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1 Capítulo 8 O TipO de injusTO dOlOsO de AçãO I. Introdução Os crimes dolosos representam o segmento principal da cri- minalidade: compreendem a violência pessoal, patrimonial e sexual e a fraude em geral, que exprimem a imagem estereotipada de crime da psicologia social – as formas de comportamentos imprudentes e omissivos não impressionam o sentimento popular e, afinal, são pu- nidos por exceção. O tipo de injusto doloso é estudado nas categorias de tipo ob- jetivo e de tipo subjetivo, introduzidas pelo finalismo na estrutura do fato punível. Do ponto de vista da gênese da ação típica, esse estudo deveria começar pelo tipo subjetivo porque o dolo representa a energia psíquica produtora da ação incriminada – portanto, o tipo subjetivo precede funcional e logicamente o tipo objetivo. Contudo, porque o crime manifesta sua existência como realidade objetivada, cuja con- figuração concreta é o ponto de partida da pesquisa empírica do fato criminoso, o tipo objetivo constitui a base do processo analítico de (re)construção do conceito de crime1. 1 Ver JAKOBS, Strafrecht, 1993, 7/1, p. 183; também, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 63. 2 Capítulo 8 II. Tipo objetivo Nos tipos dolosos de resultado, a atribuição do tipo objetivo pressupõe dois momentos essenciais: a causação do resultado, explicada pela lógica da determinação causal, e a imputação do resultado, funda- da no critério da realização do risco. No tipo objetivo, a reconstrução analítica tem por objeto o seguinte: primeiro, determinar a relação de causalidade entre ação e resultado; segundo, definir o resultado como realização do risco criado pelo autor – portanto, imputável ao autor como obra dele2. Nos tipos dolosos de simples atividade, como a violação de domicílio, por exemplo, a tarefa de atribuição do tipo objetivo exaure-se na subsunção da ação no tipo legal: não existe re- sultado exterior determinado pela causalidade. Hoje, não parece possível confundir questões de causalidade e questões de imputação do resultado: a distinção entre causação do resultado (processos naturais de determinação causal) e imputação do resultado (processos valorativos de atribuição típica) está incorporada ao sistema conceitual da dogmática penal contemporânea. A imputação do resultado, fundada no critério da realização do risco, segue os postu- lados da teoria da elevação do risco (Risikoerhöhungslehre) de ROXIN3, cada vez mais difundida na moderna literatura jurídico-penal como critério de atribuição do tipo objetivo4. 2 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 1, p. 291; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 7/4b, p. 185. 3 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 39-136, p. 310 s.; do mesmo, Gedanken zur Problematik der Zurechnung im Strafrecht, Honig-FS, 1970; Pflichtwidrigkeit und Erfolg bei fahrlässigen Delikten, ZStW, 74, 1962. 4 Ver, entre outros, BURGSTALLER, Das Fahrlässigkeitsdelikt im Strafrecht, 1974; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 6, p. 52 s.; RUDOLPHI, Vorhersehbarkeit und Schutzzweck der Norm in der strafrechtlichen Fahrlässigkeitslehre, JuS, 1969; SCHUNEMANN, Moderne Tendenzen in der Dogmatik der Fahrlässigkeits und Gefährdungsdelikte, JA, 1975; STRATENWERTH, Bemerkungen zum Prinzip der Risikoerhöhung, Gallas-FS, 1973; WOLTER, Objektive und personale Zurechnung von Verhalten, Gefahr und Verletzung in einem funktionalen Straftatssystem, 1981; FRISCH, Tatbestandsmässiges Verhalten und Zurechnung des Erfolgs, 1988; no Brasil, TAVARES, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, 1996, p. 57-59. 3 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação 1. Causação do resultado O conceito de causalidade foi abalado pela física quântica, ao demonstrar que a emissão de elétrons no interior do átomo não é determinada por leis causais, mas por leis estatísticas de natureza pro- babilística, pondo em xeque o conhecimento científico sobre relações de causa e efeito dos fenômenos naturais, assim como a concepção filosófica kantiana, pela qual a causalidade não seria mera determinação empírica do ser, mas categoria apriorística do pensamento5. Todavia, a controvérsia sobre leis causais ou probabilísticas da física nuclear não parece reduzir o poder explicativo do conceito de causalidade, como categoria filosófica e científica necessária para compreender os fatos da vida diária6. No Direito Penal, a teoria da equivalência das condições é o principal método para determinar relações causais, mas um segmento da literatura adota a teoria da adequação, ambas a seguir descritas. 1.1. Teoria da equivalência das condições 1.1.1. Conceitos centrais. A teoria da equivalência das condições7, dominante na literatura e jurisprudência contemporâneas, pode ser reduzida a dois conceitos centrais: a) todas as condições determinantes de um resultado são necessárias – por isso, são equivalentes no processo causal; b) causa é a condição que não pode ser excluída hipoteticamente sem excluir o resultado8 – ou seja, causa é a conditio sine qua non do resultado ou a condição sem a qual o resultado não pode existir: se A 5 Ver a monografia clássica de WERNER HEISENBERG, Quantentheorie und Philosophie, 1979, p. 63-64; também, TAVARES, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, 1996, p. 15-18. 6 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 3, p. 292. 7 Fundada por JULIUS GLASER, Abhandlungen aus dem Österreichischen Strafrecht, 1858 e desenvolvida por MAXIMILIAN VON BURI, Uber Causalität und deren Verantwortung, 1873. No Brasil, ver a excelente exposição de TAVARES, Teoria do injusto penal, 2002, p. 256-268. 8 Ver, por todos, KUHL, Strafrecht, 1997, § 4, n. 9, p. 25. 4 Capítulo 8 entregou a B o veneno para matar C, então as ações de A e de B são causas da morte de C (em fatos dolosos); se um motorista embriagado dirige na contramão e provoca uma colisão, a ingestão de álcool deve ser definida como causa do acidente, pois, excluída mentalmente essa condição, o motorista teria dirigido na correta mão de direção, e o acidente não teria ocorrido (em fatos imprudentes). 1.1.2. Críticas ao método. A teoria da equivalência das condições sofreu críticas contundentes, mas sobreviveu a todas. Primeiro, o critério da exclusão hipotética seria excessivo, produzindo um regresso ao infinito: no exemplo referido também seriam definíveis como causas do acidente a vítima, o fabricante e o comerciante do veneno, os pais dos protagonistas etc., porque, excluídas essas condições, o resultado tam- bém seria excluído9. Segundo, o método conduziria a erro em situações de causalidades hipotéticas ou de causalidades alternativas, conforme exemplos históricos: a) em causalidades hipotéticas, o argumento de médicos acusados da morte de doentes mentais, em cumprimento de ordens superiores do regime nazista, de que na hipótese de recusa pessoal de cumprir tais ordens outros médicos as teriam cumprido do mesmo modo, conduziria a conclusões absurdas: excluída a ação dos médicos acusados, o resultado permaneceria igual pela ação hipotética dos médicos substitutos – logo, o comportamento daqueles não seria causa do resultado; por outro lado, como a ação hipotética dos mé- dicos substitutos não teria sido causa de nenhum resultado, a morte das vítimas teria sido sem causa; b) em causalidades alternativas, se A e B adicionam, independentemente um do outro, doses igualmente mortais de veneno na bebida de C, o resultado não desaparece com a exclusão alternativa daquelas ações: as doses individuais de veneno teriam eficácia real e, isoladamente, determinariam o resultado10. Terceiro, a teoria seria inútil para pesquisa da causalidade, porque pressupõe precisamente o que deveria demonstrar: para saber, por exemplo, se o calmante Contergan (ou Talidomida), tomado durante 9 Mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 5, p. 293. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injustopenal, 2002, p. 23. 10 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 12, p. 296. 5 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação a gravidez, teria causado deformações no feto, seria inútil excluir hi- poteticamente a ingestão do medicamento, e perguntar se o resultado, então, desapareceria; para responder essa pergunta seria preciso saber se o medicamento é causador de deformações no feto e, se já existe esse conhecimento, a pergunta seria ociosa: assim, a fórmula da ex- clusão hipotética parece pressupor o que somente através dela deveria ser pesquisado11. 1.1.3. Refutação das críticas. A crítica de ser excessiva, originando um regresso ao infinito, ou de ser insuficiente, no caso das causalidades hipotéticas, foram refutadas por SPENDEL12 e por WELZEL13, ao mostrarem que a teoria trabalha somente com condições concretamente realizadas14 – nunca com hipóteses: o resultado aparece como produto concreto de condições reais – e não de condições hipotéticas possíveis ou prováveis, que não são ações reais, nem integram processos históricos concretos; seja como for, a alteração de qualquer condição implicaria mudança do resultado concreto, que jamais seria igual, como observa SCHLUCHTER15 sobre o exemplo de ENGISCH: B utilizaria a arma de A, se não tivesse utilizado a arma fornecida por C, para agredir D. Por outro lado, a fórmula aperfeiçoada da teoria resolve o problema das causalidades alternativas, como demonstrou também WELZEL16: se o resultado não desaparece com a exclusão alternativa, mas desaparece com a exclusão cumulativa das condições, então ambas as condições são causas do resultado. Finalmente, a crítica de ser inútil para pesquisa da causalidade é equivocada: para demonstrar se determinado fator pode ser considerado causa concreta de um resultado, é indispensável 11 OXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 11, p. 295-296, que, na área da causalidade, trabalha com a teoria da equivalência; TAVARES, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, 1996, p. 53-54. 