Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária Danilo Nazareno Azevedo Baraúna CAIXA DE PANDORA: PROCESSOS CRIATIVOS EM REDES DE COLABORAÇÃO Belém-Pa 2013 BARAÚNA, Danilo Nazareno Azevedo Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração / Danilo Nazareno Azevedo Baraúna – 2013 65 f.: il. Color. 30 cm Orientadora: Profa. Dra. Lucilinda Teixeira Trabalho de conclusão de curso (Especialização) – Universidade do Estado do Pará, Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária, 2012. 1. Arte Contemporânea paraense. 2. Imagem. 3. Espaço. 4. Caixa de Pandora. I. TEIXEIRA, Lucilinda. II. Universidade do Estado do Pará. Centro de Ciências Sociais e Educação. III. Título. CDD – 700.730 Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará como requisito final para obtenção do título de Especialista em Estudos Linguísticos e Análise Literária, sob orientação da Profa. Dra. Lucilinda Teixeira. Belém 2013 Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação. Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária Danilo Nazareno Azevedo Baraúna Caixa de Pandora: processos criativos em redes de colaboração Banca Examinadora: Profa. Dra. Josebel Akel Fares Universidade do Estado do Pará Profa. Dra. Lucilinda Ribeiro Teixeira (Orientadora) Universidade da Amazônia Profa. Dra. Renilda Rodrigues Bastos Universidade do Estado do Pará Data de Aprovação: 12/03/2013 Nota: 10 AGRADECIMENTOS Aos meus pais Luiz e Marlise, e meus irmãos Rafael e Fabíola, minha família, maior fotaleza. Aos meus tios, primos e avós. Com especial agradecimento ao Tioi Paulo, Tia Alcina, Tia Edna, Tio Rubens, Tia Marluce, Tio José e aos meus avós Lélia (in memoriam) e Manoel. Aos amigos que passam pela minha vida e me fazem querer estar com eles a todo o momento. Nigel Anderson, Pedro Ivo, Rosiana da Paz, Tayanne Cid, Paulo Wagner, Anne Chagas e Rafael Reis. A Professora Lucilinda Teixeira, orientadora deste trabalho Ao professor Orlando Maneschy, pela orientação durante a graduação. Aos professores da Universidade Federaldo Pará e da Universidade do Estado do Pará. Aos artistas Cláudia Leão, Flavya Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy, integrantes do grupo Caixa de Pandora, ao qual me debruçei nesse estudo. À Fundação Amazônia Paraense de Amparo à Pesquisa (FAPESPA) pela bolsa de iniciação científica concedida ainda na graduação e da qual os resultados geraram esta monografia. O espaço é cheio de buracos: nós, as coisas, os mundos. A perfeição seria o espaço puro, fica ele a pensar com os seus buracos ... Mas isso, Sr. Espaço, é uma coisa tão impossível como a poesia pura. Mário Quintana RESUMO Neste estudo buscamos identificar os modos de espacialização e expansão da fotografia e do vídeo em suas relações com o conteúdo literário no processo de criação do Grupo Caixa de Pandora e algumas ações individuais dos integrantes deste grupo nas décadas de 1990 e 2000. Atuamos metodologicamente de maneira a nos aproximarmos de uma Crítica de Processo, percorrendo a análise de documentos como dossiês de obras, portfólios, registros das instalações, fotografias e vídeos que compunham as instalações e entrevistas. Constatamos a presença de práticas poéticas a partir do que propomos chamar de Redes de Colaboração, interconectadas a partir de Nós de Interação, ou seja, pontos que servem de referência ao processo criativo de cada integrante do grupo e revelam em conjunto a identidade do Caixa de Pandora. Identificamos três Nós de Interação no processo criativo do grupo: 1) o processo de tradução do conteúdo literário, 2) a fotografia expandida e 3) espacialização da imagem. A identificação desse processo nos levou a encaminhar a análise das exposições levando em consideração os seguintes aspectos: 1) O trânsito intersemiótico entre literatura, fotografia e vídeo, principalmente no que se refere ao Mito de Pandora; 2) A construção dos personagens em imagem relacionando à fotografia expandida; 3) A interferência desses trânsitos de personagens e processos de tradução na escolha do modo de espacialização da imagem fotográfica ou videográfica. Essas imagens se espacializam em micro-espaços instalativos, macro-espaços instalativos e seus respectivos desdobramentos, perspectivas teóricas que estão intrinsecamente ligadas às especificidades do lugar onde esta imagem esteve instalada, articulando desde a presença de pequenos objetos até projeções que interferem no espaço físico expositivo. Lançamos a hipótese de que a tentativa de rearticulação de conteúdos literários foi um dos fatores responsáveis pela expansão da linguagem do vídeo e da fotografia nos trabalhos do grupo. O estudo dos processos criativos do Caixa de Pandora traz à tona algumas das primeiras experiências instalativas realizadas no circuito de arte paraense na década de 1990, instituindo, assim, um importante objeto de pesquisa na arte contemporânea no Pará e suas possibilidades de inserção no cenário artístico nacional. Palavras-Chave: Caixa de Pandora; Processos de tradução; Modos de Espacialização; Redes de colaboração. ABSTRACT This study aims to identify ways of spatializations and expansion of photography and video in its relations with the literary content in the process of creating the Pandora's Box Group and some individual actions of the members of this group in the 1990s and 2000. We operate methodologically in order to approach a Process Review, covering the analysis of documents as file works, portfolios, records of installations, photographs and videos that made up the facilities and interviews. We noticed the presence of poetic practice from what we propose to call Collaboration networks, interconnected from Interaction points, in other words, items that serve as reference to the creative process of each member of the group and together reveal the identity Pandora’s Box. We identified three points of interaction in the creative process of the group: 1) the process of translation of literary content, 2) the expanded photo and 3) spatializations of image. The identification of this process led us to forward the analysis of exposures taking into account the following aspects: 1) The traffic between inter-semiotic literature, photography and video, especially when it comes to the myth of Pandora; 2) The construction of the characters in the image relating expanded photography; 3) The interference of these transits of characters and translation processes in choosing the spatial mode for a picture or video image. These images are spatialized in installative micro-spaces, installative macro-spaces and their developments, theoretical perspectives that are intrinsically linked to the specific characteristics of the place where it was installed, linking from the presence of small objects to projections that interfere in the exhibition space. We hypothesize that the attempt to re-articulation of literary content was one of the factors responsible for the expansion of the video language and photography in the group's work. The study of the creative processes of Pandora's Box brings out some of the first experiments on installative works of Pará art circuit in the 1990s, establishing thus an important subject of research in contemporary art in Pará and its ability to join the art scene national. Palavras-Chave: Pandora’s Box; Translation Processes; Spatialization Modes; Collaboration networks. LISTA DE TABELAS Tabela 01: Mapeameto de obras e exposições, pág. 17 LISTA DE FIGURAS FIGURA 01: Tajá (1985) – Luiz Braga, pág. 21 FIGURA 02: Sem título (1985) – Emanuel Nassar, pág. 21 FIGURA 03: Rede de Criação do Grupo Caixa de Pandora, pág. 31 FIGURA 04: Pandoras de Lata (1993) – Flavya Mutran, pág. 35 FIGURA 05: Pandoras de Lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 36 FIGURA 06: Pandora de Sangue (1995) – Orlando Maneschy, pág. 37 FIGURA 07: Pandora de Sangue (1995) – Orlando Maneschy, pág. 37 FIGURA 08: Pandora de Vidro (1993) – Cláudia Leão, pág. 38 FIGURA 09: Pandora The Eletronic Box (1993) Mariano Klautau Filho, pág. 39 FIGURA 10: Faustine ou a Cidade e os Olhos(1996) – Orlando Maneschy, pág. 40 FIGURA 11: Faustine ou Cidade e os Olhos (1996) –Orlando Maneschy, pág. 41 FIGURA 12: O jardim dos caminhos que se bifurcam (2000) – Cláudia Leão, pág. 43 FIGURA 13: O jardim dos caminhos que se bifurcam (2000) – Cláudia Leão, pág. 43 FIGURA 14: Fotogramas (1995) – Cláudia Leão, pág. 46 FIGURA 15: Livro de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 47 FIGURA 16: Pandora de água (1995) – Flavya Mutran, pág. 48 FIGURA 17: Pandora de lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 48 FIGURA 18: Dandi (1993) – Orlando Maneschy, pág. 50 FIGURA 19: Buba (1993) – Orlando Maneschy, pág. 50 FIGURA 20: Instalação Caixa de Pandora (1995) – Orlando Maneschy, pág. 51 FIGURA 21: O beijo das bubas (1993) – Orlando Maneschy, pág. 51 FIGURA 22: Pandora de Lata (1993) – Flavya Mutran, pág. 54 FIGURA 23: Pandora de Lata (1994) – Flavya Mutran, pág. 54 FIGURA 24: Pandora The Electronic Box (1995) – Mariano Klautau Filho, pág. 55 FIGURA 25: Pandora The Electronic Box (1995) – Mariano Klautau Filho, pág. 56 FIGURA 26: Pandora de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 57 FIGURA 27: Pandora de espelhos (1995) – Cláudia Leão, pág. 58 FIGURA 28: Caixa de Pandora (2006), pág. 59 FIGURA 29: Caixa de Pandora (2006), pág. 60 SUMÁRIO INTRODUÇÃO, pág. 11 CAPÍTULO 01 – Mapeamento e considerações históricas, pág. 16 CAPÍTULO 02 – Processos criativos em redes de colaboração, pág. 25 CAPÍTULO 03 – Processos de criação no caminho da tradução, pág. 32 CAPÍTULO 04 – A fotografia expandida, pág. 45 CAPÍTULO 05 – A espacialização da imagem, pág. 52 1. Micro-espaços instalativos e seus desdobramentos, pág. 53 2. Macro-espaços instalativos e seus desdobramentos, pág. 