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Texto 2: Diálogos entre direito e história Trata de uma trajetória das disciplinas, o surgimento da economia e da sociologia. Discussão sobre caráter narrativo em uma tentativa de diferenciar o direito da história e suas conexões. Aponta as dimensões do direito e da história que se aproximam pelos seus problemas, essencialmente a dimensão normativa e a dimensão temporal. São saberes ou disciplinas sobre a ação humana, buscam seus significados e sentidos, têm uma dimensão hermenêutica. Ao lidarem com o tempo, elas apresentam uma dimensão narrativa, já que a narrativa é a maneira inevitável de se inserir no tempo. Esforço a partir do século XIX da história de abandonar o papal de magistra vitae, história com a ideia de finalidade. Esse abandono nunca chegou para o Direito. O pensamento jurídico não pode deixar de ser prático. É saber o que fazer em determinadas circunstâncias. Não é possível agir sem ideia de finalidade. Se a finalidade na ação é o bem, os juristas jamais deixam de pensar em finalidades. A história dos conceitos jurídicos é uma história de tomadas de decisão finalísticas. A história do direito é uma história de decisões, nesse aspecto. Nesse sentido se confunde com o próprio direito. Se for um aprendizado sobre as intenções, fracassadas ou vitoriosas, só pode ocorrer a partir de um ponto de vista intencional, finalista, normativo. É história da força de certas ideias, de como algumas vieram a ser centrais para sociedades ao longo da história. Quando a história deixa de ser magistra vitae não perde o seu caráter narrativo, mas é duvidoso. Porque uma busca pela identidade e a identidade é sempre determinante nas eleições e escolhas. O que ela não pode deixar de ser é narrativa. A história como uma compreensão particular dos acontecimentos, frutos claros de ações dos homens, não de forças cegas da natureza ou desígnios dos deuses. O saber jurídico é narrativo em sua remota consciência, e sua historicidade só aflora nos momentos de crise, quando se perde a clareza do sentido da norma, quando certas ações perdem a sua razão de ser, seja porque tais ações tipicamente já não se praticam, seja porque tais ações não se compreendem da mesma maneira, o caráter histórico-narrativo do saber jurídico se mostra com mais evidência. Outro elemento narrativo: toda aplicação de uma norma ocorre em alguma situação ou caso concreto e é precedida por uma narrativa. O caso, a questão a ser resolvida só pode ser expressa por forma narrativa. Texto 3: Trajetória da organização jurídica e política Roma conheceu três grandes regimes constitucionais com longas e frequentes crises. Formas de resolver conflitos: ações da lei (saber jurídico na figura dos pontífices) e o processo formular, em que a produção do direito está na mão dos pretores ao lado dos juristas e no período da cognição extraordinária, o imperador e seus juristas se destacam como atores da nova ordem. Os textos organizados por Justiniano serviam como instrumento de ensino e na falta de leis específicas, de suplemento ao direito vigente. Ao lado das magistraturas e das assembleias, os pontífices desempenharam um papel importante no direito arcaico. Só se aplica aos romanos, cidadãos, descendentes dos quirites. Tem um papel destacado tudo aquilo que ajuda a preservar a cidade tradicional. O formalismo do direito arcaico romano precisa ser compreendido para além do caráter mágico que lhe é atribuído. Era cheio de fórmulas que precisavam ser pronunciadas no lugar certo pelas pessoas certas. O formalismo do direito contribui para desligá-lo de considerações de caráter moral ou religioso, contribui para sua laicização. Direito clássico: na parte inicial da fórmula poderia o pretor ir criando as condições ou hipóteses em que se daria o remédio ao interessado. É tem torno da interpretação desta parte, das hipóteses, que os juristas vão desempenhar seu papel criativo. O direito pretoriano foi introduzido pelos pretores, para a utilidade pública, visando corroborar, suprir ou corrigir o direito civil. Os pretores criaram um direito novo usando seu poder de magistrados, sua honra de agentes da cidade e seu império. Administravam a justiça, começaram a detalhar, corrigir e suprir o direito civil, tendo em vista as mudanças nas condições de vida da cidade. Intervenção feita pelo príncipe, fora da ordem normal do processo. O príncipe tona-se aos poucos juiz supremo, tanto em matéria civil quanto penal, intervém a convite de um magistrado, funcionário ou um particular. Cognitio extra ordinem difere do processo formular porque centraliza o juízo, abolindo a diferença entre pretor e juiz e introduz a possibilidade de apelação. Pontos importantes: laicização da jurisprudência e o papel dos juristas; consolidação e codificação da jurisprudência clássica; as fontes; organização da justiça; juristas e filosofia. O direito privado – casa e família: alguns elementos do direito privado só podem ser compreendidos se recolocados na sua função social e histórica. Texto 4: A ordem jurídica medieval Ausência de um sujeito político forte. Liberdade de ação da dimensão jurídica. Sua característica é de expressão fiel de uma sociedade e de uma cultura, de uma civilização. Preposição e convivência, harmonizando-se, integrando-se e chocando-se entre direito comum e direitos particulares, patrimônio de cunho científico universal e uma profusão de demandas consuetudinárias locais, marcadas pelo particularismo. O direito feudal como uma manifestação do particularismo, mesmo com a dimensão universal do fenômeno feudal. Foi inserido como matéria digna de ser comentada também pela ciência. Direito comercial. Essas manifestações particularistas não possuem pretensões totalitárias, não se colocam em antagonismo frontal como o direito comum, integram-no, especificam-no, chegam a contradizê-lo, mas não chegam a negá-lo. Vivem dentro do direito comum, só podem ser percebidos no interior do direito comum. O particularismo não é ruptura de uma grande ordem unitária. É uma ordem abrangente que se torna multifacetada, que se complica em autonomias, articula-se numa pluralidade de ordenamentos conviventes. A ordem jurídica medieval é um mundo de autonomias. O que existe é a concorrência de uma pluralidade de ordenamentos, cada qual com seu âmbito específico, pressupõe a convivência e o respeito por outros, não tem pretensões de expansionismos abrangentes. A Europa é um mosaico de direitos estatais territoriais, cada qual pretendendo regular de modo cada vez mais exclusivo as relações jurídicas entre os súditos. O direito comum é um grande fato da civilização medieval, talvez o maior. Não é correto falar do sistema do direito comum como sistema legislativo. O direito comum tinha por base uma lei única como legitimação última e substancial, uma lei que era ato de vontade suprema, o direito divino, munido de uma positividade incontestável e proveniente do único soberano que a civilização jurídica medieval reconhece em sua autonomia potestativa. Cada um contém em si mesma sua legitimação, sua autonomia. São múltiplos ordenamentos concorrentes que não requerem legitimação externa, mas que substancialmente se autolegitimam enquanto expressões espontâneas das mais variadas dimensões do social. Não existem juridicidades de grau superior e inferior, não existe um ordenamento mais válido, o direito universal, o direito experimentado nos séculos, o direito científico. Não é uma hierarquia das fontes, mas um jogo de relações entre ordenamentos e comprimem-se na relatividade da vida jurídica. Texto 5: a justiça da Igreja A luta empreendida por Gregório VII para libertar a Igreja do sufocante braço feudal, em que opoder espiritual e o poder temporal estavam envolvidos em todos os níveis, desde aquele imperial até os