12 SPENDEL, Die Kausalitätsformel des Bedingungstheorie fur die Handlungsdelikte, 1948, p. 38. 13 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 9, p. 44. 14 SPENDEL, Die Kausalitätsformel des Bedingungstheorie fur die Handlungsdelikte, 1948, p. 38. 15 SCHLUCHTER, Grundfälle zur Lehre von der Kausalität, 1976, p. 518. 16 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 9, p. 45. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injusto penal, 2000, p. 211-212. 6 Capítulo 8 prévio conhecimento abstrato da eficácia causal geral desse fator de- terminado, pressuposto lógico da fórmula de pesquisa causal da teoria da equivalência, que não se confunde com pesquisa de propriedades físicas ou químicas de elementos naturais. 1.1.4. O critério na lei penal brasileira. Na lei penal brasileira, a fórmula da exclusão hipotética da condição para determinar a relação de causalidade – embora critérios científicos não devam ser fixados na lei – está inscrita no art. 13, CP: Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. A moderna distinção entre causação do resultado e imputação do resultado, correspondente aos processos de determinação causal e de imputação pessoal do resultado, além de ajudar a resolver velhos problemas da teoria da equivalência das condições, é inteiramente compatível com a legislação brasileira, observados os seguintes princípios: 1) O resultado é o produto real de todos os fatores que o constituem: no limite, a ação do médico que protela a morte inevitável do paciente é condição do resultado de morte deste, porque influi na existência real do acontecimento concreto; mas como a causalidade não é o único critério de atribuição do resultado, a mera relação de causalidade não permite atribuir o resultado de morte ao médico17. 2) A relação de causalidade somente é interrompida por curso causal posterior absolutamente independente, que produz diretamente o re- sultado, anulando ou destruindo os efeitos do curso causal anterior: antes de qualquer ação do veneno colocado por A na comida de B, este morre em acidente de trânsito ao sair do restaurante ou varado pelo projétil disparado pela arma de C. Essa independência do novo curso causal deve ser absoluta, não basta independência relativa: se o acidente 17 Para uma análise abrangente, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 20, p. 301. 7 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação ocorre por causa do mal-estar produzido pela ação do veneno, então a ação de A é fator constitutivo do resultado concreto e, desse modo, causa do resultado. Essa consequência decorre da separação entre cau- sação e imputação do resultado, que permite admitir, sem necessidade de disfarces ou razões artificiosas, relações causais realmente existentes – como é o caso das hipóteses da chamada independência relativa –, deixando a questão da atribuição do resultado para ser decidida por outros critérios18. É importante notar que a lei brasileira considera a independência relativa do novo curso causal como excludente da imputação do resultado – e não como excludente da relação de cau- salidade, admitindo, portanto, a moderna distinção entre causação e imputação do resultado: Art. 13, § 1º. A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou. 3) Se a imputação do resultado depende da definição como realização do risco criado, então pode-se reconhecer relação de causalidade nas seguintes hipóteses: a) por encadeamentos anormais ou incomuns de condições: 1) A fere B, que morre no hospital por causa da anestesia, de erro médico ou intoxicado pela fumaça de incêndio no hospital; 2) A dá um murro em B, que morre ao bater a cabeça, fortuitamente, contra o meio-fio do passeio; 3) A produz pequeno ferimento em B, que morre por efeito de condição preexistente (hemofilia) ou posterior (gangrena, negligência da vítima)19; b) por ações dolosas ou imprudentes de terceiros entre a ação e o resul- tado: 1) se o marido mata a mulher com veneno entregue pela amante, a ação dolosa daquele não interrompe a relação de causalidade entre a ação da amante e a morte da esposa, mesmo que aquela desconheça a finalidade do veneno; 2) se o hóspede entrega ao camareiro casaco 18 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 29, p. 305. 19 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 26, p. 303-304. 8 Capítulo 8 com revólver no bolso, e este mata o colega de serviço ao pressionar, por brincadeira, o gatilho da arma em direção deste, a ação imprudente do camareiro não interrompe a relação de causalidade entre a ação do hóspede e a morte da vítima20; c) por mediação do psiquismo de outrem entre ação e resultado, como indicam as hipóteses de instigação ou de lesão patrimonial fraudulenta por erro da vítima, independentemente do ponto de vista sobre determinação ou liberdade dos atos psíquicos: a possibilidade de outra decisão, que poderia ter existido, mas que não existiu, não exclui a causalidade porque a decisão concreta é sempre motivada por este ou por aquele fator21. Essa reformulação da teoria da equivalência das condições, à luz da distinção entre causação e imputação do resultado, conduz, na prática, a soluções semelhantes às da teoria seguida em texto anterior22, mas sob nova linguagem e com argumentos mais convincentes. 1.2. Teoria da adequação A teoria da adequação23 considera causa a conduta adequada para produzir o resultado típico, excluindo condutas que produzem o resultado por acidente. A condição adequada eleva a possibilidade de produção do resultado, segundo uma prognose objetiva posterior, do ponto de vista de um observador inteligente colocado antesdo fato, com os conhecimentos gerais de um homem informado pertencente ao círculo social do autor, além dos conhecimentos especiais deste: persuadir alguém a uma viagem de avião, que cai 20 Mais exemplos, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 27-28, p. 304. 21 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 30, p. 305. 22 Ver, por exemplo, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 31-32, que resolve esses problemas no âmbito do dolo, como é próprio do finalismo. 23 Fundada por JOHANNES VON KRIES, Die Prinzipien der Warscheinlichkeitsrechnung, 1886, muito influente no Direito Civil; no Direito Penal, seguida por autores importantes, como ENGISCH, Die Kausalität als Merkmal der strafrechtlichen Tatbestände, e MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 18, p. 240-263. 9 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação no mar pela explosão de uma bomba, não constitui condição ade- quada para a morte da vítima, porque um observador inteligente consideraria esse evento, antes da viagem, como inteiramente im- provável – exceto se tivesse conhecimento da existência da bomba24. Contudo, se causa é condição adequada para produzir o re- sultado típico, então a teoria da adequação pretenderia resolver, simultaneamente, questões de causalidade e questões de imputa- ção: afinal, identificar a causa adequada para o resultado típico é, também, identificar o fundamento da atribuição do resultado ao autor, como obra dele. Como nota ROXIN25, a teoria da adequação seria mais do que uma teoria da causalidade, mas não constitui, ainda, uma teoria da imputação típica. 2. Imputação (objetiva) do resultado A imputação do resultado constitui juízo de valoração realizado em dois níveis, segundo critérios distintos: primeiro, a atribuição ob- jetiva do resultado, conforme o critério da realização do risco; segundo, a atribuição subjetiva do resultado, conforme o critério da realização do plano – especialmente relevante em relação aos desvios causais26 (cf. Atribuição subjetiva em desvios causais, adiante). A imputação objetiva do resultado consiste na atribuição do resultado de lesão do bem jurídico ao autor, como obra dele. A impu- tação (objetiva) do resultado é analisada em dois momentos: primeiro, a criação de risco para o bem jurídico pela ação do autor; segundo, a 24 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 34-35, p. 308-309; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 169, p. 52. 25 Mais detalhes em ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 36-38, p. 309-310. 26 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 6, p. 365-366 e § 12, n. 144-145, p. 434-435; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 7/4a, p. 184. No Brasil, TAVARES, Teoria do injusto penal, 2002, p. 252-254. 10 Capítulo 8 realização do risco criado pela ação do autor no resultado de lesão do bem jurídico. Em regra, a relação de causalidade entre ação e resultado representa realização do risco criado pela ação do autor e constitui fun- damento suficiente para atribuir o resultado ao autor, como obra dele; o resultado também é atribuído ao autor na hipótese de desvios causais acidentais que, na verdade, ampliam o risco de lesão do bem jurídico: a) a vítima é lançada do alto da ponte para se afogar nas águas do rio, mas já morre ao esfacelar a cabeça no pilar da ponte; b) a vítima não morre por efeito dos disparos de arma de fogo, mas por infecção determinada pela assepsia inadequada dos ferimentos. Nessas hipóteses, o resultado não é um produto acidental – apenas o desvio é acidental –, mas a realização normal do perigo criado pelo autor, definível como obra dele e, portanto, imputável27. A imputação do resultado como realização de risco criado pelo autor tem a sua contrapartida teórica: se a ação do autor não cria risco do resultado, ou se o risco criado pela ação do autor não se realiza no resultado, então o resultado não pode ser imputado ao autor. 