com a limitação física: ➔ Porteiro: …e a bebida, senhor, é um grande provocador de três coisas. ➔ Macduff: Quais são as três coisas que a bebida provoca especialmente? ➔ Porteiro: Ora, senhor, nariz vermelho (vasodilatação cutânea), sono (depressão do SNC) e urina (em decorrência da inibição da secreção do hormônio antidiurético [vasopressina]), agravada pela ingestão voluntária de maiores quantidades de líquidos. A lascívia, senhor, a bebida provoca e deixa sem efeito: provoca o desejo, mas impede sua execução. Por isso, pode-se dizer que a bebida em quantidade usa de subterfúgios: ela cria a lascívia e a destrói; anima o homem e desencoraja-o; o faz ficar de pé e depois o obriga a recolher-se (a fugir dos desejos imaginários que o corpo cavernoso não pode satisfazer). Em suma, leva-o a dormir com muita lábia e, lançando-lhe o desmentido, abandona-o à sua própria sorte. Pesquisas mais recentes acrescentaram detalhes à descrição de Shakespeare — ver acréscimos entre colchetes às palavras do Porteiro reproduzidas no parágrafo precedente e a seção sobre os efeitos do álcool nos sistemas do corpo, que é apresentada adiante —, mas as consequências mais notáveis do uso recreativo do etanol também são bem resumidas pelo Porteiro gregário e tagarela, cuja conduta encantadora e maliciosa demonstra a influência comumente observada das concentrações modestas de etanol no SNC. As próximas seções detalham os efeitos do etanol nos sistemas fisiológicos. Sistema Nervoso Central Embora as pessoas geralmente vejam as bebidas alcoólicas como estimulantes, o etanol é basicamente um depressor do SNC. A ingestão de quantidades moderadas de álcool, assim como de outros depressores como os barbitúricos e os benzodiazepínicos, pode ter ações ansiolíticas e produzir desinibição comportamental em uma ampla variação de doses. Os sinais específicos de intoxicação variam de afeto expansivo e vivaz a oscilações descontroladas do humor e a explosões emocionais que podem ter componentes violentos. Nos casos de intoxicação mais grave, as funções do SNC geralmente são deprimidas e, por fim, instala-se uma condição semelhante à anestesia Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 geral. Entretanto,há pouca margem entre as ações anestésicas e os efeitos letais (geralmente decorrentes de depressão respiratória). Cerca de 10% dos indivíduos que ingerem álcool progridem para níveis de consumo que são deletérios dos pontos de vista físico e social. O uso abusivo crônico acompanha-se de tolerância, dependência e desejo irrefreável de usar a droga. O alcoolismo caracteriza-se pelo uso compulsivo apesar das consequências médicas e sociais claramente deletérias. O alcoolismo é uma doença progressiva e a lesão cerebral causada pelo uso abusivo crônico de álcool contribui para os déficits das funções cognitivas e do discernimento que são observados nos alcoólatras. Nos EUA, o alcoolismo é uma das principais causas de demência. O uso abusivo crônico de álcool causa redução da massa cerebral em virtude das perdas das substâncias branca e cinzenta. Os lobos frontais são particularmente sensíveis a lesão provocada pelo álcool e a extensão dessa lesão é determinada pela quantidade e pela duração do consumo de etanol, mas os alcoólatras idosos são mais suscetíveis que os mais jovens. É importante ressaltar que o próprio etanol é neurotóxico e, embora a desnutrição ou as carências vitamínicas provavelmente desempenhem um papel importante nas complicações do alcoolismo (p. ex., encefalopatia de Wernicke e psicose de Korsakoff), a maior parte das lesões cerebrais induzidas pelo álcool nos países ocidentais é atribuída ao próprio etanol. Além da perda de tecidos cerebrais, o uso abusivo de álcool também reduz o metabolismo cerebral (evidenciado por tomografia por emissão de pósitrons) e esse estado de hipometabolismo repercute em um nível exagerado de metabolismo durante a desintoxicação. O grau de disfunção metabólica é determinado pelo número de anos de consumo do álcool e pela idade do paciente. Ações do etanol nos Sistemas Neuroquímicos e nas Vias de Sinalização. O etanol afeta quase todos os sistemas cerebrais. As alterações dos sistemas neuroquímicos ocorrem simultaneamente e, em geral, são interativas. Outra complicação ao descrever os efeitos do álcool no SNC é a adaptação rápida ao etanol observada no cérebro, resultando no fato de que os efeitos agudos da primeira dose de álcool geralmente são contrários às consequências neuroquímicas da administração repetida e às alterações observadas quando os níveis sanguíneos do etanol diminuem e também nas síndromes de abstinência. O álcool altera o equilíbrio entre as influências excitatórias e inibitórias no cérebro e causa ataxia, sedação e efeito ansiolítico. Esses efeitos são produzidos por estimulação da neurotransmissão inibitória, ou antagonismo da neurotransmissão excitatória. O etanol provavelmente produz seus efeitos alterando simultaneamente as funções de algumas Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 proteínas que podem afetar a excitabilidade dos neurônios (Tabela 23-1). Um desafio primordial tem sido identificar as proteínas que determinam a excitabilidade neuronial e são sensíveis ao etanol nas concentrações que produzem efeitos comportamentais (5-20 mM). Muitos dos efeitos proeminentes ocorrem nos canais iônicos controlados por ligando e por voltagem e nos sistemas GPCR. Canais iônicos Os mediadores principais da neurotransmissão inibitória do cérebro são os receptores A do ácido γ-aminobutírico (GABAA) controlados por ligantes, cuja função é expressivamente aumentada por algumas classes de sedativos, hipnóticos e anestésicos, inclusive barbitúricos, benzodiazepinas e anestésicos voláteis. Dados significativos implicam o receptor GABAA como alvo importante para as ações do etanol in vivo. A estimulação desse sistema de canal de Cl– formado por várias subunidades e controlado por ligantes contribui para as sensações de sonolência e relaxamento muscular e para as propriedades anticonvulsivantes agudas associadas a todos os fármacos que ativam o sistema GABA. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Depois da ingestão aguda, o etanol provoca liberação de GABA; a ingestão maciça crônica altera o padrão de expressão dos genes que determinam a síntese das subunidades do GABAA. A intoxicação por etanol pode ser entendida como um estado de abundância de GABA, enquanto os fenômenos associados à abstinência estão relacionados em parte com a atividade deficiente do GABAA. Vários polimorfismos dos genes do receptor GABAA estão relacionados com a predisposição à ingestão maciça de álcool e aos problemas associados ao alcoolismo. O receptor nicotínico da ACh também é sensível aos efeitos do etanol. A ingestão aguda de álcool aumenta a quantidade de ACh na área tegmentar ventral, com aumento subsequente da concentração de DA no núcleo acumbente. A vareniclina (um agonista parcial do subtipo α4β2 do receptor nicotínico da ACh) reduz o comportamento de procura por etanol e a ingestão desta substância em um modelo de roedores, semelhante aos efeitos que produz na dependência da nicotina. Os efeitos do etanol nesses receptores podem ser particularmente importantes porque existe uma correlação entre a exposição à nicotina (tabagismo) e o consumo de álcool pelos seres humanos. Além disso, vários estudos indicaram que a nicotina aumentava o consumo de álcool nos modelos animais. Os receptores ionotrópicos excitatórios do glutamato são subdivididos em duas classes: receptores do N-metil-Daspartato (NMDA) e receptores não NMDA; este último grupo também é subdivido em receptores do cainato e do AMPA. O etanol inibe a função dos receptores de NMDA e do cainato; os receptores do AMPA são praticamente resistentes ao álcool. Assim como ocorre com os receptores GABAA, a fosforilação do receptor do glutamato pode modular a sensibilidade ao etanol. Alguns outros tipos de canais são sensíveis ao álcool em concentrações alcançadas rotineiramente in vivo. O etanol aumenta a atividade dos canais de K+ de alta condutância ativados pelo Ca2+ nas terminações da neurohipófise, talvez contribuindo para a redução da liberação de ocitocina e vasopressina depois da ingestão de etanol. O etanol também inibe os canais de Ca2+ dos tipos N e P/Q por um mecanismo que pode ser antagonizado pela fosforilação do canal pela PKA. Os canais BK (Maxi-K e slo1) também são alvos da ação do etanol. Os canais de K+ retificadores internos controlados pelas proteínas G (canais GIRK ou Kir) podem ser ativados pelas subunidades βγ da família Gi/Go, pelo PIP2 e por outros alcoóis (por um mecanismos diferente). Os alcoóis pequenos ligam-se a uma fenda de acoplamento hidrofóbica dos GIRKs, resultando na ativação do canal por estabilização da conformação aberta. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Outros sistemas neurotransmissores. Os sistemas relacionados com a dopamina têm importância fundamental nas sensações de gratificação e desejo associadas a todas as substâncias intoxicantes. Particularmente importantes são as alterações da atividade da DA na área tegmentar ventral e adjacências, especialmente o núcleo acumbente, que provavelmente desempenha um papel importante nas sensações de euforia e gratificação. A ingestão aguda de álcool aumenta os níveis de DA nas sinapses, mas a administração repetitiva está associada às alterações dos receptores D2 e D4, que podem ser importantes para a perpetuação do consumo de álcool e também na recidiva do alcoolismo. O impacto do etanol nas vias dopaminérgicas está diretamente relacionado com as alterações dos sistemas associados ao estresse. Teoricamente, essas alterações estão relacionadas com o reforço produzidopela bebida alcoólica e outras drogas de abuso, assim como com os sintomas de abstinência e os humores negativos relacionados com problemas com a regulação dos sistemas cerebrais de recompensa ricos em DA. A atividade dopaminérgica do núcleo acumbente é afetada por vários tipos de receptores opioides e a ingestão aguda de etanol provoca a liberação de β-endorfinas. Em seguida, essas ações ativam os receptores opioides μ do tegmento ventral e do núcleo acumbente, resultando na liberação de DA. Desse modo, muitos dos efeitos do álcool no sistema de recompensa e as alterações das formas como o SNC reage ao etanol (inclusive sensibilização) podem estar relacionados com as alterações dos sistemas opioides. A administração aguda de etanol está associada ao aumento significativo da quantidade de 5-HT na fenda sináptica; o uso continuado de etanol provoca hiper- regulação dos receptores da 5-HT. Os níveis mais baixos desse neurotransmissor na sinapse, talvez relacionados com a recaptação mais rápida pelo transportador de 5-HT, estão associados aos níveis mais altos de ingestão alcoólica e, possivelmente, aos graus mais baixos de intensidade da reação às bebidas alcoólicas. As alterações dos sistemas dopaminérgicos provavelmente também estão relacionadas com alterações dos níveis de 5-HT. Os receptores canabinoides, principalmente o CB1 codificado pelo gene CNR1, também são afetados pelo etanol. O CB1 é um GPCR expresso em grandes quantidades no tegmento ventral, no núcleo acumbente e no córtex pré-frontal. A ativação do CB1 ocorre com a administração de etanol e afeta a liberação de DA, GABA e glutamato, assim como os circuitos de gratificação do cérebro. Os antagonistas dos receptores CB1 (p. ex., rimonabanto) podem bloquear o efeito do etanol nos sistemas dopaminérgicos. Proteinocinases e enzimas sinalizadoras Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Os camundongos nocautes que não possuem a isoforma γ da PKC têm efeitos atenuados do etanol aferidos por parâmetros comportamentais e supressão da acentuação dos efeitos do GABA produzidos pelo etanol in vitro. As cascatas intracelulares de transdução dos sinais (p. ex., MAPK, tirosinocinases e receptores dos fatores neurotróficos) também parecem ser afetadas pelo etanol. A translocação da PKC e da PKA entre os compartimentos subcelulares também é sensível ao álcool. O etanol aumenta as atividades de várias isoformas da adenililciclase, mas a AC7 é mais sensível. Isso aumenta a produção do AMP cíclico e, deste modo, amplia a atividade da PKA. As ações do etanol parecem ser mediadas pela ativação da Gs e pela facilitação da interação entre Gs e adenililciclase. Consumo de etanol e função do SNC O etanol causa uma série de efeitos relativamente comuns e transitórios com taxas de prevalência relativamente altas, que refletem as alterações do sistema GABA que geralmente são causadas pelos depressores do SNC. As doses altas de etanol podem interferir com a codificação das memórias e causar amnésias anterógradas, geralmente conhecidas como blecautes alcoólicos; os pacientes afetados não conseguem lembrar de parte ou de todas as experiências que tiveram durante o período de ingestão maciça. Mesmo com apenas 2 ou 3 drinques, a ingestão de etanol pode produzir alterações dos padrões de sono, com despertares frequentes e sono inquieto; as doses altas estão associadas a sonhos vívidos e perturbadores em consequência da supressão mais precoce da fase de movimentos oculares rápidos do sono noturno pelos níveis sanguíneos mais altos de etanol. Talvez em consequência do efeito do etanol nas respirações e também seus efeitos relaxantes musculares, a ingestão maciça pode causar apneia do sono, principalmente nos pacientes alcoólicos idosos. Os efeitos neurológicos centrais transitórios da ingestão maciça de etanol que causam a “ressaca” — a síndrome da “manhã seguinte” evidenciada por cefaleia, sede, náuseas e disfunção cognitiva —, contribuem com grande parte do tempo de afastamento do trabalho e da escola e podem ser causados por mecanismos semelhantes aos envolvidos na abstinência branda do álcool, na desidratação e/ou na acidose branda. Estudos demonstraram que a ingestão maciça e crônica de álcool aumenta a probabilidade de desenvolver um deficit cognitivo mais duradouro conhecido como demência alcoólica. Entretanto, os sinais de déficits cognitivos e atrofia cerebral observados pouco depois de um período de ingestão maciça provavelmente regridem ao longo das semanas ou dos meses seguintes em abstinência. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 A deficiência de tiamina associada ao consumo maciço de álcool contribui para as síndromes de Wernicke-Korsakoff; contudo, a ataxia e a oftalmoparesia da síndrome de Wernicke e as amnésias anterógrada e retrógrada graves da síndrome de Korsakoff são encontradas em menos de 1% dos pacientes alcoólicos crônicos. Outras síndromes neurológicas graves associadas à ingestão maciça de álcool incluem a degeneração cerebelar com atrofia associada do verme cerebelar (cerca de 1% dos alcoólicos) e a neuropatia periférica (detectada em cerca de 10% dos alcoólicos). Os mecanismos específicos envolvidos na lesão do cerebelo e dos nervos periféricos ainda não foram definidos em definitivo. Doses maciças de álcool ingeridas ao longo de vários dias ou semanas também foram associadas às síndromes psiquiátricas “induzidas pelo álcool”, que são transitórias, mas perturbadoras. Cerca de 40% dos indivíduos alcoólicos desenvolvem sintomas depressivos relacionados com o álcool, que podem incluir pensamentos e comportamentos suicidas transitórios. Do mesmo modo, diversos estados de ansiedade, inclusive os que se caracterizam por ataques de pânico e ansiedade generalizada, são prováveis em uma minoria expressiva dos pacientes dependentes do álcool durante a síndrome de abstinência. Talvez 3% dos homens e das mulheres dependentes do álcool relatem vivenciar alucinações auditivas e ilusões paranoides transitórias semelhantes à esquizofrenia, que começam durante os períodos de intoxicação maciça; todas essas síndromes psiquiátricas provavelmente melhoram expressivamente em alguns dias ou um mês em abstinência, com sintomas residuais brandos continuando a melhorar depois deste intervalo. Embora não existam dados definitivos acerca dos mecanismos desses transtornos psiquiátricos induzidos pelo álcool, é lógico supor que as alterações que o etanol produz nas vias neurológicas centrais (níveis de NE e 5-HT, equilíbrio entre as atividades dos receptores GABAA e NMDA, atividade dopaminérgica) possam atuar nestes casos, algo semelhante ao que se observa com a depressão, a ansiedade e os distúrbios esquizofrênicos. Sistema Cardiovascular A ingestão de mais de três drinques comuns por dia aumenta o risco de ataques cardíacos e acidentes vasculares encefálicos hemorrágicos. Na verdade, as doenças vasculares estão entre as causas principais de morte precoce entre os pacientes alcoólicos. Esse risco inclui um aumento de 6 vezes do risco de doença arterial coronariana, predisposição às arritmias cardíacas e alta incidência de insuficiência Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 cardíaca congestiva. As causas são complexas e as observações são dificultadas por alguns efeitos favoráveis produzidos por pequenas doses de etanol. Lipoproteínas séricas e efeitos cardiovasculares Em muitos países, o risco de mortalidade atribuída à cardiopatia coronariana (CC) correlaciona-se com a ingestãodietética elevada de gorduras saturadas e com níveis séricos altos de colesterol. A França é uma exceção a essa regra porque tem mortalidade relativamente baixa por CC, apesar do consumo de grandes quantidades de