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RESUMÃO TEORIA PSICANALÍTICA I

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'j'r. -?
74
4. A CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE, A PRIMEIRA TEORIA PULSIONAL E O
CONCEITO DE NARCISISMO
A alma cativa e obcecada
Enrola-se, infinitamente, numa espiral de desejo.
Carlos Drummond de Andrade
4.1 A pULSÀo E A CONSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE
Freud realizou um verdadeiro corte epistemológico ao separar a sexualidade de seu
fundamento anatômico, biológico e genital para estudar a sua representação subjetiva e
. social. A psicanálise não se ocupa do sexo como diferença anatômica, senão da sexualidade
como construção psíquica, como posição do sujeito em relação ao seu desejo.
Para Freud, a sexualidade humana se distingue da necessidade, porque sua
satisfação depende de condições fantasmáticas que determinam tanto a eleição do objeto
como o tipo de atividade sexual.
Nesse sentido, o autor utiliza a palavra alemã TRIEB48 para significar pulsão, ao invés
da palavra instinto, pois essa última denota um esquema de comportamento herdado, que
inclui uma finalidade e um objeto de satisfação precisos.
Freud insiste em que a sexualidade humana não éum dado natural. nas q\le se
constrói sobre uma complexa história de relaCÕessubjetivas.
O conceito de realidade psíquica permite escapar das oposições inconciliáveis entre o
psíquico e o biológico, o real e o imaginário. Uma vez que a realidade material é
inapreensível em si, a realidade psíquica corresponde aos desejos inconscientes que se
expressam pela fantasia. Diferentemente.da função do juízo, que se subordina ao princípio
de realidade, a criação de fantasias corresponde à parte da atividade psíquica que
permanece subordinada ao princípio do prazer.
4> A tradução da palavra alemã TRIEB provoca muita polêmica. devido à ampla gama de
significações que abarca. Em alemão, os significados vão desde um princípio maior, que rege os
seres vivos e que se manifesta como força que coloca em ação os seres de cada espéciel;como algo
que aparece fisiologicamente no corpo somático do sujeito como se brotasse dele e o incitasse; por
fim, como algo que se manifesta para o sujeito, fazendo-se representar no nivel interno e íntimo,
como se fosse sua vontade ou um imperativo pessoal. Todos os significados atribuídos a TRIEB, no
entanto, tem como base uma forca propulsora que produz movimento.
,
•
75
Em 1905, Freud distingue entre as funCÕes necessárias para preservar a vida do
indivíduo e a pulsão sexual, cuja finalidade é a obtenção de prazer, servindo à conservação
da espécie. Delineia-se, assim, a primeira teoria pulsional.
A pulsão é concebida como um processo dinâmico, consistir,do de um impulso que
induz o organismo a desenvolver uma atividade particular, cujo objetivo é de suprimir o
estado de tensão, pela descarga que está na origem da pulsão. O próprio impulso é
concebido como um fator quantitativo; é, segundo Freud, uma exigência de trabalho imposta
ao aparelho psíquico [Pulsões e seus destinos (1915)]. É um conceito limite entre o
anímico e o somático, como um representante psíquico dos estímulos procedentes do interior
do corpo que chegam ao psiquismo, e como uma magnitude da exigência de trabalho
imposta ao anímico em conseqüência de sua conexão com o somático,
As pul5Ões estão em relação apenas com dois tipos de excitação: as excitações
extemas e as excitações intemas, cuja descarga se faz em conformidade com o princípio da
constância (que, como sabemos, tem o papel de manter constante ou o mais baixo possível
o nível de excitação). Para manter esse estado de equilíbrio, o sujeito pode fugir da excitação
quando esta vem do exterior, evitando, assim, um aumento de quantidade. Se, por outro
lado, a excitação provém do interior do organismo, exercendo sua pressão de modo
contínuo, somente a descarga do acúmulo de quantidade pode trazer a satisfação pulsional.
Esta se obtém graças a uma modificação da fonte interna de excitação por meio de uma
ação específica. A força (Drang), portanto, co,responde à dimensão quantitativa e se refere
. à inevitabilidade da oulsâo, distinguindo-a dos estimulos externos (dos quais é possivel.
escapar), e ao seu fator motor, isto é, a soma de força ou quantidade de exigência de
trabalho que representa.
A satisfação representa, assim o alvo para o qual a pulsão faz tender o organismo. O
objetivo de cada pulsão é, normalmente, específico. Toda a pulsão encontra sua fonte no
processo orgânico, fisico-quimico, cue se encontra na oricem daouela tensão. Como
sabemos, a sexualidade não se resume ao genital, e tendo sido construída ao longo da
história do sujeito, deve abranger fontes situadas em outrC's partes do corpo, a que Freud
chamou de zonas erógenas. Pela história do desenvolvimento humano, algumas. áreas
corporais especificas parecem mais suscetíveis de converter-se em zonas erógenas. Por
exemplo, a sucção, a zona oral está suscetível de tornar-se erógena, fundamentalmente
porque é uma parte do corpo através da qual se realiza ° intercâmbio com o meio ambiente,.
'I
76
ao mesmo tempo que recebe a máxima atenção, cuidados, e, portanto, uma carga de tensão
externa por parte da mãe que amamenta o bebê.
Assim sendo, a pulsão sexual não se apresenta como uma unidade dada, mas se
decç>mpõe, na infância, em uma multiplicidade de pulsões parciais originadas nas diversas
zonas erógenas. No entanto, essas zonas erógenas não geram as pulsões sexuais de forma
espontânea, senão apoiadas sobre as funções de auto-conservação. Como já
exemplificamos, é o que sucede na atividade oral do bebê: o prazer que o bebê experimenta,
decorrente da sucção do seio matemo, inicialmente esteve apoiado sobre a satisfação da
necessidade de alimento. É a função corporal que serve à auto-conservação que fornece à
sexualidade sua zona erógena, além de indicar um objeto (o seio da mãe), e fornecer um
prazer além do apaziguamento da fome. Na medida em que o bebê sente o desejo de repetir
a totalidade dessa experiência de prazer, ela separa-se da necessidade de nutrição (embora
mantenha-se sobre ela apoiada). Em um segundo momento, portanto, a sexualidade ganha
autonomia em relação à mera satisfação da necessidade.
Em um sentido mais amplo, a finalidade (alvo) de toda a pulsão é alcançar a
satisfação, que, em termos econômicos (quantitativos) corresponde à descarga da
energia.
Assim, cada uma das pulsões parciais possui um fim específico de acordo com a
excitação adequada a cada zona erógena, como no caso da pulsão oral, cujo fim será a
satisfação obtida por meio da sucção. Quando Freud fala dos desvios do fim sexual
(perversões), ele se refere aos diferentes tipos de satisfação que se pode obter nas diversas
zonas erógenas (como o beijo, por exemplo).
Finalmente, o objeto da pulsão é o que indica à pulsão que, através dele, ela pode
alcançar o seu alvo. O objeto pode ser uma pessoa -um objeto total-, ou uma simples parte
de seu corpo -um objeto parcial- (o seio da mãe para o bebê, por exemplo 49). Pode tratar-se
de um objeto real, mas também .de um objeto fantasmático, de um objeto externo ou interno.
O objeto pode ser bom, se ele é suscetível de satisfazer a pulsão, ou mau, se ele se opõe à
sua satisfação.
;
.;.; A nosso ver, o termo objeto parcial só tem valor didático, pois para o bebê, o objeto será sempre
um objeto total. (Nota dos coordenadores do Curso)
77
Durante alguns estágios da evolução libidinal 50, caracterizados pela ambivalência em
relação aos objetos, as tendências amorosas e aquelas que visam à destruição do objeto
coexistem (estágio sádico-oral e sádico-anal), por exemplo.
De acordo com Freud, o objeto é o componente mais variável da pulsão, uma vez que
não se acha enlaçado à ela originalmente, mas como conseqüência da adequação de uma
ou outra zona à satisfação. Embora possamos dizer que o objeto da pulsão é contingente,
não significa que qualquerobjeto serve à sua satisfação (nem todo objeto é atrativo para
uma pessoa). Mas então, que objeto serviria à pulsão ?
Nesse ponto, chegamos ao ponto central da questão que fez com que Freud
considerasse a sexualidade humana um construto, singular e diferenciada da finalidade de
reprodução. O objeto erótico a que aspira o sujeito é marcado por características muito
particulares, pois está determinado pela história das experiências infantis do sujeito.
Enfatizamos, portanto, que a sexualidade humana é constituída a partir das primeiras
experiências, objetivas e subjetivas, que marcaram o sujeito em sua história de vida, nos
primeiros anos de seu desenvolvimento.
Dessa maneira, cada sujeito erogeniza seu corpo de uma maneira singular, a partir de
um outro que tem um valor significante como objeto de desejo. Assim, o corpo do qual se
ocupa a psicanálise é o corpo erógeno, que não coincide com o corpo anatômico, mas que
se estrutura à maneira de uma mapa delineado pelos fantasmas por meio dos quais o sujeito
representa a realização de seu desejo. (Tubert, 2000)
Quando uma pulsão enlaça-se a um objeto de maneira intima, Freud chama de
fixação da pulsão. Essa se produz durante diversas faces do desenvolvimento, nas quais
surge uma oposição à separação da pulsão do seu objeto que cada zona erógena oferece.
Assim mesmo, o objeto da pulsão sexual se distingue do objeto da necessidade por poder
ser recriado pela fantasia. Assim, chegamos a uma das principais características que
definem a sexualidade infantil: o auto-erotismo. O auto-erotísmo se origina, como enfatiza
Tubert (2000), no momento em que a pulsão sexual se desprende da função alimentícia e de
seu objeto natural (o seio, por exemplo), para buscar satisfação em uma parte do próprio
corpo (sucção do polegar, masturbação, etc), por meio da satisfação alucinatório de desejo,
tendo como referência o objeto fantasmático (internalizado). Assim, o objeto não é
necessariamente exterior ao sujeito, mas pode ser uma parte qualquer de seu próprio corpo.
