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Crueldade, Barbárie e Trauma - Um Estudo Sobre a Guerra - Ana Augusta Brito Jaques

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIRA (UVA) 
 
CURSO DE MESTRADO EM 
PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE 
 
 
 
 
 
 
 
 
Crueldade, barbárie e trauma: 
um estudo sobre a guerra 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ana Augusta Brito Jaques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
Ana Augusta Brito Jaques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Crueldade, barbárie e trauma: 
um estudo sobre a guerra 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em 
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de 
Almeida (RJ), como requisito parcial à obtenção do título de 
Mestre em Psicologia. 
 
Área de concentração: Estudos Psicanalíticos. 
 
Linha de Pesquisa: Subjetividade nas Práticas das Ciências 
da Saúde. 
 
Orientadora: Professora Dra. Betty Bernardo Fuks. 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2009. 
 
 
 
 3 
DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU 
E DE PESQUISA 
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ 
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 FICHA CATALOGRÁFICA 
 
FICHA CATALOGRÁFICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA 
 Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho 
J36c Jaques, Ana Augusta Brito 
 Crueldade, barbárie e trauma: um estudo sobre a 
 guerra / Ana Augusta Brito Jaques, 2010. 
 131f. ; 30 cm. 
 Digitado (original). 
 Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de 
 Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, 
 Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2010. 
 
 Orientação: Profª Drª Betty Bernardo Fuks. 
 
1. Pulsão de morte . 2. Pulsão da vida. 3. Neurose de 
 Guerra. I. Fuks, Betty Bernardo. II. Universidade Veiga de 
 Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e 
 Sociedade. III. Título. 
 CDD – 150.195 
 4 
Ana Augusta Brito Jaques 
 
 
 
 
Crueldade, barbárie e trauma: 
um estudo sobre a guerra 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicanálise, 
Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ), como 
requisito parcial à obtenção do título de Mestre. 
 
Área de concentração: Estudos Psicanalíticos. 
 
Linha de Pesquisa: Subjetividade nas práticas das Ciências da 
Saúde. 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
 
_______________________________________________________________ 
Professora Dra. Betty Bernardo Fuks – Universidade Veiga de Almeida (UVA) 
 
 
 
 
_______________________________________________________________________ 
Professora Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro – Universidade Veiga de Almeida (UVA) 
 
 
 
 
_______________________________________________________________________ 
Professor Dr. Marco Antônio Coutinho Jorge – Universidade Estadual do Rio de Janeiro 
(UERJ) 
 
 
 
 
 
Data de aprovação: 25 Set 2009 
 
 5 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para Fábio, Lucas e Enzo, meus amores, 
 por constituírem o que de mais caro há na minha vida. 
 6 
AGRADECIMENTOS 
 
 
À Professora Doutora Sarita Schafel, pelo apoio no início desse percurso. 
 
À Professora Doutora Maria Anita Carneiro Ribeiro por todos os incentivos e pelo 
olhar carinhoso que dirige a mim, meu respeito e admiração incondicionais. 
 
Ao Professor Doutor Marco Antônio Coutinho Jorge, pela generosidade e atenção em 
participar da minha defesa de mestrado. 
 
Às Professoras Doutoras suplentes da banca de avaliação, Vera Polo e Marilink 
Kuppferberg, pela atenção dispensada ao meu trabalho. 
 
Ás Professoras Doutoras Vera Polo, Glória Sadala e Sônia Borges, pela confiança 
transmitida e pela escuta atenciosa. 
 
A todos os professores deste curso, pelos ensinamentos preciosos que eu pude obter. 
 
Aos amigos queridos Patrícia, Simone, Laércio, Adriana e Luiz, pelas horas que 
convivemos juntos e pelo laço que estabelecemos. 
 
Aos queridos “Zé” Martins, Giana Marques, Adeliz Siqueira e Vinícius, pela ajuda na 
composição das peças desta dissertação. 
 
À Elaine, secretária do mestrado, por ser “lindinha” sempre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 7 
AGRADECIMENTO ESPECIAL 
 
 
À Betty Fuks, “para além” de orientadora, por ter acreditado na minha questão e pelos 
ensinamentos transmitidos. A fartura de seu conhecimento é motivo de admiração. A 
generosidade é uma palavra que te adjetiva. Obrigada por ter me permitido segurar na sua 
mão ao longo do percurso. Obrigada por ter me ajudado a realizar um sonho de vinte anos. 
Sem você, eu não teria conseguido. Meu respeito e lealdade eternos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 8 
RESUMO: 
 
Sob o impacto dos relatos de militares do Exército Brasileiro que compõem a Missão 
das Nações Unidas para a Estabilização da Paz no Haiti (MINUSTAH), e de minha própria 
experiência no Timor Leste, acometeu-nos um sentimento de perplexidade quanto à barbárie 
praticada nas guerras contemporâneas. Na literatura psicanalítica, em geral, a abordagem da 
crueldade esbarra no obscurantismo que a qualifica. O termo aparece pela primeira vez na 
obra inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos (1900), a partir da qual Freud passa 
a demonstrar que a crueldade é uma prerrogativa constitucional do sujeito. Encontramos na 
guerra o terreno mais fértil para a expressão máxima da crueldade, cujas ações humanas 
atestam quão cruel pode ser o homem, na medida em mata, humilha, toma o outro como 
objeto de gozo, ou seja, goza do sofrimento alheio. Nesse contexto, Freud denuncia a 
impossibilidade de erradicação das pulsões de crueldade, de poder e soberania – todas 
derivações da irredutível pulsão de morte. No estado de guerra, a quebra dos imperativos de 
lei resulta na banalização da violência dirigida ao outro e da morte, o que afeta diretamente o 
limite das ações que sustentam ou destroem o laço entre os povos. Nesse cenário tão adverso, 
a experiência traumática inunda o aparelho psíquico, num excesso pulsional inassimilável e 
deixa o sujeito submergido no trauma, na neurose, sem condições de simbolização, refém da 
repetição compulsiva do acontecimento danoso. Diante da angústia devastadora do psiquismo, 
a análise dos sujeitos neurotizados pela guerra é uma necessidade urgente. Nesse sentido, a 
psicanálise oferece uma escuta diferenciada por ser balizada pela ética do sujeito do 
inconsciente. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Pulsão de morte. Pulsão de vida. Crueldade. Neurose de guerra. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 9 
ABSTRACT: 
 
Due to the impact of narratives of soldiers who take part in the United NationsStabilization Mission in Haiti (MINUSTAH), and because of my own experience in East 
Timor, I had a feeling of perplexity in relation to the barbarities of contemporary wars. In the 
psychoanalytic literature, in general, the approach to cruelty borders the obscurity that 
qualifies it. Cruelty was defined for the first time in the book The Interpretation of Dreams 
(1900), in which Freud demonstrates that cruelty is a condition of the constitution of the 
subject. The ultimate expression of cruelty lies in war, in which the human actions prove how 
cruel man can be since man kills, humiliates and makes the other an object of pleasure, or has 
pleasure with the suffering of the other. In this context, Freud denounces the impossibility to 
eradicate the cruelty, power and sovereignty impulses – which are all a derivation of the 
irreducible death impulse. In a state of war, the breaking of law results in the trivialization of 
death and violence towards the other, and this affects the limits of actions that strengthen or 
destroy bonds among peoples. In such a scenery, the traumatic experience invades the psyche 
letting the subject drawn into trauma, neurosis, with no conditions of symbolization; the 
subject, then, becomes a hostage of the compulsive repetition of a negative happening. 
Because of the devastating anguish of the psyche, it urges to analyse the subjects the war 
neurotized. This way, psychoanalysis provides a different opportynity to hear them due to the 
presence of the ethics of the subject of the unconciousness. 
 
KEYWORDS: Death drive. Sexual drive. Cruelty. War neurosis. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 10 
RÉSUMÉ: 
 
L‟impact des récits de militaires de l‟Armée de Terre Brésilienne intégrant la Mission 
des Nations Unies pour la Stabilisation de la Paix en Haïti (MINUSTAH) et mon expérience 
personnelle au Timor-Leste m‟ont soulevé un sentiment de perplexité face à la barbarie 
présente dans les guerres de nos jours. En général, dans la littérature psychanalytique, 
l‟approche de la cruauté trouve sa barrière dans l‟obscurantisme qui la qualifie. Ce therme a 
été employé pour la prémière fois lors de l‟apparution de l‟oeuvre inaugurale de la 
psychanalyse, L’interprétation des rêves (1900), dans laquelle Freud a démontré que la 
cruauté est une prérogative constitutionnelle de l‟individu. La guerre constitue un terrain 
fertile pour l‟expression maximale de la cruauté, dont les actions humaines font preuve de 
l‟intensité de la cruauté de l‟homme, dans la mesure où il tue, où il est capable d‟humilier 
l‟autre, où il fait de l‟autre son objet de juissance, c‟est-à-dire, il jouit de la souffrance de 
l‟autrui. Dans ce contexte, Freud dénonce l‟impossibilité d‟éradication de pulsion de cruauté, 
de pouvoir et de souveraineté – celles-ci sont toutes des dérivations de l‟irréductible pulsion 
de mort. Dans un temps de guerre, la chutte des impératifs de loi aboutit à la banalisation de la 
violence auprès de l‟autre et de la mort, cela trouble directement la limite des actions qui 
soutiennent ou détruisent les liens entre les peuples. Dans cette ambience adverse, 
l‟expérience traumatique prend sa place dans l‟appareil psychique par un excès pulsionnel 
inassimilable qui rend le sujet plongé dans le trauma, dans la nevrose, sans aucune condition 
de simbolisation, ôtage de la répétition compulsive de l‟événement dommageable. Face à 
l‟angoisse dévastatrice du psychisme, l‟analyse des sujets rendus neurotiques par la guerre est 
un besoin d‟urgence. Dans ce sens, la psychanalyse offre une autre écoute, vu qu‟elle est 
centrée par l‟éthique du sujet de l‟inconscient. 
 
