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Caso Mãos - Oliver Sacks - sensação_percepção

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Livro: O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER COM UM CHAPÉU
Oliver Sacks
Caso nº5 MÃOS
Madeleine J. foi internada no Hospital St. Benedict, próximo a Nova York, em 1980, quando estava com 60 anos; tinha cegueira congênita e paralisia cerebral, e vivera sob os cuidados de sua família toda a vida.
Considerando essa história e sua condição lamentável — movimentos involuntários das mãos, aos quais se acrescentava o não-desenvolvimento dos olhos — eu esperava encontrar uma mulher com retardo mental e regressão.
Ela não tinha nem um nem outro. Muito ao contrário: falava livremente e, na verdade, com eloquência (sua fala, felizmente, não fora afetada pela hipertonia), revelando-se uma mulher decidida, excepcionalmente inteligente e culta.
“A senhora leu muito”, comentei. ”Deve ter muita facilidade com o braile”. “Não, não tenho”, ela replicou. “Todas as minhas leituras foram feitas para mim — por livros gravados ou por outras pessoas. Não posso ler em braile, nem uma palavra. Não posso fazer coisa alguma com minhas mãos — elas são completamente inúteis”.
Ela as ergueu, zombeteira. “Montes de massa imprestáveis e esquecidos — elas nem parecem fazer parte de mim”.
Isso para mim era muito surpreendente. As mãos em geral não são afetadas pela paralisia cerebral — ou, pelo menos, não afetadas essencialmente: podem mostrar-se ligeiramente espásticas, fracas ou deformadas, mas quase sempre são em grande medida utilizáveis (ao contrário das pernas, que podem ficar totalmente paralisadas na variação denominada doença de Little ou diplegia cerebral).
As mãos da srta. J. apresentavam hipertonia e atetose brandas, mas suas capacidades sensoriais — como logo verifiquei — estavam completamente intactas: ela identificava de modo imediato e correto o toque leve, a dor, as temperaturas, os movimentos passivos dos dedos. Não havia dano às sensações elementares propriamente ditas mas, em marcante contraste, havia o mais grave dano à percepção. Ela não era capaz de reconhecer ou identificar coisa alguma - coloquei todo tipo de objetos em suas mãos, inclusive minha mão. Ela não conseguia identificar — e não explorava, não havia movimentos ”interrogativos” ativos em suas mãos; elas eram, de fato, tão inativas, inertes, inúteis quanto ”montes de massa”.
Isso é muito estranho pensei comigo. Como se pode explicar tudo isso? Não existe um ”déficit” sensorial acentuado. Suas mãos dão a impressão de ter potencial para ser mãos perfeitamente úteis e, no entanto, não são.
Poderiam não funcionar, ser ”inúteis” porque ela nunca as usou? Será que ter sido ”protegida”, ”vigiada”, ”pajeada” desde o nascimento impediu-a de fazer o uso exploratório normal das mãos que todos bebês aprendem nos primeiros meses de vida? Será que ela foi carregada de um lado para outro, com tudo sendo feito para ela, de um modo que a impediu de desenvolver mãos normais? E se isso fosse verdade—parecia muito improvável, mas era a única hipótese que eu conseguia conceber — será que ela poderia agora, com sessenta anos, adquirir o que deveria ter adquirido nas primeiras semanas e meses de vida? Haveria algum precedente? Algo assim já teria sido descrito — ou tentado? Eu não sabia, mas pensei de imediato em um possível paralelo o que foi descrito por Leont’ev e Zaporozhets em seu livro Rehabilitation of hand function (tradução inglesa de 1960). O problema que eles estavam descrevendo tinha uma origem muito diferente: eles descreviam uma ”alienação” semelhante das mãos em cerca de duzentos soldados após dano grave e cirurgia. As mãos feridas pareciam ”estranhas”, ”sem vida”, ”inúteis”, ”grudadas”, apesar de em termos neorológicos e sensoriais estarem basicamente intactas Leont’ev e Zaporozhets afirmavam que os ”sistemas gnósticos”, que permitiam á ocorrência da ”gnose” ou uso perceptivo das mãos, podiam ser ”dissociados” em casos assim em consequência de lesão, cirurgia e dos hiatos de semanas ou meses que se seguiam. No caso de Madeleine embora o fenômeno fosse idêntico: ”inutilidade”, ”falta de vida”, ”alienação”, ele tinha a duração de toda uma vida.