50 O autor propõe a palavra latina libido (que significa desejo) para referir-se à energia psíquica
correspondente à pulsão sexual. A libido seria a manifestação dinâmica da sexualidade.
78
Podemos ilustrar tais afirmações com o exemplo da amamentação. O objeto é o seio
materno, e a nutrição que ele proporciona ao bebê, e há a incorporação imaginária desse
objeto, com todos os aspectos que encontram-se agregados à essa função. A Dulsão sexual
liga-se, portanto, não somente ao sei,~ matemo em si, mas às representaCÕes que
especificam tanto o objeto como o modo de satisfação adequados. A conseqüência, a força
pulsional que, no inicio era indeterminada, ficará marcada em função dos acontecimentos
que constituem a história de vida de cada sujeito.
As pulsões sexuais são numerosas e procedem de múltiplas fontes orgânic<::s, atuam
independentemente umas das outras a principio (polimorfismo) e somente ulteriormente seus
componentes reúnem-se em uma síntese. O fim a que cada pulsâo parcial tende é a
obtenção do prazer de órgão, e somente depois de sua síntese é que entram a serviço da
procriação.
Graças a capacidade de deslocamento e à plasticidade que possuem, as pulsães
podem proporcionar energia necessária para realizar operações muito isoladas de seus fins
primitivos, o que chamamos de sublimação.
4.2 AS FASES DA LIBIDO E O COMPLEXO DE ÉDIPO
Como vimos, em suas origens a sexC!alidade infantil sClrge apoiada sobre as funçi'es
vitais, das quais logo se desprende; é de natureza auto-erótica: seus fins e as zonas
erógenas que constituem suas fontes são múltiplas, e o objeto de satisfação é contingente e
variável. Possui um caráter perverso (no sentido do que seus fins e objetos se desviam dos
genitais) e polimorfo (múltiplas pulsões parciais, cada uma buscando sua satisfação
independente das demais).
Entre 1913 e 1923, Freud reconhece uma série de fases dentro da sexualidade pré-
genital: oral, anal, fálica, caracterizadas por um forma particular de organização sexual.
4.2.1. A fase oral
A fase oral é pensada pelo autor como a primeira modalidade de organização libidinal,
correspondendo, mais ou menos, ao primeiro ano de vida. A fonte é a excitação da zona oral
(cavidade bucal e lábios) que se produz durante a amamentação; o objeto se constitui sobre
79
O objeto real que satisfaz a necessidade de nutrição (seio matemo e leite); o fim é a
incorporação, que se converte em um modelo de relação de objeto. (Tubert, 2000).
Foi o fato de sugar e não somente absorção do alimento que deu satisfação á criança.
A sucção do seio matemo não é, portanto, redutível á necessidade de nutrição; ela
proporciona á criança um verdadeiro prazer, que Freud classificou de sexual. Mas ele não foi
o primeiro autor a destacar a natureza sexual desse ato. Antes dele, o Dr. Lindner, um
pediatra de Budapeste, reuniu um certo número de observações que lhe permitiram afirmar o
caráter sexual da sucção (Jahrbuch für Kinderhei/kunde, 1879).
Nesse primeiro momento, quando é o seio que constitui o objeto de prazer, a
sexualidade ainda não é autônoma. Só mais tarde, quando a criança é obrigada a renunciar
ao seio matemo e o substitui por uma parte de seu próprio corpo, é que a satisfação se toma
auto-erótica.
Esses dois momentos revelam que a atividade alimentar e a atividade sexual tem o
mesmo objetivo: a incorporação do objeto, protótipo do mecanismo de identificação, tão
importante para o desenvolvimento dos seres humanos.
A incorporação corresponde a várias funções: trata-se, primeiramente, para o lactente,
de sentir prazer ao fazer penetrar em si um objeto; em seguida, de destruir o objeto e,
finalmente, de se apropriar de suas qualidades, conservando-o dentro de si.
É esta última função de assimilação das qualidades do objeto que faz da incorporação
o modelo para a identificação e introjeção. A noção de incorporação, acrescentada por Freud
.aos seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade em 1915, nos remete á idéia de
assimilação das qualidades do objeto por canibalismo .
. 4.2.2 A fase anal
A fase anal se situa aproximadamente entre o segundo e o terceiro ano de vida,
momento em que a criança adquire o controle de seu esfincter, o que significa que a
organização da libido se dará sob a primazia da zona anal. Esta fase corresponde a
polaridade passividade-atividade; a primeira entendida como pulsão de dominação (desejo
de apoderar-se do objeto) e que coincidirá com o sadismo, tendo como fonte a musculatura;
a s~gunda corresponde ao erotismo anal, tendo como fonte a mucosa anal. A relação de. .
objeto, nessa fase, tem como protótipo a expulsão e a capacidade de retenção das fezes, o
que implicará, entre outras tantas características, na constituição de traços de caráter que
denunciam a maneira como a sujeito relaciona-se com os objetos que podem ser retidos ou
,ti.
80
expulsos (por exemplo, a avareza correspondendo à retenção, a prodigalidade à expulsão).
Nas relações, esses traços podem ser percebidos pela maneira como o sujeito se posiciona
frente ao outro. Exemplifiquemos: um indivíduo no. 1 que, diante do cumprimento de uma
tarefa conjunta com o indivíduo no. 2, limita sua parte na negociação ao empréstimo do..
objeto A para que o indivíduo no. 2 complete a tarefa. No entanto, no momento em que o
indivíduo nO.2, tendo cumprido as etapas anteriores de sua parte na tarefa, procura o
indivíduo no. 1 para obter o objeto A, recebe do indivíduo no. 1 todo o tipo de desculpas e
evasivas. Um dia o indivíduo no. 1 diz ter se esquecido do objeto, outro dia marca com o
indivíduo no. 2 e não comparece ao encontro, apresentando algum tipo de desculpa, e assim
por diante. O que estaria implicito nesse exemplo, aparentemente simples? Primeiramente,
o prazer deretenção do indivíduo no. 1, ligado ao sadismo, faz com que sinta-se poderoso
ao controlar o ambiente e, consequentemente, o indivíduo no. 2, pois ele sabe que este
necessita do objeto A. Como uma criança controlando a mãe, na medida em que faz
inúmeros jogos durante o aprendizado de controle do esfíncter, o indivíduo no. 1 extrai um
prazer secreto em sentir que pode controlar o outro e o ambiente, pura e simplesmente
retendo o objeto do qual o outro necessita. Extrapolem esse tipo de relação para as questões
ligadas ao dinheiro, e poderão imaginar as conseqüências da exacerbação (e até Da
valorização!) desse tipo de traço de caráter em determinadas culturas.
O que é importante ressaltar é que o controle do funcionamento do esfíncter pela
criança, isto é, o domínio da evacuação e retenç::;o das fezes, serve de modelo ao imou!so
sádico. A partir de 1924, Karl Abraham propôs uma subdivisão dentro do estádio sádico-anal.
Cada fase corresponderia a um modo de comportamento diferente para com o objeto. Tratar-
se-ia, para a criança, ora de expulsar o objeto e destruí-lo, ora de conservá-lo e possuí-lo. No
início do estádio anal, o erotismo estaria ligado à evacuação anal e o impulso sádico à
destruição das fezes; depois, o erotismo estaria ligado, ao contrário, à retenção das matérias
fecais e o impulso sádico a seu controle possessivo. A passagem da primeira fase para a
segunda assinalaria, segundo Abraham, a evolução para o amor de objeto. Como prova,
alguns autores propõem a observação de certas psicoses, que correspondem a uma
regressão além da segunda fase sádico-anal, enquanto as regressões neuróticas não
ultrapassam a segunda fase, já ligada ao amor de objeto, manifestando, com isso, um
investimento de objeto mais estável.
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L
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81
4.2.3. A fase fálica
A fase fálica - conseqüência da investigação sexual infantil e da análise da diferença
sexual - manifesta um momento de culminância no desenvolvimento pré-genital, entre o
terceiro e o quint~ ano de vida, que a aproxima, em alguns aspectos, da configuração genital
adulta. É durante esse período que Freud descreveu o inicio de atividades com base no
impulso de saber. A atividade deste impulso de saber corresponde, por uma lado, à
sublimação do desejo da dominar, e, por outro, utiliza como energia o desejo de ver. É a
fase em que a criança demonstra uma grande curiosidade por tudo que a cerca, mas, em
especial, pelos problemas sexuais. Freud chega a reconhecer que esses 'problemas'
estimulam a inteligência da criança. Mas é uma necessidade prática que leva a criança a
efetuar essas buscas sexuais. É nesse período que a criança demonstra preocupação pelo
nascimento de um irmão ou de uma irmã, que poderá significar uma diminuição dos cuidados
e do amor que seus pais lhe proporcionam. Mesmo que em sua casa, seus pais não cogitem
sequer a possibilidade de ter outro filho, a observação atenta da criança em rE:iaçãoà família
dos amiguinhos, ou mesmo de mães passeando pela rua com mais de um bebê, despertam
a criança para a potencial ameaça que representaria, para ela, a chegada de um irmão ou
irmã. Assim, o que mais perturba a criança nessa idade é o enigma da origem dos bebês.
No momento em que a criança encontra-se nessa fase, o interesse pelos órgãos
genitais e sua atividade adquire um valor central. Como somente os órgãos genitais
mas::ulinos são visíveis, p:Jr serem externes, são eles es primeiros órgãos a interpgsar tanto
aos meninos qu,mto às meninas. A percepção da diferença sexual posterior se fará a partir
da oposição entre fálico-castrado, ou seja, com referência à primeira percepção, que é a do
falo. Daí a denominação desta fase de fase fálica.