mínimos aspectos da vida cotidiana, e para conquistar em prol da ação da Igreja um espaço institucional autônomo. A Igreja modela-se como sociedade soberana e centralmente organizada, fornecendo uma espécie de protótipo daquilo que será o Estado moderno, mas ela não assume o monopólio sacro do poder na cristandade. As tensões dialéticas, de competição e de cooperação, que emergem em nível político, jurídico e cultural com as cidades, novas monarquias, nas universidades, determinam aquele humus em que nasce a dinâmica do moderno, o espírito liberal e laico da nossa civilização. A construção de um sistema de justiça alternativo e paralelo àquele secular, conjugando o foro interno, o foro da consciência, com o tribunal da Igreja. É a construção gradual do edifício que leva o papa a ser não apenas o grande direito, mas o juiz supremo e onipresente (diretamente ou por meio dos seus delegados) da cristandade, não de modo abstrato, mas como aquele que adapta o direito divino às situações contingentes da existência não apenas através do poder de promulgar novas leis, mas também pelo monopólio da interpretação e o uso da dispensa. As mesmas condenações penais dos tribunais seculares assumem uma valência religiosa, e a condenação dos crimes com a morte ou outras penas corporais são invocadas como dever moral das autoridades seculares para com os inocentes prejudicados pelos atos criminosos e como instrumento para a redenção do pecado dos condenados. A Igreja dispõe de dois tipos de poder coativo, o espiritual e o material, a serem usados conforme as circunstâncias, o problema pode existir apenas no caso em que o uso da força for delegado ao poder secular ou exercido diretamente. O direito canônico nasce revestido de direito romano ou, tendo o direito romano como esqueleto, nos seus princípios, na sua lógica interna, nas soluções relativas aos grandes temas. No vértice encontra-se o direito natural-divino, cujo intérprete na terra só pode ser o próprio vicário de Deus; abaixo deste, o direito positivo emitido pelos pontífices como direito comum a toda cristandade; num níveis mais abaixo, as constituições dos antigos imperadores e, por fim, as novas leis ou estatutos particulares ou práticas dos corpos eclesiásticos e civis. O direito positivo e a prática se aplicam e devem ser respeitados quando não contrastam com o direito natural e divino e quando os direitos superiores não têm condições, devido à sua generalidade necessária, de governar a realidade necessária, de governar a realidade da vida cotidiana e concreta. A legislação positiva secular deve ceder, em caso de conflito, diante da legislação canônica. No Ocidente, nascem dois ordenamentos universais paralelos, radicados no antigo direito romano: o canônico, administrado pelo papado e o civil, ao qual recorrem os príncipes seculares, em concorrência entre si. O novo pensamento sobre a penitência nasce dentro dessa nova reflexão e dessa nova práxis da Igreja, numa situação de perturbação aguda devido à crise das ordens e estados tradicionais na nova sociedade que emerge na Europa, mal-estar aguçado pela difusão tumultuosa das heresias e dos cismas que, por outro lado, também são consequência dessa modificação do panorama eclesiástico, cultural e social. É reconhecida a impossibilidade de entrar no coração do homem, o significado do perdão desloca-se gradualmente: num primeiro momento, os pontos fortes do caminho penitencial eram aquele inicial (com o arrependimento, a confissão feita a Deus dentro da alma, que não é apenas condição preliminar, mas contém o perdão de Deus) e aquele final (com execução concreta da penitência como condição para receber a absolvição), a gora o centro da gravidade, o sacramento em sentido estrito, é visto na confissão dos pecados ao sacerdote e na absolvição por parte do próprio sacerdote. A absolvição, a remissão dos pecados, precede a expiação, seguindo imediatamente a confissão, e é uma verdadeira sentença definitiva: não é mais condicionada pelo percurso de um longo caminho penitencial. Agora é condicional, mas não essencial, a um ato judiciário que é considerado válido em si mesmo, antes que ela se cumpra. Há uma extensão simplificada e atenuada a toda a esfera do pecado, inclusive aos pecados menores e privados, daquilo que em certa época era o processo da penitência solene, reservado aos pecados criminais públicos. A absolvição não representa a declaração de um perdão dado por Deus com base no arrependimento, na contrição do pecador, mas consiste numa sentença real, que por si só produz o efeito causal da remissão dos pecados. A autoridade da Igreja não se limita ao poder de excomunhão, ao poder de separar o culpado da comunidade cristã, mas entra na vida cotidiana do fiel: toda falta grave, independentemente das suas repercussões sociais, deve ser denunciada ao sacerdote para obter a absolvição; desaparece a distinção entre o pecado simples e o pecado criminal e, nasce, em vez disso, a distinção entre o pecado venial – que não deve ser necessariamente confessado, mas cuja confissão se recomenda – e o pecado mortal, sujeito a essa obrigação: este último se distingue cada vez mais do crime (categoria que passa a ser progressivamente limitada às faltas graves para com a sociedade), ainda que o englobe. A confissão ao sacerdote somada à satisfactio integra a punição e por si só já e uma penitência. A ação penal do foro da penitência absolve do pecado mortal, subtrai da danação do fogo eterno, mas também tem o poder de comutar ou antecipar as penas do purgatório não de modo genérico, mas em relação às penas individualmente previstas, com uma espécie de conversão das antigas listas de tarifas dos penitenciais num sistema intermediário entre a lei divina e a humana, a e pena purgatória. O esforço de todo o tratado está na tentativa de compor as penas previstas pela lei civil com a doutrina do pecado e da penitência, englobando-as num único direito penal canônico. Esse processo conduz, ao final do século XII, à separação potencial da jurisdição eclesiástica da esfera da ordem sagrada, da esfera penitencial do direito penal canônico. A absolvição da excomunhão nas suas várias formas não está mais ligada a penitência, mas a um verdadeiro processo judicial. O foro penal da Igreja permanece estreitamente ligado à esfera sacramental e de que nele as coações espirituais encontram-se estritamente interligadas à coações físicas, as penas eclesiásticas àquelas seculares. A absolvição pelo sacerdote adquire um efeito causal: não é apenas a declaração do perdão divino, mas uma "sentença"; do poder das chaves derivam dois modos de desatar e ligar, no foro penitencial e no judicial, no foro interno e no externo. Isso significa que não se realizou a tentativa de construir um sistema jurisdicional, um verdadeiro foro da Igreja sobre o pecado, tendo o fiel a obrigação de fazer a confissão anual, não de um modo genérico a qualquer sacerdote, mas ao próprio pároco, de instituir uma relação precisa de submissão jurisdicional do foro interior, da consciência de todo cristão, ao próprio superior eclesiástico com base no vínculo territorial. Paralelamente ao crescimento do direito canônico como ordenamento, na segunda metade do século XII nasciam de fato os tribunais episcopais com a formação de um corpo de oficialles apropriado. A partir do início do século XIII e paralelamente ao desenvolvimento do direito canônico, redescobre-se o decálogo: a juridicização da consciência encontra um ponto de apoio muito mais preciso noesquema da lei mosaica, em que também podem ser inseridos, pontual ou forçosamente, os preceitos positivos da Igreja. Ainda nas primeiras décadas do século XIV, o tema da confissão insere-se por completo no direito canônico como tratado dos problemas do foro interno, nos quais o confessor é