MOTS-CLÉS: Pulsion de décès. Pulsion de vie. Cruauté. Névrose de guerre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 11 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 14 
 
CAPÍTULO I ............................................................................................................. 20 
 
1.1 A colônia negra ...................................................................................................................... 20 
1.1 Vida e morte no porão ........................................................................................................... 21 
1.2 A razão da ilha ....................................................................................................................... 22 
1.3 A vida na colônia ................................................................................................................... 23 
1.4 O tiro que saiu pela culatra .................................................................................................. 24 
1.5 A ascensão de Toussaint L’ouverture .................................................................................. 24 
1.6 A abolição dos escravos ......................................................................................................... 26 
1.7 O Brasil no Haiti .................................................................................................................... 29 
 
CAPÍTULO II – O silêncio ensurdecedor da pulsão de morte.............................. 30
 
2.1 Civilização e barbárie ............................................................................................................ 30 
2.2 O conceito de pulsão ............................................................................................................... 40 
2.3 Contribuições de Lacan à teoria das pulsões ....................................................................... 61 
2.4 O conceito de trauma ............................................................................................................. 66 
2.5 Rastreamento da formulação freudiana da crueldade ....................................................... 74 
2.6 Da crueldade desde sempre .................................................................................................. 89
 
CAPÍTULO III .......................................................................................................... 98 
3.1 Neuroses de guerra ................................................................................................................ 98 
3.2 Considerações sobre o atendimento clínico aos neuróticos de guerra ............................ 109 
 
CAPÍTULO IV ........................................................................................................ 121 
4.1 À título de conclusão ........................................................................................................... 121
 
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 125
 
PRODUTO ............................................................................................................... 129 
 12 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
"Como você e eu, os responsáveis por Auschwitz tinham narinas, uma boca, uma voz, 
uma razão humana; eles podiam se casar, ter filhos; como as Pirâmides ou a Acrópole, 
Auschwitz é o feito, é o signo do homem" 
(George Battaille). 
 
 
 
 
 
 13 
LISTA DE ABREVIATURAS 
 
 
 
EB Exército Brasileiro 
 
CEP Centro de Estudos de Pessoal 
 
FMP Força Militar de Paz 
 
MINUSTAH Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti 
 
OEA Organizaçãodos Estados Americanos 
 
ONU Organização das Nações Unidas 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 14 
INTRODUÇÃO 
 