Sem dúvida, o menino percebe uma, diferença entre homens e mulheres, mas;
inicialmente, não a relaciona com os genitais. Em seu raciocínio infantil todos os seres vivos
possuem um falo como o seu.
Como sabemos, a hipótese da castração não se refere a uma situação real. Consiste
em uma fantasia, e em um complexo que tem a finalidade de elaborar psiquicamente a
constatação da diferença sexual.,
Tal constatação, .proporcionada pela fase fática, precede o complexo de Edipo e
permite ao sujeito entrar na estrutura triangular edipica, pois é a partir dela que o sujeito
diferenciará dois sexos, marcando o momento de ruptura com o estágio narcísico, onde,
82
através de uma relação imediata e indiferenciada, o sujeito apreendia o outro - a mãe- como
idêntico a si mesmo, e gerava, por reflexo, a sua própria onipotência narcísica.
É, portanto, a partir da dimensão da falta que a relação narcísica pode ser rompida: o
outro, então, pode ser visto como diferente e não somente como semelhante ao sujeito.
A efetividade da castração é a mesma para ambos os sexos, embora realizando-se
sob diferentes circunstâncias. A princípio, tanto a menina quanto o menino percebem a mãe
como semelhante; para ambos ela é o primeiro objeto de amor.
O acesso ao complexo de Édipo será marcado, para a menina, pela decepção
provocada pela constatação perceptiva de não possuir o fá/o, levando-a a buscar a
compensação para essa falta através do desejo de ter um filho imaginário de seu pai. Para o
menino, será a descoberta da castração da mãe que permitirá o seu ingresso no complexo,
uma vez que esta já não é mais vista como igual a ele.
A descoberta da diferença sexual dividirá para sempre os seres em dois grupos: os
que possuem e os que não possuem o fá/o. A partir de então a castração representará o
limite, imposto pela realidade, para a satisfação do desejo.
Nesse sentido, Édipo não representará somente a possibilidade da síntese genital
através da escolha de um objeto de amor, determinada pela marca deixada pelos
investimentos de objeto e pela interdição ao incesto, mas também representará o acesso do
sujeito aos objetos substitutos, afastando-o, desse modo, da realidade da castração e da
ferida nardsica que ela invoca. Como expressa Simanke:
Ela [a proibição do incesto] produz a ilusão de que, se os sujeitos masculinos e
femininos só podem obter uma satisfação parcial em objetos sempre algo inadequados, isto
se deve apenas à interdição ao incesto e não à diferença sexual real e incontornável, que
mina na base a fantasia narcísica, ao passo que a proibição é sempre. em tese. passível de
transgressão. A renúncia pulsional exigida pela repressão dos desejos incestuosos é, assim,
a condição e o preço a pagar por esta relativa proteção contra o poder traumatizante do
complexo de castração. 51
É através da dimensão da falta, promovida pela castração, e ppla entrada do sujeito
na estrutura triangular edípica que se estabelece o limite para a satisfação do desejo:
suportar a falta é a aarantia de poder continuar como desejante.
51 SIMANKE (1994), p. 226.
83
A efetividade do complexo de Édipo vincula-se, portanto, à admissão da castração
que, ao romper com a situação identificatória narcísica, introduz uma nova ordenação na
economia psiquica através da regulação do desejo.
Os antropólogos atribuem um papel central à proibição do incesto. Lévi-8trauss, por
exemplo, considera que o tabú do incesto é uma necessidade estrutural própria da
passagem da natureza para a cultura; ou seja, para ele, é uma condição fundamental de
civilização. Da perspectiva freudiana, a proibição do incesto não se origina da natureza em si
(se assim fosse, não haveria necessidade de uma proibição!), mas na necessidade social de
impedir a realização do desejo incestuos052, de modo que o complexo de castração (a
angústia ante a ameaça) corresponde à interiorização das normas culturais que limitam a
satisfação sexual humana, há milênios.
Ressaltamos, portanto, que o complexo de Édipo não é redutível a uma situação real,
à influência exercida sobre a criança pelo casal parental,mas deve sua eficácia à
intervenção de uma instância interditória, que barra o acesso irrestrito à satisfacão,
naturalmente buscada, e que liga inseparavelmente o desejo à lei. (Laplanche e Pontalis,
1988)
Podemos, então, precisar dois modos segundo os quais a busca de satisfaçb~, ao
desejo pode se dar. a primeira, narcisica, em que a onipotência imagina,-i", c.;; :"l/: '!ç .~
conhece limites para a satisfação do desejo; e a segunda, que pressupõe uma rúl)ttJ"'~
dessa situação por meio da castração, limitando a satisfação do desejo e possibilitando a
entrada do sujeito no complexo de Édipo.
4.2.4 O período de latência
A partir do quinto ou sexto ano, a evolução da sexualidade deter-se-á em um período
marcado pela diminuição das atividades ligadas à sexualidade. Freud referiu-se a esse
momento como o período de latência, durante o qual há um recalque dos primeiros objetos
sexuais escolhidos. Este período começa com o declínio do complexo de Édipo. Protela a
m2turidade sexual e permite uma edificação da barreira contra o incesto: É durante a latência
que se elaboram as forças psíquicas que, mais tarde, se oporão aos impulsos sexuais e
impedirão seu desenvolvimento. Essas forças correspondem à aversão e ao pudor; definem-
se como as aspirações morais e estéticas.
52 TUBERT (2000), pp. 111-12.
84
Freud definiu o processo que desvia as forças sexuais de seu objetivo, durante o
período de latência, como um "mecanismo de sublimação". Se bem sucedido (o que ocorre,
de modo geral), este processo permite que a criança empregue as antigas forças sexuais
para novos objetivos.
Mas o autor insistiu em sublinhar o caráter hipotético de suas opiniões no que se
refere a esse período. Porque, para ele, a transformação da sexualidade infantil representa
um dos objetivos da educação, um ideal que o individuo só alcança imperfeitamente e do
qual pode afastar-se consideravelmente, pois, pode acontecer que um fragmento da vida
sexual entre em irrupção ou, ainda, que subsista uma atividade sexual através de toda a
duração da latência, até o desabrochar do impulso sexual, com a puberdade.
4.2.5. A fase genital
Segundo Freud, a plena organização da libido só é alcançada pela puberdade numa
quarta fase, a fase genital. Durante as fases anteriores - oral, anal., fálica - a meta sexual é
parcial e os objetos são inadequados. O que a criança busca é um prazer de órgão, o que
significa que a excitação de uma zona erógena especifica dá, por si só, o prazer, sem que
este esteja ligado á satisfação de outras zonas e sem que corres panda à realização de uma
função. Freud observou que as excitações provenientes de todas essas fontes não se
coordenam num todo, mas perseguem cada uma um objetivo separado, que apenas
representa a obtenção do prazer específico. O que implica que c impt '!so sexual, durante a
infância, ainda não é centrado, que não tem. de início, qualquer objeto, sendo, portanto,
auto-erótico.
A partir do Édipo, a criança encontra em um dos pais seu primeiro objeto de amor.
(Antes do Édipo. somente a mãe era objeto de desejo). Mas o recalque, que se efetua
durante o periodo de latência, leva a criança a renunciar à maioria de seus objetivos sexuais
infantis e leva-a a uma mudança de atitude perante seus pais. Com as tendências primitivas
bloqueadas, a criança só terá pelos pais, a partir de então, sentimentos de ternura. (o objeto
primitivo só continua a existir no inconsciente). A partir da puberdade surgem novas
tendências orientadas para objetivos sexuais diretos, que determina, para os dois sexos,
funções e evoluções sexuais muito diferentes. Toda a vida sexual entra à serviço da
reprodução e a satisfação das primeiras tendências só tem importância na medida em que
prepara e favorece o ato sexual genital.
85
É quando a libido alcança a sua plena organização: o impulso sexual se torna
centrado, apoiado sobre a função de reprodução.
Pode acontecer, porém, que as tendências sexuais parciais não se subordinem todas
à primazia da zona genital. Uma tendência que permaneça independente constitui o que •
Freud chamou de perversão, pois ela substitui o objetivo sexual centrado em torno da zona
genital, por sua própria finalidade.
4.3 A PRIMEIRA TEORIA PUlSIONAl
Em sua primeira elaboração da teoria pulsional, Freud classifica, em 1905, as pulsões
de acordo com duas grandes. linhas: o grupo das pulsões que favorecem mais
particularmente a salvaguarda do indivíduo - a que dá o nome de pulsães do egO ou de auto-
conservação - , e o grupo das pulsões sexuais. As pulsães sexuais surgiriam apoiadas sobre
as funções de auto-conservação.
As pulsães de auto-conservação permitiriam a satisfação das necessidades ligadas às
funções corporais vitais e a fome é o seu protótipo. A energia dessa classe de pulsães
estaria a serviço do ego, pois seria o ego o responsável pela conservação da vida do
indivíduo, e as pulsões do ego atuariam de acordo com o princípio da realidade. Freud
•••.•!')!""'l ••••••oho,.. 0."'''' como um aparelho de rAgulaç;;o e de ~oo..,...{on~,...50 ~ o a"'p",+o f"'! I 10 r)a.rmiti"';:::I••.•,...•....•.__u•..•u •..•~v '" , ,....,' •..•. , ••.•' l~ •••••" •••••~ ••••• _ ~ __;l~ ••••"'iU'" l'""••••.ld.;~l.l ••••
a adaptação às exigências dos mundos externos e internos.