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS, pág. 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, pág. 64 11 INTRODUÇÃO A produção de imagens no estado do Pará tem desde a década de 1980 se destacado em âmbito nacional e internacional. A partir década de 1990 uma geração singular de fotógrafos e suas propostas inseriram as bases para a construção de um pensamento instalativo no circuito de artes visuais de Belém do Pará. É essa produção de imagens e suas articulações com a literatura que o projeto se propõe a investigar, construindo uma base de dados e aprofundando estudos acerca desta imagem que extrapola os tradicionais objetivos fotográficos de simples registro e apresenta uma imagem inserida no território de produção contemporânea de artes visuais, como um meio de desconstrução, re-articulação de poéticas, manipulações não convencionais e construção de outras memórias, identidades e temporalidades em obras de artistas locais. Tal fato nos leva a acreditar na importância de sistematizar dados e registros desses trabalhos, bem como aprofundar a compreensão acerca dos mecanismos de tradução na direção Literatura – Artes Visuais a partir do viés de leitura de pesquisadores da área de artes visuais, um ramo de investigação que no contexto de pesquisa científica em nossa Cidade ainda é pouco explorado. Corroboramos a importância de voltarmos às atenções do projeto para o amadurecimento de uma cultura de pesquisa sobre imagem na região amazônica, especificamente na cidade de Belém, tendo em vista a descentralização geográfica dessa produção no que se refere ao sistema de arte nacional. Para a compreensão de todos esses processos, articulamos o levantamento e análise dessas produções a discussões sobre imagem, tradução e arte contemporânea realizadas por autores como Jacques Aumont, Vilém Flusser, Cecília Almeida Salles, Rubens Fernandes Júnior e Affonso Romano de Sant’Anna, os quais nos apoiarão conceitualmente durante o estudo da imagem em um contexto mais amplo. O mapeamento prévio dessas produções na década de 1990 nos levou ao contato com a produção do grupo Caixa de Pandora, atuante neste período como disseminador de uma nova cultura de produção fotográfica. A partir deste primeiro contato pudemos notar a intrínseca relação que este grupo de jovens artistas mantinha com a apropriação de conteúdos literários para a produção de seus 12 trabalhos artísticos. O próprio nome do grupo já faz menção ao Mito de Pandora, o qual se encontra constantemente nas discussões por eles realizadas. A partir deste dado passamos a compreender a necessidade de pensar a instauração desse conteúdo literário no processo criativo do Caixa de Pandora como norteador de grande parte das ações por eles realizadas em suas exposições que se iniciaram na década de 1990 e chegaram à década de 2000, sempre com constantes e variabilidades poéticas. No entanto, é importante ressaltar que para a compreensão desse processo de apropriação do conteúdo literário não pode ser pensado sem levar em consideração os embates locais realizados com relação a expansão da linguagem fotográfica, no diálogo com o espaço (a partir do surgimento das instalações) e de uma fotografia construída (nomenclatura recorrente na década de 1990) que extrapola os convencionalismos do que vinha sendo produzido em Belém na Época. Para isso, é importante o estabelecimento conceitual dessa pesquisa como um estudo de processos criativos do grupo Caixa de Pandora em suas instâncias macro, embasado nas teorias da Crítica de Processo (outrora denominada Crítica Genética) de Cecília Almeida Salles, que por sua vez tem suas discussões fundamentadas nas teorias da Semiótica de Charles Sanders Peirce. Falamos, portanto, essencialmente, do estudo semiótico de processo criativo para compreendermos como o conteúdo literário perpassa a produção do Grupo Caixa de Pandora a partir da relação entre três elementos teóricos fundamentais, a imagem, o espaço e o conteúdo literário, para buscarmos, enfim, possíveis generalizações do “movimento criador” a partir da concepção da criação como tradução de signos. O processo de tradução traz consigo grandes discussões, iniciadas por Roman Jakobson e bem desenvolvidas no livro “Tradução Intersemiótica” de Júlio Plaza. Essas discussões surgem a partir da necessidade de fomento às discussões e reflexão acerca de práticas artísticas que envolvem o trabalho com meios e linguagens diversas e tendo também como base a Semiótica de Pierce Nos trabalhos propostos para análise a relação com a literatura é ponto chave para a discussão do processo de criação dessas exposições, no entanto, a relação com outras modalidades de produção artística se entremeiam à análise como já explicitado anteriormente. Cecília Almeida Salles (2006) denomina Nós de Interação esses elementos que compõe a rede de criação de uma obra de arte. Neste contexto de pesquisa, identificamos três Nós de Interação: 1 – Processos de 13 tradução; 2 – A fotografia expandida e 3 – a espacialização da image. É importante perceber que a concepção de tradução implica um estudo interdisciplinar, uma vez que promove o diálogo entre diferentes disciplinas, linguagens e culturas, lançando bases para o pensamento da tradução como criação. É nesse sentido que nos apropriamos do conceito de Entre-Imagens de Raymond Bellour (1997) para pensar aqui não as especificidades da linguagem fotográfica ou literária, mas os possíveis cruzamentos poéticos e construtivos destas obras de arte. Devemos levar em conta que toda a tradução estabelece relações de equivalência com seu original, e para isso, é importante perceber os pontos de ligação ou Nós de Interação entre conteúdos originais e traduzidos, identificando os encaminhamentos metodológicos da tradução em cada unidade caso analisada. Para a compreensão específica das relações entre conteúdo literário e artes visuais, utilizamos como referência os modelos de análise propostos pelo autor Romanno de Sant’Anna no livro “Paródia, Paráfrase & Cia.” (1988), em que o autor parta das concepções de paródia e estilização lançadas por Bakthin e Tynianov e reconfigura esses conceitos, atribuindo a este processo macro ainda as concepções de paráfrase e apropriação. Aqui a fotografia é linguagem em cruzamento com outras linguagens para a construção de ambientes de articulação imagética. A ação do signo percorre territórios que expandem os conceitos, trazem consigo o que Rubens Fernando Junior (2002) denomina Fotografia expandida (que vai além da fotografia construída). Trabalhos de fotógrafos que dialogam teoricamente com Vilém Flusser (1985) e constroem narrativas em imagens sem deixar que o aparelho fotográfico tome conta de seus objetivos, articulando a relação com o objeto e o ambiente a partir de suas imagens manchadas, borradas e que solicitam ao espectador presente uma atenciosa análise. Para isso, instituímos como objetivo de pesquisa identificar os modos de espacialização e expansão de linguagem da fotografia e do vídeo em suas relações com o conteúdo literário no processo de criação do Grupo Caixa de Pandora. Os procedimentos metodológicos desta pesquisa estão fundamentados nas proposições de trabalho científico de Antônio Carlos Gil (2009). O trabalho se configura tipologicamente em primeira instância como pesquisa descritiva, na medida em que se vale do levantamento de dados padronizados, e também está 14 inserida em um âmbito de pesquisa explicativa, já que procurará identificar a natureza dos fenômenos compreendidos no recorte específico. No que se refere ao delineamento de pesquisa, instituímos um caráter de Estudo de caso coletivo a partir de múltiplos casos em determinado recorte. Este recorte foi espacialmente delimitado em produções de artes visuais do grupo Caixa de Pandora. Como estudo de caso, falamos da instauração de amostragens estratificadas de pesquisa, que servirão de índice para a implantação de discussões que estão relacionadas a um contexto maior de produções. Uma abordagem teórica da Crítica de processo fundamentou os nossos estudos, no que se refere aos procedimentos de coleta e análise de dados. Nesta vertente levamos em consideração