2.1. A ação do autor não cria risco do resultado A hipótese de ausência de risco do resultado abrange as situações em que a ação do autor não cria risco do resultado ou reduz o risco preexistente de resultado, assim exemplificadas: a) a ação do autor não cria risco do resultado: A convence B a passear na praia deserta durante tempestade, na esperança de que um raio o fulmine: a casual ocorrência do resultado não é definível como risco criado pelo autor, porque acontecimentos casuais estão fora de controle humano – portanto, o resultado não é atribuível ao autor como obra dele (embora causalmente relacionado à sua ação)28; 27 ROXIN, Strafrecht, 2006, § 11. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injusto penal, 2002, p. 279. 28 ROXIN, Strafrecht, 2006, § 11, n. 55-57. 11 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação b) a ação do autor reduz o risco do resultado: B consegue des- viar da cabeça para o ombro de A viga que despenca da parede de uma construção: a ação do autor reduz o preexistente risco para a vítima – portanto, o resultado também não pode ser atribuído ao autor como obra dele (embora causalmente relacionado à sua ação). Segundo a literatura, situações de redução de risco também podem ser resolvidas no âmbito da antijuridicidade, justificadas pelo estado de necessidade ou pelo consentimento presumido do ofendido, mas esse procedimento pressupõe definir como típicas ações que melhoram a situação do bem jurídico protegido, o que parece impróprio. Hi- póteses de redução do risco nos limites entre exclusão da atribuição típica e ação justificada aparecem nas situações de substituição de um perigo por outro menos danoso para a vítima: o bombeiro lança a criança da janela superior da casa em chamas, ferindo-a gravemente, mas salvando-a de morte certa pelo fogo29. 2.2. O risco criado pela ação não se realiza no resultado Se a ação do autor cria risco do resultado, mas o risco criado não se realiza no resultado, então o resultado concreto não pode ser imputado ao autor (embora exista relação de causalidade entre ação e resultado). A literatura distingue duas situações principais: a) o resultado é produto de determinação diferente: se A fere B com dolo de homicídio, que morre em incêndio no hospital após bem sucedida intervenção cirúrgica, então o resultado não pode ser atri- buído ao autor como obra dele, porque o risco criado pela ação não se realizou no resultado – afinal, como diz ROXIN, a hipótese contrária indicaria que o ferimento da vítima teria aumentado o risco de morte em incêndio, o que seria absurdo30; 29 ROXIN, Strafrecht, 2006, § 11, n. 53-57, p. 314-315. 30 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, ns. 39-42, p. 310-312, e n. 60, p. 320. 12 Capítulo 8 b) o resultado é produto de substituição de um risco por outro, ou seja, um risco posterior substitui ou desloca o risco anterior: 1) a vítima ferida pelo autor com dolo de homicídio morre com o crâ- nio esmagado no célebre acidente de trânsito da ambulância que o transporta para o hospital; 2) a vítima ferida com dolo de homicídio morre por erro médico na cirurgia (hemorragia por incisão inadvertida de artéria, administração de medicamento contraindicado, parada cardíaca determinada pela anestesia etc.); em casos de erro médico, é preciso distinguir: a) se o resultado é produto exclusivo do risco poste- rior, então é atribuído ao autor do risco posterior – o responsável pela falha médica, por exemplo; b) se o resultado é produto combinado de ambos os riscos (as lesões da vítima e a falha médica), então pode ser atribuído aos respectivos autores, embora sob rubricas diversas: dolo e imprudência31. Finalmente, hipóteses de contribuição da vítima para o resultado são assim resolvidas pela teoria: a) se o resultado é realização exclusiva de risco criado pela vítima, então é atribuível somente à vítima (por exemplo, resultado produzido pela troca despercebida de medicamen- to); b) se o resultado é produto do desenvolvimento do risco criado pelo autor (gangrena doferimento, por exemplo), então é atribuível ao autor – exceto em caso de conduta inteiramente irresponsável da vítima (no caso da gangrena, se a vítima recusa socorro médico, apesar da evidência dos sintomas)32. Na hipótese de resultado não definível como realização do risco criado pelo autor subsiste a responsabilidade penal por tentativa do resultado. 31 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 113, p. 348. 32 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, ns. 115-117, p. 349. 13 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação III. Tipo subjetivo O elemento subjetivo geral dos tipos dolosos é o dolo, a energia psíquica produtora da ação incriminada33, que normalmente preenche todo o tipo subjetivo; às vezes aparecem, ao lado do dolo, elementos subjetivos especiais, sob a forma de intenções ou de tendências especiais ou de atitudes pessoais necessárias para precisar a imagem do crime ou para qualificar ou privilegiar certas formas básicas de comportamentos criminosos, que também integram o tipo subjetivo34. O estudo do tipo subjetivo dos crimes dolosos tem por objeto o dolo (elemento subjetivo geral), e as intenções, tendências ou atitudes pessoais (elementos subjetivos especiais), existentes em conjunto com o dolo em determinados delitos. 1. Dolo O dolo é a vontade consciente de realizar um crime ou – mais tecnicamente – a vontade consciente de realizar o tipo objetivo de um crime, também definível como saber e querer em relação às circuns- tâncias de fato do tipo legal. Assim, o dolo é composto de um elemento intelectual (consciência, ou representação psíquica) e de um elemento volitivo (vontade, ou energia psíquica), como fatores formadores da ação típica dolosa35. 33 MAURACH/ZIPF, Strafrecht I, 1992, n. 51, p. 317. 34 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 30, I-III, p. 316-321; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 22, ns. 51-56, p. 317-319; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 77-80; também, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 23. 35 Ver, como representantes da teoria dominante, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, II 2, p. 293; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 4, p. 364; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 64; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 203, p. 64. 14 Capítulo 8 a) Elemento intelectual. O componente intelectual do dolo consiste no conhecimento atual das circunstâncias de fato do tipo objetivo, como representação ou percepção real da ação típica: não basta conhecimento potencial ou capaz de ser atualizado, mas também não se exige um conhecimento refletido, no sentido de conhecimento verbalizado36. Esse elemento intelectual do dolo pode ser deduzido da regra sobre o erro de tipo: se o erro sobre os elementos objetivos do tipo legal exclui o dolo, então o conhecimento das circunstâncias objetivas do tipo legal integra o dolo37. O conhecimento (atual) das circunstâncias de fato do tipo objetivo deve abranger os elementos presentes (a vítima, a coisa, o documento etc.) e futuros (o curso causal e o resultado) do tipo objetivo. A delimitação do objeto do conhecimento – portanto, do alcance do dolo – requer alguns esclarecimentos: a) os elementos descritivos do tipo legal (homem, coisa etc.), existentes como realida- des concretas perceptíveis pelos sentidos, devem ser representados na forma de sua existência natural; b) os elementos normativos do tipo legal (coisa alheia, documento etc.), existentes como conceitos jurí- dicos empregados pelo legislador, devem ser representados conforme seu significado comum, segundo uma valoração paralela ao nível do leigo – e não no sentido da definição jurídica respectiva, porque, então, somente juristas seriam capazes de dolo38. b) Elemento volitivo. O componente volitivo do dolo (indicado na definição legal de crime doloso, art. 18, I, CP) consiste na vontade – informada pelo conhecimento atual – de realizar o tipo objetivo de um crime. O verbo querer é um verbo auxiliar que necessita de um verbo principal para explicitar seu conteúdo: (querer) matar, ferir, estuprar etc. – portanto, o componente volitivo do dolo define-se como que- rer realizar o tipo objetivo de um crime39. A vontade, definida como 36 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 111, p. 418; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 65. 37 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, II, 2, p. 293. 38 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 328; também, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, II 3, p. 295; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 22, n. 49. 39 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 66. 15 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação querer realizar o tipo objetivo de um crime, deve apresentar duas características para constituir elemento do dolo: a) a vontade deve ser incondicionada, como decisão de ação já definida (se A pega uma arma sem saber se fere ou ameaça B, não há, ainda, vontade de ferir ou de ameaçar um ser humano); b) a vontade deve ser capaz de influenciar o acontecimento real, permitindo definir o resultado típico como obra do autor, e não como mera esperança ou desejo deste (se A envia B à floresta, durante a formação de uma tempestade, na esperança de que um raio o fulmine, não existe vontade como elemento do dolo, ainda que, de fato, B seja fulminado por um raio, porque o acontecimento concreto situa-se além do poder de influência do autor)40. A vontade, definida formalmente como decisão incondicionada de realizar a ação típica representada, pode ser concebida materialmente como projeção de energia psíquica dirigida à lesão de bens jurídicos protegidos no tipo legal. 