gorduras saturadas (o “paradoxo francês”). Estudos epidemiológicos sugeriram que o consumo disseminado de vinho (20-30 g de etanol/dia) seja um dos fatores que conferem um efeito cardioprotetor, porque a ingestão de um a três drinques por dia acarreta redução de 10- 40% no risco de desenvolver cardiopatia coronariana, em comparação com os indivíduos que não bebem. Já o consumo diário de quantidades maiores de álcool aumenta a incidência das causas não coronarianas de insuficiência cardiovascular, incluindo-se arritmias, cardiomiopatia e acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico, suplantando os efeitos benéficos do álcool nas artérias coronárias; ou seja, o álcool está associado a uma curva de dose-mortalidade em forma de “J”. O risco reduzido de desenvolver CC está associado ao consumo de apenas meia dose por dia. As mulheres jovens e outros grupos de baixo risco para doença cardíaca auferem poucos benefícios com a ingestão branda a moderada de álcool, enquanto indivíduos de alto risco de ambos os sexos e pacientes suscetíveis de infarto do miocárdio têm benefícios inequívocos. Os dados oriundos de alguns estudos prospectivos, de coorte, de caso-controle e de investigações culturais realizados em diversas populações mostraram índices consistentemente mais baixos de angina do peito, infarto do miocárdio e doença arterial periférica em indivíduos que consomem quantidades pequenas (1-20 g/dia) a moderadas (21-40 g/dia) de álcool. Um possível mecanismo pelo qual o álcool poderia reduzir o risco de CC é atribuído aos seus efeitos nos lipídeos sanguíneos. Alterações dos níveis de lipoproteínas plasmáticas, principalmente o aumento da lipoproteína de alta densidade (HDL), foram associadas aos efeitos protetores do etanol. A HDL liga-se ao colesterol e retorna ao fígado para eliminação ou reprocessamento, reduzindo os níveis teciduais de colesterol. Desse modo, os aumentos do HDL-colesterol induzidos pelo etanol poderiam antagonizar a acumulação de colesterol nas paredes arteriais e reduzir o risco de infarto. Cerca de metade da redução do risco associado ao consumo de etanol pode ser explicada pelas alterações dos níveis totais de HDL. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 A HDL está presente em duas subfrações denominadas HDL2 e HDL3. Os níveis aumentados de HDL2 (e possivelmente também de HDL3) estão associados à redução do risco de infarto do miocárdio. Os níveis das duas subfrações aumentam depois do consumo de álcool e diminuem quando o etanol deixa de ser ingerido. As apolipoproteínas A-I e A-II são constituintes da HDL. Os níveis altos das apolipoproteínas A-I e A-II são encontrados nos indivíduos que ingerem grandes quantidades de álcool todos os dias. Porém existem relatos de redução dos níveis séricos da apolipoproteína(a) depois do consumo agudo de álcool. Níveis elevados de apolipoproteína(a) também foram correlacionados com o aumento do risco de desenvolver aterosclerose. Todos os tipos de bebidas alcoólicas produzem efeitos cardioprotetores. Várias bebidas alcoólicas aumentam os níveis da HDL e, ao mesmo tempo, reduzem o risco de infarto do miocárdio. Os flavonoides encontrados no vinho tinto (e no suco de uva vermelha) podem produzir um efeito antiaterogênico adicional, protegendo as lipoproteínas de baixa densidade (LDL) contra os danos oxidativos. A LDL oxidada foi implicada em várias etapas da aterogênese. Outro mecanismo pelo qual o consumo de álcool poderia teoricamente produzir efeito cardioprotetor seria a alteração dos fatores envolvidos na coagulação sanguínea. O consumo de álcool aumenta os níveis do ativador do plasminogênio tecidual, que é uma enzima envolvida na desintegração dos trombos, reduzindo a probabilidade de formação de trombos. As concentrações baixas de fibrinogênio observadas depois do consumo de etanol também podem causar um efeito cardioprotetor e estudos epidemiológicos relacionaram o consumo moderado de álcool com inibição da atividade plaquetária. Os indivíduos que não bebem deveriam ser aconselhados a ingerir quantidades moderadas de etanol? A resposta é não. Nenhuma experiência clínica randômica foi realizada para avaliar a eficácia do consumo diário de etanol na redução da incidência da cardiopatia coronariana e das taxas de mortalidade e, por este motivo, os médicos não devem recomendar a ingestão de álcool unicamente para evitar doenças cardíacas. Muitos abstêmios evitam o álcool porque têm história familiar de alcoolismo ou por outras razões de saúde e seria imprudente sugerir que eles começassem a beber. Devem ser recomendadas outras alterações do estilo de vida ou tratamentos clínicos quando os pacientes apresentam risco alto de desenvolver CC. Hipertensão O consumo maciço de álcool pode aumentar as pressões sistólica e diastólica. Alguns estudos sugeriram uma correlação não linear positiva entre consumo de álcool e hipertensão, que não estava relacionada com idade, nível de instrução, tabagismo ou uso Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 de anticoncepcionais orais. O consumo de mais de 30 g de álcool por dia (mais de dois drinques) foi associado às elevações de 1,5-2,3 mmHg nas pressões sanguíneas sistólica e diastólica. A prevalência da hipertensão atribuível ao consumo excessivo de álcool não foi determinada, mas alguns estudos sugeriram uma variação de 5-11%. A prevalência provavelmente é maior entre homens que em mulheres, tendo em vista que os primeiros consomem quantidades maiores de álcool. A redução ou a interrupção do consumo de álcool pelos alcoólatras inveterados pode reduzir a necessidade de usar anti- hipertensivos, ou baixar a pressão arterial aos níveis normais. A faixa segura de consumo de álcool para pacientes hipertensos que ingerem pequenas quantidades (um ou dois drinques ocasionalmente e menos de 14 drinques por semana) ainda não foi determinada. Os fatores que devem ser levados em consideração são história pessoal de cardiopatia isquêmica, história de bebedeiras, ou história familiar de alcoolismo ou acidente vascular encefálico. Os pacientes hipertensos que apresentam qualquer um desses fatores de risco devem abster-se do uso de álcool. Arritmias cardíacas O álcool produz alguns efeitos farmacológicos na condução cardíaca, incluindo-se ampliação do intervalo QT, prolongamento da repolarização ventricular e estimulação simpática. As arritmias atriais associadas ao consumo crônico de álcool são taquicardia supraventricular, fibrilação e flutter atrial. Cerca de 15-20% dos casos idiopáticos de fibrilação atrial podem ser induzidos pelo consumo crônico de etanol. A taquicardia ventricular pode ser responsável pelo aumento do risco de morte súbita não explicada, que foi demonstrado em indivíduos dependentes de álcool. Durante o uso crônico de álcool, o tratamento dessas arritmias pode ser mais resistente à cardioversão, à digoxina ou aos bloqueadores do canal de Ca2+. Os pacientes que apresentam arritmias atriais recidivantes ou refratárias devem ser questionados cuidadosamente quanto ao consumo de álcool. Cardiomiopatia O etanol é conhecido por seus efeitos tóxicos dependentes da dose nos músculos cardíaco e esquelético. Vários estudos mostraram que o álcool pode deprimir a contratilidade cardíaca e causar cardiomiopatia. A ecocardiografia demonstra hipocinesia global. Cerca de metade de todos os pacientesque apresentam cardiomiopatia idiopática é dependente de álcool. Embora os sinais e os sintomas clínicos das miocardiopatias idiopática e induzida por álcool sejam semelhantes, a forma associada ao consumo de Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 álcool tem prognóstico mais favorável se os pacientes conseguirem parar de beber. As mulheres correm risco maior de desenvolver cardiomiopatia alcoólica que os homens. Como 40-50% dos pacientes com cardiomiopatia alcoólica que continuam a beber morrem em 3-5 anos, a abstinência de álcool ainda é a principal intervenção terapêutica. Acidente vascular encefálico (AVE) Estudos clínicos sugeriram aumento da incidência dos acidentes vasculares encefálicos isquêmicos e hemorrágicos em indivíduos que ingerem mais de 40-60 g de álcool por dia. Muitos casos de acidente vascular encefálico ocorrem depois da ingestão prolongada de grandes quantidades de álcool, especialmente quando o AVE ocorre em indivíduos mais jovens. Os fatores etiológicos sugeridos são: ➔ Arritmias cardíacas induzidas pelo álcool e formação subsequente de trombos; ➔ Pressão arterial elevada pelo consumo crônico de álcool e degeneração subsequente das artérias cerebrais; ➔ Aumentos repentinos da pressão arterial e alterações do tônus das artérias cerebrais; ➔ Traumatismo craniano Os efeitos na hemostasia, na fibrinólise e na