não apenas o processo comunicativo de instauração da obra, mas também os processos de gênese dessa criação a partir de um diálogo direto com os artistas e sua relação com a criação das obras selecionadas para análise. Nesse momento, nos preocupamos em delimitar que tipos de dados melhor nos serviriam para uma posterior análise dos objetos de estudo, e para isso instituímos os procedimentos e materiais abaixo especificados: - Pesquisa iconográfica: levantamento de imagens fotográficas e videográficas das obras selecionadas para compor o mapeamento. - Pesquisa bibliográfica: levantamento de fontes bibliográficas, tais como livros de leitura corrente (Obras literárias), livros de referência remissiva (Catálogos) e publicações periódicas (Jornais e revistas). - Pesquisa documental: levantamento de materiais como dossiês de obra, portfólios de artistas e elaboração e aplicação de entrevistas com os artistas. As entrevistas foram realizadas como uma espécie de questionário, com alguns dados padronizados para os artistas, tais como: principais referenciais teóricos no desenvolvimento das poéticas; o possível conceito de instalação; os limites conceituais entre certas categorias produtivas que trabalham essencialmente com relações espaciais; a necessidade do artista em categorizar suas produções; os possíveis referenciais teóricos acerca dos conceitos de Imagem e Espaço e os referenciais locais na produção de obras de caráter instalativo e as possíveis relações entre sua produção e o conteúdo literário por ele apropriado. 15 A pesquisa bibliográfica buscou identificar importantes autores (já citados) que estabelecem discussões de caráter histórico-conceitual acerca das relações de instauração da imagem (fotografia e vídeo) em um espaço físico e como a literatura influenciou o processo de criação do nosso objeto de estudo. Para efeito de análise dos objetos coletados procuraremos compreender os significados conceituais propostos pelas produções mapeadas e traçar uma teia de significações entre estas e quais territórios pretendem abranger, levando em consideração os seguintes critérios e procedimentos de caráter quantitativo e qualitativo: - Locais e períodos de exibição. - As características físicas e materiais da obra. - Descrição dos componentes e dispositivos em geral. - As relações entre os elementos compositivos e o espaço físico. - As possíveis condutas, atitudes e comportamentos suscitados ao espectador em sua experiência com a obra. - As poéticas empregadas em cada unidade-caso. - Os modos de apropriação do conteúdo literário nas obras analisadas (paráfrase, paródia, estilização e apropriação). 16 CAPÍTULO 01 – MAPEAMENTO E CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS A exploração do conceito de lugar personifica os objetivos desta pesquisa em certo ponto. Procuramos compreender como este “lugar” é apropriado pela produção de arte contemporânea para analisar a instauração da produção de imagens nesses espaços dentro do circuito paraense de arte contemporânea. Segundo Anne Cauquelin, “um local é uma área dentro de um ambiente que foi alterado de maneira a tornar o ambiente geral mais perceptivo” (CAUQUELIN, 2005, p. 142). A consulta ao acervo de dados (imagens, textos, vídeos) do projeto de pesquisa “A relação da Imagem nas Artes Visuais: mapeamento da produção imagética na arte contemporânea paraense”1 e o contato com alguns textos de Rubens Fernandes Junior nos indicou algumas ações do grupo Caixa de Pandora, que na década de 1990 instaurou as primeiras experiências de caráter instalativo no circuito de artes visuais no estado do Pará. Ainda nesse período, o contato com os estudos da Crítica de Processo, implementados no Brasil principalmente por Cecília Almeida Salles, nos abriu a possibilidade do emprego de uma abordagem teórico-metodológica em que o estudo dos processos criativos de um artista ou grupo de artistas pode servir a um entendimento global do processo de criação em arte, o que nos encorajou a lançar o olhar sobre as especificidades do processo criativo do grupo Caixa de Pandora, para a partir disto compreender os fatores que os levaram a uma compreensão mais expandida da imagem e seus mecanismos de espacialização. Mais do que uma leitura ou “interpretação” da obra entregue ao público, a Crítica de Processo se preocupa com a reconstituição dos fatores que tornaram possível a materialização do pensamento artístico, levando em consideração conceitos como a Criação em Rede e o Inacabamento. Ao falarmos em Crítica de Processo devemos ter em mente uma abordagem de estudo de Documentos de Processo, aqueles que trazem a tona os elementos constitutivos do processo de criação. Estes documentos que por algum tempo se restringiram aos manuscritos dos artistas tomam hoje outras proporções, e uma 1 Projeto de pesquisa desenvolvido no âmbito da Faculdade de Artes Visuais / Instituto de Ciências da Arte / Universidade Federal do Pará, coordenado pelo Profº. Dr. Orlando Franco Maneschy e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no período de 2005 a 2010. 17 infinidade de outros materiais podem servir à compreensão dos processos de um artista, inclusive o diálogo direto através de entrevistas e questionários. A coleta destes documentos foi também realizada a partir do acervo dos próprios artistas, em diálogo com publicações que nos forneceram uma perspectiva teórica sobre o grupo. Nesse sentido, realizamos a coleta de fotografias de registros das instalações bem como de imagens que compunham os trabalhos, catálogos das exposições mapeadas (tabela de exposições abaixo), notícias de jornal da época, textos de teóricos e críticos de arte, especificamente Marisa Mokarzel, Cláudio De La Rocque Leal e Rubens Fernandes Junior e dossiês das obras expostas. Abaixo tabela com os artistas, exposições e obras mapeadas. EXPOSIÇÃO ARTISTAS LOCAL PERÍODO Caixa de Pandora Cláudia Leão; Flavya Mutran; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Galeria Theodoro Braga (Belém – PA) 18/06/1993 Caixa de Pandora (2ª Edição) Cláudia Leão; Flavya Mutran; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Galeria do Instituto Cultural Itaú (Brasília – DF) 25/10/1994 Caixa de Pandora (3ª Edição) Cláudia Leão; Flavya Mutran; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Galeria Theodoro Braga (Belém – PA) 25/04/1995 – 14/05/1995 Caixa de Pandora (4ª Edição) Cláudia Leão; Flavya Mutran; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Liceu de Artes e Ofícios da Fundação Cultural de Curitiba (Curitiba – PR) 03/05/1996 Caixa de Pandora (5ª Edição) Cláudia Leão; Flavya Mutran; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Galeria da FAOP – Festival de Inverno da UFMG (Ouro Preto - MG) 18/07/1996 - 18/08/1996 Caixa de Pandora (Projeto “Coletivos” / Anos 90) Cláudia Leão; Mariano Klautau Filho; Orlando Maneschy Laboratório das Artes – Espaço Cultural Casa das Onze Janelas (Belém – PA) 31/10/2006 – 12/11/2006 Fotografia Contemporânea do Pará – Novas Visões Grupo Caixa de Pandora; Flavya Mutran, Walda Marques e Arthur Leandro Galeria de Arte da UFF (Niterói – RJ) 26/11/1997 – 14/12/1997 Fotografia Contemporânea do Pará – Novas Visões Grupo Caixa de Pandora; Flavya Mutran, Walda Marques e Arthur Leandro Palácio Gustavo Capanema (Rio de Janeiro – RJ) 13/01/1998 – 06/03/1998 O Rosto e os Outros Cláudia Leão Galeria do Centro Cultural Brasil-estados Unidos (Belém – PA) 03/1995 NÃO Orlando Maneschy Galeria Theodoro Braga (Belém – PA) 1994 Faustine ou A Cidade e os Olhos Orlando Maneschy Galeria de Arte da UNAMA (Belém – PA) 19/12/1996 - 04/01/1997 O Jardim dos caminhos que se bifurcam Cláudia Leão Galeria de Fotografia do Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção (Fortaleza – CE) 2000 Tabela 01: Mapeamento de obras e exposições 18 Nessa tabela identificamos a presença das cinco edições da exposição “Caixa de Pandora” bem como de exposições individuais ou coletivas em que alguns integrantes apresentaram propostas que muito se aproximavam das discussões estéticas articuladas nas exposições do Caixa de Pandora. É importante frisar que o crítico de processo não quer apenas reconstituir ou identificar a gênese da criação da obra, mas compreender os fatores que influenciam o artista na construção de determinado trabalho, desde mecanismos intuitivos até rigorosos planejamentos de execução, da mais primitiva ação criadora até o momento de apresentação da obra ao público que, diga-se de passagem, não se configura como uma versão final da obra, mas como uma entre diversas outras possibilidades de materialização do processo. Sobre essa questão, Cecília Almeida Salles (2006) pronuncia: Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com o seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca. A criação alimenta-se e troca informações com seu entorno em sentido bastante amplo. (SALLES, 2006, p 32). É pensando nessas infinidades de relações que o artista estabelece com seu meio que a Crítica de