1.1. Espécies de dolo A lei penal brasileira define duas espécies de dolo: dolo direto e dolo eventual (art. 18, I, CP). A definição legal de categorias científicas é inconveniente, pelo risco de fixar conceitos em definições defeituosas ou superadas, como é o caso da lei penal brasileira: nem o dolo direto é definível pela expressão querer o resultado, porque existem resultados que o agente não quer, ou mesmo lamenta, atribuíveis como dolo di- reto; nem a fórmula de assumir o risco de produzir o resultado parece adequada para definir o dolo eventual. Art. 18. Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; 40 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 66. 16 Capítulo 8 Para começar, a moderna teoria penal distingue três espécies de dolo: a) o dolus directus de 1º grau; b) o dolus directus de 2º grau; c) o dolus eventualis41. Em linhas gerais, o dolo direto de 1o grau tem por objeto o que o autor quer realizar; o dolo direto de 2o grau abrange as consequências típicas representadas como certas ou necessárias pelo autor; o dolo eventual compreende as consequências típicas represen- tadas como possíveis por um autor que consente em sua produção42. Essa tríplice configuração do dolo constitui avanço da ciência do Direito Penal porque agrupa diferentes conteúdos da consciência e da vontade em distintas categorias dogmáticas, conforme variações de intensidade dos elementos intelectual e volitivo do dolo – portanto, de comprometimento subjetivo do autor com o tipo de crime respectivo43. O fundamento metodológico dessa sistematização do dolo parece ser o modelo final de ação, cuja estrutura destaca a base real daquelas categorias dogmáticas: a proposição do fim, como vontade consciente que dirige a ação; a escolha dos meios para realizar o fim, como fatores causais necessários determinados pelo fim; e os efeitos secundários representados como necessários ou como possíveis em face dos meios empregados ou do fim proposto – eis o substrato real das categorias do dolo direto de 1º grau, dolo direto de 2º grau e dolo eventual. 41 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III,p. 297-304; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 8/15-32, p. 266-278; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 22, n. 23-40; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 1-20, p. 366-371; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 250; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 67-68; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 210-230, p. 66-71. 42 Ver, por todos, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 2, p. 364. No Brasil, alguns autores, como JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 286, e MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 143, distinguem, por um lado, dolo direto ou indeterminado e, por outro lado, dolo indireto ou indeterminado, uma nomenclatura que pode engendrar equívocos, porque o dolo, mesmo como dolo eventual ou como dolo alternativo é, sempre, determinado: no dolo eventual, o autor aceita (ou se conforma com) a produção de determinado resultado representado como possível; no dolo alternativo, ambos os resultados representados pela consciência do autor são determinados, apenas sua produção é alternativa, ou seja, reciprocamente excludente (ver dolo eventual e, também, dolo alternativo, adiante). 43 Sobre a teoria da ação, ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 8, p. 33 s. e § 13, p. 65 s. 17 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação Conceitos científicos incorporados na lei devem ser interpretados conforme o progresso da ciência: o dolo direto indicado na expressão querer o resultado compreende as categorias de dolo direto de 1º grau e de dolo direto de 2º grau, relevantes para aplicação da pena; o dolo eventual indicado na fórmula assumir o risco de produzir o resultado pode ser interpretado no sentido de consentir na (ou aceitar a) produção do resultado típico representado como possível44. a) dolo direto de 1º grau O dolo direto de 1º grau tem por conteúdo o fim proposto pelo autor45, também definido como pretensão dirigida ao fim ou ao re- sultado típico46 ou como pretensão de realizar a ação ou o resultado típico47. O fim constituído pela ação ou resultado típico pode ser re- presentado pelo autor como certo ou como possível48, desde que exista uma chance mínima de produzi-lo49, excluídos resultados meramente acidentais: existe dolo em disparar arma de fogo para matar alguém a grande distância, mas dentro do alcance da arma; não existe dolo em convencer alguém a passear na tempestade na esperança de vir a ser fulminado por um raio. O fim ou resultado típico pode, indiferentemente, constituir o motivo da ação, o fim último desta ou apenas um fim intermediário, 44 Nesse sentido, também, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 265, p. 502. 45 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 67. 46 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 7, p. 366. 47 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, n. 1, p. 297. 48 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, n. 1, p. 297; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 7-8, p. 366-367; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 67; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66. 49 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 67. 18 Capítulo 8 como meio para outros fins50, embora essas situações sejam conceitual- mente distintas: alguém ateia fogo na própria casa (fim intermediário ou meio para outros fins) para receber o valor do seguro (fim último) e, desse modo, resguardar a credibilidade financeira e evitar boatos de insolvência (motivo)51. b) dolo direto de 2º grau O dolo direto de 2º grau compreende os meios de ação escolhi- dos para realizar o fim e, de modo especial, os efeitos secundários representados como certos ou necessários52 (ou as consequências e circunstâncias representadas como certas ou necessárias, segundo ROXIN53, ou a existência de circunstâncias e a produção de outros resultados típicos considerados como certos ou prováveis, confor- me JESCHECK/WEIGEND54) – independentemente de serem esses efeitos ou resultados desejados ou indesejados pelo autor: os efeitos secundários (consequências, circunstâncias ou resultados típicos) da ação reconhecidos como certos ou necessários pelo autor são atribuíveis como dolo direto de 2º grau, ainda que indesejados ou lamentados por este, como demonstra o famoso caso Thomas (Alexander Keith, em Bremen, 1875, decidiu explodir o próprio navio com o objetivo de fraudar o seguro, apesar de representar como certa ou necessária a morte da tripulação e de passageiros). Como se vê, a fórmula querer o resultado não abrange todas as hi- póteses de dolo direto. 50 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, n. 1, p. 297; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 10-11, p. 367; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66. 51 Comparar WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66. 52 Ilustrativo, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 67. 53 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 18, p. 371-372. 54 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, 2, p. 298. 19 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação c) dolo eventual A definição do dolo eventual e sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e comple- mentares, é uma das mais difíceis questões do Direito Penal55 porque depende de identificar atitudes fundadas, em última instância, na afetividade do autor. De modo geral, o dolo eventual constitui decisão pela possível lesão do bem jurídico protegido no tipo, e a imprudência consciente representa leviana confiança na evitação do resultado de lesão do bem jurídico56, mas a definição das identidades e das dife- renças entre dolo eventual e imprudência consciente requer a utilização de critérios mais precisos. O setor dos efeitos secundários representados como possíveis pelo autor constitui a base empírica comum das teorias sobre dolo eventual e imprudência consciente: elementos particulares das dimensões intelectual e emocional desses conceitos marcam a es- pecificidade própria de cada teoria. A controvérsia sobre a questão é a história inacabada da criação e do conflito desses critérios – cujas diferenças, na verdade, são mais verbais do que reais, e que representam, afinal e apenas, meras indicações da existência de uma decisão pela possível lesão do bem jurídico, na precisa formulação de ROXIN57. Modelos úteis para discussão da matéria são as definições dos projetos oficial e alternativo da reforma penal alemã: no projeto oficial, o dolo eventual é definido pela atitude de conformar-se com a realização do tipo legal representada como possível pelo autor; no projeto alterna- 55 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 68. No Brasil, comparar a descrição das teorias sobre dolo eventual e imprudência consciente, em TAVARES, Teoria do injusto penal, 2000, p. 272-290. 56 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 25-26, p. 374. 57 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 29, p. 376. 