juiz espiritual. Entre o final do século XII e as primeiras décadas do século XII, como a fronteira externa da Igreja, voltada a atingir aqueles suspeitos de heresia, mas também como um instrumento para impor a disciplina interna contra a corrupção e, sobretudo contra a simonia, instrumento que substitui os antigos processos de interrogatório, baseados na "infâmia" pública e no juramento purgatório do clero indagado. Não existe mais uma distinção entre a esfera do pecado e a esfera do crime com base numa distinção incerta, porém sempre válida, entre o pecado que diz respeito apenas ao pecador na sua relação com Deus e o pecado que envolve a sociedade: na heresia esses aspectos encontram-se presentes e fundidos uns nos outros. A distinção entre pecado venial e pecado moral é muito mais atenuada e depende do direito da Igreja: não são considerados como pecados graves aqueles cometidos contra a lei divina, contra o decálogo, nem como os pecados leves aqueles cometidos contra os preceitos positivos do direito canônico. A linha de divisão que define a gravidade dos pecados - e portanto, a sua atribuição aos diversos foros - não coincide com aquela entre os ordenamentos jurídicos globais. Todo pecado, mesmo o mais leve e oculto, pode tornar-se grave e assumir a forma do crime, não com base na sua relevância objetiva, mas enquanto desobediência à autoridade constituída. Os pecados contra a autoridade e contra o poder assemelham-se ao pecado contra a natureza e, portanto, não podem ser circunscritos ao foro da penitência. Toda a práxis desse período e também dos séculos posteriores parece voltada a construir exceções ao princípio da impossibilidade de julgar o pecado oculto, no esforço de prevenir e de punir os crimes que podem ser considerados perigosos para a Igreja e externos, ressaltando o tema da dissuação e a necessidade da intervenção pública com uma insistência que terá grandes consequências inclusive no desenvolvimento do direito penal secular. As reformas da Penitenciaria, que se seguirão nos séculos posteriores, tentarão limitar os seus poderes no foro externo, fonte infinita de escândalos, e circunscrever a corrupção que deriva da transformação das penas em multas, mas nunca ofenderão os princípios jurídicos nos quais se baseiam, desde as suas origens, a Penitenciaria apostólica e a simbiose entre pecado e infração neles contida. Essa tentativa de construção de um sistema integrado de justiça na cristandade como justiça da Igreja não tem êxito: não apenas devido á resistência daquelas forças, que surgiram com o auxílio da própria Igreja durante a sua luta contra o império, não apenas em campo político, mas também dentro da própria comunidade eclesiástica, no pensamento teológico e canonístico, na vida das Igrejas locais, do clero secular e regular, dos laicos e das confrarias laicais. Com o crescimento do direito canônico como ordenamento da Igreja, não se elabora a constituição de um direito da cristandade, não obstante as tendências teocráticas que impelem para essa direção, mas, ao contrário, abre-se o caminho para o pluralismo dos ordenamentos jurídicos concorrentes. Poder espiritual e temporal estavam envolvidos em todos os níveis. A igreja modela- se como sociedade soberana e centralmente organizada, fornecendo uma espécie de protótipo daquilo que será o Estado moderno, mas não assume o monopólio sacro do poder na cristandade. O direito canônico adquire os caracteres de organicidade e de auto- referencialidade a partir da revolução papal gregoriana. O direito canônico nasce revestido de direito romano, tendo o direito romano como esqueleto, nos seus princípios, na lógica interna, nas soluções relativas aos grandes temas. P. 66 – ordem e aplicação do direito. Nascimento jurisdição na igreja. Definição de penitência. Problema de definir o crime-delito como realidade jurídica em relação a mais ampla e indefinida esfera do pecado, como uma escolha que não comprometesse a autoridade da Igreja. Ordens mendicantes são ordens religiosas que formam parte da Igreja Católica. Seus membros fazem voto de pobreza, daí renunciarem a todo tipo de propriedades ou bens, quer pessoais ou comuns. As mais importantes ordens foram aprovadas no século XIII, entre elas a dos franciscanos, a de pregadores ou dominicanos, a dos carmelitas e a dos agostinianos. são ordens religiosas formadas por frades ou freiras que vivem em conventos. Eles centram a sua ação ou apostolado na oração, na pregação, na evangelização, no serviço aos pobres e nas demais obras de caridade. A tentativa de construção de um sistema integrado de justiça na cristandade como justiça da igreja não tem êxito, não apenas devido à resistência das forças que surgiram com o auxílio da própria igreja durante a sua luta contra o império, mas dentro da própria comunidade eclesiástica, no pensamento teológico e canonístico, na vida das Igrejas locais, do clero secular e regular, dos laicos e das confrarias laicais. O grande cisma do Ocidente é a manifestação do fracasso do esforço do papado pra controlar o foro penal e disciplinar como um sistema integrado. Tentativa de unir a justiça de Deus e dos homens em uma justiça única da igreja. Início da sistematização do direito canônico; Influenciado pelo direito romano (um sistema de direito que já existe); A igreja no século XI, sem Estado, sem organização coerente, os bispos poderiam ser senhores feudais; O papa tentando se impor como poder supremo. Divisão entre igreja católica romana e grega; No século XV, há mais de um papa, um conflito entre os papas e os seus partidários. As reformas gregorianas tentam criar um sistema de ordenamento jurídico para a igreja com coerência administrativa e em termos técnicos. Antes só existiam os concílios, reuniões irregulares. A tentativa era criar um sistema estrutural de organização, funcionamento de maneira mais unificada, assim como Justiniano a sua compilação. Isso não acaba com o pluralismo jurídico, as autoridades do direito canônico, romano e autoridades terrestres coexistem. O direito canônico e o direito romano são ensinados nas universidades. A fronteira entre pecado e crime é flutuante, não é clara. Certas condutas podem ser crime para igreja, mas não para tribunais, como por exemplo, o infanticídio até o século XVII. A delimitação é definida a cada situação, sociedade, os direitos adquiridos são retirados, cada sociedade define por si, cada legislador toma as decisões. A partir do século XI, a igreja começa a tentar definir e chegar a um ordenamento único. Inquisição: definição do crime (já é pensar de forma herética). O pecado público é o externo. A heresia é perigosa para igreja porque põe em questão a sua autoridade como instituição. As reformas acabam com as ordálias (provas adquiridas de forma mágica) a partir do século XI. A exceção é a inquisição que continua torturando. Existe uma lógica, um procedimento inquisitorial, a tortura é incrementada, tem etapas, segue uma racionalização, uma lógica, um processo. Fica decidido o que é matéria do direito canônico, o que pode julgar, o tipo de crime. O foco é nos próprios servidores da igreja. Existem tribunais especializados dentro da igreja. Os assuntos que cabem são os sacramentos, matrimônio, heranças, compras comerciais feitas com juramento na bíblia, os tribunais eclesiásticos são procurados para efetivarcontratos. Texto 6: Senhores da régia jurisdição O desequilíbrio entre os poderes públicos e particulares. Na época moderna não eram concebidos como opostos, nem constituíam realidades contraditórias. A relações sociais eram regidas por diferenças de nascimento, honra e riqueza. Uma rede ordenada e hierarquizada de posições, todos estavam submetidos ao poder de alguém e tinham seus dependentes. Todos possuíam direitos e privilégios, deveres e obrigações. A