Processo também atua. Dessa maneira, iniciamos a análise dos processos de criação do grupo Caixa de Pandora a partir de um viés histórico de identificação do ambiente cultural em que esses produtores estavam inseridos. Para reconstruir um panorama histórico das ações do grupo Caixa de Pandora em âmbito local e nacional recorremos a escritos de Marisa Mokarzel, Cláudio De La Rocque Leal e Rubens Fernandes Junior, de modo a identificar como as ações do grupo acabaram por modificar certos paradigmas locais de produção de arte. Quando do surgimento do grupo o circuito de fotografia na cidade de Belém ainda se pautava em produções que caminhavam no território do fotojornalismo e da fotografia documental, com autores como Elza Lima, Luiz Braga e Miguel Chikaoka. Marisa Mokarzel delimita a importância de retornar à década de 1980 para entender a formação do panorama que o Caixa de Pandora encontra ao início de sua produção. O início da década de 1990 é fortemente marcado pelas reminiscências da atuação da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE) na década anterior, na qual 19 instituiu importantes ações de caráter de fomento à produção fotográfica nacional. Nesse período vimos o surgimento de um trabalho de mapeamento e estímulo à realização de exposições fotográficas, que na região amazônica resultou no I FOTONORTE Viver a Amazônia, realizado em 1985. Ainda nos anos 1980 a FUNARTE investe na articulação de pesquisa para a delimitação de uma “Visualidade Amazônica”, no que se refere a trabalhos que se pautam em referências advindas da cultura popular local e suas especificidades relacionadas às cores puras e fortes da visualidade dos bairros periféricos e região ribeirinha das localidades. Neste período, importantes teóricos locais passaram a pensar essas questões e instituíram um campo profícuo de pesquisa acerca de uma Amazônia que traz em seu cerne de criação poética a visualidade popular e ribeirinha. Osmar Pinheiro foi um dos grandes responsáveis pela estruturação de um pensamento teórico acerca desses fatores quando em 1982/1983 realizou também para a FUNARTE o projeto denominado Fontes do Olhar, um mapeamento de materiais que perpassavam textos e depoimentos de artistas e documentação fotográfica acerca dessas relações entre as visualidades populares e periféricas e a produção de artes plásticas na Amazônia naquela época. A respeito desse processo Pinheiro cita como principais referências artísticas Luiz Braga, Jair Jacmont, Roberto Evangelista, Helio Melo e Emmanuel Nassar, construindo um pensamento de que: Estamos numa região pluricultural, que se manteve historicamente dentro de uma perspectiva de confronto. Penso que a fronteira cultural, talvez como em nenhuma outra região, se faz sentir aqui de uma forma muito nítida, essa fronteira de divisão de mundos diferenciados em confronto, porque fazendo parte da estrutura maior das relações de poder [...] A prática das artes plásticas aqui diz respeito muito de perto, a essa coisa que eu conheço muito em particular, que é a questão da visualidade, porque na verdade nós colocamos a visualidade do ponto de vista de sua relação com a arte. (PINHEIRO, 1985, p. 92-93). O embate que surge entre visualidade e artes plásticas faz emergir uma série de experimentações dos citados artistas, de modo a conferir à Amazônia naquela década uma especificidade de lugar, uma produção que reflete, diagnostica e corrobora para a existência dessacralização de uma produção de arte e surgimento de um teor lúdico e compromissado com a existência de uma arte que extrapola o circuito convencional de exibição de produtos artísticos, dialoga com a cidade, com o rio, com a brincadeira, com a floresta e transparece seu apelo de cunho socialmente 20 marcado. Sobre o processo criativo de artistas nessa época, ainda Osmar Pinheiro declara: As organizações cromáticas que informam as pinturas de fachadas e embarcações oriundas da tradição mestiça, de admirável rigor e inteligência e que estão presentes também na geometria de papel de seda dos papagaios, rabiolas (pipas) revelam as condições particulares de uma outra ordem, onde não existe mercado de arte, onde o suporte da obra é a casa, o barco, o boteco, o papagaio, o brinquedo, o instrumento de trabalho. [...] Onde arte e trabalho são partes de um mesmo movimento cuja razão é o afeto [...] são artefatos de múltiplo uso, transitando entre o prazer e a necessidade [...] São paisagens pintadas em botecos, puteiros, fachadas, resíduos acadêmicos, assimilações, apontando às vezes para uma figuração surpreendente [...] Pinturas com a obsessão de cobrir todo o espaço e dentro deste os micro espaços e assim por diante até a exaustão da forma e da cor. Metáfora de uma região de vastidões [...] Há nesse universo de referências uma relação densa entre o utilitário e o lúdico, um perpassando o outro. Silenciosa estratégia de resistência cultural. Estética do prazer. (PINHEIRO, 1985, p. 96-97). Nessa perspectiva, a Fundação Nacional de Arte contribui na década de 1980 para a edificação de um pensamento que vai permear toda uma geração de produtores nos anos seguintes, o que ajuda na expansão do mercado de arte paraense, principalmente no que se refere à pintura e fotografia. No entanto, a respeito da existência de fato de uma possível “visualidade amazônica” concordamos com Marisa Mokarzel na compreensão de que esta visualidade discutida acaba se subvertendo em um sentido de “localização” exacerbada que proporciona um distanciamento no diálogo com outros lugares. A exaltação dessas especificidades nos parece distanciar discussões que poderiam claramente estar apoiadas em fluxos de teor nacional, já que pensamos não ser essa visualidade um privilégio amazônico. 21 Figura 01: Tajá (1988) Artista: Luiz Braga Fonte: www.colecaopirelli.masp.art.br Figura 02: Sem título (1985) Artista: Emmanuel Nassar Fonte: www.catalogodasartes.com.br 22 O grupo Caixa de Pandora, a partir de exposição homônima realizada em 1993 na Galeria Theodoro Braga, se integrou ao circuito fotográfico de Belém articulando discussões imagéticas que fugiam às especificidades relatadas acima. Os membros do Caixa de Pandora detinham fortes relações com a cultura contemporânea, a moda, o teatro, o cinema e as artes visuais, a literatura, propiciando rupturas nos paradigmas da fotografia local, tomando lugar no que passou a ser chamado nacionalmente de Fotografia Expandida2(discutiremos melhor este conceito mais à frente) de modo a estabelecer diálogos entre repertórios diversos “para falar de imagem, tempo, memória, ausência, medo e desejo” (MANESCHY, 2007, p. 31). A grande maioria dos trabalhos construídos pelo grupo Caixa de Pandora se pautava na relação entre a fotografia, principalmente, e o vídeo, com a apropriação de objetos ditos não convencionais para servirem de suporte à produção dessas imagens. Neste momento chegamos a corroborar a hipótese de que o grupo Caixa de Pandora atuou como um embreante para a quebra de fronteiras entre o território da fotografia e das artes visuais na cidade de Belém, e também foram pioneiros na produção de trabalhos nos moldes do que hoje chamamos de “instalação”. As ações do grupo encorajaram fotógrafos como Walda Marques, Sinval Garcia e Maria Christina a romperem as barreiras da fotografia tradicional, de cunho mais documental, e passarem a articular experiências de desconstrução dessa imagem produzida, e abriram caminho para o surgimento de uma geração de artistas que a partir dos anos 2000 potencializa as estruturas instalativas e suas relações com a produção de imagem, como Roberta Carvalho, Armando Queiroz, Carla Evanovitch, Luciana Magno e Victor De La Rocque. É justamente essa ruptura do grupo com as noções dessa “visualidade amazônica” que os torna uma pontual referência para a construção de outras perspectivas para a produção da imagem fotográfica na cidade, da inserção da produção em vídeo e da articulação desses elementos para além do plano bidimensional, estabelecendo relações com objetos e constituindo ambientes instalativos. A partir desses desdobramentos Cláudio De La Rocque (1996) abre a possibilidade de pensar o Caixa de Pandora como um Movimento e em matéria 2 Termo amplamente trabalhado pelo pesquisador e crítico de fotografia Rubens Fernandes Júnior para referir-se a uma produção fotográfica que se construía a partir de manipulações, elaborações laboratoriais, construções estéticas, etc. que ocorreu no referido período. 