Ela precisava não apenas recuperar suas mãos, mas descobri-las — adquiri-las, obtê-las — pela primeira vez; não só recobrar um sistema gnóstico dissociado, mas construir um sistema gnóstico que nunca possuíra. Seria isso possível?
Os soldados feridos descritos por Leont’ev e Zaporozhets tinham mãos normais antes da lesão. Tudo o que precisavam fazer era ”lembrar” o que tinham esquecido, ”dissociado” ou ”desativado” devido à lesão grave.
Madeleine, em contraste, não contava com um repertório de memória, pois jamais usara as mãos—e sentia que não tinha mãos — nem braços, tampouco. Ela jamais se alimentara sozinha, usara o vaso sanitário sozinha ou estendera o braço para pegar alguma coisa, sempre deixando que outros fizessem por ela. Comportara-se, por
sessenta anos, como se fosse uma criatura sem mãos. 
Esse, então, era o desafio que tínhamos pela frente: uma paciente com sensações elementares perfeitas nas mãos mas, aparentemente, sem o poder de integrar essas sensações ao nível das percepções que se relacionavam com o mundo e consigo mesma, sem o poder de dizer ”percebo, reconheço, quero, atuo” no que dizia respeito às
suas mãos ”inúteis”. Mas, de um modo ou de outro (como descobriram Leont’ev e Zaporozhets com seus pacientes), tínhamos de fazê-la agir e usar suas mãos de forma ativa e, esperávamos, ao fazê-lo, conseguir a integração: ”A integração está na ação”, disse Roy Campbell.
Madeleine foi receptiva a tudo isso; de fato, ficou fascinada, porém intrigada e sem esperança: ”Como é que vou poder fazer alguma coisa com minhas mãos se elas não passam de montes de massa?”.
”No princípio está a ação”, escreveu Goethe. Isso pode ser verdade quando estamos diante de dilemas morais ou existenciais, mas não onde o movimento e a percepção têm sua origem. Contudo, também aqui existe sempre algo súbito: um primeiro passo (ou uma primeira palavra, como quando Helen Keller disse ”água”), um primeiro movimento, uma primeira percepção, um primeiro impulso — total, inopinado, onde nada havia, ou nada havia com sentido antes. ”No princípio está o impulso”. Não um ato, não um reflexo, mas um ”impulso”, que é ao mesmo tempo mais óbvio e mais misterioso do que aqueles... Não podíamos dizer a Madeleine: ”Faça”, mas podíamos esperar por um impulso; podíamos esperar, induzir, podíamos até mesmo provocar um...
Pensei no recém-nascido ao procurar o seio materno. ”Deixem a comida de Madeleine um pouquinho fora do alcance de vez em quando, como que por distração”, sugeri às enfermeiras. ”Não a deixem morrer de fonte, não a provoquem, mas não se mostrem tão pressurosas para alimentá-la, como de costume”. E um dia aconteceu — o que nunca havia acontecido antes: impaciente, faminta, em vez de esperar passiva e pacientemente, ela estendeu o braço, tateou, encontrou um bagel, tipo de pão judeu, e o levou à boca. Esse foi seu primeiro uso das mãos, seu primeiro ato manual, em sessenta anos, e marcou seu nascimento como um ”indivíduo motor”. Marcou também sua primeira percepção manual e, assim, seu nascimento como um ”indivíduo perceptivo” completo. Sua primeira percepção, seu primeiro reconhecimento, foi o de um bagel, ou ”qualidade do bagel”.