20 Capítulo 8 tivo o dolo eventual é definido pela atitude de aceitar a realização de uma situação típica representada seriamente como possível pelo autor58. A literatura contemporânea trabalha, no setor dos efeitos secun- dários (colaterais ou paralelos) típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos-pares para definir dolo eventual e imprudência consciente59: a) o dolo eventual caracteriza-se, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado; b) a imprudência consciente caracteriza-se, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por confiar na ausência ou evitação desse resultado, pela habilidade, atenção ou cuidado na realização concreta da ação. O caráter complementar-excludente desses conceitos aparece nas seguintes correlações, aonível da atitude emocional: quem se conforma com (ou aceita) o resultado típico possível não pode, simultaneamente, confiar em sua evitação ou ausência (dolo eventual); inversamente, quem confia na evitação ou ausência do resultado típico possível não pode, simultaneamente, conformar-se com (ou aceitar) sua produção (imprudência consciente)60. O caso-paradigma da jurisprudência alemã sobre dolo even- tual e imprudência consciente é o famoso Lederriemenfall, de 1955 (BGHSt 7/365), cuja discussão permite esclarecer o significado daqueles conceitos: X e Y decidem praticar roubo contra Z, apertan- do um cinto de couro no pescoço da vítima para fazê-la desmaiar e cessar a resistência, mas a representação da possível morte de Z com o emprego desse meio leva à substituição do cinto de couro por um pequeno saco de areia, em tecido de pano e forma cilíndrica, com que pretendem golpear a cabeça de Z, com o mesmo objetivo. Na 58 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, 3, p. 300-301; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 29, p. 376. 59 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 29, p. 376; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III 3, p. 299. 60 Representativos da opinião dominante, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, 3c, p. 301; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 68. 21 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação execução do plano alternativo, rompe-se o saco de areia, os autores retomam o plano original, afivelando o cinto de couro no pescoço da vítima, que cessa a resistência e permite a subtração dos valo- res. Os autores desafivelam o cinto do pescoço da vítima e tentam reanimá-la, mas sem êxito: conforme a hipótese representada como possível, a vítima está morta. No nível intelectual, X e Y levam a sério a possível produção do resultado típico; no nível emocional, confiam na evitação do resulta- do representado como possível – o que exclui conformação com (ou aceitação de) sua eventual produção; mas o retorno ao plano original indica mudança da atitude emocional, mostrando conformação com o (ou aceitação do) resultado típico previsto como possível (ainda que indesejável ou desagradável, como revela o esforço de reanimação da vítima), com lógica exclusão da atitude primitiva de confiança na evi- tação do resultado: se os autores executam o plano, apesar de levarem a sério a possibilidade do resultado típico, então conformam-se com (ou aceitam) sua eventual produção, decidindo-se pela possível lesão do bem jurídico, que marca o dolo eventual. Esse critério de definição do dolo eventual e imprudência cons- ciente, conhecido como teoria de levar a sério (Ernstnahmetheorie) a possível produção do resultado típico é dominante na jurisprudência e doutrina alemã contemporâneas61, mas não é único. Existem várias teorias diferenciadoras, fundadas na vontade ou na representação do autor, até mesmo teorias unificadoras que propõem a abolição dos critérios diferenciadores. A descrição dessas teorias justifica-se não só pelo interesse acadêmico de mostrar o estado atual de discussão da matéria, mas pelo interesse científico em precisar o significado das categorias desenvolvidas para pensar a questão do dolo eventual e da imprudência consciente. 61 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, 3a, p. 299-300; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 27-29, p. 375-376. 22 Capítulo 8 1. Entre as teorias que trabalham com critérios fundados na vontade estão a teoria do consentimento (ou aprovação), a teoria da indiferença e a teoria da vontade de evitação não comprovada. a) A teoria do consentimento, elaborada por MEZGER62, define dolo eventual pela atitude de aprovação do resultado típico previsto como possível, que deve agradar ao autor. Assim, não age com dolo eventual o médico que realiza intervenção cirúrgica indicada pela experiência profissional, mas leva a sério a possibilidade de morte do paciente, ou alguém que atira para salvar o amigo vítima de agressão e leva a sério a possibilidade de atingir o amigo. Mas, como demonstra a crítica, a aprovação do resultado é própria do dolo direto e não do dolo even- tual (que pode compreender, também, resultados desagradáveis ou lamentados), implicando, portanto, transformar o dolo eventual numa hipótese de dolo direto, como afirmam JESCHECK/WEIGEND63 (segundo a teoria, o caso do cinto de couro configuraria mera impru- dência consciente); por outro lado, os exemplos citados seriam ações objetivamente conformes ao direito e, subjetivamente, realizadas sem dolo, como mostra ROXIN64. A reelaboração moderna dessa teoria, por BAUMANN/WEBER65 e, especialmente, por MAURACH/ZIPF66, atribuindo à aprovação do resultado o sentido de inclusão deste na vontade do autor, parece conferir-lhe significado prático próximo à teoria dominante67. b) A teoria da indiferença ao bem jurídico, desenvolvida por ENGISCH68, identifica dolo eventual na atitude de indiferença do autor quanto a possíveis resultados colaterais típicos, excluídos os resultados indesejados, marcados pela expectativa de ausência. Con- tudo, a crítica indica que a indesejabilidade do resultado não exclui 62 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 347. 63 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302-303. 64 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 34, p. 379. 65 BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 402. 66 MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 22, n. 34. 67 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 36, p. 379-380. 68 ENGISCH, Untersuchungen uber Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, 1930. 23 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação o dolo eventual, como mostra o caso do cinto de couro – que a teoria da indiferença resolveria como hipótese de imprudência consciente69; além disso, a ausência de representação do resultado, própria da impru- dência inconsciente, pode indicar o mais elevado grau de indiferença em relação ao bem jurídico protegido70. c) A teoria da não comprovada vontade de evitação do resultado (também conhecida como teoria da objetivação da vontade de evitação do resul- tado), desenvolvida por ARMIN KAUFMANN71 em bases finalistas, coloca o dolo eventual e a imprudência consciente na dependência da ativação de contrafatores para evitar o resultado representado como possível: imprudência consciente se o autor ativa contrafatores, dolo eventual se não ativa contrafatores para evitação do resultado. A crítica indica que a não ativação de contrafatores pode, também, ser explicada pela leviandade humana de confiar na própria estrela e, por outro lado, a ativação de contrafatores não significa, necessariamente, confiança na evitação do resultado típico – como mostra, por exemplo, o caso do cinto de couro, em que os autores se esforçam, concretamente, para evitar o resultado72. 2. Entre as teorias que trabalham com critérios fundados na represen- tação, hoje com prestígio crescente, podem ser referidas a teoria da possibilidade, a teoria da probabilidade, a teoria do risco e a teoria do perigo protegido. a) A teoria da possibilidade simplifica o problema, reduzindo a dis- tinção entre dolo e imprudência ao conhecimento da possibilidade de ocorrência do resultado73, eliminando a categoria jurídica da imprudência consciente porque toda imprudência seria imprudência 69 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 303; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 37, p. 380. 70 Ilustrativo, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 70. 71 ARMIN KAUFMANN, Der dolus eventualis im Deliktsaufbau. Die Auswirkungen der Handlungs- und der Schuldlehre auf die Vorsatzgrenze, ZStW 70 (1958), p. 73. 72 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302-303; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 48, p. 385. 73 Assim, SCHMIDHÄUSER, Strafrecht, 1984,10-89 s. 24 Capítulo 8 inconsciente74: a mera representação da possibilidade do resultado típico já constituiria dolo, porque uma tal representação deveria inibir a realização da ação; a não representação dessa possibilidade constituiria imprudência (inconsciente). A crítica fala do intelectu- alismo da teoria, que reduz o dolo ao componente intelectual, sem qualquer conteúdo volitivo, mas seus resultados práticos seriam semelhantes aos da teoria dominante75, embora mais rigorosos, porque admite dolo eventual em situações definíveis como impru- dência consciente. b) A teoria da probabilidade define dolo eventual, variavelmen- te, ou pela representação de um perigo concreto para o bem jurídico (JOERDEN)76, ou pela consciência de um quantum de fatores causais produtor de sério risco do resultado (SCHUMANN)77, ou como (re) conhecimento de um perigo qualificado para o bem jurídico (PUPPE)78 – para mencionar apenas suas formulações mais modernas. A crítica aponta o caráter de prognose intelectual dessas definições79 – um fenômeno de reflexão raro em eventos dominados pelas emoções, como são os comportamentos criminosos –, capazes de servir como indícios da atitude pessoal de levar a sério o perigo, mas incapazes de funcionar como critério do dolo eventual80. WELZEL – ora arrola- do na teoria da probabilidade (ROXIN)81, ora incluído na teoria da possibilidade (JESCHECK/WEIGEND)82 – afirma que a teoria da probabilidade tem um aspecto positivo porque a representação da possibilidade de influenciar o resultado permite distinguir o simples desejar do verdadeiro querer, e um aspecto negativo porque a vontade 74 Ver SCHRÖDER, Aufbau und Grenzen des Vorsatzbegriffes, Sauer-FS (1949), p. 207 s. 75 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 39-40, p. 381. 76 JOERDEN, Strukturen des Strafrechtlichen Verantwortlichkeitsbegriffes, 1980, p. 151. 77 SCHUMANN, Zur Wiederbelebung des “voluntativen” Vorsatzelement durch den BGH, JZ, 1989, p. 433. 