Enquanto agente de operações defensivas, o ego está encarregado de reduzir e de
suprimir tudo aquilo que é suscetível de colocar em perigo o estado de constância e a
integridade do sujeito. Nessa primeira concepção pulsional, o sistema defensivo teria por
finalidade a pulsão, quando esta, por diferentes razões, é incompatível com o equilíbrio de é
vivida com desprazer pelo ego. A defesa incidiria também sobre representações às quais a
excitação interna incompatível está ligada, ou ainda às situações que podem desencadeá-Ia.
O segundo grupo de pulsões é representado pelqs pulsões sexuais, cujas
manifestações ultrapassam, e muito, o quadro estreito das atividades reprodutoras, que tem
como objetivo salvaguardar a espécie. Lembremos que o conceito freudiano de sexualidade
abarca uma grande quantidade de fenômenos que, em geral, estão bastante distantes do ato
sexual propriamente dito e não se confundem com o genital, pois íncluem tanto
86
manifestações da sexualidade infantil como as perversões, que encontram satisfação com
outros objetos, alheios à genitalidade.
A pulsão sexual não visa um objeto unívoco de satisfação. Como vimos, este sofre
transformações, de açordo com os estágios de desenvolvimento, ou seja, cada modo de
organização libidinal corresponde a uma fase especifica da evolução psicossexual infantil.
No entanto, como veremos, o quadro da primeira teoria pulsional de Freud se modifica
ao longo de sua teoria, especialmente após a elaboração do conceito de narcisismo.
4.4 O NARCISISMO
Após estudos iniciais em 1910, que restringiam o narcisismo à perversão, a partir da
Introdução ao Narcisismo (1914) o narcisismo passa a ocupar um lugar privilegiado no
desenvolvimento sexual normal.
Foi a partir da observação clínica dos delírios de grandeza que Freud delineia a
hipótese de um estado narcísico operando em um período bastante precoce do
desenvolvimento.
Para explicá-lo, Freud retoma a idéia de que as primeiras experiências de satisfação
se dão de forma alucinatória, no momento em que as pulsões sexuais se apóiam nas de
pulsões de auto::onse~a~o ou egóicas; o seio materno, que tem a priori a função de
nutrição. torna-se o primeiro objeto de amor da criança. O apoio das pulsões sexuais nas
pulsões de autoconservação implica que as pessoas ligadas à alimentação, aos cuidados, à
proteção da criança fornecem o protótipo do objeto de amor procurado - escolha de objeto
por apoIo.
O autoerotismo se iniciaria no momento em que a pulsão sexual se separa dapulsão
de autoconservação, a qual oferecia sua meta e seu objeto, ou seja. se separa de seu objeto
natural - o seio materno - e se entrega à fantasia. O auto-erotismo caracterizaria o
comportamento sexual em que o sujeito obtém prazer através da estimulação de seu prf>prio
corpo, um periodo que precede a convergência das pulsões parciais para um objeto comum.
Para que o sujeito possa passar a formar uma imagem de si próprio, é necessário que
o eu ou ego se constituéÍ. Na medida em' que o' ego se forma, as pulsões parciais. próprias do
autoerotismo, se unificam e é o ego que investem como primeiro objeto.
87
O narcisismo designaria, portanto, um estágio na história evolutiva da libido que está
entre o auto-erotismo e o amor de objeto, quando o sujeito toma a si mesmo como objeto
erótico.
Há portanto, um primeiro estágio em gue o narcisismo, denominado primário, se
define como o movimento das pulsões parciais para reunirem-se em uma unidade. tomando
o egO como primeiro objeto.
Em Pulsões e destinos de pulsão, de 1915, Freud situaria o narcisismo como o
estado originário do eu, que investido por pulsões é capaz, em parte, de obter satisfação
auto-erótica, colocando-se como objeto de satisfação de suas próprias pulsões.
Como o aparelho é incapaz de abandonar um estado que lhe tenha trazido satisfação
e prazer, esse estado narcísico primitivo nunca será realmente abandonado. Desse modo,
Freud identifica, no cotidiano, duas situações nas quais pode ser identificada sua
atualização: a enfermidade e o estado de sono.
No caso da enfermidade, observa que quando alguém passa por uma enfermidade
orgânica age do seguinte modo em relação à distribuição da libido: em função das
sensações dolorosas a que está submetido, o sujeito perde seu interesse pelas coisas do
mundo exterior, retirando também de seus objetos de amor o interesse libidinal. O enfermo
retrai para o eu seus investimentos Iibidinais enviando-os de volta após curar-se. De
semelhante modo opera o estado de sono, que retrai os investimentos libidinais sobre o
próprio sujeito, 0:.1 sobre o desejo de dormir, nada mais querendo saber do mundo exterior. O
egoísmo próprio dos sonhos vem endossar essa conexão .
. Ao considerar o caso dos parafrênicos (antiga designação para o grupo formado pela
esquizofrenia e paranóia), Freud percebe que eles:
..... Parecem haver retirado realmente sua libido de pessoas e coisas do mundo exterior. mas
sem substituí-Ias por outros em sua fantasia.',53
Identifica, nesses casos, alterações na distribuição da libido por consequência de
alterações no eu.
Se Freud vincula ao eu as conseqüentes alterações da libido, um exame mais detido
destas relações se faz necessário.
Tomemos a afirmação de Freud em relação à conduta de crianças e povos primitivos:
"AE, vaI. 14, p. 72
88
Formamo-nos, assim, a imagem de um investimento originário libidinal do eu, cedido
depois aos objetos; todavia, considerado a fundo, ela persiste, e é para os investimentos de
objeto como uma ameba o é para os pseudópodes que emite. 54
A idéia aqui parece ser a de um armazenam~~to inicial da libido no eu, a qual só
posteriormente se volta aos objetos exteriores, à força provavelmente da satisfação de suas
necessidades, o que coincide, de certo modo, não só com a vivência de satisfação do
Projeto, .como também com o surgimento do principio de realidade. Ao tomarmos a imagem
da ameba em relação aos pseudópodes não lica dilicil supor o eu e seus' investimentos em
relação ao estado de sono e à vigília.
Tanto o histérico como o neurótico obsessivo, no que concerne aos aspectos de sua
neurose, alteraram seu vínculo com a realidade, sem que isso implique num cancelamento
do vinculo erótico com pessoas e coisas, uma vez que o conservam em sua fantasia, numa
substituição ou mescla de objetos reais e imaginários em suas recordações. O mesmo não
se dá no c.aso dos parafrênicos, que retiram a libido de pessoas e coisas do mundo exterior
sem que haja qualquer substituição das mesmas em suas fantasias. Quanto ao destino da
libido retirada dos objetos, é o delírio de grandeza presente na esquizofrenia que aponto ~.
direção: subtraída do mundo exterior, a libido é conduzida ao eu. A esse movimento Freud
chamará de narcisismo secundário.
É, portanto, no quadro das psicoses que Freud percebe a possibilidade da libido
investir o eoo desinvestindo o objeto. l\ssinala que, apesar da conduta narcisica ser comum
a todas as pessoas, ela toma-se patológica na medida em que o vinculo com a realidade
exterior (coisas e pessoas) é cancelado, e todo o investimento volta-se para o próprio sujeito.
Freud, distingue, portanto, dois tipos de movimentos narcísicos, e os define' como
narcisismo primário ao estado precoce (entre o auto-erotismo e o amor de objeto) em
que o lactente investe toda a sua libido em si mesmo, e narcisismo secundário ao
retorno da libido ao ego, após a retirada de seus investimentos objetais.
A partir dessa diferenciação entre o eu e o investimento libidinal, Freud estabelece a
oposição entre libido egóica e libido de objeto, e supõe uma inversão proporcional na
quantidade de investimento entre elas: o aumento de investimento de uma implica na
diminuição de investimento da outra. A princípio supõe que ambas as energias estejam
unidas no estado de narcisismo e que, a partir do investimento de objeto, diferencia-se uma
energia sexual de uma energia das pulsões egóicas.
" AE, vaI. 14, p. 73
89
Embora isso acarrete a conclusão de que as pulsões egóicas são também pulsões
sexuais. Freud ainda mantém. nesse texto de introdução ao narcisismo. essa dualidade da
libido, expressando-a por uma libido egóica e uma libido de objeto. Tal dualidade somente
desaparecerá com o desenvolvimento posterior da teoria das pulsões. No momento. para
manter a dualidade libidinal, Freud apóia-se na clínica das neuroses, em especial nas
neuroses de transferência, e em considerações biológicas, que supõem uma existência dupla
para cada indivíduo; onde interesses próprios se oporiam aos interesses da espécie.
Retomando a questão da escolha objetai, após expor as condições narcísicas
presentes na hipocondria, caracterizada pela retirada particularmente nítida da libido do
mundo exterior para concentrá-Ia posteriormente em um órgão do corpo, Freud distingue
dois tipos de escolha presentes na vida amorosa em geral. A primeira escolha, que chama
de anaclítica, se dá quando se toma por base as pessoas que se encarregaram dos
cuidados do sujeito no princípio de sua existência -a mãe ou seu substituto. A segunda
escolha. narcísíca, é assim denominada pelo fato do sujeito não tomar por base para sua
escolha sexual o modelo da mãe, mas o seu próprio modelo, por identificação à mãe. como
vimos.
A escolha de objeto por apoio se daria a partir do modelo de objeto que supria as
necessidades nutricionais da criança. As pessoas ligadas à satisfação das necessidades
alimentares, aos cuidados e proteção da criança forneceriam o protótipo do objeto sexual
satisfatório ..A.ssim, a escolha por apoio só seria possível porque as pulsões sexuais surgem
por apoio nas pulsões de autoconservação.
Na escolha narcísica os objetos de amor são escolhidos com base no modelo de si
mesmo, como ocorre para homossexuais e perversos Em relação à uma fixação na fase do
narcisismo primário, sua conseqüência pode ser o desenvolvimento de uma pré-disposição
(maior que em outros individuos) de manifestar enfermidades como paranóia e esquizofrenia.