23 publicada no caderno Cartaz do Jornal O Liberal de 23 de abril de 1996 preconiza que “o grupo passa a ser um movimento quando experimenta de forma sistemática e os experimentos geram propostas diferenciadas de trabalhos, diferentes das que vêm sendo produzidas em fotografia”. Em 1994 os integrantes do grupo fundam o Caixa de Pandora – Núcleo de Imagens, com o objetivo de promover eventos e espaços de discussão e fomento dessa produção imagética. Em entrevista ao caderno Mulher do jornal A província do Pará do dia 10 de janeiro de 1998, Cláudia Leão explica como ocorreu esse processo: Primeiro Nasceu a caixa de Pandora – exposição – feita através do convite de André Lima, para juntar fotógrafos com uma linguagem pouco convencional. Depois, em 1994, quando resolvemos fazer um encontro de fotografia, aqui em Belém, houve a necessidade de criar algum trabalho que representasse todos os fotógrafos envolvidos, assim nasceu O caixa de Pandora – Núcleo de Imagens. Porém, ainda mantínhamos uma mesma forma de criar, ou seja, nós, individualmente, arcávamos com todo o custo para criar os projetos individuais. No entanto, ficava a cargo do NI – Caixa de Pandora buscar recursos para a saída dela daqui e conseguimos muitos parceiros. (LEÃO, 1998, p. 05). Formado inicialmente pelos fotógrafos Orlando Maneschy, Cláudia Leão, Mariano Klautau Filho e Flavya Mutran, o grupo Caixa de Pandora tem suas inquietações pautadas no processo de manipulação fotográfica em que a colaboração e a individualidade se entremeiam o tempo inteiro, tornando difícil dissociar o projeto poético do grupo do projeto poético de cada integrante. Mariano Klautau Filho define o Caixa de Pandora como um “grupo de pessoas que estavam experimentando. Havia a ideia de não obedecer territórios. Precisava-se trabalhar em conjunto. Era um trabalho coletivo”3. Todos eram advindos das oficinas e ações da Fotoativa na década de 1990 e se preocuparam em distanciar o conceito localizado de Amazônia para pensar um lugar que para eles era global e onde poderiam transbordar suas inquietações para o mundo, tornar a fotografia paraense deslocalizada e parte de um conjunto conceitual que dialogasse com as discussões iminentes acerca da construção da imagem na contemporaneidade. Como afirma Marisa Mokarzel (2008), embora os artistas não tivessem noção da dimensão histórica que seus trabalhos estavam proporcionando à concepção de fotografia na época em Belém, suas construções poéticas conseguiram desviar a 3 Entrevista realizada por Marisa Mokarzel com Mariano Klautau Filho em 23 de junho de 2008 e publicada no texto “Caixa de Pandora: Deslocamentos, novas linguagens e práticas na fotografia paraense dos anos 1990”. 24 direção para a qual a produção paraense estava caminhando e inseriram no circuito de arte local a necessidade de surgimento de um novo pensamento acerca da arte, de uma arte contemporânea que a partir deste contexto surge como possibilidade de deslocamento dos padrões da década anterior, que de certa maneira moldaram a produção local para uma iniciativa de discussão extremamente localizada. 25 CAPÍTULO 2 - PROCESSOS CRIATIVOS EM REDES DE COLABORAÇÃO Com o auxílio da Semiótica Peirciana, as teorias do processo de criação delimitam cinco etapas que constituem a criação: a ação transformadora, o movimento tradutório, processo de conhecimento, construção de verdades artísticas e o percurso de experimentação. Essas fases de desenvolvimento do percurso criativo é que possibilitam uma materialização, o surgimento de um produto que chegará ao público. Segundo os estudos de Cecília Almeida Salles (2006) este caminho criador é um percurso construído a partir de tendências que muitas vezes se repetem ao longo da história de criação de um artista, que diferente da ciência não busca uma verdade sistematizada, mas trabalha, também, no campo da intuição. A autora chama a atenção para a necessidade de lançarmos um olhar para os meios e técnicas utilizadas por esse artista, pois estes se revestem da vontade poética deste produtor. A escolha pela utilização da linguagem fotográfica em detrimento de uma pintura não é aleatória. No entanto, é importante ressaltar que esse processo de escolha de linguagens na arte contemporânea é essencialmente híbrido e transpassado por mais de uma escolha técnica. O que hoje conhecemos como Crítica de Processo tem seus subsídios na Crítica Genética, os estudos da gênese do processo de criação, embasada na perspectiva de que uma obra é construída a partir de uma série infinita de agregação de idéias que por aproximação se materializam em um objeto de arte. As metodologias de análise preocupam-se em compreender, além de uma interpretação do produto artístico, alguns dos caminhos conceituais que levaram um artista a determinada materialização de um pensamento em processo. Para alcançar alguns desses caminhos a Crítica de Processo se vale do que denomina “Documentos de processo”, materiais como rascunhos, fotografias, entrevistas, arquivos digitais, manuscritos, entre outros. Foram estes os materiais que nos serviram de base para a prospecção desta pesquisa. Nesse caminho, lançamos mão de um mecanismo indutivo de formulação de hipóteses e generalizações a partir da observação desses documentos em sua relação com a obra entregue ao público. Ao discutirmos no capítulo anterior o contexto histórico em que o Grupo Caixa de Pandora estava inserido na ocasião de seu surgimento procuramos já neste Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini 26 momento trazer a tona o tempo e espaço externos que configuraram e influenciaram de alguma maneira aqueles artistas e seu movimento criador. A concretização da obra se dá, portanto, na relação indissociável entre forma e conteúdo, o que reforça a necessidade de compreender o movimento tradutório em sua relação com linguagens e materialidades outras. Apesar do produto final se materializar em uma linguagem, seu percurso é essencialmente intersemiótico. A partir da Semiótica Peirciana, a Crítica de Processo encontrou um caminho para a construção de bases de discussão da generalização do movimento criador. Começamos a falar de Semiótica chamando atenção para o fato de que por justamente ser uma teoria generalista faz-se necessário a busca por outras referências específicas para a compreensão dos casos estudados. Neste ponto surge a necessidade de buscarmos um aporte teórico em estudiosos da imagem, como Jacques Aumont, e da Literatura, como Affonso Romano de Sant’anna. Segundo os estudos de Cecília Almeida Salles (2006) o conceito de semiose (ação do signo) possibilita a formulação de teorias para uma generalização da criação. Ainda de acordo com Salles (2006): A principal função do signo é interpretar e ser interpretado simultaneamente. Interpretação é, para Peirce, um momento indispensável de qualquer signo. Nada é um signo por ele mesmo, mas somente por conta de outro que o decifra como um signo. (SALLES, 2006, p. 163). A partir deste excerto podemos compreender que a criação, essencialmente signo, se dá em uma constante mutação de interpretações e que do primeiro insight do artista ao primeiro contato do público com a obra as ativações estão em um movimento transformador que percorre tempo e espaço em um contínuo. Isso nos faz inferir que todo objeto artístico, como processo sígnico, é apenas uma versão possível do que poderia vir a ser, a partir do contato com qualquer uma mente criadora. Essa ausência de autonomia sígnica, que afeta diretamente a criação, é o que a semiótica Peirciana denomina sinequismo. Esta própria pesquisa, como criação é, portanto, apenas uma versão interpretativa possível. Embora contínuo o processo de criação surge com tendências, direcionado a determinado caminho, o que Salles (2006) denomina “causação final”, ou “desejo operativo” segundo Charles Sanders Peirce, que se finda em uma materialização qualquer, em nosso campo de análise uma obra de arte. Esta obra possui um teor Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini 27 essencialmente comunicativo, ou seja, produz signos a serem interpretados, o que torna essa concepção de sinequismo mais clara. É a partir dessa característica da criação como processo sígnico que Cecília Almeida Salles lança as bases para pensarmos essa criação como “movimento tradutório” em signos, o que está relacionado à “coexistência dinâmica das três categorias da fenomenologia Peirciana: primeiridade (sentimento, sensação), secundidade (ação, confronto) e terceiridade (interpretação, síntese intelectual)” (SALLES, 2006, p. 173). Em suma, a autora preconiza que: Esse percurso sensível e intelectual pode ser descrito como um movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de idéias novas. Um processo onde regressão e progressão são infinitas, portanto, sem definição de origem, nem final. (SALLES, 2006, p. 173). Para pensar o processo criativo por meio da Crítica de Processo é essencial também ter em mente dois importantes conceitos, o da Criação como Rede e do Inacabamento. Por Criação como Rede entendemos uma legitimação do processo criativo como formado por uma infinidade de fatores, ações e percursos que constituem a poética de um artista, e que estão intrinsecamente ligados entre si, perfazendo uma organicidade dinâmica. Cecília Almeida Salles sustenta seus estudos nas teorias de Pierre Musso acerca do pensamento em rede. Segundo o autor, uma rede pode ser determinada como: [...] uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento. Pode-se