78 PUPPE, Der Vorstellungsinhalt des dolus eventualis, ZStW, 102 (1991), 1 s. 79 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 43, p. 382. 80 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302. 81 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 42-44, p. 382-383. 82 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302. 25 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação de realização não seria simples efeito do ato psíquico de representar a probabilidade do resultado, mas de contar com a produção de resul- tado representado como provável (confiar na evitação desse resultado constituiria imprudência consciente)83. c) A teoria do risco de FRISCH84 (às vezes classificada como variante da teoria da possibilidade)85, define dolo pelo conhecimento da conduta típica, excluindo do objeto do dolo o resultado típico porque a ação de conhecer não pode ter por objeto realidades ainda inexistentes no momento da ação; não obstante, trabalha com o critério de tomar a sério o e de confiar na evitação do resultado típico para distinguir a decisão pela possível lesão do bem jurídico (dolo eventual) da mera imprudência consciente, aproximando-se, por isso, da teoria domi- nante. A crítica à teoria concentra-se na questão do objeto do dolo: a ausência do elemento volitivo tornaria artificiosa a atitude do autor; depois, seria inaceitável um dolo sem conhecimento das circunstâncias de fato, especialmente do resultado típico, definido pela teoria como mero prognóstico – embora seja nesse sentido que o resultado típico constitui objeto do dolo86. d) A teoria do perigo desprotegido de HERZBERG87 (classificada, tam- bém, como variante da teoria da probabilidade)88, igualmente retira o elemento volitivo do conteúdo do dolo – a principal característica da teoria da representação – e fundamenta a distinção entre dolo eventual e imprudência consciente com base na natureza do perigo, definido como desprotegido, protegido e desprotegido distante: a) o perigo desprotegido, caracterizado pela dependência de meros fatores de sorte-azar, configura dolo eventual, ainda que o autor confie na ausência do resultado, como jogar roleta russa (com risco de resultado na proporção de 1:5), ou praticar 83 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 70. 84 FRISCH, Vorsatz und Risiko, l983, p. 97 s. 85 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302. 86 Ver, sobretudo, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 54-55, p. 387-388. 87 HERZBERG, Die Abgrenzung von Vorsatz und bewusster Fahrlässigkeit- ein Problem des objektiven Tatbestandes, JuS, 1986, p. 249 s.; também, Das Wollen beim Vorsatzdelikt und dessen Unterscheidung vom bewussten fahrlässigen Verhalten, JZ, 1988, p. 573 s. 88 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 302. 26 Capítulo 8 sexo com meninas de idade presumível inferior a 14 anos; b) o perigo protegido, caracterizado pela evitação do possível resultado mediante cuidado ou atenção do autor, da vítima potencial ou de terceiro, confi- gura imprudência consciente, com homicídio imprudente em hipótese de resultado de morte, nos seguintes exemplos: o inexperiente servente de pedreiro cai de andaime de prédio em construção, onde subira por ordem do mestre de obras, sem usar qualquer dispositivo de segurança; o professor permite aos alunos nadarem em rio perigoso, apesar da placa de advertência do perigo e aluno morre afogado; c) o perigo desprotegido distante assemelha-se ao perigo protegido, excluindo o dolo: o inquilino do apartamento joga objeto pesado pela janela, consciente da possibili- dade de atingir alguém; a mãe deixa medicamento tóxico no armário, consciente de que o filho poderia ingeri-lo. A noção de perigo desprotegido pretende fundamentar uma construção objetiva da teoria subjetiva de levar a sério o perigo: trata-se de reconhecer um perigo digno de ser levado a sério, e não de levar a sério um perigo reconhecido89. A crítica afirma não ser evidente que um perigo protegido exclua e um perigo desprotegido constitua dolo eventual, mas parece digno de aplauso o esforço de cons- truir a base objetiva de critérios tradicionalmente subjetivos. A proposta de eliminar o elemento volitivo do dolo, própria das teorias da representação, exclui o fundamento emocional distintivo das atitudes de levar a sério o ou de confiar na ausência do perigo, que marca a teoria dominante; contudo, se o dolo não exige aprovação do resul- tado, também não pode ser reduzido à atitude de indiferença absoluta em face desse resultado90. A exclusão do elemento volitivo-emocional do 89 Ilustrativos, HERZBERG, Die Abgrenzung von Vorsatz und bewusster Fahrlässigkeit- ein Problem des objektiven Tatbestandes, JuS, 1986, p. 262; ROXIN, Strafrecht, § 12, ns. 59-63, p. 390-392. 90 Outros modernos opositores do elemento volitivo: SCHMOLLER, Das voluntative Vorsatzelement, ÖJZ 1982, p. 259 s.; KINDHÄUSER, Der Vorsatz als Zurechnungskriterium, ZStW, 96 (1984), p. 1 s.; SCHUMANN, Zur Wiederbelebung des “voluntativen” Vorsatzelement durch den BGH, JZ, 1989, p. 427. Outros modernos defensores do elemento volitivo: ZIEGERT, Vorsatz, Schuld und Vorverschulden, 1987; SPENDEL, Zum Begriff des Vorsatz, Lackner-FS, 1987, p. 167 s.; PRITTWITZ, Die Ansteckungsgefahr bei AIDS, JA, 1988, p. 427 s.; KUPPER, Zum Verhältnis von dolus 27 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação dolo – que HERZBERG define como elemento de prognose irracional – reduz o dolo ao elemento intelectual e, desse modo, a desejável busca de critérios objetivos acaba por desfigurar o próprio fenômeno real91. 3. Finalmente, teorias igualitárias desenvolvidas por ESER92 e WEIGEND93, fundadas nas dificuldades práticas dos critérios dife- renciadores, propõem a unificação do dolo eventual e da imprudência consciente em uma terceira categoria subjetiva (ou de culpabilida- de), situada entreo dolo e a imprudência. A crítica reconhece certas vantagens, como a simplificação da aplicação do Direito Penal, mas destaca desvantagens, como a nivelação de diferenças qualitativas entre hipóteses de decisão contra o bem jurídico protegido (dolo eventual) e hipóteses de leviana confiança na evitação do resultado (imprudência consciente)94. 1.2. Dolo alternativo Todas as espécies de dolo podem existir sob a forma de dolo alternativo, caracterizado por uma ação com alternativas típicas ex- cludentes. Exemplos: a) A atira em B para matar ou, simplesmente, ferir; b) A atira para matar B ou, pelo menos, matar o cachorro de B; c) A atira para matar o cachorro de B, mas consente na possibilidade prevista de matar B, próximo do animal95. A controvérsia sobre dolo alternativo aparece na diversidade de soluções para as situações acima exemplificadas: a) punição somente pelo tipo realizado porque o autor pretende apenas um resultado eventualis, Gefährdungsvorsatz und bewusster Fahrlässigkeit, ZStW, 100 (1988), p. 758; HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, Arm. Kaufmann-GS, 1989, p. 289. 91 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 66-67, p. 393. 92 ESER, Strafrecht 1, 1980, n. 35 a. 93 WEIGEND, Zwischen Vorsatz und Fahrlässigkeit, ZStW, 93 (1981), p. 657 s. 94 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 68, p. 394. 95 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, p. 304; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 72. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 132. 28 Capítulo 8 típico96, com vários problemas: se nenhum resultado é produzido, não se sabe por qual crime punir; no caso da letra c), se o autor mata o cachorro, a competência em matar o animal faz desaparecer a tentativa de homicídio; b) punição pelo tipo mais grave (homicídio, consumado ou tentado), em todas as hipóteses97: a crítica inverte o argumento porque se o autor atirou no cachorro e matou o cachorro, por que punir por homicídio tentado?; c) punição, em concurso formal, por cada tipo alternativo tentado, ou tentado e consumado98 – solução dominante na literatura. 1.3. A dimensão temporal do dolo O dolo, como programa subjetivo do crime, deve existir durante a realização da ação típica, o que não significa durante toda a realização da ação planejada, mas durante a realização da ação que desencadeia o processo causal típico (a bomba, colocada no automóvel da vítima, com dolo de homicídio, somente explode quando o autor já está em casa, dormindo). Não existe dolo anterior, nem dolo posterior à realização da ação típica: as situações referidas como dolo antecedente (a arma em- punhada por B para ser usada contra A, depois de prévia conversação, dispara acidentalmente e mata a vítima) ou como dolo subsequente (ao reconhecer um inimigo na vítima de acidente de trânsito, o autor se alegra com o resultado) são hipóteses de fatos imprudentes99. 96 Assim, MEZGER, Strafgesetzbuch, 1957, § 59. 97 Nesse sentido, NOWAKOWSKI, Der alternative Vorsatz, JB1, 1937, p. 465; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 7, ns. 22-26, p. 76; JOERDEN, Der auf die Verwirklichung von zwei Tatbeständen gerichtete Vorsatz. Zugleich eine Grundlegung zum Problem des dolus alternativus, ZStW, 95 (1983), p. 565. 98 Ver, entre outros, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 72; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 8/33, p. 278-279; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, III, 4, p. 304; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 85, p. 403. 99 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 80-81, p. 401; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 71. 