Depois desse primeiro ato, dessa primeira percepção, o progresso foi extremamente rápido. Assim como estendera a mão para explorar ou tocar um bagel, ela passou então, em sua nova fome, a estendê-la para explorar ou tocar o mundo inteiro. Comer abriu o caminho — para sentir, explorar diferentes alimentos, recipientes, utensílios etc. O ”reconhecimento” precisou, de algum modo, ser alcançado por um tipo curiosamente indireto de inferências ou suposições, pois, tendo sido cega e ”sem mãos” desde o nascimento, ela não dispunha das imagens internas mais simples. Se ela não
fosse dotada de uma inteligência excepcional e de grande cultura, com uma imaginação alimentada e sustentada, por assim dizer, pelas imagens de outros, imagens transmitidas pela linguagem, pela palavra, ela poderia ter permanecidoquase tão incapaz quanto um bebê.
Um bagel era reconhecido como um pão redondo com um buraco no meio; um garfo era um objeto achatado e alongado com vários dentes afiados. Mas essa análise preliminar deu lugar a uma intuição imediata, e os objetos passaram a ser reconhecidos instantaneamente pelo que eram imediatamente familiares em caráter e ”fisionomia”, imediatamente reconhecidos como únicos, como ”velhos amigos”. E esse tipo de reconhecimento, (não analítico, mas sintético) e imediato, foi acompanhado de um vivido prazer, da sensação de; que ela estava descobrindo um mundo cheio de encanto, mistério e; beleza.
Os objetos mais comuns a fascinavam — fascinavam e estimulavam o desejo de reproduzi-los. Ela pediu argila e começou a fazer modelos; seu primeiro modelo, sua primeira escultura, foi o de uma calçadeira, e mesmo esta estava, de alguma forma, imbuída de um peculiar poder e humor, com curvas graciosas, acentuadas, graúdas.
E em seguida — e isto aconteceu em menos de um mês depois de seus primeiros reconhecimentos — sua atenção, sua apreciação, passou dos objetos às pessoas. Afinal, havia limites para o interesse e as possibilidades expressivas das coisas, mesmo quando transfiguradas por uma espécie de gênio inocente, habilidoso e muitas vezes cômico. Ela precisava agora explorar a face e a figura humana, em repouso e em movimento. Ser
”sentido” por Madeleine era uma experiência marcante. Suas mãos, pouco tempo antes inertes, pastosas, pareciam agora impregnadas de animação e sensibilidade sobrenaturais. A pessoa não era meramente reconhecida, esquadrinhada, de uma maneira mais intensa e perscrutadora do que um minucioso exame visual, mas ”provada” e apreciada com meditação, imaginação e estética por uma artista nata (recém-nascida). Eram, tinha-se a impressão, não apenas as mãos de uma cega explorando, mas de uma artista cega, uma mente meditativa e criativa, que acabara de abrir-se para a plena realidade sensível e espiritual do mundo. Essas explorações também demandavam representação e reprodução como uma realidade externa.
Ela passou a modelar cabeças e figuras e, em menos de um ano, tornou-se localmente famosa como a Escultora Cega do St. Benedict. Suas esculturas tendiam a ter três quartos ou metade do tamanho natural, com características simples, mas reconhecíveis e com uma notável energia expressiva. Para mim, para ela, para nós todos, era uma experiência imensamente comovente, espantosa, quase milagrosa. Quem teria sonhado que capacidades básicas de percepção, que não haviam sido adquiridas nos primeiros meses de vida como ocorria normalmente, pudessem ser alcançadas no sexagésimo ano de vida? Que maravilhosas possibilidades de aprendizado tardio, de aprendizado para os incapacitados, isso abria! E quem teria sonhado que naquela mulher
cega e paralítica, escondida, desativada, superprotegida toda a sua vida, vivia o germe de uma espantosa sensibilidade artística (ignorada por ela e pelos outros) que germinaria e floresceria em uma rara e bela realidade, depois de permanecer adormecido, definhando por sessenta anos?

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