Pensar na crueldade humana nos remete, forçosamente, ao fato de que ela protagoniza 
a história da humanidade. Desde sempre o homem desenvolveu um sem número de guerras e 
conflitos com o propósito de atingir suas metas. A crueldade se apresenta como um conceito 
de difícil entendimento nos seus matizes mais profundos, notadamente quanto ao requinte que 
a adjetiva. Trata-se de um conceito ligado à face destrutiva da pulsão de morte. Nesse sentido 
não há outra disciplina que esteja mais bem qualificada para o estudo da crueldade, senão a 
psicanálise. 
O interesse pelo tema desta dissertação nasceu do trabalho que desenvolvo no Exército 
Brasileiro há doze anos, dez dos quais ligados ao envio de tropas para missões das Nações 
Unidas. Como psicóloga e oficial de carreira do Exército, coordenei e realizei atividades de 
seleção psicológica dos militares voluntários para as missões de paz no Timor-Leste e no 
Haiti. Esse trabalho é gerenciado por um projeto denominado Força Militar de Paz, composto 
por vinte profissionais de psicologia. A primeira etapa de trabalho é composta pela seleção 
psicológica dos militares, mediante a realização de testes psicológicos, dinâmicas de grupo e 
entrevistas individuais. Após a seleção psicológica, os militares escolhidos são preparados 
psicologicamente para um período de seis meses no Teatro de Operações. A preparação 
psicológica vale-se de informações sobre a cultura local, hábitos do povo, filmes, além de 
reuniões grupais em que as idealizações dos militares são colhidas e discutidas em grupo. Foi 
precisamente nessa etapa de preparação psicológica que começaram a surgir indagações sobre 
a forma como o trabalho de psicologia estava sendo desenvolvido, porque, como psicanalista, 
eu sabia que não há “receitas de bolo” para quem vai para a guerra. As atitudes dos sujeitos 
diante do inesperado podem ser tão imprevisíveis quanto às da própria guerra. Então, como 
prepará-los para o inesperado? A possibilidade de matar e morrer são variáveis possíveis de 
acontecer na batalha, de modo que me pareceu ilusória qualquer tentativa de preparação para 
lidar com a morte – do outro ou de si mesmo – naqueles moldes existenciais e cognitivo-
comportamentais. Existe algo que escapa e que não é dito, que é silenciado ou mesclado nos 
ideais camuflados de patriotismo. 
Existem também outros motivos de ordem econômica e pessoal no voluntariado para 
as missões da ONU. A começar pelo pagamento feito em dólar que aumenta a possibilidade 
de aquisição de bens materiais permanentes após o retorno para o Brasil. A medalha no peito 
 15 
– fator diferenciador dentre os demais que não a possuem E a pontuação na carreira – fator 
acelerador de promoções por merecimento – são também motivos pelos quais se voluntaria 
grande parte do contingente. Não que a nobreza do patriotismo esteja ausente; ela parece ser 
secundarizada por necessidades pessoais. Vale ressaltar que a guerra é num país não afeto ao 
Brasil. Ou seja, uma guerra que não nos pertence. 
Em geral o trabalho do psicólogo inclui, além das fases de seleção e preparação 
psicológica, as fases de acompanhamento no local da missão e a desmobilização psicológica 
dos militares quando do egresso da tropa. Nessa última fase, todos são ouvidos em grupos 
dentro dos círculos hierárquicos e individualmente. Trata-se de um momento extremamente 
rico e sensível, sendo notória a possibilidade de alívio da angústia que o falar oferece. Alguns 
militares mais comprometidos emocionalmente são encaminhados para psicoterapia 
individual. 
Em 2003, tive a oportunidade de ir ao Timor-Leste, a fim de observar os militares em 
ação, além de escutá-los um a um, totalizando noventa atendimentos individuais. A partir 
dessas entrevistas brotaram mudanças no trabalho desenvolvido pelo projeto Força Militar de 
Paz. A principal constatação foi a necessidade de uma escuta diferenciada em todas as fases 
do processo, antes, durante e após o final da missão. No Timor-Leste, país violentamente 
atacado pela Indonésia, cujo conflito dizimou mais de 250 mil timorenses, pôde-se observar o 
clima de tensão e a possibilidade de rebelião cotidiana. Esses fatores geravam muito estresse 
na tropa e dificultavam o relacionamento intragrupal. No Timor há muita fome e miséria, cujo 
sofrimento se verifica nos corpos magros, nos dentes cor de abóbora – derivada do costume 
de mascar uma planta nativa que anestesia o estômago e elimina a sensação de fome. O olhar 
do povo timorense revela desesperança, tristeza, desamparo e medo da violência. Tais fatores 
culturais também afetavam a tropa no começo da missão; depois a tropa se acostumava com 
aquela situação. O Timor-Leste, ainda hoje, é palco de instabilidade política e econômica, 
onde existe a possibilidade de insurgência violenta, como a recente tentativa de matar o 
presidente do país em 2008. 
No ano de 2004, o Brasil foi novamente convidado a participar de uma missão, a 
estabilização da paz no Haiti, MINUSTAH. O projeto Força Militar de Paz foi chamado para 
realizar o trabalho de seleção, preparo psicológico, acompanhamento e desmobilização, dessa 
vez para um efetivo de 1.200 militares. O primeiro efetivo de militares seguiu para o Haiti “à 
toque de caixa”, sem nenhuma abordagem psicológica. O Haiti estava vivendo o caos da 
barbárie, com a crueldade a olhos vistos. Foi nesse clima de guerra que os primeiros 
 16 
brasileiros chegaram no Haiti, imbuídos de toda sorte de motivos, sem nunca terem 
guerreado. Deparar com o horror haitiano desencadeou neuroses de guerra e alguns militares 
foram repatriados para o Brasil. Ao que parece, a idealização dos motivos, e os próprios 
objetivos pessoais, não foram suficientes para manter alguns homens no combate, devido a 
razões psicológicas. Ou seja, operacionalmente eles estavam muitíssimo bem preparados, não 
ocorrendo o mesmo com o sustentáculo psíquico. 
“Um militar quer atuar no combate”, disseram-me muitos deles. Todavia, trata-se de 
um ideal muitas vezes ilusório, que resulta em problemas futuros, além das sequelas da guerra 
por si mesma. Verificamos que muitos militares não voltam bem. Então, o que fazer com 
esses homens, os quais irão retornar para seus lares e para a rotina dos quartéis? Como 
resposta, oferecemos a psicanálise. 
A escolha do tema da crueldade como objeto de estudo está ligado à análise de 
algumas cenas oriundas da guerra no Haiti, imagens essas em nosso poder, como, por 
exemplo, as imagens de um assassinato cometido por integrantes de uma gangue rival, 
filmadas pelo celular de um militar brasileiro. Podemos descrever a cena da seguinte forma: 
no chão, um haitiano ferido, ao que parece desfalecido; numa marcha frenética, agitada, um 
grupo de também haitianos cantam, pulam, portando facões, paus e fuzis nas mãos; em 
seguida eles começam a chutar o haitiano machucado e quase morto, além de aplicar-lhe 
pauladas na cabeça e no corpo como um todo; de repente um tiro o atinge e nos leva a crer 
que já não há vida presente; para nossa surpresa, o homem se mexe, levanta a mão, como que 
um último apelo à vida; ato contínuo, seus rivais perfuram-lhe o abdômen com uma baioneta, 
dirigem-lhe mais um tiro na cabeça, enquanto outro inicia a retirada de suas vísceras para 
deixar-lhe oco. Tudo isso feito em meio a pulos, cantigas e uma evidente euforia. Igualmente 
são impactantes as fotografias que retratam o horror dos corpos mortos e abandonados em 
meio às ruas fétidas, todos escalpelados e sem vísceras, para onde se achegam porcos e 
cachorrospara da carne humana – abandonada e já sem sorte – alimentar-se. No início de 
2004, um grupo de patrulha do primeiro contingente brasileiro contou-nos que encontrou um 
homem no lixo, nu, pele e osso, escalpelado. Relataram que pensaram que aquele era um 
corpo morto. Todavia, ainda vivo, foi socorrido pela patrulha e levado para a base hospitalar 
argentina, onde foi tratado e salvo da morte. No Haiti, há muitos conflitos entre gangues rivais 
e é surpreendente o exercício da crueldade que em geral se aplica ao inimigo. Para essas 
gangues não bastam ferir o corpo do inimigo ou matá-lo; é preciso escalpelá-lo ainda vivo, 
para depois decepar-lhe a cabeça, sendo esses atos expressão da crueldade sanguinária. Os 
 17 
militares egressos relatam que as ruas da capital Porto Príncipe têm o cheiro da morte. 
Analogamente violento é o ato dos pais que oferecem as crianças para a prática do sexo, em 
troca de um dólar ou de comida e água. Foi preciso ouvir e rever tais cenas, dentre inúmeras 
outras, para delas se distanciar, como única possibilidade para delas falar. Impressiona-nos o 
desencadeamento sem freio do ato bárbaro, a euforia da matança, indicando-nos o real da 
pulsão de morte – soberana e irredutível. 
A possibilidade de realizar esta pesquisa de mestrado encontrou melhores condições 
na modalidade bibliográfica, dada a natureza do assunto. Após a delimitação temática foi feito 
um levantamento bibliográfico preliminar e iniciadas as leituras e discussões em torno do 
assunto, possibilitando uma melhor formulação do problema a ser pesquisado. A pesquisa 
teórica se ancora nos escritos freudianos e na literatura mais recente sobre o assunto, o que 
permitirá a continuação do estudo num posterior doutorado. 
Para efetuar o estudo da crueldade a partir do Haiti, optamos por contextualizar o 
leitor quanto à história do país, resumidamente disposta na segunda parte desta dissertação. 
No capítulo A colônia negra, procuramos mostrar que a história do Haiti é marcada pela 
exploração por parte dos invasores espanhóis que dizimaram mais de um milhão de haitianos, 
além de escravizá-los, estuprar suas mulheres e apoderarem-se de suas riquezas naturais. O 
estrangeiro trouxe a violência sob diversos aspectos para o povo haitiano. A repetição da 
violência caracteriza a história do Haiti, inclusive nos dias atuais. 
No terceiro capítulo, intitulado O silêncio ensurdecedor da pulsão de morte, 
desenvolvemos quatro sub-temas. O primeiro ocupa-se do entendimento dos termos 
civilização e barbárie, dada a sua ligação com o exercício de crueldade. O segundo aborda o 
conceito de pulsão, considerado peça chave na compreensão da crueldade. Também nessa 
sessão apresentamos breves comentários sobre as contribuições de Lacan à teoria das pulsões 
de Freud. O terceiro sub-tema é reservado à análise da crueldade. Iniciamos pelo rastreamento 
da formulação freudiana da crueldade, enquanto categoria constitutiva do humano. 
Surpreendeu-nos o fato de que Freud já usava o termo crueldade, assim como a expressão 
pulsão de crueldade desde 1900, na obra inaugural da psicanálise, ocasião onde estabelece 
uma ligação entre sexualidade e crueldade a partir da interpretação de sonhos. Em seguida 
abordamos a leitura do termo crueldade por Jacques Derrida. O filósofo franco-argelino toma 
como eixo referencial de sua pesquisa a correspondência entre Einstein e Freud e mostra de 
que modo Freud pensava a crueldade e suas gradações. Para Derrida a crueldade é um 
conceito confuso e obscuro ligado a uma das faces da pulsão de morte. O quarto sub-tema 
 18 
trata do conceito de trauma na psicanálise, considerado imprescindível para os atendimentos 
psicanalíticos que constituem o produto desta pesquisa. 
O capítulo quatro é intitulado Neuroses de guerra. O texto discorre sobre as neuroses 
de guerra e inclui um subitem que tratada do atendimento clínico dos egressos das zonas de 
combate, uma vez que, na origem deste estudo, estão os militares que lutam na guerra, muitos 
dos quais desencadeiam neuroses e surtos psicóticos. Destacamos o pensamento de Freud 
sobre as neuroses de guerra, analisadas à semelhança das neuroses traumáticas dos tempos de 
paz, ambas causadas por um excesso inassimilável para o sujeito. Percorremos a trilha de seus 
escritos sobre o assunto e, nesse contexto, apresentamos o valor do trauma na eclosão da 
neurose e como a compulsão à repetição observada nos sonhos permitiu ao criador da 
psicanálise avançar passos na compreensão da neurose de guerra. A pesquisa aponta o 
esgarçamento no simbólico que provoca o trauma de guerra e quão atormentada é a reinserção 
do sujeito após o retorno da missão, uma vez submergido na experiência traumática. 
Fundamentalmente, os textos que compõem essa sessão referenciam a importância da ética do 
tratamento psicanalítico dispensado ao militar neurotizado pelo horror do combate. 
Atualmente o Exército Brasileiro oferece atendimento psicoterápico em algumas 
Organizações Militares de Saúde (OMS), de modo que o resultado desta pesquisa constitui 
uma ferramenta bibliográfica importante para os profissionais que fazem clínica psicanalítica. 
Relatamos alguns fragmentos clínicos com o objetivo de ressaltar a relevância do estudo. 
Igualmente nos valemos de uma passagem do filme No vale das sombras, dirigido por Paul 
Haggis, que reproduz na ficção fatos comumente observados na vida na caserna. 
O produto do trabalho pesquisado oferece um estudo teórico assentado na psicanálise, 
de modo que o projeto Força Militar de Paz do Exército Brasileiro possa dele dispor como 
fonte bibliográfica. Pretendemos resgatar a antiga idéia de criação de um núcleo de 
atendimento psicanalítico permanente em cada contingente designado para o Haiti, ou para 
qualquer outro país para onde o Brasil vier a enviar tropas. Tão importante quanto os centros 
psicanalíticos no front são os atendimentos clínicos aqui no Brasil, de modo que a pesquisa 
serve de fonte de consulta para os profissionais que atendem os militares neurotizados pela 
guerra. Trata-se de necessidades urgentes. Fundamentalmente o estudo aponta que no 
tratamento dos traumas de guerra existem alguns aspectos que somente a psicanálise é capaz 
de atuar. 
Diante de questão de tamanha envergadura, o estudo da crueldade tem pertinência e 
aplicação, tendo em vista tratar-se de um assunto presente, cuja literatura ainda se faz, 
 19 
reforçado pela crueldade do terrorismo, assim como pela crueldade dos tempos de brancas 
nuvens, afiançado pela prerrogativa freudiana de que não há como abolir os pendores 
agressivos, destrutivos e cruéis no homem. Esperamos que a pesquisa aqui desenvolvida seja 
apenas o começo de um percurso a continuar num programa de doutorado. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 20 
CAPÍTULO I 
1. A colônia negra 
 