Freud considera que o amor dos pais por seus filhos é o reviver do seu narcisismo
infantil. pois o amor dirigido a um objeto tem por fim a realização de seu narcisismo no filho.
A busca da realização dosplhós compreende a busca pela imortalidade de seu próprio ego.
O .desenvolvimento doego. consiste, segundo Freud. num distanciamento do
narcisismo 'primário em razão da crítica que os pais exercem com relação à criança. seguido
pelo deslOcamento da libido a um ideal de ego. Freud afirma que não consideraria estranho
se encontrasse uma instânCia distinta do ideal do ego interiorizada como uma instância de
: censura e de auto-observação.
90
Ao considerar o adulto normal, no qual se desvanecem muitos dos traços narcísicos
infantis. Freud interroga-se sobre o montante total da libido egóica, que não poderia ter sido
totalmente dirigida aos objetos. Toma o recalque como conceito auxiliar para compreender o
destino dessa libido e acaba supondo uma nova formação psíquica, a de ideal do eu...
Comparando entre dois homens a desproporção do nivel de tolerância de cada um às
mesmas vivências, impulsos e moções de desejo, considera que a base para aquilo que
cada um é capaz de tolerar está no fato de um deles ter formado dentro de si um ideal
segundo o qual mede seu eu atua! e o outro não.
Para Freud, a formação desse ideal do eu é a condição para o recalque e o ponto de
convergência do narcisismo, sobre o qual recai o mesmo amor de si mesmo que gozava o eu
real da infância. Incapaz de renunciar a uma satisfação que uma vez já tenha experimentado,
não querendo, portanto, privar-se do narcisismo da infância, mas não podendo mantê-Io, o
sujeito projeta-o num ideal, como reflexo de um tempo em que ele mesmo era seu próprio
ideal.
Como a formação do ideal do eu no interior do aparelho psíquico parte, inicialmente,
da influência critica que exercem os pais, estendendo-se mais tarde aos educadores, essa
formação é também base para a ação de uma instância de censura e auto-observação,
distinta do ideal do eu, que asseguraria a satisfação narcísica do eu através da contínua
obserVação do eu atual com a finalidade de compará-lo ao eu ideal.
O delírio de ser observado da paranóia encontra na relação acima sua referência,
como também a autocrítica da consciência moral -assegurando a referência a processos
normais.
Em Luto e Melancolia (1915), Freud apresenta a suposição de um narcisismo que
depende, para sua gênese. das relações de objeto. O narcisismo em Luto e Melancolia
implica uma identificação com o objeto, um estado que supõe, em sua gênese, a
interiorização do objeto, a partir do qual o eu constitui-se através do outro.
O mecanismo de introjeção do que há de "bom" no objeto e de projeção do que há de
"ruim" no ego para os objetos ocorre durante a fase puramente narcisista, que cede lugar a
fase objetai: Se o objeto toma-se fonte de sensações agradáveis, o sujeito o incorpora e diz
que o ama. Se o objeto causa desprazer, o ego afasta-o e diz que ° odeia. O odiar estaria
ligado à busca de preservação por parte do ego, segundo a necessidade de'
autoconservaçã055.
55 AE, vol.14, pp. 154-60. Freud retoma esta questão em Além do principio do prazer (1920).
91
Os objetos reais são substituídos por imaginários, criados a partir dos protótipos
infantis e do contato com os objetos investidos e abandonados. O individuo retém apenas o
que é agradável nesses objetos e em si mesmo para formar um objeto idealizado em sua
fantasia.
Freud assinala que o narcisismo da infância apresenta-se na vida adulta por devoção
a um ideal de ego que se forma em seu interior. O ego emite investimentos libidinais aos
objetos e se empobrece em favor desses investimentos e do ideal do ego. Esse ideal é
cumprido e obtém-se a satisfação da libido do objeto.
Contudo, muitas vezes, em função de suas exigências, o ideal do ego impõe difíceis
condições para a satisfação libidinal dos objetos e não pode ser cumprido. Talo nível de
suas exigências, que a censura vê uma parte dessa satisfação como inconciliável. Exige-se
muito desses objetos e por isso o individuo buscaria formar objetos imaginários agradáveis
introjetando o que tem de bom nesses objetos e projetando o que é tido como ruim em si
mesmo para os objetos, através do mecanismo de projeção. Formá um objeto idealizado,
tomando seu próprio ego como o agradável e o externo, anteriormente indiferenciado, como
desagradável.
Para Freud, o objetivo da idealização seria fazer com que o indivíduo voltasse ao
estado de onipotência do narcisismo infantil. O ideal narcísico de onipotência - ego ideal -
seria criado com o propósito de restaurar o contentamento consigo mesmo, próprio do
narcisismo primário, o qual foi perturbado durante 2 infância.
4.5 IMPLICAÇÕES TEÓRICAS
A diferença entre narcisismo e autoerotismo se encontra no fato de que, no estado
narcísico primitivo, ou primário, a libido possui um objeto para investir: o ego. Na medida em
que o ego se desenvolve e reconhece objetos exteriores, a libido tenderá a desinvestir o ego
e investir os objetos externos.
Freud define a relação entre investimento do ego (libido egóica) e investimento objetai
(libido objetai) como complementar e inversamente proporcional, na medida em que a
diminuição do investimento narcisico corresponde a um aumento do investimento de objeto,
e vice-versa. Durante seu desenvolvimento, 6 ego se distanciaria do narcisismo primário de
modo a desinvestir a si mesmo e'investir objetos exteriores, empobrecendo-se em favor
92
desses investimentos. No entanto, certos estados, tanto normais quanto patológicos,
implicam em uma retirada da libido de seus investimentos objetais e um retorno ao ego, que
ao ser novamente investido caracteriza o que Freud chamou de narcisismo secundário.
No entanto, qualquer que seja o movimento narcísico, primário ou secundário, o
conflito psiquico não poderá mais ser definido pela oposicão entre as pulsões sexuais e
pulsões de autoconservacão, mas entre libido egóica e libido objetai, ambas da alcada das
pulsões sexuais. Ou seja, o que Freud chamava de pulsões de autoconservação era
somente a parte narcísica das pulsões sexuais (investimento libidinal egóico).
Portanto, o conceito de narcisismo leva Freud a revisar sua primeira teoria pulsional,
pois o conflito psíquico entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação não mais
se sustenta.
As próximas observações de Freud, em relação às neuroses traumáticas e à
compulsão à repetição, levará o autor à revisar, inclusive, sua colocação anterior de que
todos os sonhos representam uma realização de desejo. Há sonhos que se repetem sem que
haja nenhum desejo que se realiza por meio deles. do mesmo modo que a repetição de
padrões desprazerosos de comportamento, que não implicam, no final, na obtenção de
nenhum prazer. Nesse sentido, a partir de Além do Princípio do Prazer (1920), o autor
lançará as bases para a sua segunda teoria pulsional, localizando o conflito psiquico no
polêmico dualismo entre pulsões de vida e pulsões de morte ..
Também os conceitos de ideal do ego e da instância de observação de SI,
identificados a partir da Introdução ao Narcisismo, tornar-se-ão base para uma das instâncias
de sua segunda teoria tópica, como veremos a seguir.
93
5. A SEGUNDA TEORIA PULSIONAL, ALÉM DO PRINCíPIO DO PRAZER E A
SEGUNDA TÓPICA.
Deus e o Diabo estão lutando ali;,
e o campo de batalha é o coraçãodo homem.
Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov)
Introdução
A descoberta da oposição entre libido egóica e libido objetai, correlativa à noção de
narcisismo, levou Freud a abandonar a polaridade das pulsões sexuais e pulsões do eu, já
que as funções de auto-conservação dependem do amor a si mesmo.
No entanto, Freud ainda resistiria em abandonar o primeiro dualismo, pois esse
abandono ameaçaria a concepção do conflito intrapsíquico, presente nas neuroses, se a
energia psíquica pudesse ser pensada como uma unidade. Como afirma Simanke:
A resistência de Freud em consentir com isto prende-se a vários fatores. Um histórico:
tal hipótese haviasido sugerida por Jung, com quem Freud rompera recentemente e com
quem se empenha em uma discussão ... Outros fatores são de natureza teórica: a dualidade
pulsional serve de base para a noção de conffito psiquico, que está na raiz da compreensão
freudiana das neuroses. 56
A concepção de outro polo pulsional, exigência estrutural da teoria, somava-se à
necessidade de responder pelas manifestações de ódio e de agressividade, ambivalência,
sadismo, masoquismo, mas, principalmente, pelos fenômenos de repetição, impossíveis de
serem explicados a partir de uma perspectiva de busca de satisfação pulsional. Preparava-
se, assim, o terreno para a introdução da segunda teoria pulsional.
O novo antagonismo pulsional, que Freud sustentaria até o final de seus dias, passaria
a se expressar entre as pulsões de vida (Eros) e as pulsões de morte, cuja base repousava
sobre os dois grandes princípios que operam no mundo físico: as forças de atração e
repulsão.
"( ...) A meta da primeira é produzir unidades cada vez maiores e, assim, conservá-Ias,
ou seja, uma lígação; a meta da outra é, ao contrário, dissolver nexos e, assim destruir as
coisas do mundo." OT
56 Simanke, 1984, p. 122.
'" AE, vol. 23, p. 146
94
As pulsões de vida, ou Eros, que abrangem tanto as pulsões sexuais quanto as pulsões
de autoconservação, tendem a conservar as unidades vitais existentes e a formar, a partir
delas, outras mais. A pulsão de morte, pelo contrário, tende à redução completa das tensões,
a um retomo a um estado anterior, em última instância, à condução do ser vivo ao estado
inorgânico.