finalidade última do poder monárquico era garantir a harmonia entre os diferentes poderes, de modo a alcançar o bem comum. O monarca não era único nem absoluto, a sua vontade era limitada pela doutrina jurídica que privilegiava o bem comum e por diversas práticas e usos jurídicos locais e senhoriais. Há uma estrutura hierárquica de instituições, jurisdições e alçadas por meio da qual a vontade do soberano se fazia presente em todo o reino e em seus domínios ultramarinos. Delegando parte de seus poderes a órgãos, tribunais ou cargos encarregados de fazer com que as decisões e ordens chegassem a vários lugares sob seu domínio, o rei governava. A delegação de cargos como forma de governo e coesão social e política entre as elites imperiais. As câmaras também concediam privilégios em nome do bem comum. As redes clientelares, os parentescos entre membros das casas comerciais também impunham regras ou controlavam setores do comércio imperial, canalizando riquezas e benefícios políticos e hierarquizando o mercado. A quebra do princípio do bem comum perturbava o exercício da vontade real, colocava em risco a cadeia hierárquica da delegação de poderes e jurisdições e a própria sobrevivência do domínio colonial. As desordens advinham do fato de oficiais da administração da justiça transformarem seus cargos em instrumentos de poder pessoal. A desproporção entre poderes e interesses particulares punha em risco o sossego e felicidade dos povos. Os tribunais serviam menos para controlar ou coibir infrações às normas do que mediar friçções entre grupos de mesmo status social. O recurso aos tribunais seria o último passo numa longa série de conflitos, um recurso mediador quando outras possibilidades se mostravam ineficientes. O descompasso entre o que estava previsto na lei e a decisão final dos tribunais. Os magistrados tomando decisões por influência, suborno ou de acordo com interesses próprios. A punição no sistema penal efetivamente praticado pela justiça real no antigo regime não era nem efetiva, nem aparente ou teatral. A ameaça das punições não podia ser dissociada da prática da graça, do perdão concedido pelo monarca. O equilíbrio entre punição e a graça não apenas estava na base da legitimação do poder do monarca, mas implicava a obediência dos súditos, por meio dos laços de temor e amor. A justiça operava no sentido de reativar a preeminência do soberano e reiterar a obediência dos súditos. Como parte de uma sociedade que se representava como desigual, a justiça tratava de modo diverso seres que eram considerados desiguais. O exercício da justiça significava reafirmar e reforçar a rede hierárquica que ligava todos os súditos ao rei e o lugar de cada uma nesse emaranhado de poderes, alçadas e jurisdições. O recurso á justiça, além de consolidar a legitimidade do poder régio, reforçar os laços hierárquicos e reafirmar a distribuição desigual de direitos e privilégios, reiterava o domínio do monarca sobre todos os territórios conquistados. O respeito à autoridade legítima do soberano fazia-se toda vez que a justiça era acionada ou que se recorria a uma autoridade administrativa e política. A superposição de alçadas, as discrepâncias entre as autoridades, o casuísmo das decisões judiciais, tão constantes na prática jurídica portuguesa, em vez de exprimir a fraqueza do domínio do rei sobre as terras ultramarinas, eram constitutivos da própria estrutura do domínio metropolitano. A aliança entre os magistrados e os senhores locais operava do mesmo modo, fazendo com que os braços da metrópole chegassem até as terras mais distantes. Aquelas medidas apenas reforçavam as estruturas administrativas e as teias hierárquicas que uniam homens e instituições, mas não pretendiam solucionar nem por fim aos conflitos locais. Sem interferir nas alianças familiares, políticas e econômicas dos senhores, o monarca agia para que a malha jurídica e administrativa continuasse funcionando a seu favor. Texto 7 – A perviviência do direito português no Brasil A cultura jurídica só pode ser percebida se tomada como um fato histórico antropológico que só pode ser compreendida dentro de um tempo-espaço determinado. O tema da cultura jurídica nacional é incompatível com qualquer pretensão de construir uma essencialidade que resista ao desgaste dos tempos. A lei como uma fonte minoritária e subsidiária se justifica pela inexistência de um poder político centralizado que não se operou na sua exaustão antes do fim do século XVII e no século XIX europeu. O forte pluralismo jurídico, que correspondia a uma situação dividida em ordens particulares, se explicava diante de uma sociedade estratificada, dividida em ordens particulares. A ideia de uma cultura do direito não significava busca da "melhor cultura jurídica", no sentido de um uso competente das reflexões dos juristas mais autorizados na Europa ou nos Estados Unidos. A promulgação de uma lei que determinava a continuidade das Ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis enquanto não se organizasse um novo código ou não forem especialmente alteradas não influenciou profundamente o direito brasileiro na República. O imóvel "arcabouço jurídico" herdado de Portugal não deve ser tomado como monumento monolítico, já que era um traço típico do direito privado brasileiro. O direito privado brasileiro não se baseava na vigência ininterrupta do velho direito comum integrado no plano legislativo pelas Ordenações Filipinas, carregando até a segunda década do século XX um direito com marcas visivelmente medievais da época portuguesa. No Brasil, há um direito que se diferencia na juridicidade portuguesa metropolitana, na medida em que existe significativa presença dos usos particulares e, na medida em que as decisões judiciais orientam a prática e adaptam-se às específicas condições do Brasil colônia. De acordo com Fonseca, a sociedade brasileira era plural, não centralizada, com diversas fontes produtivas de direito e com diversas formas de expressão de juridicidade, mas também era dividida e hierarquizada e isso era garantia de que pudesse funcionar harmonicamente, sendo daí que advinha o próprio equilíbrio no Antigo Regime. A autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas da capacidade local de preencher espaços jurídicos de abertura ou indeterminações existentes na própria estrutura do direito comum. Não havia circulação de direito "culto" ou focos que ensejassem a eficaz disseminação cultural, apesar da relação de continuidade com a cultura jurídica portuguesa, quase a totalidade dos atores da jovem esfera jurídica brasileira era formada em Coimbra. Havia impossibilidade lógica de uma administração centralizada e com isso, impossibilidade de existência de uma fonte jurídica única e determinante que tivesse condições de excluir todas as demais. O direito comum tem um caráter subsidiário, deixando livre a possibilidade de manifestação de outros direitos. Há que ser considerado o amplo espectro da prática, dos costumes locais e das decisões dos juízes e tribunais como componentes integrantes de um direito relativamente originário. Para Hespanha, a regra mais geral de conflitosno seio desta ordem jurídica é o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos e não uma regra formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito. O juiz decidirá ponderando as consequências respectivas, do equilíbrio entre as várias normas disponíveis. O arbítrio é guiado pelos princípios gerais e principalmente pelos usos do lugar ao decidir questões semelhantes. Governar, nesse sentido, é sobretudo julgar, numa arquitetura jurídico-política em que a ideia de divisão de poderes deve estar bem afastada. É nesse contexto que Arno Wehling e Maria José Wehlin assinalam para o fato de que os juízes exerciam diversas outras funções inerentes a sua