O Haiti nasceu de uma insurreição de escravos na Ilha de São Domingos, então 
colônia francesa, iniciada no ano de 1791. As causas dessa revolução estão ligadas à 
Revolução Francesa de 1789, cujo ideal encontrou voz junto aos escravos rebelados e 
refugiados nos quilombolas
1
 da Ilha. 
A colônia de São Domingos foi cedida à França, no ano de 1795, e tornou-se a mais 
rica do mundo, incluindo-se nessas considerações o Brasil. A riqueza da ilha era devido à 
produção açucareira, principalmente. Toda a infraestrutura necessária à produtividade daquela 
região era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos oriundos da África, trazidos 
para aquelas bandas nos navios negreiros. 
Este texto inicial objetiva situar o leitor quanto à história de um país, cujo povo nativo 
foi escravizado e dizimado pelos invasoresespanhóis, país esse que conheceu a máxima 
prosperidade e fartura sustentadas pela escravidão e barbárie desde os seus primórdios, e que, 
hoje, constitui-se num dos países mais pobres do mundo, com elevadíssimos índices de 
mortalidade e violência, caracterizando um clima de mal-estar constante. A violência é um 
fenômeno cotidianamente repetido no Haiti, atestado pela iminente possibilidade de novas 
rebeliões. Essa situação está presente na história do povo haitiano desde a chegada dos 
espanhóis. As atrocidades sem-fim, o requinte praticado nos assassinatos conferem algumas 
peculiaridades também repetidas no cometimento de atos cruéis, como, por exemplo, o 
escalpelamento do inimigo, a decapitação e a exposição intimidatória, a retirada das vísceras 
do cadáver e o abandono da carne outrora viva deixada ao bel-prazer de porcos e cachorros 
tão famintos quanto os homens que por ali vivem. Tais peculiaridades conferem primitivismo 
àqueles que os cometem, mas não menos do que o primitivismo característico do humano, 
posto que o primitivismo habita o homem. Também a crueldade praticada no Haiti não 
qualifica o haitiano como mais bárbaro ou mais cruel que qualquer outro povo. Afinal, a 
história da humanidade está repleta de atrocidades praticadas contra humanos, o que nos dá a 
possibilidade de entendimento que não é o haitiano especificamente que é violento; é o 
homem – seja qual for a sua origem. Assim sendo, a possibilidade de um ato cruel não é 
 
1 Termo atribuído aos assentamentos criados pelos escravos fugitivos. 
 21 
exclusiva do haitiano ou daqueles que cometeram o sem número de atos violentos contra a 
humanidade; essa possibilidade é real no homem. 
O Haiti é um país que ocupa o terço ocidental da ilha Hispaniola e faz fronteira 
terrestre com a República Dominicana, a leste. A capital do país é Port au Prince. A 
denominação “Hispaniola” atribuída à ilha deriva da chegada de Cristóvão Colombo, em 
1492. Era a época das grandes navegações, do comércio marítimo das Índias Ocidentais e do 
escravagismo. Há indícios de que os primeiros humanos no Haiti chegaram à ilha entre 1.000 
e 7.000 anos A.C. (JAMES, 2007). 
Os espanhóis eram o povo mais desenvolvido daqueles tempos e anexaram a ilha 
denominando-a de Hispaniola. Como ocorreu em outros lugares, os espanhóis tomaram essas 
terras, assim como aos índios nativos de pele vermelha que lá habitavam sob sua proteção. 
Após a chegada de Colombo, já no final do século XVI, praticamente toda a população nativa 
havia sido escravizada ou dizimada pelos conquistadores espanhóis. O estrangeiro introduziu 
o cristianismo, o trabalho forçado nas minas de ouro executado pelo próprio povo nativo, o 
assassinato, o estupro, além de doenças e fome. 
Posteriormente, a ilha Hispaniola passou a ser chamada de ilha de São Domingos e 
dividida no que hoje se conhece por Haiti e República Dominicana. A parte ocidental da ilha 
(Haiti) foi cedida à França pela Espanha, em 1697. Antes disso, em 1629, após Colombo ter 
fundado o assentamento espanhol na colônia, chegaram por Tortuga
2
 franceses, ingleses e 
holandeses. Conta a história que se tratavam de fugitivos da justiça, escravos desertores, 
devedores, aventureiros e criminosos de toda sorte. 
A ilha de São Domingos, agora sob regência francesa, se tornou a mais próspera do 
mundo, graças ao cultivo e exportação do cacau, do café e, principalmente, do açúcar. A 
produção e manutenção dessas preciosidades da época eram sustentadas pelo trabalho 
escravo. 
 
 
1.1 Vida e morte no porão 
 
 
2 Pequena ilha situada ao norte, a 9 Km do Haiti. 
 22 
Os negros da África chegavam à ilha transportados em navios negreiros. Cada um 
deles ocupava de um metro a um metro e meio de comprimento e de meio metro a um metro 
de altura, de forma que os negros não podiam nem se deitar, nem ficar de pé ou ficar sentado 
na postura ereta. As revoltas ocorridas nas embarcações nos portos depõem contra o 
romantismo histórico e cinematográfico, dado o que de fato os escravos iriam enfrentar na 
longa viagem. Por isso, os escravos eram acorrentados uns aos outros e atrelados a longas 
barras de ferro. A proximidade de tantos corpos nus, machucados, infectados, de pele 
supurada, o ar fétido, a disenteria e restos fecais tornavam o porão de um navio negreiro algo 
inimaginável. 
 
 
1.2 A razão da ilha 
 
Prosperidade era a razão da ilha de São Domingos. Nenhuma parte da superfície do 
globo produziu, em proporção com as suas dimensões, tanta riqueza quanto a colônia 
francesa. Em 1767 foram exportadas 70 mil toneladas de açúcar, 500 toneladas de anil, mil 
toneladas de algodão, além de algumas toneladas de couro, melado, cacau e rum. Os produtos 
de São Domingos eram marcados por peculiar qualidade, inexistente em outras paragens. 
A colônia francesa era a mais próspera do mundo e concentrava meio milhão de 
escravos, constituindo o contingente negro uma superioridade populacional dez vezes maior 
que a população branca. 
A cultura do açúcar demandava trabalho árduo e por horas a fio. Os escravos eram 
tratados de forma subumana e alojados como animais. Nos locais onde dormiam não havia 
janelas, o chão era de terra batida e dormiam indiscriminadamente pais e filhos. 
Nessa época, Luiz XIV – o mesmo rei que em 1670 autorizou o tráfico negreiro da 
África para a colônia – resgata o Código Negro na tentativa de humanizar o tratamento 
dispensado ao escravo. A colônia, entretanto, apesar de sua subordinação à metrópole 
francesa, não fazia cumprir o determinado no Código. Este documento foi criado por Carlos 
V, em 1517, com o propósito inicial de autorizar a exportação de 15 mil escravos para São 
Domingos sob o gerenciamento de Las Casas, um padre dominicano que pleiteava a abolição 
de escravos nativos e a importação de negros africanos para a consecução do trabalho na 
 23 
colônia. Dessa forma, um padre e um rei iniciaram no mundo o comércio americano de negros 
e a escravidão. 
 
 
1.3 A vida na colônia 
 
A vida de escravo é como o real a céu aberto apregoado pela psicanálise, dada a 
barbárie do seu cotidiano. Pela menor falta o escravo era torturado, açoitado muitas vezes até 
a morte. Algumas vezes o açoite era interrompido e madeira quente era esfregada nas nádegas 
do escravo, ou colocava-se sal, pimenta e outras especiarias sob as feridas abertas. As 
mutilações eram cenas frequentes: membros, orelhas e até órgãos genitais. Alguns escravos 
eram queimados vivos. Havia a prática de encher o escravo de pólvora e explodi-lo. 
Igualmente eram enterrados até o pescoço e lambuzados com o melado da cana que eles 
mesmos produziam para que as moscas, formigas e vespas os devorassem. Os senhores 
faziam-nos beber e comer os próprios excrementos ou obrigavam-nos a lamber a saliva dos 
outros escravos. 
Viver era uma situação difícil para negros escravos em sua maioria e muitos se 
matavam, envenenando-se. As crueldades praticadas contra os escravos eram justificadas pelo 
que se supunha saber daquela raça: “diz um relato de 1789 que os escravos eram injustos, 
cruéis, bárbaros, semi-humanos, traiçoeiros, pérfidos, ladrões, beberrões, arrogantes, sujos, 
sem-vergonha e covardes.” (Ibid., p. 31). Com base nessa premissa, as crueldades praticadas 
pelos brancos eram legitimadas. Ao que parece, jamais houve qualquer consideração com 
relação às circunstâncias geradoras da suposta agressividade do negro escravizado. 
No contexto de horror e barbárie foram surgindo insurretos. Homens e mulheres 
negros fugiam para as montanhas e formavam assentamentos denominados quilombolas.Nas 
cerimônias de vodu
3
 os negros entoavam uma canção que dizia: “juramos destruir os brancos 
e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa.” (Id.) 
 