O que Freud deseja conceitualizar com a pulsão de morte58 é o que há de mais radical
na noção de pulsão: o retomo a um estado anterior, o repouso absoluto do estado
inorgânico.
Freud estabelece uma diferença entre o princípio do prazer, que representaria uma
exigência da libido, de uma maneira mais qualitativa do que econômica, e o princípio do
NirvaCabna (originalmente, princípio de inércia), que corresponde à exigência de reduzir
absolutamente as tensões. Assim como no Projeto (1895), o princípio da inércia não se
sustenta mediante o funcionamento psíquico, a tendência de reduzir a zero a tensão se
transforma, com o desenvolvimento psíquico, na tendência a manter constante o nível de
excitacão
Inicialmente, a pulsão de morte se orienta para o interior do indivíduo, e tende à auto-
destruição; mais tarde, haverá de manifestar-se sob a forma de pulsões agressivas ou
destrutivas. Isto se dá porque a libido se une à pulsão de morte e, desse modo, abre o
caminho para os objetos, o que permite ao indivíduo descarregar a tensão por meio de uma
intervenção no mundo exterior. servindo-se, para isso. de seu sistema muscular. Uma parte
dessas pulsôes se mescla à sexualidade e dá origem ao sadismo: outra parte mantém-se
orientada para o próprio sujeito, e, apesar de sua ligação com a sexualidade, manifesta-se
como masoquismo erógeno. Freud afirma que, levando em consideração as manifestações
do masoquismo. a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa dos neuróticos, é
impossivel manter a hipótese de que o funcionamento psíquico é regulado exclusivamente.
pelo princípio do prazer.
Mas um outro fenômeno seria ainda mais marcante em relação à hipótese da regulação
exclusiva do aparelho pelo princípio do prazer: os sonhos traumáticos. Eles representam a
.objeção, aceita por Freud, à tese de que todo o sonho é realização de desejo.
95
, 1 Além do princípío do prazer (1920) e a segunda teoria pulsional
A compulsão à repetição e o pulsional entrelaçam-se teoricamente na medida em que,
a partir do caráter universal das pulsões, uma pulsão representa a tendência, inerente ao
orgânico vivo, de reproduzir um estado anterior -o estado inorgânico-, abandç>nado pelo
influxo de forças ambientais perturbadoras.
Nos fenõmenos da vida animal, em especial os que expressam uma herança da
espécie, como o local de desova dos peixes ou os vôos migratórios dos pássaros, ou ainda
os fatos embriológicos, em que se observa a repetição das estruturas de todas as formas de
que descende a forma animal atual, Freud encontra uma analogia que lhe permite supor a
aquisição histórica das pulsões.
Ao levar às últimas conseqüências a hipótese de que todas as pulsões almejam o
restabelecimento de um estado anterior, a única explicação que pode dar para o sucesso do
desenvolvimento orgânico é atribuí-lo à ação de forças perturbadoras extemas. Ele supõe
que, se não houvessem ocorrido modificações nas condições que determinaram a evolução
da crosta terrestre, o ser vivo elementar teria repetido sempre o mesmo curso vital. A história
evolutiva do planeta, no entanto, impós variações ao curso vital do organismo elementar, que
foram apreendidas pelas pulsões orgânicas e preservadas na repetição de cada curso vital.
Essa hipótese responde também pela aparente tendência das pulsões ao progresso. De
acordo com a natureza conservadora das pulsões, sua meta não pode ser um estado nunca
antes experimentado, mas sim um estado inicial, muito antigo, 'J inorgânico. A meta das
pulsões, portanto, é alcançar um estado anterior, o que deve ser feito através de rodeios
impostos pelo curso evolutivo da Terra. Uma vez que o destino de todo ser vivo é morrer,
regressar ao inorgânico, Freud conclui que a meta da vida é a morte, uma vez que o
inanimado antecede o vivo, e que todo ser vivo. ao morrer, morre Dor razões internas.
Freud supõe que, através da intervenção de forças inimagináveis, a vida foi gerada na
matéria inanimada. Suscitada a tensão no material, essa tensão procurou nivelar-se, daí
surgindo, simultaneamente, a primeira pulsão de regresso ao inanimado. Talvez esse
organismo primitivo, orientado por sua estrutura química, tivesse que percorrer um caminho
vital muito breve. Mas, com as contínuas alterações extemas, a substância desviou-se cada
vez mais de seu caminho vital originário, tendo que dar cada vez mais voltas para alcançar
sua meta final.
58 A pulsão de morte nunca pode ser observada em estado puro. Ela sempre será acessível á nossa
percepção mesdada com a pulsão de vida.
%
Mas, sobre o outro extremo, existe uma outra classe de pulsões, e, ao que tudo indica,
em oposição às primeiras. São as pulsões sexuais, que levam Freud a opor dois grupos de
pulsões: um que se lança à realização da meta final da vida e outro que, num determinado
ponto do trajeto, reé!l.izaum movimento retrocedente, a fim de retomar o trajeto a partir de um
ponto anterior, e com isso prolongar a duração do caminho.
Assim, enquanto as pulsões de auto-conservação provêm do estado abandonado e
querem restabelecer essa condição, a meta das pulsões sexuais é a fusão das células
germinais diferenciadas, conjugando a vida em unidades cada vez maiores, para garantir sua'
renovação.
A libido dessas pulsões sexuais coincide, portanto, com o principio que mantém em
coesão todo o ser vivo, o Eros de filófosos e poetas, como observa Freud.
Embora fundamentando-se em fatos biológicos e em hipóteses sobre a evolução da
Terra, Freud reconhece a incerteza sobre a qual assenta-se essa última postulação da teoria
das pulsões em relação às duas primeiras -a extensão do conceito de sexualidade e a teoria
do narcisismo- nascidas da experiência clínica. Aqui Freud aventura-se por um terreno de
hipóteses puramente teóricas, tendo, como único ponto de apoio para a suposição do caráter
regressivo das pulsões, a observação clínica dos fatos da compulsão à repetição.
Mas a construção teórica dessa última teoria das pulsões não se deu ao acaso, não foi
simplesmente um divagar teórico: ela veio para responder à necessidade que o próprio
desenvolvimento da teoria e a introdução do conceito de narcisismo trouxe a Freud.
A principio. todas as orientaçõespulsionais menos conhecidas, que se distinguiam
das pulsões sexuais direcionadas ao objeto, foram abarcadas pelo conceito de pulsões
egóicas.
As pulsões egóicas opunham-se, então, àspulsões libidinais ou sexuais. No entanto, o
fenômeno do narcisismo e a análise do eu mostraram que também as pulsões egóicas, ao
tomarem o próprio eu como objeto, são de natureza libidinosa, o que substituiu a oposição
entre pulsões egóicas e pulsões sexuais para a oposição entre pulsões egóicas e pulsões de
objeto, ambas libidinais. Esta última oposição, no entanto, não se. mostrou fundamental e
nem suficiente para explicar as pulsões destrutivas, que reclamavam outra classe de pulsões
dentro do eu, que não as egóicas e de objeto. Foi através da especulação teórica abordada
que Freud pôde, finalmente, precisara oposição reclamada pela teoria, através da oposição
entre pulsões de vida e pulsões de morte ..
97
O que resta precisar, dentro dessa nova perspectiva pulsional, é a relação dos
fenõmenos pulsionais de repetição com o império do principio do prazer.
Embora a mais antiga função do aparelho tenha sido atribuída, por força das
evidências -entre as quais a reprodução de vivências traumáticas em sonhos- à ligação de
moções pulsionais, que tem por finalidade transformar a energia de investimento livremente
móvel em energia ligada (verificando-se no processo o surgimento de desprazer), é essa
primitivíssima função que assegura e introduz o principio do prazer no aparelho, levando
. . .
Freud a supor que tal transposição de energia ocorre em função do estabelecimento do
principio do prazer.
Como o princípio do prazer é uma tendêncía que também está a serviço de uma
função (determinada pelo principio da constância): a de isentar, manter constante ou mais
baixa possível as quantidades de excitação no aparelho-, tal função vem, de um modo geral,
diretamente ao encontro do suposto de que todo ser vivo aspira ao repouso do mundo
inanimado. Sob essa perspectiva, a ligação das excitações seria um ato preparatório de
acomodação das excitações, para que a mesma se extingua momentaneamente no prazer
da descarga.
Podemos, então, precisar a tendência à descarga como a tendência a um
rebaixamento da quantidade ao nível mais próximo possível de zero, sendo que podemos
dizer que a luta travada pelo aparelho para obter o domínio do estímulo, anterior ao principio
do prazer, CY'.,ofre em um nível extremo de uma dada escala quantitativa.
Os sonhos traumáticos parecem confirmar essa hipótese, na medida em que
representam o campo de batalha pelo domínio das quantidades, não havendo espaço, ainda,
para um predominio do principio do prazer, e portanto, para a realização de desejo.
á.1.1 O fracasso do princípio do prazer
Conhecida é a descrição de um estado, que sobrevém após acidentes em que houve
risco de vida, denominado neurose traumática. Do conhecimento adquirido através das
neuroses provocadas pela guerra, descarta-se, como causa das neuroses traumátic'ls, a
deterioração do sistema nervoso provocada por choque mecânico.
Freud assinala a importáncia do fator surpresa, do terror diante de um acontecimento
. e do dano físico simultâneo que o acompanha.
Embora, em sua vida de vigilia, os neuróticos traumáticos não tenham o hábito de
recordar o acidente que provocou o trauma, até se esforçando por não lembrá-lO, em sua
98
vida onirica são reconduzidos à situacão do acidente, despertando com renovado terror. Tal
situação, reproduzida durante o sono, prova a forca da impressão provocada, e supõe uma
fixação psíquica ao trauma.