tarefa, mas que não eram de caráter judicial. O papel dos usos e da jurisprudência local, aderente ao conteúdo profundamente costumeiro das práticas cotidianas, apontava para uma solução tópica das controvérsias, tendo como norte a noção de equidade e justiça no caso concreto. O conjunto de significados circulantes no Brasil pós-independência dependia menos do que formalmente foi herdado do direito português do que pela dinâmica com que os signos jurídicos, no momento e no lugar de sua aplicação, que aqui tomavam vida e sentido. A troca de magistrados pelos formados no Brasil é lenta, tanto na atuação profissional quando teórica, na formulação de códigos. Os letrados formados em Coimbra constroem o sistema jurídico até a segunda metade do século XIX. A reinvenção acontece em cada século, cada lugar. A circulação de ideias percebidas como tais e as suas transformações. A problematização do conceito de raça: um determinismo biológico, como se tivesse nascido jurista. O autor também é partidário de uma cultura jurídica das elites, dos letrados. Os votos e cargos políticos limitados a certo número de pessoas. É uma monarquia constitucional que tenta conservar os poderes do monarca. Diferentes atores coexistindo, tipos de juízes e cargos. A abolição da escravidão foi acompanhada pela introdução das leis que facilitaram a generalização do trabalho forçado. Surgem outras medidas de submissão das pessoas, leis contra os vagabundos e mendigos, lei de terras (limita do acesso da população e sua subsistência). Ordenações Filipinas: o desenvolvimento da legislação é um processo. Continuidade das práticas penais mantidas para os escravos. Os direitos adquiridos nem sempre são mantidos. A prática dos crimes se mantém. A mulher como objeto, crimes de honra, diferenciação das classes econômicas. A mulher tem honra através do marido, se trai, perde a honra do marido que só é recuperar quando ele mata a mulher, comprovando o casamento. A relação com a religião: preocupação dos tribunais: causar a confissão o arrependimento, dialogar com homens da igreja e acompanhamento até a morte. Cabe o perdão, mas não para os crimes mais pesados. Não é exatamente perdoado. O arrependimento conta na vida pós-morte. As práticas no cotidiano vão além dos ordenamentos. Utilitarismo: alcançar maior nível de felicidade para maior número de pessoas. Beccaria: acabar com a pena de morte (não é o único nem o primeiro a pensar sobre). Acha que não é mais adequado: é rápido, elemento de consciência, de desenvolvimento da sociedade, gera espiral de violência, nutre a crueldade na sociedade. É necessária em casos de guerra civil, revoltar e revoluções, quando há perigo de destruição para estabilizar a sociedade. A escravidão aparece como alternativa para a pena de morte, era natural, normal. Equilíbrio entre interesses privados e públicos. O objetivo é investigar essas relações e compreender os diferentes usos da justiça. A lógica de administração e justiça é contribuir para o fortalecimento do poder do rei. As histórias em torno da sociedade dominada por diferentes grupos de Estados. Princípio de equidade: cada grupo com direito próprio. Nascimento, harmonia e bem comum: prática e discurso desses grupos (fortalecer privilégios) Diferentes tipos de juízes e tribunais. Não existe um limite claro entre público e privado na Idade Média e Moderna. Não há uma distinção clara, isso pode ser inerente até no sistema. Onde começa a corrupção? É um comportamento legítimo na sociedade (questão de sobrevivência de algumas pessoas em cargos mal remunerados). É usado como argumento na rivalidade entre os poderosos. A corrupção é enraizada, incomoda quando é exagerado. A noção ética, moral é pouco esclarecida. Há um acúmulo de funções, nepotismo, favorecimento. Ex: o ouvidor se coloca como público, honra dele, do rei, da vida como representante. Tem outros interesses além de ser ouvidor, cargos para família, usa o poder do rei. A justiça não repercute em todo lugar. Até a metade do século XIX: caos de diferentes tipos de juízes no Brasil, leigos, nomeados pelo rei. Três tribunais de segunda instância: distritos enormes e distantes: tem que ter recursos financeiros, advogados em outros distritos, ligações. O recurso à justiça é só uma possiblidade, não é o único canal para resolver conflitos. Não é um problema porque eles sabem como lidar com isso. A tese: esse sistema tem uma própria lógica de sociedade de status. As tarefas não são claras. A situação fortifica e legitima a figura do rei. Recorrer à autoridade é reconhecer o poder do rei, que distribui tarefas, tem monopólio na resolução dos crimes. Visitas pontuais feitas pelos representantes da coroa. O rei pode intervir em qualquer situação, território em qualquer momento. As decisões poderiam ser diferentes entre os tribunais. As petições podem ser feitas por qualquer sujeito, na teoria. Qualquer um pode recorrer diretamente ao rei. Os escrivães são obrigados a escrever para os mais pobres. Texto 8- A cultura jurídica brasileira e a questão da codificação civil no século XIX A maior e mais curiosa marca da legislação brasileira era a de ter carregado até a segunda década do século XX um direito com marcas visivelmente medievais. De fato, a realidade jurídica brasileira guarda uma série de peculiaridades, inclusive se comparada a outras nações da América Latina: ao contrário da maioria de seus vizinhos não se fez ali um código civil ao longo do século XIX; ao contrário de vários países da América espanhola, no Brasil não ingressaram de modo avassalador as ideias de codificação e, consequentemente, de ruptura com a realidade jurídica existente nos tempos anteriores à independência (ocorrida em 1822). Existem alguns fatores de descontinuidade, somados às peculiaridades da formação histórica brasileira, que denotam um desenrolar da cultura jurídica muito particular. Uma das características que vai marcando cada vez mais a aplicação das Ordenações Filipinas, na medida da chegada dos tempos iluministas do século XVIII e mais ainda dos tempos burgueses do século XIX, é naturalmente a sua incompletude diante das novas e cada vez mais numerosas situações jurídicas. As próprias ordenações, porém, fixavam de modo bastante claro o modo de preencher as eventuais lacunas: deveria ser usado o direito romano e as matérias que envolvem pecado deveriam preferencialmente ser resolvidas pelo direito canônico. Havia ainda referência explícita ao uso da Glosa de Acúrsio e das Opiniões de Bártolo, desde que não fossem contrariadas pela opinião comum dos doutores. Tais ordenações eram substancialmente partes do direito comum europeu, que de fato formalmente restavam vigente no Brasil desde o início de sua colonização. De fato, a lei de 18 de agosto de 1769 – alcunhada de “Lei da Boa Razão” –, amplamente ancorada num ambiente cultural iluminista e jusnaturalista, buscava basicamente impor novos critérios de interpretação e integração das lacunas na lei. O seu primeiro cuidadoé precisamente o de reprimir o abuso, até então vulgarizado, de recorrer aos textos de direito romano ou a textos doutrinais em desprezo a disposições expressas do direito nacional português. Tornava-se proibido o uso nas decisões judiciais de textos romanos ou invocar a autoridade de algum escritor quando houver disposição em contrário nas Ordenações, nos usos do reino ou nas leis pátrias. Somente no caso de lacunas é que se poderia recorrer aos textos romanos. É de se frisar, porém, que ainda assim o direito romano, como ‘direito subsidiário’, não poderia ser utilizado em si mesmo, mas sim, por meio da ‘recta ratio’ dos jusnaturalistas, a “boa razão”. Com a obrigatória introdução no ensino de idéias jusnaturalistas e do usus modernus pandectarum, tornam possível a incursão de uma mentalidade nova às novas gerações de