 
 
3 O voduísmo ainda é praticado no Haiti de hoje, normalmente pela madrugada. Durante o dia, a religião oficial 
do país é o catolicismo. 
 24 
1.4 O tiro que saiu pela culatra 
 
As riquezas da ilha de São Domingos associadas à escravidão e às desigualdades 
reinantes levaram a colônia à insurreição. 
A prosperidade afetou a massa de trabalhadores escravos. Em 1789, São Domingos 
era a colônia mais rica do mundo. Muitos escravos tinham recebido pequenas porções de terra 
para cultivo e, com isso, passaram a ter economias e também alguma propriedade. 
No contexto de insatisfação existente na ilha e devido à revolução que ocorria na 
metrópole francesa, a burguesia britânica percebeu que toda a riqueza da ilha de São 
Domingos era sustentada pelo trabalho escravo. Sem escravos, a rica colônia viria a sucumbir. 
Os britânicos passaram, então, a defender as ideias de abolição da escravatura na medida em 
que isso seria extremamente proveitoso para os ingleses. As vantagens do livre comércio 
passaram a ser as palavras de ordem defendidas por escritores e autoridades britânicas da 
época. Por conseguinte, conseguiram convencer que o trabalho escravo era o mais caro do 
mundo. 
É óbvio que havia um interesse subjacente à bondade britânica, ou seja, não era 
exatamente a abolição dos escravos que estava em jogo, mas a soberania econômica da ilha de 
São Domingos, a qual estava na dependência do trabalho escravo. Todavia, a escravidão na 
ilha parecia eterna, assim como os lucros derivados. Entretanto, a prosperidade econômica 
não era garantia de estabilidade social e, de fato, a estabilidade não existia dadas as diferenças 
sociais reinantes na colônia. 
A população branca da ilha temia uma revolta da população escrava. E a esperada 
revolução ocorreu no ano de 1791, influenciada pelo ideal da Revolução Francesa
4
. 
 
 
1.5 A ascensão Toussaint L’ouverture 
 
Toussaint L‟ouverture pertenceu a uma pequena casta de escravos privilegiados. Seu 
pai foi comprado por um colonista dotado de alguma dose de sensibilidade, o qual lhe doou 
 
4 O ideal da Revolução Francesa apregoava a liberdade, a igualdade e a fraternidade. 
 25 
uma pequena horta para cultivo, juntamente com cinco escravos. O pai de Toussaint tornou-se 
católico e casou-se com uma linda mulher. Dessa união nasceu Toussaint, o filho mais velho 
de oito irmãos. 
O futuro líder da revolução da ilha de São Domingos foi apadrinhado por um velho 
negro que morava perto da casa-grande, denominado Pierre Baptiste. Através de seu padrinho, 
foi introduzido no francês e no latim, além de ensinamentos religiosos, aprendeu desenho e 
adquiriu conhecimento sobre plantas medicinais e literatura. Posteriormente tornou-se 
cocheiro de seu senhor e depois foi designado responsável pela administração de todos os 
bens da fazenda, cargo este normalmente ocupado por um branco. 
Toussaint nasceu em meio à escravidão, mas viveu em meio a circunstâncias 
favoráveis a uma boa vida familiar, amigos e um senhor gentil. Sua participação na 
insurreição deu-se quando tinha 45 anos. Do caos existente em São Domingos e que 
perduraria pelos anos seguintes, ele deitaria as fundações de um Estado negro existente até os 
dias de hoje. Desde o momento em que se juntou à revolução ele foi o seu líder. Sua relativa 
cultura, o seu sucesso em meio ao caos da ilha, sua retidão de caráter e sua personalidade 
contida deram-lhe um enorme prestígio entre os negros da época. O caos, as agressões 
sofridas, as insatisfações da massa de escravos demandavam um lugar a ser ocupado. 
Toussaint ocupou esse lugar. Ele lutava não apenas pela liberdade dos escravos, mas por 
direitos políticos. Seu ideal era o de liberdade para todos, a ser assegurado pela própria força. 
No ano de 1792, ele torna-se general-brigadeiro e inicia os treinamentos do exército, 
conseguindo unificar milhares de negros ignorantes e treiná-los compondo um exército capaz 
de enfrentar as tropas inimigas. O seu exército possuía cerca de cinco mil homens, dentre os 
quais – os soldados – na sua maioria, africanos nascidos fora da colônia. Os oficiais em 
comando eram antigos escravos, como ele o fora. Tratava-se, portanto, de um exército 
identificado com um ideal de revolução, sendo esta a sua maior força. 
Toussaint aprendera sobre a necessidade de estar ele mesmo no campo de batalha e 
isso repercutia em benefício da causa em luta. Ele dividia as recompensas e os perigos, mas 
mantinha-se como uma pessoa reservada e rigorosa, com hábitos semelhantes aos aristocratas 
de berço. 
Ele reconheceu que sua causa não sobreviveria somente com um exército forte e 
convenceu milhares de pessoas a retornarem ao cultivo das terras devastadas. Brancos, negros 
e mulatos retornaram para o cultivo da terra. 
 26 
 
 
1.6 A abolição dos escravos 
 
O fim da escravidão na ilha de São Domingos ocorreu no ano de 1794. O Haiti nasceu 
de uma rebelião de escravos quando ainda eram escravagistas o Brasil, Cuba e os Estados 
Unidos. A partir de então, a história do Haiti é marcada por uma multiplicidade de fatos de 
natureza política. 
Em 1801, Toussaint tornou-se governador-geral e posteriormente foi deposto e morto 
pelos franceses em 1803, na França, para onde fora levado preso, em Fort Joux, no dia 27 de 
abril. Assume o comando do país Jean-Jacques Dessalines. 
Dessalines organizou o exército e derrotou os franceses ainda em 1803. No ano 
seguinte, ele declarou o Haiti independente e proclamou-se Imperador Jacques I. O Haiti foi o 
primeiro país das Américas a tornar-se independente, movimento iniciado por Toussaint. 
A história do Haiti revela que a quase totalidade de seus governantes foi deposta e 
morta devido à instabilidade política, econômica e social que assola aquele país, desde a 
época da chegada dos espanhóis. Dessalines foi deposto e morto e, a partir daí, o país entra 
num período de muita instabilidade. O controle do Haiti passa a ser dividido em duas porções: 
a parte ocidental é comandada por Henri Christophe, e a parte oriental – atual República 
Dominicana – é controlada pela Espanha, tendo como chefe Jean-Pierre Boyer, que reunificou 
o país conquistando toda a ilha. Em 1884, uma nova revolta derruba Boyer e a República 
Dominicana proclama-se independente. 
Da segunda metade do século XIX ao começo do século XX sucederam-se 20 
governantes sucessivamente no poder. Dezesseis dentre vinte governantes do Haiti foram 
depostos ou assassinados. 
Entre os anos de 1915 a 1934, tropas dos Estados Unidos ocuparam o Haiti sob o 
pretexto de proteger supostos interesses. Em 1946, ocorrem eleições e Dusmarsais Estimé é 
eleito presidente. Em 1957, François Duvalier, médico conhecido como Papa Doc
5
, é eleito 
presidente. É iniciado, então, o período mais sombrio na história do Haiti. O regime de 
 
5 Designação atribuída a François Duvalier por conta do tratamento bondoso que dispensava a seus pacientes e à 
população carente do Haiti. 
 27 
governo implementado instaurou terror, violência e perseguição aos opositores de Duvalier, 
cujas ações eram executadas por sua guarda pessoal – os tontons macoutes6. Ainda em 1964, 
Duvalier, presidente vitalício do Haiti, perseguiu a igreja católica e explorou o vodu. 
Há interrogações sobre as razões da mudança de comportamento de Duvalier, dado o 
carisma que tinha junto ao povo haitiano,antes de se tornar presidente. Quando assumiu o 
poder tornou-se um ditador vingativo e instável. Qualquer opositor em potencial era 
eliminado. Dessa forma editores de jornais, donos de emissoras de rádio foram presos, os 
representantes da igreja católica expulsos, fato que gerou conflitos com o Vaticano. François 
Duvalier criou uma taxa obrigatória para o povo, objetivando a construção da Duvalierville. 
Não houve consecução da cidade planejada e o dinheiro recolhido foi confiscado por ele 
mesmo. Papa Doc foi assassinado em 1971. Nesta época, o Haiti havia se tornado a nação 
mais pobre das Américas, com índices extremos de mortalidade, analfabetismo e 
insalubridade. Após a morte de François Duvalier, assumiu o governo o Baby Doc – Jean-
Claude Duvalier, ele deu continuidade ao governo ditatorial iniciado por seu pai. Com 
Duvalier filho no poder, o país afundou economicamente, aumentando o caos de pobreza 
existente. O regime ditatorial foi perdendo força e, em 1986, Baby Doc buscou exílio na 
França, após o golpe comandando por militares no Haiti. 
Baby Doc deixou em seu lugar o general Henri Namphy. Depois de convocadas 
eleições, Leslie Manigat assumiu a presidência, em pleito marcado pela abstenção. Manigat 
assumiu o poder em fevereiro de 1988 e foi deposto por Namphy no mês de junho do mesmo 
ano. Com Namphy de volta ao poder um novo golpe de estado ocorreu três meses depois, 
assumindo o governo o chefe da guarda presidencial, o general Prosper Avril. 
A constituição haitiana foi criada em 1987, tomando por modelo as constituições dos 
Estados Unidos e da França. Apesar de sua promulgação, a conturbada política haitiana 
sempre foi uma constante e houve períodos onde as leis constitucionais foram suspensas total 
ou parcialmente. 
Em 1990, novas eleições foram realizadas e Jean-Bertrand Aristides as venceu. O 
governo de Aristides foi marcado pela impopularidade e pela corrupção. Em setembro de 
1991, Aristides é deposto por um golpe militar liderado pelo general Raul Cedras, busca 
exílio político nos Estados Unidos. Retorna a ditadura militar no país. A Organização dos 
Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e os Estados Unidos 
 