coagulação sanguínea variam e podem evitar ou desencadear acidentes vasculares encefálicos. Os efeitos do álcool na formação de aneurismas intracranianos são controversos, mas a associação estatística desaparece quando se faz controle para uso de tabaco e em relação ao sexo. Músculos esqueléticos O álcool produz alguns efeitos nos músculos esqueléticos. O consumo diário, crônico e maciço de álcool foi associado à redução da força muscular, mesmo depois da correção para outros fatores como idade, tabagismo e doenças crônicas. Doses maciças de álcool também podem causar lesão irreversível dos músculos, que se reflete na elevação acentuada da atividade da creatinocinas e plasmática. As biópsias de músculo de alcoólatras inveterados também demonstram reservas reduzidas de glicogênio e diminuição da atividade da piruvatocinase. Cerca de 50% dos alcoólatras inveterados crônicos têm sinais de atrofia das fibras tipo II. Essas alterações correlacionam-se com reduções da síntese das proteínas musculares e da atividade da carnosinase sérica. A maioria dos pacientes com alcoolismo crônico apresenta alterações Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 na eletromiografia e muitos têm evidências de miopatia esquelética semelhante à cardiomiopatia alcoólica. Temperatura corporal A ingestão de álcool gera uma sensação de calor porque o etanol aumenta a irrigação sanguínea da pele e do estômago. Também pode haver aumento da transpiração. Por essa razão, o calor é dissipado mais rapidamente e a temperatura corporal interna diminui. Depois do consumo de grandes quantidades de etanol, o próprio mecanismo central de regulação térmica fica deprimido e a queda da temperatura corporal pode ser mais pronunciada. A ação do álcool na redução da temperatura corporal é maior e mais perigosa quando a temperatura ambiente é baixa. Os estudos de mortes associadas a hipotermia sugerem que o álcool pode ser um fator de risco significativo nesses eventos. Os pacientes que apresentam isquemia das extremidades secundária a doença vascular periférica são particularmente suscetíveis a lesões causadas pelo frio. Diurese O álcool inibe a liberação de vasopressina (hormônio antidiurético) pela hipófise posterior e aumenta a diurese. A sobrecarga de volume que acompanha a ingestão alcoólica contribui para a diurese causada por redução da secreção de vasopressina. Os alcoólicos têm débito urinário menor que os indivíduos de controle em resposta a uma dose de estimulação de etanol, o que sugere que haja tolerância aos efeitos diuréticos do etanol. Com a abstinência, os alcoólatras apresentam aumento da liberação de vasopressina e retenção de água, além de hiponatremia diluicional. Sistema gastrintestinal Esôfago – O álcool frequentemente é o fator etiológico principal, ou um dos vários fatores etiológicos associados a disfunção esofágica. Além disso, o etanol também está associado ao desenvolvimento de refluxo esofágico, esôfago de Barrett, ruptura traumática do esôfago, lacerações de Mallory-Weiss e câncer de esôfago. Em comparação com os indivíduos que não bebem e não fumam, os pacientes dependentes de álcool que fumam têm aumento de 10 vezes do risco de desenvolver câncer de esôfago. Há pouca alteração da função esofágica em concentrações sanguíneas baixas de etanol, mas com níveis sanguíneos mais altos há redução da peristalse e diminuição da pressão no esfincter esofágico inferior. Os pacientes que apresentam esofagite de refluxo crônica podem melhorar com inibidores da bomba de prótons e com abstinência de álcool. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Estômago – O consumo maciço de álcool pode desintegrar a barreira mucosa do estômago e causar gastrites aguda e crônica. O etanol parece estimular as secreções gástricas por meio da excitação dos nervos sensoriais das mucosas oral e gástrica e da estimulação da liberação de gastrina e histamina. Bebidas que contenham mais de 40% de álcool também produzem um efeito tóxico direto na mucosa gástrica. Embora esses efeitos sejam observados mais comumente em alcoólicos inveterados crônicos, podem ocorrer depois do consumo moderado por períodos curtos. O diagnóstico pode não ser evidente porque muitos pacientes têm resultados normais nos exames endoscópicos e nas radiografias do trato gastrintestinal alto. Os sintomas clínicos incluem dor epigástrica aliviada por antiácidos ou bloqueadores do receptor H2 da histamina. O álcool não parece desempenhar papel importante na patogenia da doença ulcerosa péptica. Ao contrário das gastrites aguda e crônica, a doença ulcerosa péptica não é mais comum em indivíduos alcoólicos. No entanto, o álcool piora a evolução clínica e a gravidade dos sintomas das úlceras. O etanol parece atuar sinergicamente com o Helicobacter pylori e retardar a cicatrização. Embora não seja comum, o sangramento agudo proveniente da mucosa gástrica pode ser uma emergência potencialmente fatal. O sangramento GI alto está associado mais comumente às varizes esofágicas, à ruptura traumática do esôfago e aos distúrbios da coagulação. Intestinos – Muitos pacientes alcoólatras têm diarreia crônica causada por má absorção no intestino delgado. O sintoma principal é eliminação frequente de fezes amolecidas. As fissuras anais e o prurido anal que frequentemente ocorrem com o consumo maciço de álcool provavelmente estão relacionados com a diarreia crônica. A diarreia é causada pelas alterações estruturais e funcionais do intestino delgado; a mucosa intestinal apresenta vilosidades achatadas e os níveis das enzimas digestivas geralmente mostram-se reduzidos. Em geral, essas alterações são reversíveis depois de um período de abstinência. O tratamento inclui reposição das vitaminas e dos eletrólitos essenciais, redução do trânsito intestinal com um fármaco como a loperamida e abstinência de qualquer bebida alcoólica. Os pacientes que apresentam deficiência grave de magnésio (Mg2+ sérico < 1 mEq/L) ou os indivíduos sintomáticos (sinal de Chvostek positivo ou asterixe) devem receber 1 g de MgSO4 por via intravenosa ou intramuscular a cada 4 h, até que a [Mg2+] esteja acima de 1 mEq/L. Pâncreas – Nos EUA, o consumo maciçode álcool é a causa mais comum de pancreatite aguda e crônica. Embora existam casos descritos de pancreatite depois de Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 um único episódio de ingestão maciça de etanol, o consumo maciço prolongado é comum na maioria dos casos. A pancreatite alcoólica aguda caracteriza-se por início súbito de dor abdominal, náuseas, vômitos e elevação dos níveis séricos ou urinários das enzimas pancreáticas. A tomografia computadorizada vem sendo usada com frequência crescente como exame diagnóstico. Embora a maioria das crises não seja fatal, o paciente pode desenvolver pancreatite hemorrágica e choque seguido de insuficiência renal, insuficiência respiratória e morte. Em geral, o tratamento inclui reposição de líquidos por via endovenosa, normalmente com aspiração nasogástrica, e administração de analgésicos opioides. A etiologia da pancreatite aguda provavelmente está relacionada com o efeito metabólico tóxico direto do álcool nas células acinares do pâncreas. Dois terços dos pacientes que têm pancreatite alcoólica recidivante desenvolvem pancreatite crônica. A pancreatite crônica é tratada pela correção das deficiências endócrinas e exócrinas resultantes da insuficiência pancreática. O desenvolvimento de hiperglicemia geralmente requer o uso de insulina para controlar os níveis glicêmicos. Podem ser necessárias cápsulas com enzimas pancreáticas contendo lipase, amilase e proteases para corrigir a desnutrição. Fígado – O etanol causa vários efeitos deletérios dependentes da dose no fígado. Os principais efeitos são infiltração gordurosa do fígado, hepatite e cirrose. Em virtude da sua toxicidade intrínseca, o álcool pode lesionar o fígado mesmo na ausência de carências nutricionais. A acumulação de gordura no fígado é a primeira alteração e pode ocorrer nos indivíduos normais após a ingestão de quantidades relativamente pequenas de etanol. Essa acumulação é atribuída à inibição do ciclo do ácido tricarboxílico e à oxidação das gorduras, em parte decorrente de geração de quantidades excessivas de NADH pelas ações da ADH e ALDH. A oxidação alcoólica pela ADH causa redução da nicotinamida adenina dinucleotídeo (NAD) a NADH, com uma consequente redução na NAD e um aumento no NADH. NAD é necessária para oxidação dos ácidos graxos no fígado e para a conversão do lactato em piruvato. A sua deficiência é a principal causa do acúmulo de gordura no fígado dos alcoólatras. O aumento na razão NADH/NAD em alcoólatras também pode causar acidose lática. Estudos sugeriram alguns mecanismos