juristas, devidamente adaptada à compreensão do novo espírito que inspira a legislação portuguesa no que se refere aos métodos de interpretação e integração das lacunas. Dessa forma, se por um lado é verdadeiro que as ordenações mantiveram-se vigentes no Brasil, atravessando ainda todo o século XIX, não é menos verdade que sua aplicação, já no fim do século XVIII, não pode ser considerada como incólume às influências do jusnaturalismo racionalista, que a moldou e tingiu com cores iluministas. Estes fatos realmente mostram um elemento de continuidade com relação à tradição jurídica portuguesa herdada dos tempos coloniais e, por consequência, uma relação de continuidade com relação às Ordenações Filipinas. Tal continuidade, todavia, há de ser observada com reservas em vista do advento da “Lei da Boa Razão”, de 1769, que, como vimos, ao inserir critérios de integração e interpretação tipicamente jusnaturalistas, “atualizou” a velha legislação portuguesa. Já a partir de 1822, o Brasil independente irá cada vez mais romper – mas sempre de um modo lento, gradual, mas insistente – com a velha legislação portuguesa representada sobretudo pelas ordenações, seja por meio da própria legislação brasileira, que ao longo de todo o império será promulgada, seja pelos caminhos que vão ser trilhados pela nascente cultura jurídica brasileira nesse mesmo período. Enquanto a antiga metrópole, a partir de 1822, sofrerá uma forte influência do pensamento liberal, com uma consequente suscetibilidade aos princípios e premissa contidas no Code Civil napoleônico de 1804 (que culminará com a promulgação do código civil de 1867, de clara inspiração francesa), a antiga colônia continuará a aplicar a velha legislação herdada dos tempos coloniais sem proceder a grandes e radicais rupturas, adaptando-a às tradições específicas dos brasileiros, à cultura jurídica então em formação e sobretudo aos interesses econômicos das elites agrárias brasileiras. A coexistência de uma Monarquia Constitucional com a escravidão, ou então da escravidão com um rol de liberdades individuais copiadas da Constituição Francesa de 1791, demonstram como a incidência dos princípios jurídicos no Brasil caracterizou-se, desde o início do Império, por uma ‘flexibilidade’ conveniente e por uma ‘adaptabilidade’ oportuna. E com a produção legislativa brasileira, que progressivamente ia regulamentando inúmeros institutos importantes do direito privado brasileiro, a cultura jurídica vai tomando contornos cada vez mais particulares, que pouco a pouco se distanciava da velha herança portuguesa. Os progressivos interventos legislativos brasileiros provocaram uma segunda forma de “atualização” legislativa (além daquela representada pela “Lei da Boa Razão”) que promove verdadeira descontinuidade entre a tradição jurídica brasileira e aquela do direito comum. Um primeiro fator se encontra na ausência de uma cultura jurídica logo nos anos que se seguiram à independência do Brasil. De fato, no período colonial a metrópole portuguesa não teve como política, ao contrário da Espanha, o estabelecimento de universidades em seus domínios ultramarinos. A cultura jurídica brasileira na primeira metade do século XIX era composta por um punhado de filhos das elites com formação na Universidade de Coimbra e outro contingente (certamente não significativo) de estudantes formados a partir da década de 30 nos jovens e pragmáticos cursos de direito de Recife e São Paulo. Por certo que não se podia esperar uma forte consciência científica de recepção cultural da tradição do código civil francês, bem como da discussão dos juristas franceses, num contexto como esse. A incipiente cultura jurídica brasileira da segunda metade do século XIX, malgrado não tivesse sido infensa a influências francesas, sofreu muito mais o impacto da cultura alemã. Em outros âmbitos culturais que não o jurídico (inclusive o filosófico), a influência francesa – e sobretudo do positivismo de Comte – mostrou-se predominante no Brasil. O fato de que Teixeira de Freitas, cuja ‘Consolidação das Leis Civis’, como vimos, tornou-se a referência de consulta da comunidade jurídica brasileira, tenha uma forte influência da cultura jurídica alemã. A ausência de uma “vontade codificadora” no império brasileiro está num aspecto que, na realidade, se coloca como um dos reversos da ausência de uma verdadeira cultura jurídica no Brasil (sobretudo na primeira metade do século XIX): a inexistência no Brasil de um verdadeiro padrão de cidadania e, portanto, a ausência de uma relação de identificação entre as garantias jurídicas asseguradas pela legislação oficial, de um lado, e o atendimento das necessidades do povo, de outro. Na estrutura social agrária, maciçamente rural, predominantemente analfabeta, patriarcal e com significativa presença escrava, não se pode supor que a maior parte dos conflitos viesse a ser resolvida pela legislação oficial do Império. De um grande pluralismo jurídico, onde se fazem sentir as presenças preponderantes da ordem local, familiar, religiosa etc., em detrimento de um direito estatal que ao povo parecia distante e alheio, não pode ser absolutamente desprezado. Tudo isso mostra como certamente a presença jurídica do Estado nos seus numerosos rincões não era absolutamente suficiente para que a população, sobretudo a mais periférica, se sentisse partícipe de uma sociedade política unitária e, menos ainda, de ordenamento jurídico e institucional exclusivo e excludente de outras formas de solução de conflito. De outro lado, a força da ordem local era de tal modo importante que as resistências contra quaisquer formas de centralização político-jurídica não poderiam ser desconsideradas. Desse modo, não se pode entender que somente uma modificação no âmbito legislativo estatal, num período e num lugar onde a presença do Estado era difusa e muitas vezes minoritária, pudesse ser sentida pela população – aqueles que deveriam ser os destinatários de uma nova ordenação jurídica das relações privadas – como algo que revolucionaria e (para utilizar um termo alheio à eles, mas próximos a nós) “modernizaria” suas vidas pessoais. A contraposição das elites agrárias brasileiras à ideia de um sistema jurídico coerente, harmônico e plenamente inspirado nos ideais liberais que nortearam as revoluções burguesas. Um código certamente não era algo adequado à conformação dos interesses econômicos das arcaicas elites econômicas e sociais do império brasileiro. Havia a rejeição das elites à ideia de uma “unificação do direito privado”, que era ínsita ao projeto de codificação de Teixeira de Freitas, bem como ao modo problemático (do ponto de vista da aristocracia rural) como a questão da escravidão – que era crucial em toda a discussão política da segunda metade do século XIX – era abordada pelo jurista. Além de ser realmenteproblemática a posição dos dois pólos por si mesmos (o pluralismo jurídico da população mais pobre, de um lado, e a falta de vontade de instituir um código pela elite, de outro), era também muito problemática a conexão entre as duas partes, a iniciativa em si mesma de uma invasão completa e abrangente (que o código certamente representa) de uma regulamentação jurídica no âmbito privado. Afinal, como visto, ao longo do século XIX o Estado sempre teve uma relação muito tênue com os particulares: embora no âmbito político até houvesse um sistema formal de participação das pessoas na escolha dos representantes (sistema esse, todavia, que era uma mera fachada, onde se escondia sobretudo o mandonismo dos chefes políticos locais, os “coronéis”), no âmbito civil esse intercâmbio era realmente escasso. Trata-se de um ambiente histórico em que existem renitentes permanências do direito comum na ordem jurídica privada mas, de outro lado, que sofre importantes descontinuidades no