6 “bichos-papões”. 
 28 
impõem sanções econômicas ao Haiti como forma de coerção aos militares que tomaram o 
poder, objetivando o retorno de Aristides. 
Em 1993, Cedras e Aristides assinam um pacto em New York visando o retorno do 
governo constitucional e a reforma das forças armadas. Em outubro, as tropas americanas são 
impedidas de desembarcar no Haiti por grupos de paramilitares haitianos. Nesse período, o 
número de refugiados haitianos que tentavam entrar nos Estados Unidos era bastante elevado 
e isso fez com que o governo americano insistisse no retorno de Aristides para o Haiti. 
Em 1994, a ONU decretou bloqueio total ao Haiti e uma junta militar empossou Émile 
Jonaissaint – um civil – para o exercício presidencial até as eleições marcadas para fevereiro 
de 1995. Este ato foi considerado ilegal pelos Estados Unidos. Em julho de 1994, ocorre uma 
intervenção militar por parte dos Estados Unidos com o apoio da ONU. Em agosto do mesmo 
ano, Jonaissaint decreta estado de sítio. Em setembro, uma força militar americana invade o 
Haiti para reempossar Aristides, que reassume o governo no mês de outubro de 1994. 
Recomeça, todavia, o ciclo de violência, corrupção e miséria no Haiti. No final de 2003, 
Aristides é pressionado a promover eleições. Em 2004, vários protestos ocorrem na capital 
haitiana, morrendo muita gente por causa disso. Em fevereiro, pressionado, Aristides foge 
para a África do Sul e o Haiti sofre intervenção internacional pelas Nações Unidas. 
Percebe-se que entre os anos de 1994 a 2000, o Haiti viveu mergulhado em crises. Em 
2001, Aristides venceu eleição marcada pela suspeita de fraude com menos de 10% de 
eleitores presentes. A oposição recusou-se a aceitar o resultado apurado, agravando a crise 
existente. A partir daí, a violência espalhou-se pelo país, dada a política de Aristides. Forças 
rebeldes ocupam as principais cidades do Haiti, havendo pouca resistência aos focos rebeldes. 
A violência aplaca o Haiti e os Estados Unidos e a França responsabilizam Aristides pela 
situação do país. É nesse momento em que ele renuncia e segue em exílio para a África, muito 
embora diga que fora sequestrado por fuzileiros americanos 
Em 2004, conflitos armados eclodem em Gonaives e gradualmente opositores foram 
assumindo o controle do norte do país. Muita gente morreu e matou devido à situação política 
vigente. O setor norte do Haiti passa a ser dominado por insurgentes e a diplomacia dos 
órgãos internacionais não consegue por fim às tensões existentes. 
Com a saída de Aristides, assume o comando do Haiti Bonifácio Alexandre, ele 
requisita imediatamente auxílio da ONU para o restabelecimento das leis constitucionais e a 
segurança interna do país. A ONU envia uma Força Multinacional Interina, liderada pelos 
 29 
Estados Unidos. Posteriormente o Conselho de Segurança decide estabelecer a Missão das 
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), ainda presente naquele país, 
composta por um efetivo militar de 6.700 homens e mulheres, oriundos da Argentina, Benin, 
Bolívia, Brasil, Canadá, Chade, Chile, Croácia, França, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, 
Portugal, Turquia e Uruguai. 
 
 
1.7 O Brasil no Haiti 
 
A MINUSTAH foi criada pela resolução 1542 do Conselho de Segurança das Nações 
Unidas, em 30 de abril de 2004, com o objetivo de restaurar a ordem no Haiti, dada a situação 
de insurgência no país e a deposição de Aristides. Com a criação da MINUSTAH, o comando 
é atribuído ao Brasil, que designa como chefe da força um general brasileiro, substituído 
semestralmente. A MINUSTAH tem a finalidade de estabilizar o país, pacificar e desarmar 
grupos rebeldes, promover eleições livres e contribuir para o desenvolvimento institucional e 
econômico do Haiti. 
O efetivo brasileiro que compõe a MINUSTAH é de mil e duzentos militares, entre 
homens e mulheres. A tropa permanece no Haiti por períodos de seis meses, ocasião em que é 
substituída por outro grupamento de igual efetivo. 
Os brasileiros chegam à capital do Haiti em meio à grande instabilidade e guerra entre 
gangues rivais, com focos de violência espalhados por várias localidades. O objetivo de 
pacificação e desarmamento é posto em ação mediante operações militares de alto risco, além 
de implantar ações cívico-sociais com operações de recolhimento das toneladas de lixo 
espalhados pelas ruas das cidades, com a reconstrução de escolas e de instalações destruídas, 
criação de saneamento básico, dentre outras. Aos poucos, áreas consideradas vermelhas no 
índice de periculosidade vão sendo pacificadas. Passados quatro anos de missão no Haiti, o 
Brasil ainda realiza missões de contenção da violência, típicas de um país instável. 
 
 
 30 
CAPÍTULO II – O SILÊNCIO ENSURDECEDOR DA PULSÃO DE 
MORTE 
2.1 Civilização e barbárie 
 
Civilização e barbárie, que significam estes termos para a psicanálise? Trata-se de 
termos que andam em par e que qualificam um ao outro. Falar de civilização implica falar de 
seu oposto, a barbárie, ainda que não presentificada pela destruição observada nos atos 
considerados bárbaros. A análise dos conceitos de civilização e barbárie constitui uma via de 
mão dupla, na medida em que os derivados dessa relação pertencem à ordem do imprevisível 
na modernidade, assombrada pelo terror. 
Sabe-se que os gregos na antiguidade definiam bárbaro aquele que não falava grego. 
Observa-se que esta designação já segregava e marcava uma diferença entreos sujeitos – os 
que falam grego e aqueles que não. Francis Wolf (apud NOVAES, 2004, p. 10), em seu artigo 
Quem é Bárbaro?, mostra que em geral estamos acostumados a pensar assim: “nas guerras 
santas de todas as espécies, o bem somos nós, civilizados – contra o mal, os outros, bárbaros”, 
posição diferente de hoje: na atualidade da globalização, onde os civilizados estão do lado do 
bem e os bárbaros, do lado do mal. Essa noção implica a noção do eu, civilizado, e do outro, 
bárbaro. 
O que significa cultura na obra de Freud? 
Beth Fuks (2003), quando da escrita do livro Freud e a cultura, recorda que o conceito 
de Kultur está presente na obra de Freud desde o Projeto para uma psicologia científica, 
escrito em 1895, quando Freud trata da emergência do humano. Nesse texto Freud escreve 
que o desamparo original faz nascer o primeiro laço com o outro da cultura. O outro reduz a 
angústia da morte personificada pela fome, sede, frio – tudo isso pertencente à ordem do 
insuportável. Fuks (2003, p. 11) diz que “para além da expressividade de uma demanda 
corporal, o grito é um apelo de sentido à angústia e à impotência do desamparo original que o 
pequeno homem experimenta em sua entrada no mundo.” O desamparo é uma condição que 
existe à revelia do sujeito e a sobrevivência do pequeno infans está na dependência do outro, 
caso contrário somente a morte lhe resta. O apelo ao outro pelo pequeno infans, assim como o 
apelo ao outro na horda primitiva – concretizada na formação de um grupo - são reveladores 
de que é pelo laço social, pela introdução na linguagem que o homem se torna um ser cultural, 
um ser que sobreviveu ao desamparo e à ameaça advinda do outro. A noção do outro está, 
 31 
portanto, implícita naquilo que Freud define por Kultur. “Freud designa como cultura humana 
a interioridade de uma situação individual – manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do 
sujeito – e a exterioridade de um código universal, subjacente aos processos de subjetivação e 
aos regulamentos das ações do sujeito com o outro” (Ibid., p. 10). 
A noção de civilização em Freud se dá com a família primitiva, sendo esta entendida 
pelo criador da psicanálise como a condição para o surgimento da cultura. 
 
Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um 
momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um 
hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar 
por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. 
Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto 
de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a 
fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no 
interesse deles, a permanecer com o macho mais forte (FREUD, 1927, p. 119). 
 