moleculares para explicar a cirrose hepática. Em modelos de primatas não humanos, o álcool altera a peroxidação dos fosfolipídeos. O etanol reduz os níveis da fosfatidilcolina das mitocôndrias hepáticas e essa alteração está associada a redução da atividade da oxidase e a diminuição do consumo de O2. Citocinas como o fator β transformador do crescimento e o fator α de necrose tumoral podem aumentar as taxas de fibrinogênese e fibrose no fígado. O Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 acetaldeído parece produzir alguns efeitos adversos, incluindo-se depleção da glutationa, esgotamento das vitaminas e dos oligoelementos e redução do transporte e da secreção das proteínas, em virtude da inibição da tubulina. A toxicidade hepática induzida pelo paracetamol foi associada à cirrose alcoólica em consequência de aumentos induzidos por álcool na produção microssômica de metabólitos tóxicos do paracetamol. A insuficiência hepática secundária à cirrose, que diminui a depuração de toxinas como a amônia, também pode contribuir para encefalopatia hepática induzida pelo álcool. O etanol também parece aumentar a formação intracelular de radicais livres hidroxietílicos. A esteatose é habitualmente um processo reversível. A remoção dos fatores causais leva à mobilização da gordura acumulada e restauração do aspecto normal. Porém, a persistência prolongada da esteatose, associada a outras agressões, p. ex. alcoolismo, pode levar a uma destruição progressiva dos hepatócitos, com fibrose difusa do parênquima e perda da arquitetura funcional do fígado, chamada cirrose hepática. Na cirrose o fígado fica com superfície externa nodulosa e consistência mais firme que o normal. Ao corte, também se observam nódulos e traves de tecido fibroso denso entre eles. É a fibrose (portanto, colágeno) que dá ao fígado cirrótico sua consistência dura, às vezes quase pétrea. Os nódulos são devidos à regeneração dos hepatócitos. Notar, porém, que só uma minoria dos alcoólatras crônicos desenvolvem cirrose. O motivo para isto é desconhecido. Vitaminas e minerais As carências praticamente absolutas de proteínas, vitaminas e muitos outros nutrientes nas bebidas alcoólicas predispõem os indivíduos que consomem grandes quantidades de álcool a deficiências nutricionais. Em geral, os alcoólatras apresentam deficiências causadas pela ingestão reduzida, pelos distúrbios da absorção ou pela utilização ineficaz dos nutrientes. A neuropatia periférica, a psicose de Korsakoff e a encefalopatia de Wernicke diagnosticadas em pacientes alcoólatras provavelmente são causadas por deficiência das vitaminas do complexo B (principalmente tiamina), embora a toxicidade direta produzida pelo próprio álcool não tenha sido descartada. O uso crônico de álcool reduz a ingestão dietética dos retinoides e carotenoides e acelera o metabolismo do retinol por indução das enzimas degradativas. O retinol e o etanol competem pelo metabolismo pela ADH; por este motivo, a suplementação de vitamina A deve ser cuidadosamente monitorada nos alcoólatras quando estiverem ingerindo álcool para evitar hepatotoxicidade induzida por retinol. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 O consumo crônico de álcool acentua o estresse oxidativo do fígado, em virtude da formação de radicais livres que contribuem para lesão hepática induzida pelo etanol. Os efeitos antioxidantes do α-tocoferol (vitamina E) podem atenuar alguns desses efeitos hepatotóxicos induzidos por etanol. Em geral, os níveis plasmáticos de α-tocoferol mostram-se reduzidos nos alcoólatras com miopatia, em comparação com os pacientes alcoólicos sem miopatia. A ingestão crônica de álcool foi associada à osteoporose. As razões para essa redução da massa óssea ainda não foram esclarecidas, mas a diminuição da atividade dos osteoblastos foi implicada. A administração aguda de etanol provoca uma redução inicial dos níveis séricos do hormônio paratireóideo (PTH) e do Ca+2, seguida do aumento reacional deste hormônio sem normalização das concentrações séricas do Ca+2. A osteopenia induzida pelo álcool melhora com a abstinência. Como a vitamina D depende da hidroxilação hepática para ser ativada, a lesão hepática induzida por álcool pode afetar indiretamente a função da vitamina D na absorção renal e intestinal do Ca+2. Função sexual Apesar da crença difundida de que o álcool melhora o desempenho sexual, geralmente se observa efeito contrário. Muitas drogas sujeitas a uso abusivo, incluindo o álcool, produzem efeitos desinibidores que podem aumentar inicialmente a libido. As ingestões aguda e crônica de álcool podem causar impotência masculina. As concentrações sanguíneas altas de etanol diminuem o estímulo sexual, prolongam a latência ejaculatória e diminuem o prazer do orgasmo. A incidência de impotência pode chegar a 50% nos pacientes alcoólicos crônicos. Além disso, muitos alcoólicos crônicos desenvolvem atrofia testicular e redução da fertilidade. O mecanismo envolvido nesseprocesso é complexo e provavelmente envolve distúrbios da função hipotalâmica e um efeito tóxico direto do álcool nas células de Leydig. A ginecomastia está associada à hepatopatia alcoólica e está relacionada com a resposta celular exagerada ao estrogênio e ao metabolismo acelerado da testosterona. A função sexual das mulheres dependentes de álcool não está muito bem esclarecida. Algumas mulheres alcoólicas referem redução da libido, diminuição da lubrificação vaginal e anormalidades do ciclo menstrual. Em geral, os ovários dessas mulheres são pequenos e não apresentam desenvolvimento folicular. Alguns dados sugerem que as taxas de fertilidade sejam menores entre as mulheres alcoólatras. A coexistência de outras doenças, como anorexia nervosa ou bulimia, pode agravar o problema. O prognóstico dos pacientes que se tornam abstêmios é favorável, desde que não haja insuficiência hepática ou gonadal significativa. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Efeitos hematológicos e imunológicos A ingestão crônica de álcool está associada a alguns tipos de anemia. A anemia microcítica pode ser causada por perda crônica de sangue e por deficiência de ferro. As anemias macrocíticas e os aumentos do volume corpuscular médio são comuns e podem ocorrer mesmo que não haja deficiências de vitaminas. As anemias normocíticas também podem ocorrer em virtude dos efeitos da doença crônica na hematopoiese. Nos pacientes que apresentam doença hepática grave, as alterações morfológicas podem incluir o aparecimento de células crenadas, esquistócitos e sideroblastos anulares. A anemia sideroblástica induzida por álcool pode melhorar com a reposição de vitamina B6. A ingestão de álcool também está associada a trombocitopenia reversível, embora seja raro encontrar contagens de plaquetas abaixo de 20.000/mm3. Os sangramentos não são comuns, a menos que haja anormalidades dos fatores da coagulação dependentes da vitamina K1; entre os mecanismos propostos para explicar essa anormalidade está o sequestro de plaquetas no baço e na medula óssea. O álcool também afeta os granulócitos e os linfócitos. Os efeitos são leucopenia, alteração das subpopulações linfocitárias, diminuição da mitogênese dos linfócitos T e alterações na produção das imunoglobulinas. Esses distúrbios podem ser importantes na hepatopatia alcoólica. Em alguns pacientes, a migração leucocitária reduzida para as áreas inflamadas pode explicar em parte a resistência baixa dos alcoólicos a alguns tipos de infecção (p. ex., pneumonia por Klebsiella, listeriose e tuberculose). O consumo de álcool também pode alterar a distribuição e a função das células linfoides por interferir na regulação das citocinas, principalmente com relação à interleucina-2 (IL-2). O álcool parece desempenhar papel importante na infecção pelo vírus da imunodeficiência humana tipo 1 (HIV). Estudos in vitro com linfócitos humanos sugeriram que o álcool pode suprimir a função dos linfócitos T CD4 e a produção de IL-2 estimulada pela concanavalina A e favorecer a replicação do HIV in vitro. Além disso, os indivíduos que fazem uso abusivo de álcool têm índices mais altos de comportamento sexual de alto risco. Definições Hematêmese – Vômito de sangue. Hemoptise – Expulsão de sangue procedente do sistema respiratório pela boca. Vômica – Expulsão pela glote de um líquido primitivamente cavitário. É a eliminação mais ou menos brusca, através da glote, de uma quantidade abundante de pus ou líquidos de aspecto mucoso ou seroso. É eliminado pela tosse. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Melena – Presença de sangue degradado e alterado nas fezes que lhes confere uma cor preta indicativa de sangramento do tubo digestório, denominado hemorragia digestiva alta. Enterorragia – Hemorragia de origem intestinal. Hematoquezia – Também chamado de sangramento retal, é o nome dado à presença de sangue vivo em pequena ou moderada quantidade, que fica envolto às fezes e só aparece quado o paciente evacua. A hematoquezia é um sinal típico dos sangramentos digestivos baixos. Choque O choque é uma síndrome caracterizada por insuficiência circulatória aguda com má distribuição generalizada do fluxo sanguíneo, que implica falência de oferta e/ou utilização do oxigênio nos tecidos. Nem todos os danos teciduais advêm da hipóxia, mas podem decorrer da baixa oferta de nutrientes, reduzida depuração de substâncias tóxicas, maior afluxo de substâncias nocivas aos tecidos, ativação de mecanismos agressores e redução de defesas do hospedeiro. Faz parte da via final comum em inúmeras doenças fatais, contribuindo, portanto, para milhões de mortes em todo o mundo. É fundamental o seu reconhecimento precoce para correção das disfunções por ele provocadas e sua causa de base, pois quanto mais precoce o tratamento, melhor o prognóstico para o doente. Este trabalho tem como objetivo abordar os aspectos de relevância do assunto e, desta maneira, auxiliar o profissional de saúde (médico, médico-residente, estudantes de medicina, enfermeiros e técnicos de enfermagem) no atendimento de pacientes com choque no Pronto-Atendimento, conduzindo à padronização de normas e estabelecimento de condutas para melhor atendimento e tratamento desses pacientes. Classificação do choque Hipovolêmico Desidratação(diarreia, vômitos, poliúria, queimaduras extensas, febre) Hemorragia (politraumatizados, ferimentos com arma de fogo ou arma branca) Sequestro de líquidos (pancreatite, peritonite, colite, pleurite) Drenagem de grandes volumes de transudatos (ascite, hidrotórax) Obstrutivo Coarctação da aorta Embolia pulmonar Pneumotórax hipertensivo Tamponamento cardíaco Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Cardiogênico Aneurisma ventricular Arritmias Defeitos mecânicos Disfunção miocárdica da sepse Disfunção de condução Falência ventricular esquerda Infarto agudo do miocárdio Lesões valvares Miocardite e cardiomiopatias Shunt arteriovenoso Distributivo Anafilaxia Choque séptico Choque neurogênico (trauma raquimedular, traumatismo craniano) Doenças endócrinas (hipocortisolismo/hipotireoidismo) Síndrome vasoplégica, pós-circulação extracorpórea Classificação Os estados de choque podem ser classificados em: hipovolêmico, obstrutivo, cardiogênico e distributivo: ➔ Hipovolêmico: caracterizado por baixo volume intravascular ou baixo volume relativo à sua capacitância, o que determina hipovolemia absoluta ou relativa. O volume contido no compartimento intravascular é inadequado para perfusão tecidual. Há diminuição na pré-carga e diminuição do débito cardíaco (DC). A resistência vascular sistêmica está tipicamente aumentada na tentativa de compensar a diminuição do DC e manter a perfusão nos órgãos vitais. Pode ser dividido em quatro classes com base na gravidade da perda volêmica, como demonstrado na Tabela 2. Exemplos: desidratação, hemorragia, sequestro de líquidos. ➔ Obstrutivo: ocorre em consequência de uma obstrução mecânica ao débito cardíaco, o que ocasiona hipoperfusão tecidual. Causas comuns são: tamponamento cardíaco, tromboembolismo pulmonar e pneumotórax hipertensivo. ➔ Cardiogênico: é consequência da falência primária da bomba cardíaca, que resulta na diminuição do débito cardíaco. Decorre de interferências sobre o Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 inotropismo e/ou cronotropismo cardíacos. Causas: infarto do miocárdio, arritmias, miocardite, entre outras. ➔ Distributivo: caracterizado por inadequação entre a demanda tecidual ea oferta de oxigênio por uma alteração no fluxo sanguíneo. Dessa forma, temos tecidos com fluxo sanguíneo elevado em relação à necessidade e outros com fluxo sanguíneo elevado em termos numéricos, mas insuficiente para atender às necessidades metabólicas (2), como ocorre no choque séptico, anafilaxia e choque neurogênico. Epidemiologia A mortalidade do choque é alta. Hollenberg SM et al. estimam uma taxa de mortalidade de 50 a 80% nos pacientes com choque cardiogênico com infarto agudo do miocárdio. Friedman G et al. estimam uma taxa de mortalidade no choque séptico de 39 a 60%, que não tem diminuído significativamente nas últimas décadas. A mortalidade do choque hipovolêmico é mais variável. Fisiopatologia No choque ocorre um desbalanço entre a demanda de oxigênio e o consumo. A privação de oxigênio leva à hipóxia celular e desarranjo do processo bioquímico a nível celular, que pode progredir para nível sistêmico. Ocorre alteração do funcionamento das bombas de íons na membrana celular, edema intracelular, alteração do conteúdo intracelular e regulação inadequada do pH intracelular. Os efeitos sistêmicos incluem alteração do pH sérico, disfunção endotelial e estimulação das cascatas inflamatória e anti-inflamatória. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Os efeitos da privação de oxigênio são inicialmente reversíveis, mas, rapidamente, tornam-se irreversíveis. O resultado é morte celular sequencial, dano em órgãos-alvo, falência múltipla de órgãos e morte. A perfusão tissular sistêmica é determinada pelo débito cardíaco (DC) e resistência vascular sistêmica. O DC é o produto da frequência cardíaca pelo volume sistólico. A resistência vascular sistêmica (RVS) é controlada pelo tamanho do vaso, viscosidade sanguínea e é inversa ao diâmetro do vaso. Uma diminuição da perfusão tissular sistêmica pode ser consequência da diminuição do DC ou RVS. Esses parâmetros não precisam necessariamente estar diminuídos. Um pode ter se elevado enquanto o outro está desproporcionalmente diminuído, como no choque hiperdinâmico, em que a RVS está diminuída e o DC aumentado. O débito cardíaco e a resistência vascular sistêmica podem se alterar de diferentes formas nos diferentes tipos de choque. A Tabela 3 demonstra as variáveis hemodinâmicas e respiratórias que serão abordadas mais adiante: ➔ Hipovolêmico – Há diminuição da pré-carga devido à diminuição do volume intravascular. Consequentemente, há diminuição do DC, inicialmente compensado por taquicardia. Conforme esse mecanismo vai sendo superado, os tecidos vão aumentando a extração de oxigênio, o que ocasiona aumento na diferença entre o conteúdo de oxigênio arterial e venoso e queda na saturação venosa mista (SvO2). A resistência vascular sistêmica está tipicamente aumentada na tentativa de compensar a diminuição do débito cardíaco e manter a perfusão de órgãos vitais. ➔ Obstrutivo – Ocorre devido à obstrução mecânica ao débito cardíaco, o que ocasiona hipoperfusão tecidual. ➔ Cardiogênico – Ocorre devido à falência cardíaca, que resulta em diminuição do débito cardíaco. A RVS está tipicamente aumentada, assim como no choque hipovolêmico, a fim de compensar a diminuição do DC. Ao exame físico, é comum o achado de vasoconstrição periférica e oligúria. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 ➔ Distributivo – É consequência da diminuição severa da RVS. O DC encontra- se aumentado na tentativa de compensar a diminuição da resistência vascular sistêmica. Indiferentemente do tipo de choque, existe um contínuo fisiológico. O choque começa com um evento desencadeante, tal como um foco de infecção, um abscesso, ou outra lesão. Isso produz uma anormalidade no sistema circulatório, que pode progredir através de alguns estágios complexos e entrelaçados – pré-choque, choque, e disfunção de órgãos. A progressão pode culminar em dano a órgão irreversível ou morte. Fases: ➔ Pré-choque: É caracterizado por rápida compensação da diminuição da perfusão tecidual pelos diversos mecanismos homeostáticos. Como exemplo, mecanismos compensatórios durante o pré-choque podem permitir que um adulto saudável esteja assintomático apesar da redução de 10% do volume sanguíneo efetivo total (3). Taquicardia, vasoconstrição periférica e uma modesta redução ou aumento na pressão arterial pode ser o único sinal clínico do choque. ➔ Choque: Aqui, os mecanismos compensatórios encontram-se suprimidos e os sinais e sintomas da disfunção de órgãos surgem, como taquicardia, dispneia, agitação, diaforese, acidose metabólica, oligúria e pele fria. Os sinais e sintomas da disfunção orgânica tipicamente correspondem a uma alteração fisiológica significante, como a redução de 15 a 20% do volume sanguíneo efetivo no choque hipovolêmico ou ativação de inúmeros mediadores da síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) no choque distributivo. ➔ Disfunção de órgão-alvo: progressiva disfunção de órgão-alvo conduz a dano orgânico irreversível e morte do paciente. Durante esse estágio, a produção de