distinguir Três níveis nessa mesma definição: A rede é uma estrutura composta de elementos em interação; [...] A rede é uma estrutura de interconexão instável no tempo; [...] a modificação de sua estrutura obedece a alguma regra de funcionamento.. (MUSSO, 2007, p. 31). Ainda na perspectiva de definição do conceito de rede, Pierre Musso cita Henri Atlan e declara que “A rede é mais que a máquina, porém menos que o vivente; mais que o linear, porém menos que o hipercomplexo; mais que a árvore, porém menos que a fumaça” (MUSSO, 2007, p.30). Esta rede ainda segundo o autor é construída por uma pluralidade de pontos que se interligam por uma variedade de ramificações. Cada ponto, ou pico, é nada mais que o encontro entre ramificações, um edificador de passagens que se Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini 28 encontram para o surgimento de uma racionalidade que permitirá a aparição de novas ligações e assim sucessivamente. O contato com os processos do grupo Caixa de Pandora nos permitiu identificar uma relação de auto-suficiência poética de cada integrante bem como concomitantemente uma relação dialógica entre os percursos criadores dos artistas. Os espaços expositivos construídos pelo grupo constituíam uma totalidade que ao mesmo tempo era coletiva e individual. Cada artista integrava a exposição com um trabalho individual que, no entanto, mantinha relação direta com questões que perpassavam em conjunto as inquietações poéticas de todos os integrantes. Este fato nos fez levantar a hipótese de que o Caixa de Pandora trabalhava em uma perspectiva do que propomos denominar de processos criativos em Redes de Colaboração, dialogando com o conceito de Rede proposto por Pierre Musso e seus desdobramentos na Crítica de Processo. Devemos levar em consideração que ao falarmos de Criação em Rede preconizamos em duas instâncias: o processo criativo de cada artista; e o processo criativo colaborativo entre os artistas, nosso principal objeto de análise neste momento. Como já discutido por Salles (2006), estes processos organizados em rede se constituem de uma infinidade de elementos que se interconectam para a formação do pensamento criativo em rede. Esses elementos fundadores da rede da criação, o que Musso (2007) chama de picos, recebem a denominação de Nós de Interação na Crítica de Processo, delimitando mais especificamente as questões que sustentam a formação dessa rede. Para pensar os processos do Caixa de Pandora em Redes de Colaboração foi necessário identificar justamente esses elementos interconectados que sustentam o pensamento criativo coletivo, ou seja, elementos que encontraremos como base de configuração criativa no trabalho dos quatro artistas que compõem o grupo, na medida em que partem de discussões comuns para a produção de suas obras. Esse percurso investigativo nos levou a três principais Nós de Interação centrais à criação: 1- O processo de tradução do conteúdo literário; 2- A Fotografia Expandida; 3- A espacialização da imagem. Ao falarmos de processo de tradução é importante termos neste trabalho uma diferenciação clara, já que essa terminologia nos servirá para dois momentos. Em primeira instância, e como Nó de interação, esse processo de tradução se refere às apropriações de conteúdos literários feitas pelos integrantes do Grupo Caixa de Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini 29 Pandora para a construção de seus trabalhos em fotografia, vídeo, objeto e instalação. Em segunda instância a noção de tradução toma um sentido mais amplo ao dialogarmos com a semiótica Peirciana para compreendermos o processo de criação como essencialmente tradução de signos, como já anteriormente discutido. Esses dois âmbitos de tradução são, no entanto, complementares, já que procuramos compreender este processo de tradução do conteúdo literário como uma ação que perpassa todo o processo criativo do grupo. Esta tradução de conteúdos outros integra, veremos mais à frente, um dos principais fatores para a expansão da linguagem fotográfica e audiovisual nos trabalhos do Grupo Caixa de Pandora. Ao integrar a esse discurso a noção de Inacabamento, proporcionamos a edificação de uma das principais características da rede, a dinamicidade e mobilidade. Isso significa dizer que o processo criativo de um artista, ou os pontos de interação do processo de vários artistas, como em nosso objeto de análise, se encontram em constante mutação e continuidade, e que a criação é um contínuo de interconexões, ou seja, uma obra exposta acaba por ser apenas a materialização de um projeto poético maior que direciona o artista. Identificamos com maior clareza nos processos individuais de Orlando Maneschy e Cláudia Leão esse princípio de continuidade em um projeto artístico que permeia também as suas produções “fora” do grupo Caixa de Pandora. Orlando Maneschy nas exposições “Não” (1994) e “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996), e Cláudia Leão nas exposições “O rosto e os outros” (1995) e “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000) acabam por partir de alguns dos mesmos Nós de Interação que sustentam a Rede da Criação do processo colaborativo no Caixa de Pandora. É importante ressaltar que em função dessa continuidade das interações gerativas da rede, os trabalhos individuais desses dois integrantes acabam por compor também a rede de criação do grupo, na medida em que se torna dificultoso delimitar onde termina o processo do artista inserido coletivamente e onde começa a rede individual de criação. Cláudia Leão em entrevista concedida ao projeto discorre sobre essa perspectiva: [...] entendo que no meu caso eu utilizava materiais tanto para o meu trabalho quanto para as exposições (Caixa de Pandora), para mim não havia um limite, talvez por esse motivo a minha intenção nunca foi fazer um trabalho específico para ela (Pandora), sempre utilizei espelhos, vidros, as imagens borradas e com alterações nos processos químicos, nunca achei Maria Clara M Pardini Maria Clara M Pardini 30 esse limite. Na verdade para mim faço o meu trabalho, e não um trabalho específico para essa ou aquela exposição. Por exemplo, na pandora dos espelhos, que são três espelhos que estiveram na minha individual, eu vou utilizar esse três espelhos e retomar as imagens do Man Ray e fazer uma nova possibilidade para aquelas imagens. 4 Nos trabalhos individuais de Orlando Maneschy e Cláudia Leão visualizaremos o retorno de uma série de discussões e personagens que permeiam as exposições do Grupo Caixa de Pandora, como as personagens Faustine e Maria, que aparecem horas em exposições individuais, hora nas exposições em grupo. Falamos da construção de exposições que primam pela edificação de ambientes que são unificados a partir de uma linha temática única. No entanto, esse ambiente fundado no espaço da galeria não é matericamente unificado. O que conseguimos visualizar a partir da coleta de materiais foi a existência de trabalhos individuais que caminham para o que conhecemos hoje como instalação, mas que na época, ainda não eram entendidos como tais em âmbito local, com exceção da experiência realizada no ano de 2006 em Belém no Laboratório das Artes do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas. Discutiremos estes Nós de Interação no processo criativo do grupo levando em consideração a noção do Inacabamento como fundamental para compreender como a atuação coletiva interfere ou é na verdade um elemento que proporciona uma continuidade poética das relações estabelecidas nas produções expostas. Abaixo apresentamos um esquema conceitual de como estaria construído essa rede de criação do Grupo Caixa de Pandora a partir das obras produzidas pelos artistas para essas exposições e seus principais inquietamentos propulsores. 4 Entrevista concedida pela artista para a pesquisa em 14 de agosto de 2012 Maria Clara M Pardini 31 FIGURA 03: Simulação da Rede de criação do Grupo Caixa de Pandora. 