É digno de nota ressaltar o caminho que percorre a família primitiva até a vida 
comunal, sob a forma de grupos de irmãos, os quais descobrem que a sobrevivência estava na 
dependência da união – sendo esta a única maneira de sobrepujar o pai totêmico. O 
assassinato do pai totêmico, desencadeado pela união do grupo de irmãos, gerou o imperativo 
de conservação de um novo estado de coisas. Qual era o novo estado de coisas? Era a vida em 
comunidade fundamentada no trabalho e no amor, regida pelos tabus derivados do assassinato 
do pai. Não matarás é um desses tabus. Estava constituído, dessa forma, o primeiro estado de 
direito ou de lei, que a comunidade deverá observar. O amor e o trabalho constituem, 
portanto, os fundamentos da vida em comunidade. Textualmente, Freud escreve que “amor e 
necessidade se tornaram os pais da civilização humana.” (Ibid., p. 121). 
Na primavera de 1927, Freud ao escrever O futuro de uma ilusão, o pai da psicanálise 
ingressa nas questões que permearam sua obra até o final de seus dias – a cultura. É no início 
do primeiro capítulo desse texto que consta a famosa frase freudiana “desprezo ter que 
distinguir entre cultura e civilização” (Ibid., p.16). A frase escrita revela a opção de Freud em 
excluir-se dos debates políticos e filosóficos de sua época referentes à oposição entre os 
termos civilização e cultura. 
 32 
No texto O futuro de uma ilusão (1927, p. 16) Freud define a civilização como “tudo 
aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal”, ratificando no Mal-
estar na civilização (1930, p. 109) a sua definição de cultura: “a palavra civilização descreve 
a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos 
antepassados e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza 
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.” A análise de ambos os textos citados serve de 
bússola para o entendimento dos passos freudianos rumo ao seu prisma conceitual – o mal-
estar. “É digno de nota o fato de que Freud passou a usar sistematicamente a palavra Kultur a 
partir do momento em que se deparou com as forças mais enigmáticas da natureza humana – 
as pulsões de morte – e introduziu na teoria psicanalítica a categoria que designa os 
desconfortos inerentes a toda e qualquer cultura e civilização – o mal-estar.” (FUKS, op. cit., 
p. 10). 
Em 1930, Freud já havia postulado sua teoria das pulsões, mediante dois textos 
fundamentais, dentre outros, desde o Projeto para uma psicologia científica, de 1895, a saber, 
As pulsões e seus destinos e, Além do princípio do prazer. Entendemos que esse foi o bastidor 
teórico que ocupava a mente do Mestre de Viena, proporcionando o escopo fundamental do 
texto lido no Mal-estar na civilização. Freud, com o pensamento à frente de seu tempo, 
aponta para o desconforto provocado pela cultura, desconforto esse resultante do próprio 
criador da cultura – a criatura humana, sobretudo do mal-estar decorrente do relacionamento 
entre os irmãos dentro dos imperativos da lei. 
O mal-estar na civilização tem como eixo temático central o antagonismo entre as 
restrições impostas ao homem pela civilização e as exigências pulsionais. Estar obra é 
considerada uma das mais densas escritas por Freud. Os assuntos discorridos no Mal-estar 
germinavam na mente de Freud em épocas precedentes, tendo em vista algumas de suas 
considerações endereçadas à Fliess, como na Carta 64 (p. 351), de 31 de maio de 1897, em 
que consta como anexo o Rascunho N, onde Freud escreve sobre a renúncia do tabu do 
incesto imposta pela cultura. 
 
A santidade é algo que se baseia no fato de que os seres humanos, em benefício 
da comunidade maior, sacrificam uma parte de sua liberdade sexual e de sua 
liberdade de se entregarem às perversões. O horror ao incesto (como coisa ímpia) 
baseia-se no fato de que, em conseqüência da comunidade da vida sexual (mesmo na 
infância), os membros de uma família se mantêm permanentemente unidos e se 
 33 
tornam incapazes de contatos com estranhos. Assim, o incesto é anti-social – a 
civilização consiste nessa renúncia progressiva. 
 
Destacamos que desde 1905, nos Três ensaios sobre a sexualidade (p. 212), Freud fala 
do movimento contrário que existe entre a civilização e o desenvolvimento normal da 
sexualidade humana. 
 
Sem dúvida, o caminho mais curto para o filho seria escolher como objetos 
sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido, digamos, 
amortecida. Com o adiamento da maturação sexual, entretanto, ganhou-se tempo 
para erigir, junto a outros entraves à sexualidade, a barreira do incesto, para que 
assim se integrem os preceitos morais que excluem expressamente da escolha 
objetal, na qualidade de parentes consanguíneos, as pessoas amadas da infância. O 
respeito a essa barreiraé, acima de tudo, uma exigência cultural da sociedade; esta 
tem de se defender da devastação, pela família, dos interesses que lhe são 
necessários para o estabelecimento de unidades sociais superiores, e por isso, em 
todos os homens, mas em especial nos adolescentes, lança mão de todos os recursos 
para afrouxar-lhe os laços com a família, os únicos que eram decisivos na infância. 
 
Destacamos o uso pela civilização de todas as possibilidades lançadas como entraves 
ao desenvolvimento da sexualidade humana em nome de uma unidade social livre da 
devastação, livre da tirania totêmica, livre do incesto, todavia à custa de renúncias pulsionais. 
É importante salientar, igualmente, que Freud não define a civilização como sinônimo de 
aperfeiçoamento, mas como um processo capaz de ocasionar mudanças nas disposições 
pulsionais do homem. 
Do ponto de vista da psicanálise são três as fontes de mal-estar. A renúncia pulsional 
está ligada ao que anuncia Freud no Mal-estar na civilização acerca dessas fontes de 
sofrimento humano, a saber, o sofrimento causado pela natureza – entendida como mundo 
exterior; o sofrimento causado decorrente do próprio corpo – que perece e morre; e o 
sofrimento causado pelos relacionamentos humanos – considerados por Freud como a 
principal fonte de desconforto humano. “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de 
nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode 
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode 
 34 
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente de 
nossos relacionamentos com os outros homens.” (FREUD, 1930, p. 95). 
As fontes de sofrimento humano são abordadas com maior especificidade no capítulo 
terceiro do Mal-estar na civilização, onde Freud as descreve como inesgotáveis, sendo a fonte 
social a pior delas. Freud indaga “por que é tão difícil para o homem ser feliz”. A esta 
pergunta Freud responde que, fundamentalmente, a infelicidade humana é o resultado, do 
relacionamento com o outro. Sobre as outras duas fontes de sofrimento, escreve que “nunca 
dominaremos completamente a natureza”, e que o corpo constitui ele mesmo uma “estrutura 
passageira” dessa mesma natureza. 
 
Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente. 
Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber porque os regulamentos 
estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício 
para cada um de nós. [...] Surge em nós a suspeita de que também aqui é possível 
jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável – dessa vez, uma 
parcela de nossa própria constituição psíquica (Ibid., p. 105). 
 
Diante das fontes de sofrimento as reivindicações de felicidade são influenciadas pelo 
que é dado como possibilidade pela cultura. Fundamentalmente, Freud está discorrendo sobre 
a insuficiência dos métodos criados pelo homem para regular as relações com o outro, 
devendo esse outro ser entendido como a família, o Estado e a sociedade, revelando quão 
atuais são as concepções freudianas. Diz Freud que “o próprio princípio do prazer, sob a 
influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade” (Ibid., 
p. 96). 
 
A reflexão nos mostra que é possível a realização dessa tarefa através de 
caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas 
diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma 
satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como método mais 
tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da 
cautela, acarretando o próprio castigo. (Idem) 
 
Segundo o pai da psicanálise, a transmissão cultural é assegurada através dos séculos 
pelas tradições e explica as razões para a imposição de restrições à pulsão – posto que 
 35 
devastadora – na medida em que o gozo irrestrito daria cabo da própria humanidade. A tarefa 
imposta pelo processo civilizatório é o cerceamento do gozo, valendo-se, por exemplo, de 
métodos educacionais para isso. No texto Por que a guerra? (1933, p. 256-7) Freud escreve 
sobre a necessidade de dar atenção à educação sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se à 
educação enquanto possibilidade de método indireto de combate à guerra. O segundo aspecto 
é uma contraposição ao primeiro, na medida em que é sob a mão do Estado, da Igreja e da 
classe dominante que repousam os rumos da educação. Ou seja, a tarefa de educar é tomada 
pela cultura como um dos freios à satisfação irrestrita das pulsões. Ainda no Mal-estar na 
civilização (1930, p. 98), escreve: 
 
[...] tentamos controlar nossa vida pulsional. Os elementos controladores são os 
agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a 
meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa 
proteção contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão 
penosamente sentida (...). Contra isso, existe uma inegável diminuição nas 
potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de 
uma pulsão selvagem não domada pelo eu é incomparavelmente mais intenso do que 
o derivado da satisfação de uma pulsão que já foi domada. A irresistibilidade das 
pulsões perversas e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui 
uma explicação econômica. 
 