urina pode diminuir acentuadamente, culminando em anúria e insuficiência renal aguda. Pode haver acidose, diminuição da frequência cardíaca e alterações no processo de metabolismo celular, além de agitação, obnubilação e coma. Patogênese e Resposta Orgânica Microcirculação Em geral, quando o débito cardíaco cai, a resistência vascular sistêmica aumenta para manter um nível de pressão sistêmica adequado à perfusão do coração e do cérebro em detrimento de outros tecidos, como os músculos, a pele e, em especial, o trato Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 gastrintestinal (GI). A resistência vascular sistêmica é determinada primariamente pelo diâmetro luminal das arteríolas. As taxas metabólicas do coração e do cérebro são altas e suas reservas de substrato de energia baixas. Esses órgãos são altamente dependentes de uma oferta contínua de oxigênio e nutrientes e não toleram isquemia grave por mais que breves períodos (minutos). A autorregulação (i.e., a manutenção do fluxo sanguíneo em uma ampla variedade de pressões de perfusão) é crucial para preservar as perfusões cerebral e coronariana apesar de hipotensão significativa. Contudo, quando a PAM cai para 60 mmHg ou menos, o fluxo sanguíneo para esses órgãos diminui e sua função deteriora. O músculo liso vascular arteriolar tem receptores α e β-adrenérgicos. Os receptores α1 fazem a mediação da vasoconstrição, enquanto os receptores β2 fazem a mediação da vasodilatação. As fibras simpáticas eferentes liberam norepinefrina, a qual age primariamente nos receptores α1, ocorrendo uma das respostas compensatórias mais fundamentais para a redução da pressão de perfusão. Outras substâncias constritoras cujos níveis aumentam na maioria das formas de choque são a angiotensina II, vasopressina, endotelina 1 e tromboxano A2. A norepinefrina e a epinefrina são liberadas pela medula suprarrenal, e as concentrações dessas catecolaminas na corrente sanguínea aumentam. Os vasodilatadores circulantes no choque incluem a prostaciclina (prostaglandina [PG]I2), o óxido nítrico (NO) e, de maneira importante, produtos do metabolismo local como a adenosina, que adapta o fluxo às necessidades metabólicas teciduais. O equilíbrio entre essas várias substâncias vasoconstritoras e vasodilatadoras influencia a microcirculação e determina a perfusão local. O transporte para as células depende do fluxo microcirculatório, da permeabilidade capilar, da difusão de oxigênio, dióxido de carbono, nutrientes e produtos do metabolismo pormeio do interstício, bem como da troca desses produtos pelas membranas celulares. O dano à microcirculação, fundamental às respostas fisiopatológicas nos últimos estágios de todas as formas de choque, resulta na desorganização do metabolismo celular, que é, em última análise, responsável pela insuficiência orgânica. A resposta endógena à hipovolemia leve ou moderada é uma tentativa de restaurar o volume intravascular mediante alterações na pressão hidrostática e na osmolaridade. A constrição arteriolar leva à redução da pressão hidrostática capilar e do número de leitos capilares perfundidos, limitando, assim, a área de superfície capilar por meio da qual ocorre a filtração. Quando a filtração é reduzida enquanto a pressão oncótica intravascular continua constante ou aumenta, ocorre uma reabsorção de líquido no leito vascular, de acordo com a lei de Starling de troca de líquido entre capilares e interstício. As alterações metabólicas (incluindo a hiperglicemia e elevações nos produtos de Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 glicólise, lipólise e proteólise) aumentam a osmolaridade extracelular, levando a um gradiente osmótico que aumenta os volumes intersticial e intravascular às custas do volume intracelular. Respostas Celulares O transporte intersticial de nutrientes é prejudicado no choque, levando ao declínio das reservas intracelulares de fosfato de alta energia. A disfunção mitocondrial e o desacoplamento da fosforilação oxidativa são as causas mais prováveis da diminuição das quantidades de adenosina trifosfato (ATP). Em consequência, há acúmulo de íons hidrogênio, lactato, espécies reativas de oxigênio e outros produtos do metabolismo anaeróbio. À medida que o choque avança, esses metabólitos vasodilatadores suprimem o tônus vasomotor, agravando a hipotensão e a hipoperfusão. Acredita-se que a disfunção das membranas celulares representa o estágio final de uma via fisiopatológica comum entre as várias formas de choque. O potencial transmembrana celular normal cai e há um aumento da água e do sódio intracelular, ocasionando edema celular, que interfere ainda mais na perfusão microvascular. Em um evento pré-terminal, há perda da homeostase do cálcio por meio dos canais de cálcio, ocorrendo inundação de cálcio no citosol e hipocalcemia extracelular concomitante. Também há evidências de perda celular apoptótica (morte celular programada), disseminada e seletiva, que contribui para a insuficiência de órgãos e falência imunológica. Resposta Neuroendócrina A hipovolemia, a hipotensão e a hipoxia são percebidas por barorreceptores e quimiorreceptores, os quais contribuem para uma resposta autonômica que tenta restaurar o volume sanguíneo, manter a perfusão central e mobilizar os substratos metabólicos. A hipotensão desinibe o centro vasomotor, resultando em aumento do débito adrenérgico e redução da atividade vagal. A liberação de norepinefrina dos neurônios adrenérgicos induz vasoconstrição periférica e esplâncnica significativa, um elemento essencial para a manutenção da perfusão dos órgãos principais, enquanto a atividade vagal reduzida aumenta a frequência e o débito cardíacos. Também se sabe que a perda de atividade vagal suprarregula a resposta inflamatória inata da imunidade. Os efeitos da epinefrina circulante liberada pela medula suprarrenal no choque são amplamente metabólicos, causando aumento da glicogenólise e da gliconeogênese, bem como redução da liberação pancreática de insulina. Entretanto, a epinefrina também inibe Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 a produção e liberação de mediadores inflamatórios por meio da estimulação de receptores β-adrenérgicos nas células imunes inatas. Dor intensa ou outras causas de estresse levam à liberação hipotalâmica de hormônio adrenocorticotrópico (ACTH). Isso estimula a secreção de cortisol, a qual contribui para redução da captação periférica de glicose e aminoácidos, aumento da lipólise e aumento da gliconeogênese. O aumento da secreção pancreática de glucagon durante o estresse acelera a gliconeogênese hepática, elevando a concentração de glicose no sangue. Essas ações hormonais agem sinergicamente aumentando a glicemia para o metabolismo tecidual seletivo e a manutenção do volume sanguíneo. Demonstrou- se, recentemente, que muitos pacientes criticamente enfermos exibem baixos níveis plasmáticos de cortisol e resposta deficiente à estimulação do ACTH, o que está ligado a uma menor sobrevida. A importância da resposta do cortisol ao estresse é ilustrada pelo grave colapso circulatório que ocorre nos pacientes com insuficiência adrenocortical. A liberação de renina é aumentada em resposta à descarga adrenérgica e à perfusão reduzida do aparelho justaglomerular no rim. A renina induz a formação de angiotensina I, que é então convertida em angiotensina II pela enzima conversora da angiotensina; a angiotensina II é um vasoconstritor extremamente potente e estimulador da liberação de aldosterona pelo córtex suprarrenal e vasopressina pela neuro-hipófise. A aldosterona contribui para a manutenção do volume intravascular pelo aumento da reabsorção tubularrenal de sódio, resultando em um volume de urina pequeno, concentrado e sem sódio. A vasopressina tem uma ação direta no músculo liso vascular, contribuindo para a vasoconstrição, e atua também nos túbulos renais distais aumentando a reabsorção de água. Resposta Cardiovascular Três variáveis – enchimento ventricular (pré-carga), resistência à ejeção ventricular (pós-carga) e contratilidade miocárdica – são fundamentais no controle do volume sistólico. O débito cardíaco, maior determinante de perfusão tecidual, é produto do volume sistólico e da frequência cardíaca. A hipovolemia diminui a pré-carga ventricular, a qual reduz o volume sistólico. O aumento na frequência cardíaca é um mecanismo compensatório útil, mas limitado, para manter o débito cardíaco. O choque costuma provocar redução na complacência miocárdica, o qual reduz o volume diastólico final ventricular e, assim, o volume sistólico independentemente da pressão de enchimento. A restauração do volume intravascular pode normalizar o volume sistólico, mas apenas em pressões de enchimento elevadas. O aumento