Mas o fato do sonho levá-los novamente à situaçã,o patógena é o que traz a Freud a
indagação sobre a natureza do sonho, uma vez que, de acordo com sua tese principal, o
sonho deveria apresentar, a esses neuróticos traumáticos, imagens de uma época anterior
ao trauma ou até da cura deste.
Segundo introdução de James Strachey a Além do principiO do prazer, em
conferência no Congresso Psicanalítico Internacional, realizado a 9 de setembro de 1920 em
Haya, Freud pronunciou-se a respeito dos sonhos traumáticos do seguinte modo:
Todavia, há outra classe de sonhos que suscitam, a juízo do orador, uma exceção
mais séria à regra de que os sonhos são realizações de desejo; são eles os denominados
"sonhos traumáticos", como os que têm lugar em pessoas que sofreram um acidente, mas
também os que, no curso da psicanálise de neuróticos, lhes tomam a fazer presentes
traumas esquecidos de sua infância. 59
Pela dificuldade de atribuir a esses sonhos a mesma finalidade que atribuiu aos
sonhos em geral, ou seja, a realização de desejo, Freud remete sua discussão ao manuscrito
que seria publicado em dezembro daquele ano.
A finalidade do sonho como realização de desejo deriva diretamente da SUPOSlçaO
adotada sem reservas, como Freud observa na primei r? parte de Além do princípio do
prazer, de que é o p~ncípio do prazer que regula automaticamente o decurso dos processos -
psiquicos.
Tal suposição implica que, sempre que uma tensão desprazeirosa se coloca em
marcha, a orientação do aparelho será para que o resultado final coincida sempre com uma
diminuição da tensão, evitando-se o desprazer ou produzindo o prazer.
Essa suposição se expressa também na hipótese segundo a qual o aparelho psíquico
se esforça por manter, se não o mais baixa possível, ao menos constante a quantidade de
excitação.
Se o trabalho do aparelho tem como objetivo manter baixa a quantidade de excitação,
será sentido como disfuncional ou desprazeiroso tudo o que possa aumentá-Ia. Freud
observa que o princípio do prazer deriva, portanto, do pnncipio da constância, embora
59 AE, vaI. 5, p. 18
99
esse último tenha sido identificado a partir dos fatos que o fizeram supor o principio do
prazer.
A tendência do aparelho de manter baixa ou constante a quantidade de excitação,
Freud remete ao princípio da estabilidade de Fechner, ao qual referem-se as sensações de
prazer e desprazer, como podemos observar através da seguinte citação: ''(...) todo o
movimento psicofísico que ultrapasse o umbral da consciência vem afetado de prazer na
medida em que se aproxime, além de certo limiar, da estabilidade plena, e afetado de
desprazer na medida"em que, além de certo limiar, se desvie daquela ...••60
Por força das evidências, Freud condu i ser incorreta a hipótese de um domínio
exdusivo do princípio do prazer regulando os processos psíquicos, pois, se assim fosse, a
grande maioria desses processos deveria resultar em prazer.
Com esta restrição, o que Freud identifica no aparelho é uma forte tendência ao
prazer, contrariada, porém, por outras forças ou constelações, que nem sempre permitem
que o resultado final corresponda ao alcance do prazer.
Mais uma vez a citação de Fechner vem corroborar o seu raciocínio:
"(...) a tendência à meta não significa todavia seu alcance, e em geral esta meta
somente pode alcançar-se por aproximações ..:061
Diante das constatações, para não renunciar à tese do sonho como realização de
desejo, resta a Freud sustentar que a neurose traumática afeta a função do sonho e a desvia
de sua meta.
No sentido de elucidar a questão, Freud remete-se à uma experiência semelhante da
vigilia, a experiência clíniCa da compulsão à repetição, na qual o enfermo repete o
conteúdo recalcado como vivência presente ao invés de rememorá-Io como parte do
passado, como seria preferível para o êxito do tratamento.
A compulsão à repetição reativa vivências que não contêm, nem em sua reprodução,
nem em sua origem, possibilidade alguma de prazer, mesmo para as moções pulsionais
recalcadas na ocasião.
Os desejos da vida sexual infantilestav2m, em si, destinados ao fracasso, por serem
inconciliáveis com a realidade. O fracasso desses desejos se dá através de penosas
experiências e sensaçõesextremamente dolorosas para a criança, deixando como seqüela
, "0 AE, vaI. 18, p. 8
,.J AE, vaI. 18, p. 9
100
uma ferida narcísica como dano permanente do sentimento de si mesmo. O vínculo edípíco
sucumbe, sem satisfação alguma, diante dessa realidade.
Mas como podem nascer desejos incompatíveis com a estrutura da realidade,
destinados, desde seu surgimento, a serem insatisfeitos?
Tais desejos, impossiveis de realização, no entanto, nascem, e suas vivências, que
acarretam frustração e dor, são repetidas pelos neuróticos na transferência com o analista,
através da ação de pulsões. Essas pulsões, que teriam por destino a satisfação, nem em seu
próprio momento de origem a obtiveram, levando apenas ao desprazer, numa experiência
vã, mas que, apesar de tudo, se repete forcada pela ação de uma compulsão.
Como observa Freud, a compulsão à repetição, no entanto, não se restringe a um fato
clínico. Na clínica, ela apenas encontra um suporte para atualizar-se. No cotidiano das
pessoas, essa compulsão exterioriza-se na repetição dos mesmos prejuízos, de idênticas
vivências que terminam invariavelmente em fracasso, e que, aparentemente, as fazem
vitimas de um destino implacável. De tais vivências somam-se exemplos.
Observando a compulsão à repetição à luz da transferência e do destino fatal dos
seres humanos, Freud universaliza o mecanismo de compulsão à repetição, supondo-o como
mais originário e mais pulsional que o próprio principio do prazer.
Desfaz-se, portanto, o reinado, até então absoluto, do principio do prazer sobre o
decurso dos processos psiquicos na teoria freudiana. A partir dai, as questões relativas ao
esclarecimento da çompulsão à repetição tomam um caminho independente do principio do
prazer, e se resumem nas seguintes indagações: sua função no aparelho, as condições para
sua emergência e sua relação com o principio do prazer.
).2 O trauma e a função originária do aparelho.
Em função da localização espacial do sistema consciente no aparelho psíquico, o
processo excitatório não imprime sobre seus elementos nenhuma alteração duradoura, tendo
como fim a aquisição da consciência. O fator que explica essa diferenciação é, para Freud, a
focalização do sistema consciente, em contato direto com o exterior.
Ao utilizar como exemplo um organismo vivo simplificado ao máximo -uma vesícula
indiferenciada e estimulável- atribui à sua superfície uma diferenciação devido à sua
localização frente ao mundo exterior, servindo como órgão receptor de estímulos. Sobre
bases embriológicas, concebe uma alteração da substância na superfície da vesícula, de
101
modo a diferenciar seu processo excitatório de outros estratos menos superficiais, devido ao
bombardeio de estimulos externos sobre essa superfície.
Em um mundo que se resume em massas em movimento, não é difícil deduzir que a
mesma não sobreviveria ao tJ?mbardeio incessante de estímulos externos, se não tivesse
sobre si uma proteção, que Freud denomina proteção anti-estimulo. Sua aquisição explica-se
através da evolução: necessidade de modificação da superfície exterior, a ponto de tomá-Ia
inorgânica, criando assim um envoltório que lhe permite fracionar a intensidade dos
estímulos externos, que, desse modo, Somente Se propagam para os estratos contíguos de
substância orgânica.
A proteção anti-estímulo age, então, à semelhança de um filtro para as magnitudes de
estímulo. Os estratos mais profundos foram preservados através da morte do estrato mais
externo, e só poderão ser alcançados se estímulos suficientemente intensos perfurarem a
proteção anti-estímulo. A partir de tal dedução, a tarefa que tem o organismo vivo de
proteger-se contra estímulos toma-se quase mais importante do que a de recebê-Ios. A meta
do organismo, portanto, deve ser a de preservar as formas interiores de transformação de
energia do influxo nivelador das quantidades hipertróficas de energia que operam fora. Como
o objetivo da recepção de estímulos é o de obter ciência sobre a orientação e a natureza de
estímulos do mundo exterior, apenas pequenas quantidades são suficientes para a execução
da tarefa.
No caso de organismos superiores, parte" do estrato cortical receptor de estímulos da
antiga vesicula permeneceram imediatamente atrás da proteçi'io anti-estimulo e são
conhecidos como órgãos sensoriais, enquanto o restante desse estrato adentrou mais
profundamente pelo corpo.
Fatores como a localização espacial do estrato cortical - que se diferencia como
sistema consciente- entre o exterior e o interior, e a multiplicidade das condições que podem
exercer seu influxo, tanto de um lado como de outro, são decisivos para a operação desse
sistema, assim como do aparelho psíquico.
C'1m base nesse modelo teórico, os fatores traumáticos determinantes das neuroses
encontram, para Freud, sua explicação não só na perfuração da protecão anti-estímulo
através de quantidades hiperintensas de excitação provenientes do mundo exterior -que
ocasionam um desequilíbrio na economia de energia do organismo e convocam todos os
meios possíveis de defesa- como também na soma de excitaçãb, liberada por ocasião do
choque mecânico, que permanece livre, sem ligação.
102
Sabemos que a neurose traumática caracteriza-se por uma fixação do sujeito ao
momento do trauma, atualizada pela repetição da lembrança do acidente, seja em sonhos,
seja em rememorações da vigília.
No entanto, segundo observa Freud, esse momento, que representou um risco de vida
para o sujeito, só desemboca na neurose se o sujeito em questão não sofrer nenhum sério
traumatismo físico como consequência do mesmo, que o levaria a um investimento narcísico
do órgão lesado. Por não haver possibilidade desse investimento libidinal na falta da lesão, o
exces.."'Ode libido, que se libera com o choque, penmanece livre, não encontrando um objeto
através do qual se daria sua tramitação.