No entanto, Freud também esclarece que a subordinação da vida pulsional à ditadura 
da razão é um ideal utópico. Isso significa que estamos diante de uma questão econômica a 
qual norteia a relação entre vida civilizada e demandas pulsionais, ratificando a idéia 
freudiana sobre a irredutibilidade das pulsões, na medida em que ela (a pulsão) não se 
submete à condição de não satisfação. 
A parcela inconquistável de que fala Freud ─ a pulsão – é irredutível a qualquer 
tentativa de cerceamento ou de dominação por parte da cultura. Nesse sentido, os homens se 
unem para vencer as duas outras fontes de sofrimento: a força da natureza e a perecividade do 
corpo. Uma união que resulta em força, mas também em mal-estar, uma vez que a união 
implica o laço com o outro. E o laço com o outro implica em renúncia pulsional. Trata-se de 
uma aporia, na medida em que Freud (1930, p. 105) afirma que “o que chamamos de 
civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e seríamos muito mais felizes se 
a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.” 
 36 
Percebemos que as origens do sofrimento humano jazem na sua própria criação – a 
civilização. Esta foi inventada para manter o homem nos moldes estabelecidos pela cultura, 
todavia fadada ao fracasso, dado o que de irredutível há no homem. Freud escreve no Mal-
estar na civilização (1930, p. 106) que “todas as coisas que buscamos a fim de nos 
protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma 
civilização.” O que Freud (1930, p. 115)está dizendo é que o relacionamento mútuo entre os 
homens constitui-se na principal fonte de sofrimento humano e que para regular esses 
relacionamento o homem cria leis. “[...] o elemento civilização entra em cena com a primeira 
tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os 
relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que 
o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios 
interesses e impulsos pulsionais.” Esta citação nos remete novamente ao mito freudiano do 
pai totêmico, onde a tirania do pai todo-poderoso fez os mais fracos se unirem como meta de 
sobrevivência frenteà arbitrariedade do outro. O assassinato do pai trouxe a necessidade 
inadiável da criação de leis reguladoras e impeditivas, inclusive, do ato que eles próprios 
haviam cometido. No Mal-estar na civilização (1930, p. 115) Freud diz que “a vida humana 
em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer 
indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados.” A essência da 
lei está na interdição imposta à comunidade e tem por objetivo restringir a satisfação 
pulsional. Estamos diante de restrições às possibilidades de satisfação pulsional por um lado 
e, do outro, diante daquele que tem que renunciar ao gozo. Este sacrifício assegura o estatuto 
legal da civilização. É nesse sentido que Freud afirma que “a civilização é construída sobre 
uma renúncia pulsional.” (Ibid., p. 118). Freud acrescenta quanto ao cerceamento do gozo do 
homem que “não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, 
pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (Idem.). A resultante do gozo 
cerceado, enquanto tarefa imposta pelo processo civilizatório é a hostilidade para com a 
cultura – a semente da barbárie. Imediatamente nos perguntamos que consequências mais 
resultarão da hostilidade humana para com aquilo do qual deriva a sua sobrevivência: a 
civilização? 
Autores contemporâneos, como Maria Rita Kehl, psicanalista, recorre à Filosofia para 
tratar do que vem a significar os termos civilização e barbárie na modernidade. É o que faz 
esta autora em Civilização partida, que compõe a coletânea de textos do livro Civilização e 
Barbárie, organizado por Adauto Novaes. 
 37 
 
O termo civilização surgiu com o advento da modernidade, para designar as 
sociedades européias em relação aos povos do recém-descoberto “Novo Mundo”. 
Penso que podemos fazer coincidir, grosso modo, “modernidade” e “civilização”; 
não porque as sociedades pré-modernas ou antimodernas sejam bárbaras, mas 
simplesmente porque o conceito de civilização foi criado para marcar uma diferença 
em relação a elas. Ora, se o civilizado é aquele que constrói sua identidade em 
oposição ao Outro ─ seu semelhante na diferença – [...] o bárbaro - podemos dizer 
que ele nasce marcado pela diferença. (NOVAES, 2004, p.102). 
 
Kehl afirma que a modernidade produziu a intolerância e a tolerância diante da 
constatação desse outro. Segundo ela, a atitude de intolerância está marcada pela 
absolutização de certezas, estando a base de tais pensamentos assentada em um “significante 
absoluto, capaz de ocupar o lugar deixado vazio por Deus.” (Ibid., p. 102). A razão, a ciência, 
o capitalismo são os que ocupam este lugar, revelando um modo de pensar centrado na razão 
e na soberania do eu. 
A vertente oposta da intolerância – a tolerância – compõe a segunda possibilidade de 
ação derivada da modernidade, abrindo caminho para a dúvida, para a incerteza e para o ônus 
decorrente da deparação com o outro, afirma Kehl. A autora escreve que “tolerar o estranho é 
tolerar também a incerteza que ele traz.” (Idem). Tolerar o estranho é tolerar a diferença – 
tarefa mais fácil de verbalizar do que de efetivamente ser. 
A partir dessas considerações, Maria Rita Kehl recorre aos filósofos Montaigne e 
Descartes, tomando-os como interlocutores para suas questões relativas ao tratamento da 
certeza e da dúvida e suas relações com a civilização e com a barbárie. 
Kehl usa os Ensaios de Montaigne, de 1571, para deles tecer considerações sobre o 
que é ser civilizado e o que é ser bárbaro na modernidade. Ela extrai do ensaio Da 
Experiência (livro III, XXIII), que “a palavra pertence metade àquele que fala, e metade 
àquele que escuta.” (MONTAIGNE apud KEHL, 2004, p. 102). Assim como o significante 
tem o seu valor dado a posteriori , o sentido da palavra está na dependência do outro que 
escuta. Daí a verdade não ser absoluta, prévia, se tomada nesta acepção do termo – ou seja, a 
verdade não pertence a um homem só, posto a relação de dependência com o outro. Freud, 
posteriormente, ratifica as concepções de Montaigne na medida em que, como escreve Kehl, 
“o sujeito só se sustenta e se completa, só sabe o que diz, no diálogo com o outro” (Ibid., p. 
114). 
 38 
Entendemos o propósito de Maria Rita Kehl ao considerar os postulados de 
Montaigne, notadamente no que se refere à verdade como algo ligado ao conceito de 
alteridade – definidor de civilização – e que serve para identificar como bárbaras todas as 
ações humanas baseadas no pensamento absoluto. Diz a psicanalista que “convicções 
absolutas” são o prelúdio das barbáries atuais, das outroras cometidas e, acrescentamos, das 
que estão por vir. 
René Descartes é o segundo interlocutor filosófico tomado por Kehl. Ele é conhecido 
como o filósofo do cogito ergo sum, da dúvida metódica levada às últimas consequências. O 
filósofo do cogito assegura a existência de um eu pensante como verdade única da existência. 
É sobre essa base que Descartes defende a idéia de que a única verdade lógica é a da 
existência do eu – um eu que pensa e, por isso, existe; mas, principalmente, um eu que 
duvida. Com o surgimento da psicanálise esta concepção foi subvertida por Freud e resgatada 
por Lacan. Freud revela o fracasso do sujeito cartesiano ao mostar para o mundo a existência 
do inconsciente. A partir disso, cai a soberania da razão, na medida em que a psicanálise 
dissocia o eu da razão ao afirmar que o destino do homem é decidido pelo princípio do prazer. 
A subversão do sujeito cartesiano por Lacan é dada na medida em que ele afirma que o sujeito 
é onde não pensa e pensa onde não é. O eu que pensa não coincide com o sujeito do desejo 
inconsciente. 
O que isso tudo tem de relação com o que está sendo tratado, com a civilização e com 
a barbárie? A psicanálise surge como possibilidade de abertura para esse outro inconsciente 
que habita o suposto sujeito da razão, sendo este um dos fundamentos da tolerância e da 
intolerância, conforme as palavras de Kehl: “uma das bases da intolerância é o mecanismo 
defensivo de projetar sobre o outro – meu semelhante na diferença – tudo aquilo que eu 
rejeito em mim mesmo.” (Ibid., p. 114) A autora estabelece uma ligação entre a dúvida e a 
abertura para a alteridade, alcançadas no diálogo como possibilidade de suporte frente ao 
desconhecido e ameaçador que caracteriza o estrangeiro. Suportado isso, dá-se a vida 
civilizada, afirma Kehl. Contrário disso, estão abertas as fronteiras para a barbárie mais cruel 
ou para aquela sorrateiramente camuflada no cotidiano das palavras, tendo em vista a 
imensidão de possibilidades para os comportamentos bárbaros, desde os mais imperceptíveis 
ou os dotados de um abrandamento social, até a crueldade observada na guerra. 
Isso nos faz lembrar o que diz Marylink Kupferberg, psicanalista, na sua tese de 
doutourado, defendida no ano de 2004, intitulada Filhos da guerra: um estudo psicanalítico 
sobre o trauma e a transmissão, na qual a autora analisa a barbárie à luz da psicanálise e de 
 39 
considerações oferecidas pelo historiador Eric Hobsbauwm, mediante análise do ensaio 
Barbárie: manual do usuário, publicado na New Left Rewiew, em 1994. Kupferberg 
corrobora com o seu interlocutor quando ele afirma que a barbárie é decorrente do “colapso 
dos sistemas de regra e comportamento moral” pelos quais a sociedade controla seus 
membros e grupos. Em outras palavras, a barbárie é decorrente da absolutização do 
pensamento e da ruptura da lei. Kupferberg responsabiliza o “desmantelamento” do 
sustentáculo civizatório, que é a lei ─ a qual deixou factíveis as defesas outrora existentes e de 
que lançou mão a civilização diante da hostilidade humana apontada por Freud ─ para

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