tempo. Todavia, tais importantes descontinuidades, que se mostram tão relevantes a ponto de dar à cultura jurídica brasileira uma marca própria e distintiva (ordenações, ‘Lei da Boa Razão’, intervenções legislativas do império, ‘Consolidação das Leis Civis’ de Teixeira de Freitas), não podem, por sua vez, ser compreendidas unicamente à luz da recepção do direito oficial e de modo isolado da rica realidade histórica que lhe era subjacente. A compreensão das peculiaridades da formação cultural do direito privado brasileiro não deve ser destacada das profundas marcas deixadas por uma sociedade agrária, escravocrata e conservadora que, com engenhosidade ímpar, foi caminhando lentamente na direção de uma ‘modernização’ jurídica na qual eram equivalentemente importantes alguns modelos estrangeiros a serem seguidos e a necessidade de sua conformação com as injustas estruturas sociais e políticas brasileiras. Texto 9 - Código Civil e Cidadania A demora de 25 anos no Congresso faz parte da própria história da elaboração do Código Civil (CC) brasileiro. O Brasil foi um doa últimos países das Américas a ter seu direito civil codificado. Desde a Proclamação da Independência, a elaboração do CC era tida por juristas e políticos como um passo fundamental para a realização da modernização liberal brasileira. Sem um CC, era impossível legislar sobre relações de trabalho, questões de herança, doações de bens. Sem a organização do DC era impossível organizar e controlar todas as situações e conflitos jurídicos passíveis de ocorrer entre os cidadãos da economia moderna que o Brasil do século XIX pretendia ser. Tal código só funciona se abarcar todos os habitantes, ou melhor, todos aqueles capazes de constituir direitos e obrigações civis. O CC deve compreender as situações jurídicas de direito privado existentes entre cidadãos, os possuidores de direitos civis. Dificuldades eram comuns a todos os países que tinham entre as suas pretensões a construção de um Estado liberal através da tradição jurídica romano-canônica. Foi difícil para os juristas do Império e do início da República brasileira definir quem era e quem não era cidadão. Ainda mais porque essa decisão não era exclusiva deles, apesar de alguns estarem convencidos do contrário. Desde a Independência, havia pressões de diversos grupos sociais pelo exercício dos direitos de cidadania. O CC não era suficiente ou imprescindível para o desenvolvimento das nações modernas e nem para controlar as relações privadas entre as pessoas. Os códigos deviam decretar leis que tivessem normas de validade universal, seguindo o princípio da Utilidade (o objetivo supremo da ação moral seria a conquista da felicidade para o maior número de pessoas possível, o que significa que o interesse de poucos deveria ser sacrificado em detrimento do da maioria). Esse deveria ser o objetivo de toda legislação: criar instituições totalmente eficazes, que pudessem servir melhor ao propósito de proporcionar a maior felicidade possível. O CC seria o ponto mais importante do desenvolvimento de um Estado, já que ao conter as leis ideais, cumpriria a função de ser o manual universal da moral utilitarista. O processo de codificação inspirado no direito natural foi realizado por Estados que continuavam a reforçar o poder central, embora não necessariamente absolutistas, como o era há alguns séculos. Ao manter legislações em vigor antes da eclosão da Revolução, o CC jamais se tornou a imprescindível e absoluta fonte de direito que boa parte dos juristas do século XIX queria fazer crer, convencendo também muitos estudiosos do direito até os dias de hoje. É impossível querer estabelecer normas estáticas para relações sociais e econômicas mutantes e não era preciso ter um CC para que a chamada burguesia pudesse se desenvolver economicamente. Justamente por pretender ser imutável, o CC já teria nascido como um lugar de memória, destinado a consolidar as vitórias da Revolução e, por isso mesmo, dar-lhe um fim, bem ao estilo napoleônico. Por mais que a importância da codificação civil fosse sempre enfatizada como uma providência fundamental para a finalização do processo de independência do Brasil e para a própria modernização do Estado, aquele momento já se sabia que o CC não iria solucionar absolutamente todos os problemas do direito. O próprio processo de codificação em si encerrava inúmeras dificuldades, concernentes à própria natureza do direito privado e aos sentidos políticos a ele atribuídos, diferentes de acordo com o país onde ocorria. Qualquer um diria que o direito era a porta de entrada para a civilização, e era impossível adentrá-la sem a codificação do direito civil. Quanto melhores e mais avançadas as leis, melhor e mais avançada a sociedade: um passo adiante no caminho do processo. Mesmo sabendo que no fundo, a promulgação do CC não tinha a capacidade de resolver todos os problemas sociais de uma vez só, também achavam que sem ele, a sociedade ficaria atrasada deixada à influência dos costumes. Os costumes significavam tradição, a tradição pertencia ao passado, e passado era, no Brasil, sinônimo de colonialismo, catolicismo e escravidão. O progresso, seria alcançado pela implementação de medidas liberais, das quais a codificação era uma das mais importantes. Dissociar o CC dos próprios costumes da sociedade seria a única maneira de reformá- la, formulando regras abstratas que, ao serem aplicadas à sociedade brasileira, acabariam por forças a sua transformação. Por isso que para promover o progresso da nação, o CC devia ser moderno e liberal, livre dos vícios que caracterizaram o passado brasileiro (Beviláqua e Teixeira de Freitas) O direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e católicos que formavam a sociedade brasileira. Até o ano da promulgação da primeira constituição republicana, todo o controle sobre a vida civil estava, na prática, a cargo da Igreja católica. O Estado brasileiro delegava à Igreja católica a tarefa de organizar todas as etapas da vida dos habitantes do país, cabendo a ele legislar sobre as propriedades e heranças delas advindas. Cabia a Igreja determinar a legalidade ou ilegalidade de um ato civil e tinha o poder de decidir sobre destinos de propriedades e bens. A Igreja também detinha o poder de decidir qual seria o status jurídico de uma pessoa, já que os únicos documentos de registo eram produzidos dentro da instituição. A população brasileira era composta única e exclusivamente por católicos e Igreja não reconhecia os não-católicos e suas relações. Considerada como a instituição civil mais importante do novo regime, a constituição da família, os direitos dasmulheres casadas, dos filhos legítimos e ilegítimos e as possibilidades do divórcio foram amplamente discutidos no processo de elaboração do projeto de CC. O CC manteve importantes diferenciações jurídicas, que contribuíram para a manutenção de relações desiguais entre homens e mulheres. Diferenciando homens e mulheres entre capazes e incapazes, filhos entre legítimos e ilegítimos, o código não só contribuiu para perpetuar antigas relações patriarcais como também introduziu conteúdos morais ao ideário liberal que movia o seu autor. A impossibilidade de conciliar um código necessariamente liberal, no qual os direitos de cidadania devessem ser concedidos a todas as pessoas com o sistema escravista, fundamentado juridicamente na distinção entre pessoas – livres – e coisas – escravos. Os escravos eram juridicamente, ao mesmo tempo, coisa e pessoa. Apesar de não ser teoricamente impossível conciliar a existência de escravos com a vigência de um CC, parecia extremamente difícil legislar sobre uma parcela significativa da população que era, aos olhos da lei, coisa e pessoa a um só tempo. Era uma coisa que podia virar pessoa, caso conseguisse liberdade e uma pessoa