das pressões de enchimento também estimula a liberação de peptídeo natriurético cerebral (BNP), que provoca a Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 secreção de sódio e volume para aliviar a pressão no coração. Os níveis elevados de BNP correlacionam-se com pior desfecho após estresse intenso. Além disso, sepse, isquemia, infarto do miocárdio, traumatismo tecidual grave, hipotermia, anestesia geral, hipotensão prolongada e acidose também podem prejudicar a contratilidade miocárdica, assim como reduzir o volume sistólico sob qualquer volume diastólico final ventricular. A resistência à ejeção ventricular é significativamente influenciada pela resistência vascular sistêmica, elevada na maioria das formas de choque. Porém, a resistência está diminuída no estágio hiperdinâmico inicial do choque séptico ou no choque neurogênico, permitindo, inicialmente, que o débito cardíaco seja mantido ou elevado. O sistema venoso contém cerca de dois terços do volume sanguíneo total circulante, a maior parte nas veias pequenas, e serve como reservatório dinâmico para a autoinfusão de sangue. A venoconstrição ativa desencadeada pela atividade α- adrenérgica é um mecanismo compensatório importante para a manutenção do retornovenoso e, portanto, do enchimento ventricular durante o choque. Em contraste, a dilatação venosa, como ocorre no choque neurogênico, reduz o enchimento ventricular e, como consequência, o volume sistólico e, potencialmente, o débito cardíaco. Resposta Pulmonar A resposta do leito vascular pulmonar ao choque é semelhante à do leito vascular sistêmico, e o aumento relativo na resistência vascular pulmonar, em particular no choque séptico, pode exceder o da resistência vascular sistêmica, levando à insuficiência cardíaca direita. A taquipneia induzida pelo choque reduz o volume corrente, bem como aumenta o espaço morto e a ventilação minuto. A hipoxia relativa e a taquipneia subsequente induzem alcalose respiratória. A posição em decúbito e a restrição involuntária de ventilação secundária à dor reduzem a capacidade residual funcional, podendo resultar em atelectasia. O choque e, em particular, a geração de espécies reativas de oxigênio (radicais oxidantes) induzidas pela ressuscitação são reconhecidos como uma das principais causas de lesão pulmonar aguda e subsequente síndrome da angústia respiratória aguda. Esses distúrbios caracterizam-se por edema pulmonar não cardiogênico secundário à lesão pulmonar difusa em endotélio capilar e epitélio alveolar, hipoxemia e infiltrados pulmonares difusos bilaterais. A hipoxemia resulta da perfusão de alvéolos subventilados ou não ventilados. A perda de surfactante e volume pulmonar, em combinação com o aumento dos edemas alveolar e intersticial, reduz a complacência pulmonar. O trabalho respiratório e as necessidades de oxigênio dos músculos respiratórios aumentam. Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 Resposta Renal A lesão renal aguda, uma séria complicação do choque e da hipoperfusão, ocorre com menos frequência que no passado devido à reposição volêmica agressiva precoce. Atualmente, a necrose tubular aguda é mais observada como resultante das interações do choque, da sepse, da administração de agentes nefrotóxicos (como aminoglicosídeos e meio de contraste angiográfico) e da rabdomiólise, podendo a última ser particularmente grave no traumatismo musculoesquelético. A resposta fisiológica do rim à hipoperfusão é conservar o sal e a água. Além da diminuição do fluxo sanguíneo renal, o aumento da resistência das arteríolas aferentes é responsável pela diminuição da taxa de filtração glomerular (TFG), o que, juntamente com o aumento da aldosterona e vasopressina, responde pela redução da formação de urina. Uma lesão tóxica causa necrose do epitélio tubular e obstrução tubular por restos celulares com fluxo retrógrado de filtrado. A depleção das reservas renais de ATP, que ocorre com a hipoperfusão renal prolongada, contribui para a deficiência subsequente da função renal. Desarranjos metabólicos Durante o choque, há ruptura dos ciclos normais de metabolismo de carboidratos, lipídeos e proteínas. Por meio do ciclo do ácido cítrico, a alanina, junto ao lactato, que é convertido a partir do piruvato na periferia devido à privação de oxigênio, aumenta a produção hepática de glicose. Com a redução da oferta de oxigênio, a degradação da glicose em piruvato e, posteriormente, lactato representa um ciclo ineficiente do substrato com produção de saldo energético mínimo. Uma relação aumentada do lactato/piruvato plasmático é preferível ao lactato isoladamente como uma medida do metabolismo anaeróbio e reflete perfusão tecidual inadequada. A diminuição da depuração dos triglicerídeos exógenos, junto com o aumento da lipogênese hepática, causa um aumento significativo nas concentrações séricas de triglicerídeos. Há aumento do catabolismo das proteínas como substrato de energia, um equilíbrio nitrogenado negativo e, se o processo for prolongado, intensa perda muscular. Respostas Inflamatórias A ativação de uma rede extensa de vias de mediadores pró-inflamatórios pelo sistema imune inato exerce um papel significativo na progressão do choque, bem como contribui de maneira importante para o desenvolvimento de lesão, disfunção de múltiplos órgãos (DMO) e FMO. Nos que sobrevivem à crise aguda, há uma resposta contrarreguladora prolongada ao “desligamento” ou equilíbrio de resposta pró-inflamatória excessiva. Se o equilíbrio for restaurado, o paciente evolui bem. Sendo a resposta Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 excessiva, a imunidade adaptativa é suprimida e o paciente ficará altamente suscetível a infecções hospitalares secundárias que poderão, então, levar à resposta inflamatória e à FMO tardia. Diversos mediadores humorais são ativados durante o choque e a lesão tecidual. A cascata do complemento, ativada por meio das vias clássica e alternativa, gera as anafilatoxinas C3a e C5a. A fixação do complemento direto nos tecidos lesionados pode progredir para o complexo de ataque de C5-C9, causando lesão celular adicional. A ativação da cascata da coagulação causa trombose microvascular, com consequente fibrinólise, levando a episódios repetidos de isquemia e reperfusão. Os componentes do sistema de coagulação (p. ex., trombina) são mediadores pró-inflamatórios potentes que causam expressão das moléculas de adesão nas células endoteliais e ativação dos neutrófilos, gerando lesão microvascular. A coagulação também ativa a cascata de calicreína-cininogênio, contribuindo para a hipotensão. Os eicosanoides são produtos vasoativos e imunomoduladores do metabolismo do ácido araquidônico que incluem prostaglandinas (PG) derivadas da cicloxigenase e do tromboxano A2, assim como leucotrienos e lipoxinas derivados da lipoxigenase. O tromboxano A2 é um vasoconstritor potente que contribui para a hipertensão pulmonar e necrose tubular aguda do choque. A PGI2 e a PGE2 são vasodilatadores Sidney Ferreira de Moraes Neto - Med2020 - 2017 potentes que aumentam a permeabilidade capilar e a formação de edema. Os leucotrienos de cisteinil LTC4 e LTD4 são mediadores essenciais das sequelas vasculares de anafilaxia, assim como de estados de choque que resultam de sepse ou dano tecidual. O LTB4 é um potente estimulador para a quimiotaxia dos neutrófilos e secretagogo, estimulando a formação de espécies reativas de oxigênio. O fator de ativação plaquetária (um mediador fosfolipídico contendo araquinidonil ligado a um éter) causa vasoconstrição pulmonar, broncoconstrição, vasodilatação sistêmica, aumento na permeabilidade capilar, bem como estimula os macrófagos e neutrófilos a produzir níveis elevados de mediadores inflamatórios. O fator de necrose tumoral α (TNF-α), produzido pelos macrófagos ativados, reproduz muitos aspectos do estado de choque, como hipotensão, acidose láctica e insuficiência respiratória. A interleucina 1β (IL-1β), originalmente definida como “pirogênio endógeno” e produzida pelos macrófagos teciduais, também é crucial para a resposta inflamatória. Essas citocinas tornam-se significativamente elevadas logo após um traumatismo e choque. A IL-6, também produzida predominantemente pelo macrófago, tem um pico de resposta ligeiramente tardio, mas é o melhor preditor único de recuperação prolongada e desenvolvimento de FMO após o choque. Citocinas, como a IL- 8, são potentes quimiotáxicos e ativadores dos neutrófilos, regulando as moléculas de adesão no neutrófilo para aumentar a agregação, a adesão e o dano ao endotélio vascular. Embora o endotélio normalmente produza níveis baixos de NO, a resposta inflamatória estimula a isoforma de óxido nítrico-sintase induzível (iNOS), que é excessivamente