32 CAPÍTULO 3 - PROCESSOS DE CRIAÇÃO NO CAMINHO DA TRADUÇÃO A primeira discussão pertinente aos processos criativos do grupo refere-se ao processo de Tradução Intersemiótica que perpassa toda a sua produção, principalmente em relação às traduções realizadas a partir do Mito de Pandora. Devemos ao autor Roman Jakobson (2007) a distinção e definição da Tradução Intersemiótica como um fenômeno, que consiste em transposições de um sistema sígnico para outro. Nesta direção, Julio Plaza publica o livro “Tradução Intersemiótica” (1987) e confere a este termo uma fundamentação e aprofundamento teórico mais especificamente aplicado às artes visuais, Para construir uma teorização acerca destes aspectos de tradução Júlio Plaza assim como Cecília Almeida Salles se vale dos estudos do semioticista Charles Sanders Peirce. Como essencialmente semiose, o processo de tradução intersemiótica está também ligado a uma transposição, mas nesse âmbito estamos falando especificamente de ações artísticas que partem de uma determinada linguagem para resultarem em outra enquanto objeto artístico. Da fotografia para o vídeo, do desenho para a escultura, da literatura para a fotografia, por exemplo. O autor delimita a tradução como leitura, metacriação: como ação sobre estruturas, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na historicidade. (PLAZA, 1987, p. 14). Plaza (1987) lança subsídios para pensarmos a tradução como um mecanismo muitas vezes indistinguível da criação, como processos que por meios diferentes podem produzir efeitos análogos. “Nessa medida, traduzir lato sensu, é uma operação metalingüística embutida na própria produção de linguagem (PLAZA, 1987, p. 27). Para a teoria da tradução intersemiótica a concepção de original é, portanto, um dado ineficiente, já que mesmo o conteúdo que poderia se pensar original é resultado de uma semiose que por sua vez surge de um processo indefinido de traduções. Nesse sentido a ideologia da fidelidade mostra-se metodologicamente também ineficiente para compreender a complexidade das ações de tradução. A diferença entre criação e tradução intersemiótica, se resume basicamente ao fato de 33 que existe uma escolha consciente de determinado signo a ser traduzido no processo de semiose, o que não ocorre necessariamente na criação de maneira mais abrangente. Plaza ainda nesta publicação estabelece uma relação com as três tipologias principais de signo instituídas por Peirce (ícone, índice e Símbolo) para a partir de suas características pensar também tipologias de tradução. O autor institui então a Tradução Icônica como aquela em que existe uma similaridade ou equivalência de estruturas com o objeto de tradução. Tradução Indicial como um contato transitório entre objeto traduzido e objeto tradutor, uma relação de proximidade que, no entanto, desajusta certas estruturas em comum. Por fim, a Tradução Simbólica, que opera a partir de metáforas, ações de caráter convencional. Essas tipologias em nossa concepção tocam em alguns momentos as categorias estudadas por Affonso Romanno de Santa’Anna em seu livro “Paródia, Paráfrase e Cia” (1988). Neste livro o autor parte dos estudos de Tynianov e Bakhtin acerca dos conceitos de paródia e estilização para então reconfigurá-los e incluir neste âmbito outras duas categorias, a paráfrase e a apropriação. Para Romanno de Sant’Anna essas quatro categorias aparecem em instâncias de intertextualidade (na utilização de textos de terceiros) e intratextualidade (na retomada de seus próprios textos e percursos), o que nos rememora a concepção de inacabamento da criação, proposta por Cecília Almeida Salles. Para fins de análise de conteúdos diversos, Romanno de Sant’Anna lança mão de algumas propostas metodológicas apresentadas no mesmo livro. Esses conceitos servem como suporte para tentarmos compreender os diálogos existentes entre objeto tradutor e objeto traduzido partindo, para isso, da noção básica de “desvio” como o fio condutor da instauração dessas quatro categorias em determinado repertório. A concepção de desvio nos aparece como uma medida da maneira como a tradução se distancia ou se aproxima do conteúdo traduzido, como reforça, reconstrói ou desconstrói este elemento poético. Para melhor compreensão desses modelos é importante entendermos que Tynianov e Bakhtin desenvolveram uma oposição entre paródia e estilização, em que a primeira existe numa discordância com o “original”, enquanto a estilização implica uma concordância de estruturas. Por discordar deste dualismo Romanno de Sant’Anna propõe em seu primeiro modelo que pensemos a estilização como uma técnica geral de “desvio”, ou 34 deslocamento conceitual de determinado conteúdo, tornando a paródia e agora a paráfrase efeitos particulares. Nesse sentido, a paródia configura-se como uma espécie de estilização negativa, que transgride o conteúdo traduzido, enquanto a paráfrase seria como uma estilização positiva, que segue e dialoga em consonância com a estrutura traduzida. Em um segundo modelo o autor apropria-se da concepção de desvio em nível mais restrito. Assim, em relação ao conteúdo objeto de tradução, a paráfrase aparece como um desvio mínimo da estrutura do conteúdo, a estilização como um desvio tolerável e a paródia no sentido de desvio total. Um terceiro modelo inclui uma categoria ainda não discutida, a apropriação, que se configura como a “radicalização da paródia (...), uma técnica que se opõe à paráfrase e diverge da estilização” (SANT’ANNA, 1988, p. 46). Este último modelo opera a partir das seguintes características: paráfrase e estilização como um conjunto de similaridades em que a paráfrase apresenta um desvio mínimo e a estilização um desvio tolerável. Já paródia e apropriação atuam no âmbito do conjunto das diferenças. Paródia como desvirtuadora do conteúdo e apropriação como uma radicalização da paródia. Para efeito de análise do nosso objeto de estudo optamos pela utilização do segundo modelo proposto por Romanno de Sant’Anna por dialogar com as características e níveis de tradução instituídos por Júlio Plaza. Vislumbramos nessa relação a paráfrase como tradução icônica, estilização como tradução indicial e a paródia como tradução simbólica. No que se refere aos processos de tradução, identificamos nas ações do grupo Caixa de Pandora a transposição do Mito de Pandora, um conteúdo literário, para obras visuais como fotografias e vídeos. Nesse sentido, os integrantes do grupo criam suas interpretações do Mito a partir de particularidades que lhe tocam invocadas pelas questões que a própria metáfora do mito discute, como memória, tempo, esquecimento, desaparecimento, inclusive nomeando o grupo. Pandora foi mitologicamente a responsável pela abertura da Caixa que continha todos os males do mundo, tais como as pragas, o despeito, a inveja e a vingança. A partir desta figura vimos surgir as Pandoras de Lata e Pandoras de Água (Flavya Mutran), Pandora de Vidro e Pandora de espelhos (Cláudia Leão), Pandora The Electronic Box (Mariano Klautau Filho) e a Pandora de Sangue (Orlando Maneschy). 35 Compreendemos as ações do Caixa de Pandora em dois principais processos, o da estilização e da paródia. Podemos entender, por exemplo, as Pandoras de Lata de Flavya Mutran perpassando pelo processo de estilização, na medida em que mantém uma similaridade com seu original, no que se refere, por exemplo, à representação da figura feminina e a utilização de objetos, caixas, que guardam estas imagens, fazendo clara alusão à caixa presente no mito. O objetivo de Flavya mutran, bem como de todos os outros integrantes do Caixa de Pandora, não é, no entanto tanto, primar por uma linearidade e regularidade de discurso no que se refere à narrativa do Mito de Pandora, mas buscar estabelecer um diálogo com os seus pontos chaves de modo a fazer emergir discussões de cunho onírico e de uma pessoalidade poética de interpretação do signo em personagens fictícios que não são a própria Pandora, mas sua reminiscência na consciência de cada artista. Figura 04: Pandoras de Lata (1993) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista Ao apresentar suas Pandoras Mutran lança mão do universo feminino e instaura um discurso de gênero, da potencialidade poética desta mulher que toma um rumo de descoberta em sua relação com o espaço, o olhar como metáfora do cuidado, a que guarda um segredo e o torna sua maior arma de manipulação de uma realidade. Os pontos entre fotografia e mito aqui se interconectam justamente nessas questões, como a vontade de guardar, o cuidado de si, o elemento que 36 metaforicamente abriga a mulher, abriga a possibilidade de vida, a caixa que conforma e tem a possibilidade de deformar no momento em que escapa de si própria. Figura 05: Pandoras de Lata (1994) Artista: Flavya Mutran Fonte: Acervo da artista Em outra direção, Orlando Maneschy ao apresentar sua Pandora de Sangue em 1995 acrescenta um dado de inquietação à interpretação do Mito, pois institui sua Pandora como uma figura masculina, caminhando para algo que compreendemos como localizado entre a estilização e a paródia, ou seja, um desvio abrupto que, no entanto, é tolerável às especificidades do original, e que embora traga novos dados, não chega a romper completamente. Como um dado de inquietação ao Mito, Maneschy propõe a existência de uma Pandora masculina em seu retrato coberto de sangue humano. Diferente de Flavya Mutran, o artista quer imbuir Pandora de uma aura mais que simplesmente feminina. Maneschy converte esta especificidade em uma generalização de gênero, opondo-se a Mutran. A imagem dessa figura masculina prensada em vidro e suja de sangue dialoga com um espaço de medo, em que velas acesas no chão vão ao longo da exposição derretendo e trazendo escuridão à imagem, uma metáfora do tempo como norteador de percursos. O espaço adquire um teor de ritual, de sacralização da imagem, uma Pandora que existe nas conexões entre fotografia e ambiente, no teor de discussão 37 da efemeridade da matéria, no sangue, na vela. Vislumbramos, portanto, conexões