29 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação 2. Erro de tipo O conceito de dolo, definido como conhecer e querer as circuns- tâncias de fato do tipo legal, está exposto à relação de exclusão lógica entre conhecimento e erro: se o dolo exige conhecimento das circunstân- cias de fato do tipo legal, então o erro sobre circunstâncias de fato do tipo legal exclui o dolo100. Em qualquer caso, o erro de tipo significa defeito de conhecimento do tipo legal e, assim, exclui o dolo, porque uma representação ausente ou incompleta não pode informar o dolo de tipo. Mas é preciso distinguir: o erro inevitável exclui o dolo e a imprudência; o erro evitável exclui apenas o dolo, admitindo punição por imprudência. Essa regra está inscrita no Código Penal: Art. 20, CP. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. Aqui, os problemas mais importantes são os seguintes: a) definir o conceito de erro de tipo, distinguindo do simples erro de subsunção, sem relevância penal; b) determinar a intensidade de representação (das circunstâncias de fato) necessária para configurar o conhecimento como elemento intelectual do dolo. 2.1. Erro de tipo e erro de subsunção O tipo legal é um conceito constituído de elementos subjetivos e objetivos, mas o erro de tipo só pode incidir sobre elementos objetivos do tipo legal – um conceito menos abrangente do que elemento cons- titutivo do tipo legal, como diz a lei. O erro de tipo representa defeito na formação intelectual do dolo, que tem por objeto os elementos objetivos, presentes e futuros, do tipo legal: a ação, o objeto da ação, o resultado, a relação de causalidade etc. Não podem ser objeto de 100 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 86, p. 405. 30 Capítulo 8 erro (a) os elementos subjetivos do tipo (o próprio dolo e as intenções, tendências e atitudes especiais de ação), (b) outros elementos que não pertencem ao tipo objetivo (condições objetivas de punibilidade, fun- damentos pessoais de exclusão de pena e pressupostos processuais)101. Em síntese, conhecer as circunstâncias de fato formadoras do tipo objetivo significa representar a possibilidade de realização concreta do tipo legal; logo, o erro sobre as circunstâncias de fato do tipo objetivo exclui a representação dessa possibilidade e, por isso, configura erro de tipo, como defeito de conhecimento das circunstâncias de fato do tipo objetivo. O erro de tipo pode ocorrer por falsa representação e por ausência de representação das circunstâncias de fato do tipo objetivo: a) no lusco- -fusco do crepúsculo, A dispara o revólver contra a figura de suposto espantalho – na verdade, contra a pessoa de B, que praticava tai chi chuan no pomar de residência rural (falsa representação); b) C mantém relações sexuais com D (menor de 14 anos, mas com aparência de idade superior), sem pensar na idade da moça (ausência de representação). O erro de tipo pode ter por objeto elemento descritivo ou elemento normativo do tipo objetivo. Em ambos os casos, é preciso distinguir o erro de tipo (excludente do dolo) do chamado erro de sub- sunção (penalmente irrelevante). O erro de subsunção é mais comum nos elementos normativos do tipo porque o cidadão comum não pode conhecer todos os conceitos jurídicos empregados pelo legislador. Nesse caso, a chamada valoração paralela na esfera do leigo permitiria identificar os significados sociais ou culturais dos conceitos normativos que integram a cultura comum e orientam as decisões da vida diária, como ocorre com o conceito de documento, por exemplo: os traços deixados pelo garçom no suporte de papelão do chope são sinais gráfi- cos indicadores da quantidade consumida – e se o consumidor apaga alguns desses traços para reduzir a conta, age com dolo de falsificação de documento particular porque sua valoração paralela reproduz, ao 101 Com mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 119-120, p. 423 e n. 138, p. 430. 31 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação nível do leigo, o conceito jurídico de documento: a opinião de que documentos seriam escritos com forma predeterminada constituiria mero erro de subsunção, sem relevânciapenal102 – caso a hipótese não fosse abrangida pelo princípio da insignificância, que descaracteriza o tipo de injusto. Valorações jurídicas errôneas de elementos do tipo objetivo representam, em regra, erro de subsunção (às vezes, erro de proibição), mas podem significar, excepcionalmente, erro de tipo, como a subtração de coisa alheia representada como própria103. O erro de subsunção sobre elementos descritivos do tipo é mais raro: se B esvazia o pneu do veículo de A, convencido de que o dano exige destruição da substância da coisa, incide em simples erro de subsunção, sem prejuízo do dolo104. Formulações modernas tentam simplificar as dificuldades do tema: DARNSTÄDT105 relaciona os elementos descritivos a realidades naturais, representadas por situações ou propriedades físicas, e os ele- mentos normativos a realidades institucionais, dotadas de características sociais ou comunitárias; HAFT106 distingue erro sobre objeto e erro sobre conceito: o erro sobre objeto constitui erro de tipo (a apropriação de coisa alheia tomada como própria); o erro sobre conceito constitui erro de subsunção (negar o conceito de coisa aos animais furtados); KUHLEN107, enfim, propõe o retorno aos conceitos de erro de fato e erro de direito extrapenal (o caráter alheio da coisa, por exemplo), como espécies de erro de tipo excludente do dolo, e de erro de Direito Penal, como modalidade de erro de subsunção, penalmente irrelevante. 102 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 89-91, p. 407-408. 103 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 91-3, p. 408-409. 104 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 242, p. 74. 105 DARNSTÄDT, Der Irrtum uber normative Tatbestandsmerkmale im Strafrecht, Jus, 1978, p. 441. 106 HAFT, Strafrecht, Fallrepetitorium zum Allgemeinen und Besonderen Teil, 1996, ns. 590 s., p. 113-114. 107 KUHLEN, Die Unterscheindung von vorsatzausschliessendem und nichtvorsatzausschliessendem Irrtum, 1987. 32 Capítulo 8 2.2. A intensidade de representação das circunstâncias de fato A ação intelectual de conhecimento da realidade objetiva (des- critiva e normativa) do tipo legal pressupõe certo nível de intensida- de de representação psíquica, antes do qual não se constitui como componente intelectual do dolo. A dogmática penal moderna rejeita posições extremas, que exigem conhecimento refletido ou aceitam conhecimento potencial das circunstâncias de fato do tipo objetivo108: um conhecimento refletido dos elementos objetivos (coisa móvel, por exemplo), no sentido de pensar expressamente nisso, parece contradizer a psicologia da vida cotidiana109 porque as ações humanas (em espe- cial as ações criminosas) não são o resultado de refletida ponderação, mas expressão irracional de instintos e emoções; por outro lado, um conhecimento potencial dos elementos objetivos do tipo, no sentido de um conhecimento latente não atualizado, é insuficiente110: o caçador que dispara a arma sobre um batedor porque esqueceu, na emoção da caçada, comunicação anterior sobre a presença desse batedor em determinado lugar, não atua com dolo. Hoje, admite-se que o conhecimento dos elementos objetivos do tipo pode existir como consciência implícita no contexto das repre- sentações do autor, segundo a fórmula da chamada co-consciência: por exemplo, no furto de mercadorias em lojas comerciais, a consciência do caráter alheio da coisa permeia o conjunto das representações do autor – o que é mais do que um conhecimento latente, mas não chega a ser um conhecimento refletido; o advogado que trai o dever profissional, prejudicando interesse de cliente, não precisa pensar, especificamente, em sua qualidade de advogado, para agir com dolo etc. Pesquisas so- 108 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, § 29, II, 2, p. 293; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 111, p. 418; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 64; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 238-240, p. 73. 109 SCHEWE, Reflexbewegung, Handlung, Vorsatz. Strafrechtsdogmatische Aspekte des Willensproblems aus medizinisch-psychologischer Sicht, 1972, p. 85. 110 PLATZGUMMER, Die Bewusstseinsform des Vorsatzes, 1964, p. 4 e 83. 33 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação bre psicologia da linguagem111 costumam distinguir entre pensamento em coisas e pensamento em palavras – apesar da crítica112 de que não existe pensamento sem palavras: o conhecimento constitutivo do dolo poderia existir sob forma de pensamento em coisas – ou sob forma de linguagem reduzida, em que um sinal linguístico evoca um complexo de significados113 –, sem necessidade de existir na forma de pensamento em palavras, como, por exemplo, esta coisa é alheia (no furto), ou eu atuo como advogado (no patrocínio infiel) etc. 3. Atribuição subjetiva do resultado em desvios causais Sob o conceito de desvios causais aparecem diversas formas de alteração ou mudança no curso de acontecimentos típicos, cada qual com peculiaridades e critérios próprios, classificáveis como desvios causais regulares, situações de aberratio ictus, hipóteses de troca de dolo, o chamado dolo geral e casos de erro sobre o objeto, assim regulados no Código Penal: Art. 20, § 3º. O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se conside- ram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. 1. Desvios causais regulares. O curso causal do acontecimento tí- pico, como uma circunstância de fato, constitui elemento objetivo do tipo, cuja atribuição ao dolo depende da previsibilidade de seu 111 SCHMIDHÄUSER, Uber Aktualität und Potentialität des Unrechtsbewusstseins, H. Mayer-FS, 1966, p. 317. 112 ARTHUR KAUFMANN, Die Parallelwertung in der Laiensphäre, 1982. 113 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, nota 216, p. 419. 