que podia voltar a ser coisa, caso não cumprisse com as obrigações de todo liberto. A multiplicidade de formas assumidas pela escravidão no Brasil do século XIX tornou impossível sua conceituação jurídica. Ou tentava-se adequar as várias condições sociais existentes nesse período a um formato jurídico comum ou se abria mão da regulamentação do DC enquanto existissem seres humanos que eram coisa e pessoa ou que pudessem passar de coisa a pessoa e vice-versa. A locação era simultaneamente realizada por livres e escravos, não poderia ser feita a definição do conceito. Nenhuma proposta de regulamentação das relações de trabalho livre teve sucesso antes da promulgação do CC. O Brasil viveu em seu próprio processo de codificação, situações peculiares, advindas não só da permanência do regime de trabalho escravo até fins do século XIX e da necessária adaptação da legislação ao trabalho livre, como também das características específicas da escravidão brasileira nesse período. Texto 10 - História do tempo presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis Uma das principais peculiaridades da História do Tempo Presente é a pressão dos contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os fenômenos que busca narrar e/ou explicar. A marca central da História do Tempo Presente – sua imbricação com a política – decorre da circunstância de estarmos, sujeito e objeto, mergulhados em uma mesma temporalidade, que, por assim dizer, “não terminou”. Pode-se dizer que, desde a Antiguidade, o testemunho do historiador era a segurança de credibilidade para a história, especialmente o testemunho ocular, garantia de que se trabalhava com fatos que presenciáramos com “nossos próprio olhos” e não apenas de que “ouvíramos falar”. Na verdade, ainda hoje persiste alguma suspeita contra a história que não tenha um bom recuo temporal, na medida em que isso impossibilitaria a análise imparcial dos fenômenos. Foi a rejeição do subjetivismo em favor da busca pelo historiador de uma pretensa neutralidade ou imparcialidade – a “parfait indépendance de son esprit”, longe das injunções políticas ou morais – que afastou a História do Tempo Presente da “esfera do conhecimento acadêmico rigoroso”. O historiador presente aos acontecimentos, outrora o fiador da narrativa verdadeira, tornou-se suspeito de envolvimento, de tendenciosidade. Desde então, assumiu preponderância heurística o documento escrito, sobretudo o oficial, especialmente aquele nobilitado pela pátina do tempo. Esse é um aspecto mais conhecido: após o predomínio quase fetichista do documento desse tipo no final do século XIX e início do século XX, algumas correntes, como a Escola dos Annales, contribuíram para a ampliação do rol de fontes utilizadas pelo historiador. Além disso, a reabilitação da História do Tempo Presente, em novos moldes, após as grandes guerras mundiais, introduziu o relato testemunhal como um dado essencial para a compreensão daqueles conflitos. Frequentemente, isso se deu com o propósito explícito (e político) de se evitar o esquecimento. A memória dos eventos traumáticos integra inelutavelmente o esforço de construção do conhecimento histórico sobre tais processos. Ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, não se trata de uma contraposição entre memória e história: no caso da História do Tempo Presente, trata-se de uma imbricação constituinte. A empatia em relação às vítimas de experiências traumáticas é admissível, mas é preciso distingui-la da ideia de identificação, “confusão que conduz à idealização e até à sacralização da vítima”. Trata-se de uma fronteira tênue. O Estado brasileiro, mesmo durante o regime autoritário, poderia ter combatido a luta armada sem apelar para a tortura e o extermínio. Além disso, muitos ex-integrantes da luta armada – ao menos os que sobreviveram – já foram julgados e punidos. Uma “narrativa oficial”, como as que surgem de comissões da verdade, resvala para o terreno da simples ideologia, da memória oficial constituidora de heróis, vítimas etc. Diferentemente da Argentina, o traço marcante da memória sobre a ditadura militar brasileira não é o trauma pela violência, mas a frustração das esperanças. Talvez seja possível identificar dois momentos culminantes que nos permitiriam entender a ditadura brasileira como um fenômeno que “não terminou”, ambos marcados pela frustração: refiro-me à Lei de Anistia, de 1979, e à Campanha das Diretas, em 1984. A lei de 1979, que beneficiou oposicionistas, mas também foi uma autoanistia, tornou-se a principal cláusula da transição democrática dos anos 1980 e consagrou a impunidade. A frustração diante da impunidade e da ausência de uma verdadeira ruptura torna a transição brasileira um processo que não terminou. Há um aspecto a mais que vincula o tema da frustração ao dos documentos secretos: a desconfiança da política. A antiga percepção de que seria difícil realizar uma história política sobre o período vivido, na medida em que as decisões realmente importantes são ocultadas do público – problemática muito discutida quando da divulgação, em 1918, de documentos anteriores à eclosão da Primeira Guerra Mundial –, ressurgiu, de algum modo, com os debates sobre a liberação de documentos sigilosos das polícias políticas dos regimes totalitários e, mais recentemente, das ditaduras militares latino-americanas. A transição brasileira foi, assim, marcada pela impunidade, conciliação e frustração, lógica que prevaleceu até pouco tempo. De fato, ela não acabou, como estou tentando sugerir, e talvez esteja sendo retomada em outros moldes, sobretudo em função do que se costuma chamar de “justiça de transição”, isto é, os procedimentos através dos quais as pessoas atingidas por violações dos direitos humanos buscam reparações em países que viveram regimes autoritários ou outros processos violentos. Isso torna o Brasil detentor de um dos maiores acervos públicos de documentos outrora sigilosos produzidos por uma ditadura militar. Entretanto, essa significativa operação de recolhimento de documentos – que muito deveu ao governo Lula e à ação de Dilma Rousseff, deve-se reconhecer – esbarra na questão da privacidade. Sob essa alegação, o Arquivo Nacional (e alguns arquivos estaduais) restringem o acesso a documentos que façam menção a nomes próprios. Para alguns dirigentes de arquivos, haveria o risco de ações na justiça (contraos próprios arquivos) caso alguém se sentisse invadido em sua privacidade por conta da divulgação desses documentos. Não se trata da revivescência do fetiche historicista em relação ao documento, mas do fato de que a abertura dos arquivos pode permitir a superação de alguns equívocos, como o mito de que a ditadura brasileira não foi violenta. Milhares de pessoas foram prejudicadas – além daquelas que foram obviamente atingidas pela tortura, pela violência explícita. Se a Comissão da Verdade direcionar seus esforços para a pesquisa da documentação ainda desconhecida (e a lei que a criou assegura isso), os resultados poderão ser significativos, alterando a lógica da impunidade. Os documentos da ditadura não são um testemunho da verdade, mas a memória do arbítrio. Mas se nós entendermos “verdade” em seu sentido relativo, como um esforço contínuo de esclarecimento e explicação dos fenômenos, então podemos afirmar que a “verdade” que os documentos da ditadura registram é mobilizadora. A Comissão Nacional da Verdade não tem poderes de punição por causa da Lei da Anistia de 1979, mas se a sociedade brasileira quiser alterar essa lei ou impor qualquer tipo de punição, o Congresso Nacional pode fazê-lo. É um cenário bastante improvável, pois demandaria uma pressão muito grande, uma demanda social. No mínimo, poderemos ter um conhecimento menos estereotipado do período.
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