entre imagem e mito a partir de relações de concordância e discordância, na presença da figura masculina e na relação ritualística que envolve esta figura. Figura 06: Pandora de Sangue (1995) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista Figura 07: Pandora de Sangue–Detalhe (1995) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista 38 Maneschy também desdobra a personagem Pandora, ao apropriar-se de um auto-retrato de Cláudia Leão nessa mesma edição do projeto (1995), constituindo uma Pandora que parece anunciar o que viria a acontecer em seu espaço expositivo. Esta mesma obra apareceria na instalação Faustine, ou a cidade e os olhos (1996) como se possuísse uma identidade movente, fluida. Além do Mito de Pandora, os autores trabalham com outras relações de tradução do conteúdo literário e também de outras linguagens. Cláudia Leão insere uma imagem da personagem Maria, do clássico longa-metragem Metrópolis de Fritz Lang em sua Pandora de Vidro, como numa tentativa de aprisionar aquela realidade cinematográfica em sua base de produção, a fotografia, que a partir de manipulação incorpora uma estética do “sujo”, do excesso, uma grande lâmina de vidro que coberta por vários vidros côncavos e poeira dourada representa a própria ação do tempo em um trabalho direto de referência, o que poderíamos compreender como uma paráfrase. Em 1995, Mariano Klautau Filho apresenta o trabalho Pandora The Electronic Box, um desdobramento de Pandora The Eletronic Box de 1993, e traz a tonas referências estéticas à montagem e sequências cinematográficas e à linguagem dos quadrinhos, a partir da construção de personagens que atuavam na imagem fotográfica e eram também transfigurados para o trabalho em vídeo, além de inserir em meio às imagens fragmentos do poema “O Homem e sua Hora”, de Mário Faustino. Figura 08: Pandora de Vidro (1993) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo do artista 39 Nesta obra, Mariano Klautau Filho parece também aglutinar a concepção de paráfrase, por incluir diretamente a obra de Mário Faustino ao seu trabalho, bem como uma estilização ao propor uma narrativa viva, orgânica que viesse a apresentar e não representar o texto traduzido em imagens fotográficas de uma mulher que a partir de um processo de edição tornam-se vídeo, intercaladas por trechos do citado poema. No vídeo esta série de imagens apresenta um ensaio sobre a cidade, e a presença de uma mulher que percorre espaços com ar de nostalgia e busca de memórias. Figura 09: Pandora The Eletronic Box (1993) Artista: Mariano Klautau Filho Fonte: Acervo da artista Ainda nessa vertente de tradução, Orlando Maneschy na exposição “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) parte do livro “A invenção de Morel” de Adolf Bioy Casares para a materialização em fotografia da personagem principal do romance, Faustine, a qual Maneschy insere em uma perspectiva local de discussão de patrimônio, identidade, espaço, em que a imagem de Cláudia Leão assume o papel da mítica personagem. Segundo o próprio artista: 40 “Tempo e memória foram pontos de partida para este projeto fotográfico, onde os personagens que habitam meus sonhos e lembranças trilharam os caminhos de minha cidade imaginária, numa busca interior, onde o caminho possível para o encontro é a imagem” (MANESCHY, 1995) 5 O livro de Bioy Casares traz consigo um potencial discursivo acerca da imagem como linguagem, uma realidade existente na ilha onde a personagem Faustine é o resultado em imagem de uma máquina que capta os cinco sentidos do homem, perdurando-o imageticamente para a eternidade. Uma metáfora da ideia de que “não há seres humanos, mas imagens humanas. A vida é feita da matéria das imagens”, segundo Fernando Gerheim (2008). Figura 10: “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista 5 Texto retirado do folder de divulgação da exposição. 41 Figura 11: Fotografia da exposição “Faustine ou a Cidade e os Olhos” (1996) Artista: Orlando Maneschy Fonte: Acervo do artista Cláudia Leão também apresenta tais discussões na exposição “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000), em que faz alusão ao conto homônimo de Jorge Luis Borges e discute principalmente a fragilidade da matéria, a conservação do patrimônio e a questão do duplo, de forte presença na literatura de Borges e tão intrinsecamente relacionado à fotografia. Em um de seus documentos de processo, o dossiê da devida exposição, Cláudia Leão incorpora a própria fala de Borges em um jogo claro de intertextualidade: “... imaginar as estrelas, ao amanhecer, caem lentamente, como caem as folhas das árvores; isso, se fosse certo, mostraria que a imagem é frívola. A imagem que em um único homem pode formar é a que não toca ninguém. Infinitas coisas existem na terra; qualquer uma pode comparar-se a qualquer outra. Comparar estrelas com folhas não é compensação, ninguém nunca sentiu que o destino é forte e é rude, que é inocente e é também inumano. Para essa convicção, que pode ser passageira ou 42 contínua, mas que ninguém evita (...) o tempo, que despoja as fortalezas, enriquece os versos (...)” Jorge Luís Borges. 6 Borges traz à tona as relações com o próprio sentido de signo, metáforas introduzem o leitor em uma perspectiva de escolhas constantes realizadas pelo personagem para conduzir a narrativa, e destas relações parte Cláudia Leão para a construção de seu próprio labirinto de imagens e a discussão de um duplo que contempla o conteúdo literário e a produção imagética a partir da fotografia e da utilização do espelho e suas metáforas de duplicação como suporte artístico. Leão ainda em seu dossiê declara que: “Os personagens que construo e que formam está série, compõem um projeto de ambientação/instalação utilizando obras montadas em espelhos oxidados, vidros de janelas e projeções de slides. Criando uma atmosfera de sonhos sobrepostos interferidos por quem atravessa as imagens que refletem em espelhos e se soltam dos vidros fazendo caminhos de luz, tendo como resultado diálogos sobre um estranho território para a felicidade de alguns desejos que são inatingíveis, porque me parece que o passado resta nos olhos.” (LEÃO, 2000). 7 Orlando Maneschy chegou a se dedicar a análise dos trabalhos de Cláudia Leão e institui a saudade como uma palavra fundamental para compreender os percursos discursivos da artista. Para Maneschy tempo e saudade se articulam nas fotografias de Leão que atua como uma “semeadora de memórias possíveis” pondo em cheque situações de nostalgia, do tempo de uma cidade não vivida, mas refletida a partir de seus prédios, praças e personagens, um desejo do passado, a busca e a perda. 6 Texto retirado do memorial descritivo da exposição “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. 7 Texto retirado do memorial descritivo da exposição “O jardim dos caminhos que se bifurcam” 43 Figura 12: Instalação “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (2000) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista Figura 13: Fotografia integrante da instalação “O Jardim dos caminhos que se bifurcam” (2000) Artista: Cláudia Leão Fonte: Acervo da artista 44 No memorial descritivo deste projeto encontramos um dado interessante e que muito pode nos servir à compreensão de como as materialidades escolhidas por Cláudia Leão interferiram ou sofrem interferência dos mecanismos de tradução. A artista apresenta os dados necessários para a materialização da obra segundo o descrito abaixo: “No Laboratório Fotográfico trabalho um tempo para as minhas imagens, através da manipulação do filme – baixando a densidade sugerindo uma luz tênue; e suave deixada nas sombras – papel fungado. O resultado é que na cópia a imagem parece se perder junto com a memória. (...) Os personagens que construo e que formam esta série, compõem um projeto de ambientação/instalação utilizando obras montadas em espelhos oxidados, vidros de janelas e projeções de slides. Criando uma atmosfera de sonhos sobrepostos interferidos por quem atravessa entre as imagens que refletem em espelhos e se soltam dos vidros fazendo caminhos de luz, tendo como resultado diálogos sobre um estranho território para a felicidade, porque me parece que o passado resta nos olhos” (LEÃO, 2000). Ao trabalhar com a apropriação de imagens de família e subverter seus caracteres tradicionais de tempo, Cláudia Leão embute nestas um passado que elas não possuem. O labirinto proposto por Cláudia Leão, tal como Jorge Luís Borges em seu conto, se faz pela intermitência entre pequenos detalhes de narrativas que poderão nos levar a percursos diferenciados no que poderíamos classificar como uma estilização das discussões majoritárias que também se entremeiam a obra de Borges. Os casos aqui relatados consideram a tradução do conteúdo literário como o princípio mais imediato do processo de criação do Grupo Caixa de Pandora, o que nos leva a corroborar a existência deste mecanismo como essencial para as discussões que seguirão
Compartilhar