34 Capítulo 8 desenvolvimento114, conforme a experiência geral da vida, constituem: se A lança B da ponte para morrer afogado no rio, mas B já morre ao esfacelar a cabeça no pilar da ponte, existe homicídio doloso consumado porque o resultado concreto é consequência previsível do perigo criado, atribuível ao autor como obra dele; ao contrário, desvios causais imprevisíveis constituem cursos causais irregulares ou anormais, não atribuíveis ao dolo do autor: se B, ferido por A, com dolo de homicídio, morre em incêndio do hospital após a cirurgia, o imprevisível resultado concreto não é produto do perigo criado, e não pode ser atribuído ao autor como obra dele115. Se o critério de atribuição do tipo objetivo é a realização do perigo, o critério de atribuição do tipo subjetivo é a realização do plano: no exemplo da ponte, o possível e previsível resultado concreto (realização do perigo) corresponde à realização do plano (dolo do autor) porque a morte por afogamento ou a morte por esfacelamento do crânio são resultados equivalentes; no caso do incêndio do hospital, o imprevisível resultado concreto não representa realização do perigo criado, nem corresponde à realização do plano do autor116. 2. Aberratio ictus. As hipóteses de aberratio ictus constituem casos especiais de desvio causal do objeto desejado para objeto diferente, equacionados conforme a natureza típica do objeto: o disparo de arma de fogo contra B atinge mortalmente C. No caso de resultados típicos equivalentes, a solução é repre- sentada por duas teorias: a) para a teoria da concretização117, o dolo deve se concretizar em objeto determinado: na hipótese, tentativa de 114 Representativo da opinião dominante, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 73. 115 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, ns. 140-142, p. 432 s.; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 73. 116 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 144, p. 434; também, WOLTER, Objektive Zurechnung und modernes Strafrechtssystem, 1995. 117 Ver, entre outros,BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, § 21, n. 13; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 8/80, p. 303; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 23, n. 30; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, § 7, VI, ns. 93 s.; STRATENWERTH, Strafrecht, 1991, n. 284; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 250, p. 76. 35 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação homicídio contra B e homicídio imprudente contra C; b) para a teoria da equivalência118, o dolo pode admitir resultado típico genérico: na hipótese, homicídio doloso consumado porque B e C são igualmente seres humanos (teoria adotada pelo art. 20, § 3º, CP, que engloba hipóteses de aberratio ictus e de erro sobre a pessoa). Exceções ocorrem nas seguintes hipóteses: a) em caso de resultado imprevisível por curso causal anormal (B erra o tiro contra A, mas o projétil ricocheteia na parede do prédio e, após bater no hidrômetro da calçada, fere C, que transitava em rua trans- versal): apenas tentativa de homicídio contra A porque a anormalidade do desvio torna imprevisível o resultado lesivo contra C, excluindo atribuição de fato imprudente (a regra do art. 20, § 3º, CP, parece excessiva); b) em caso de objetos em situação jurídica distinta (B atira contra A em legítima defesa, mas atinge C sem justificação, situado atrás de B): tentativa justificada de homicídio contra A e homicídio imprudente contra C (igualmente, parece inadmissível a solução do art. 20, § 3º, CP, porque a natureza antijurídica do excesso extensivo excluiria a justificação do homicídio imprudente); c) em caso de resultado trágico para o autor (em briga de bar, B atira sobre A e, por infelicidade, mata o próprio filho C, que saltara sobre A para defender o pai): apenas tentativa de homicídio contra A (parece cruel a regra do art. 20, § 3º, CP, que pune por crime consumado porque o autor mata o próprio filho, e não o adversário). Finalmente, a hipótese de aberratio ictus sobre objetos típicos não equivalentes é incontroversa: B joga pedra para destruir vaso de porcelana chinesa da loja de A, mas atinge o empregado C, postado ao lado do vaso (tentativa de dano, com lesão corporal imprudente). 118 Embora minoritária, tem adeptos respeitáveis: WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 72-74; KUHLEN, Die Unterscheindung von vorsatzausschliessendem und nichtvorsatzausschliessendem Irrtum, 1987, p. 479 s. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 137. 36 Capítulo 8 3. Troca de dolo. A troca de dolo, que pode ocorrer no curso da reali- zação do tipo, constitui geralmente situação de mudança de objeto do dolo (A derruba a jovem B, no parque, para roubar-lhe o relógio, mas prefere subtrair o valioso colar de pérolas, descoberto durante o fato): não há mudança no plano do fato, apenas troca de objeto do dolo, em geral irrelevante. A situação seria relevante se a troca de objeto representasse mudança no plano do fato capaz de descaracterizar o dolo (no exemplo citado, enfeitiçado pela beleza do rosto da vítima, o autor subtrai a carteira de identidade para admirar a fotografia da moça)119: a mudança no plano do fato representa desistência voluntária do roubo tentado, mas subsiste o constrangimento ilegal. 4. Dolo geral. O conceito de dolo geral tem por objeto acontecimen- tos típicos realizados em dois atos: no primeiro ato, o autor supõe consumar o fato, mas o fato se consuma no segundo ato, realizado para encobrir o fato (A, com dolo de homicídio, dispara o revólver contra B, que cai ao chão, inconsciente; em seguida, para ocultar o homicídio que pensa ter consumado, A lança o suposto cadáver de B no rio, determinando a morte da vítima). Alguns autores resolvem a hipótese como tentativa de homicídio, em concurso com homicídio imprudente, porque o dolo deve existir ao tempo do fato120. Mas a te- oria dominante define a hipótese como homicídio doloso consumado, sob o argumento da natureza acidental do desvio causal – abandonando o conceito de dolo geral porque a ausência de dolo (de homicídio) no segundo fato não é suprível pela extensão do dolo de homicídio do primeiro fato. Contudo, é preciso distinguir: WELZEL121 exige dolo unitário, abrangendo o primeiro e o segundo fato; ROXIN122 condi- ciona a solução à natureza do dolo do primeiro fato: a) se dolo direto, o resultado corresponde ao plano do autor (que, certamente, terá pensado no modo de se livrar do cadáver) – portanto, o desvio causal 119 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 160, p. 441-442. 120 Assim, KUHL, Strafrecht, 1994, § 13, ns. 46-48, p. 448; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 23, n. 33, entre outros. 121 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 74. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 132. 122 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 165, p. 444. 37 Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação é irrelevante, configurando homicídio doloso consumado: A preten- deu matar B e, de fato, matou B; b) se dolo eventual, o resultado não parece corresponder ao plano do autor (que, certamente, não deverá ter pensado no modo de se desfazer do cadáver) – portanto, o desvio causal torna-se relevante, configurando homicídio doloso tentado em concurso com homicídio imprudente. Casos assemelhados, em que o autor pretende consumar o fato somente no segundo ato, mas produz o resultado já na tentativa do primeiro ato, também são resolvidos pelas regras do desvio causal: A quer matar B somente depois de atordoá-lo com algumas pancadas na cabeça, mas o resultado já ocorre por efeito das pancadas para atordoar. A hipótese é de homicídio doloso consumado porque o resultado corresponde ao plano do autor e, portanto, o desvio causal é irrelevante – desde que o resultado ocorra no âmbito da tentativa, e não como efeito de meras ações preparatórias, que produziria, apenas, fato imprudente: a vítima morre de disparo acidental durante operação de limpeza da arma, que o autor pretende usar, depois, contra a mesma vítima123. 5. Erro sobre o objeto. Os casos de erro sobre o objeto (error in objeto vel persona) constituem hipóteses de confusão do autor sobre o objeto do fato, cuja solução depende da equivalência ou não equivalência típica do objeto: a) erro sobre objeto típico equivalente é irrelevante (A, pensando atirar contra B, mata C, confundido com B, na escuridão da noite): o dolo deve apreender o objeto do fato em gênero, logo, erro sobre a identidade concreta de objeto típico equivalente é irrelevante124 (teoria adotada pelo art. 20, § 3º, CP, que engloba hipóteses de erro sobre o objeto e de aberratio ictus); b) erro sobre objeto típico não equivalente é relevante (A, na escuridão da noite, pensando atirar contra B, mata o cão pastor des- 123 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, § 23, n. 36; ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 170, p. 446; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, § 13, p. 74-75. 124 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 12, n. 174, p. 448. 38 Capítulo 8 te, confundido com B porque dormia na cama do dono): a hipótese configura um erro de tipo invertido, também definível como ausência de tipo ou situação de crime impossível125. – porque representa, na verdade, erro sobre a natureza (e não sobre a identidade) do objeto (art. 17, CP). 4. Elementos subjetivos especiais 1. O dolo é o elemento subjetivo geral dos fatos dolosos, o programa psíquico que produz a ação típica, mas não é o único componente subjetivo dos crimes dolosos. O legislador penal contemporâneo inscreve, frequentemente, na dimensão subjetiva dos crimes dolosos, determinadas características psíquicas complementares diferentes do dolo, sob a forma de intenções ou de tendências especiais ou de atitudes pessoais necessárias para precisar a imagem do crime ou para qualificar ou privilegiar certas formas básicas de comportamentos criminosos126. Assim, não há furto na subtração de coisa alheia móvel sem