O que resta, portanto, é uma soma de excitação em estado puro, sem ligação,
representando uma verdadeira invasão pulsional do aparelho psíquico. Nesse momento, não
há lugar sequer para um princípio que se assemelhe ao princípio do prazer. Invadido por
enonmes quantidades de estímulo, a tarefa do aparelho é, antes de mais nada, obter um
domínio sobre o estímulo, ligando psiquicamente as quantidades que se impuseram de fonma
repentina, a fim de processá-lo.
A essa conclusão, Freud acrescenta que o terror gerado na situação traumática
denuncia a falia de uma emissão de angústia que sobreinvestiria os sistemas que primeiro
recebem o impacto do estímulo. Sem esse sobreinvestimento, os sistemas continuam
operando com investimento inferior, que não lhes dá as condições necessárias para ligar as
quantidades de excitação hiperintensas sobrevindas de fora, facilitando a ruptura da proteção
anti-estímulo. Nesse contexto, a emergência da angústia surge como a última fronteira da
proteção antí-estímulo.
A situação traumática implica numa situa cão de fragilidade vivenciada, diferenciada da
situação de perigo pelo fato de não conter a condição prévia de exoectativa, na qual se dá o
sinal da angústia.
A angústia gerada em situação de perigo é, portanto, uma expectativa do trauma e
uma reprodução amenizada deste, ou seja, a situação de perigo implica no discernimento,
recordação e expectativa de uma situação de fragilidade. A angústia é a reação gerada, no
instante do trauma, diante da fragilidade do eu, reproduzindo-se, dai por diante, de fonma
bastante amenizada, para sinalizar a iminência de uma situação que represente perigo para
o eu.
Na 32.a de suas Novas conferências ... -Angústia e vida pu/siona/-, Freud destaca
que o essencial, tanto no nascimento, quanto em qualquer situação de perigo, é a
IOJ
emergência de um estado excitatário de tensão extremamente elevada, sentido comomuito
desprazeiroso e não passivel de domínio através da descarga, a que chama fator traumático.
Precisa o cerne da angústia como o terror da emergência do fator traumático, que não
pôde ser tramitado segundo o princípio do prazer.
A conversão de uma impressão em fator traumático pressupõe um cancelamento na
operacão do princípio do prazer.
Nesse momento, insere-se a elucidação da questão anteriormente formulada por
Freud a respeito da finalidade do sonho, como realização de um desejo, em relação ao
sonho dos neuróticos traumáticos: os sonhos que reconduzem o sujeito, regularmente, à
situação que provocou o trauma são sonhos que não estão a servico de nenhuma realização
de desejo. Freud supõe para esses sonhos uma tarefa mais elementar, anterior ao império
do princípio do prazer. O objetivo desses sonhos não é, portanto, realizar desejos, mas,
através de um desenvolvimento da angústia 62, cuja omissão foi decisiva para o
estabelecimento da neurose traumática, obter para o'aparelho o domínio sobre o estímulo.
Assim sendo, o retorno mnêmico da situação traumática nos sonhos representa a
tentativa, através desses, de ligar a quantidade excedente de excitacão. Que passa a
representar um problema, e até uma ameaça, ao aparelho psíquico.
Através desses sonhos, portanto, Freud adquire a perspectiva de uma outra funcão do
aparelho psíquico, que, embora não contradiga o princípio do prazer, opera de forma
independente deste e parer---eanterior ao objetivo do aparelho de obt",r prazer e evitar o
desprazer.
Através dessa perspectiva, Freud admite, pela primeira vez, uma exceção à tese de
que todo o sonho é uma realização de desejo. E a amplia: assim como os sonhos dos
neuróticos traumáticos, também os sonhos que na análise trazem de volta a recordação dos
traumas psiquicos da infància não podem ser vistos como realizações de desejo, mas sim
como produtos de uma compulsão à repetição.
f,' Para Freud, é um fator histórico que está na gênese do afeto de angústia: a situação de perigo
origínária, frente a qual a angústiz se constitui, representada nos seres humanos pelo ato do
nascimento. só pode ser percebida pelo feto como um desequilíbrio extremamente intenso na
economia da libido. provocado pela irrupção de grandes somas de excitação, que produzem
sensações intensamente desprazeirosas.
Ainda para elucidar essa questão, Freud toma como base a situação em que o lactente quer
garantir a presença da mãe, com a finalidade de resgüardar-se da insatisfação que seria gerada pelo
aumento de tensão advinda da necessidade não satisfeita. Observa que o comum a essa situação e
a situação do nascimento. e que caracteriza o núcleo da situação de perigo, está na perturbacão I
econômica em função do aumento hipertrófico das magnitudes de excitação à espera de tramitação.
~
...
104
Freud passa a supor uma função mais originária para o sonho do que a realização de
desejo das moções perturbadoras do sono, uma vez que o aparelho só pode exercer essa
função sob o domínio do princípio do prazer, que não opera durante o processo de ligação e
domínio dos estímulos.
O império do princípio do prazer só se estabelece, então, depois que é obtida a
ligação ou o domínio da excitação, o que ocorre, não por oposição, mas de forma
independente do princípio do prazer.
Cabe, portanto, aos estrates superiores do aparelho realizarem a ligação da excitação
das pulsões presentes no processo psíquico primário .
.$.2.1 Ligação: a tarefa primordial
A partir de Além do princípio do prazer, a questão da ligação toma um lugar de
destaque na teoria, evocada para dar conta da repetição psíquica do trauma que, após a
hipótese de 1920, pressupõe a perfuração da proteção anti-eslímulo, a função de ligar
quantidades de excitação já não pode mais ser atribuída ao eu. A ligação de quantidades de
excitação concomitante ao trauma aponta para uma tarefa anterior à constituição do eu ou
ao princípio do prazer, essencialmente relacionada à economia do aparelho e sobre a qual
assenta-se o fenômeno da compulsão à repetição. Freud recua, portanto, a tarefa da ligação
de excitações para as leis que regulam o próprio decurso inconsciente.
Cabe a Eros, portanto, a farefa de religar as representações. mantendo. dessa
maneira, a coesão do próprio sujeito que, desfocado do que supõe ser ele mesmo, só pode
ser pensado, peJa psicanálise, além do próprio eu.&3
À medida em que a tarefa primordial de ligar surge, em sua última teoria das pulsões,
como característica das pulsões de vida, uma contradição aparente se institui. No entanto. é
na medida em que se compreende, na obra de Freud, a relação existente entre a tarefa de
ligação das excitações e um conceito tão complexo como o da compulsão à repetição que
podemos nos certificar da aparência dessa contradição.
Ao considerarmos os diferentes casos em que a compulsão à repetição se exterioriza,
percebemos que é acidentalmente que ela aparece ligada à tarefa primordial de ligação,' não
havendo nenhuma relação fundamental entre elas; muito pelo contrário. Segundo Monzani,é .
As magnitudes de excitação que alcançam o nivel desprazeiroso, sem que possam ser dominadas e
tramitadas, estabelecem para o lactente a analogia com a situação do nascimento
'J MANIAKAS, G.F.(1997), p. 240
105
exatamente na falha da tarefa de ligacão que a compulsão à repetição se instala. Em suas
palavras:
''(. ..) é nesse vazio da Bindung [ligação], nessa fresta, que aparece a compulsão à
repetição." 64,.
Assim, a cena traumática será reproduzida regularmente no sonho até que, através da
Bindung, as quantidades invasoras do aparelho sejam ligadas e descarregadas de forma
fracionada, tomando neutra a invasão pulsional. Nesses casos, a compulsão à repetição
favorece aparentemente a tarefa de ligação, por não se exteriorizar mais em sua forma
original.
O caráter independente da compulsão à repetição em relação ao princípio do prazer
pode ser melhor apreciado nos casos de situação transferencial ou de repetição dos mesmos
fracassos e frustrações na vida cotidiana, onde o sujeito aplica o mesmo padrão infantil a
uma gama indefinida de situações, terminando todas, invariavelmente, em fracasso. Ai a
compulsão à repetição não somente aparece desligada do princípio do prazer, como
claramente em oposicão a ele, levando Freud a interpretá-Ia como o próprio índice da pulsão
de morte.
Não nos esqueçamos, porém, que até mesmo o princípio do prazer, que se instala
após a tarefa de ligação, por ter como meta a descarga de quantidades de excitação, não se
constitui em mais que um rodeio para que, enfim, o organismo alcance sua meta: o retomo
. . .4ao Inammauo.
Nesse sentido percebemos claramente que a orientação biológica preside ás
hipóteses sobre as quais se alicerça boa parte do edíficio psicanalítico desde então.
Nesse momento, porém, seria proveitoso estabelecer uma distinção entre a descarga
total das quantidades de excitação no nível orgânico, que pressupõe a morte, e as descargas
motivadas pela tendência de manter constante ou o mais próximo do zero as quantidades de
excitação, que pressupõem um .nível ótimo de funcionamento do aparelho. Estas últimas,
metas do principio do prazer, no entanto, são ligadas pelo princípio de realidade, que se
estabelece, como vimos, a partir da necessidade de interação do organismo com o meio, que
lhe garante a sobrevivência, sugerindo-nos, como resultado, uma mescla entre as duas
classes de puisões.
Tendo como hipótese básica para o funcionamento do aparelho a tarefa primordial de
ligação, Freud leva-nos a supor que a passagem do domínio absoluto do princípio do prazer
," MONZANI, L. R.(1989), p. 181
106
para o principio da realidade é somente um retomo: o principio da realidade, de forma
exclusivamente quantitativa, esteve aqui antes do principio

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