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EA D O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) 7 1. OBJETIVOS • Compreender a "autonomia" da pessoa humana situada na história. • Analisar a cultura, dom de Deus e vida do ser humano. • Interpretar o trabalho como fonte de dignidade humana. • Refletir sobre a ecologia humana. 2. CONTEÚDOS • Ser humano em sua autonomia. • História e historicidade do ser humano. • Cultura, dom de Deus e vida do ser humano. • Trabalho, fonte de dignidade humana. • Ecologia humana. © Antropologia Teológica200 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 1) Para um aprofundamento bíblico sobre o lugar e o papel do ser humano na criação, sugerimos as seguintes leitu- ras: Sl 104; Ex 33,11; Lv 25,2-7. Além disso, há o próprio ensino de Jesus (Mt 6,25s). 2) Sugerimos que você aprofunde a questão antropológica da ecologia ou da ecologia humana. Para isso, há muitas obras, especialmente os estudos de Leonardo Boff, tais como: 3) BOFF, L. Ecologia, grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995. 4) ______. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Emer- gência de um novo paradigma. São Paulo: Ática, 1993. 5) ______. Ethos mundial. Um consenso mínimo entre os seres humanos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. 6) ______. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta última unidade, você terá a oportunidade de adquirir diversos subsídios para poder refletir, de modo teológico, sobre o ser humano. Sem dúvida, você deve reconhecer a ampliação de seu modo de perceber e de analisar a pessoa humana, bem como sentir o amor de Deus por ela e valorizá-la para além de toda aparência, pois, assim, se passa a ter olhos de Deus, que vê a pessoa como sua criatura muito amada, a ponto de ele elevá-la à condição de filha e herdeira de Jesus. No entanto, agora, convidamos você a se debruçar sobre al- guns outros temas igualmente instigantes. Em outras palavras: é preciso fazer outro exercício intelectual, partindo da fé, para re- fletir sobre questões bem concretas do ser humano: a sua justa autonomia, o seu estar na história e o fato de ele ser portador de 201 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) uma cultura, de buscar sua dignificação por meio do trabalho e de corresponsabilizar-se pelas questões do meio ambiente e, de modo especial, pela ecologia humana. Ao final desta unidade, você encontrará nosso curso resu- mido em 16 afirmações. Será importante você mesmo conferi-las criticamente, pois já se deve sentir capaz de julgar o caminho feito. Aproveite bem esta unidade final, porque ela pode ser-lhe muito iluminadora. 5. O SER HUMANO EM SUA AUTONOMIA Vamos enfocar os temas desta unidade de modo holístico para permitir que você treine seus "voos teológicos pessoais". Em outras palavras, depois deste estudo, você terá uma preciosa "cha- ve teológica" para abordar outras questões do ponto de vista da Antropologia Teológica. Seria interessante que, outra vez, você comparasse as diferenças e as aproximações da Antropologia Teológica com a Antropologia Filosófica. Depois que a Igreja, no Ocidente, foi constituída como reli- gião oficial, passou a divulgar suas ideias ao lado do evangelho até criar uma consciência própria de cristandade. Nesse contexto his- tórico, o ser humano passou a ser sempre mais a criatura de Deus, a sempre referida de Deus. A modernidade criou outros critérios, que vão, progressiva- mente, tirando o ser humano da tutela de Deus. Emancipados da Igreja e de suas análises, muitos intelectuais passaram a interpre- tar o ser humano como suficiente por si mesmo, como um ser sem a necessária dependência, sobretudo, de alguém acima dele. O ser humano emancipou-se, tornou-se "adulto". © Antropologia Teológica202 O Concílio Vaticano II, na GS, compreendeu esse discurso e aceitou a autonomia do ser humano e das realidades terrestres, inclusive das sociedades. O universo – e, nele, o ser humano e as sociedades –, tem leis e valores próprios que devem ser admitidos e respeitados. Aliás, ao advogar o respeito pelas pesquisas e pelos seus métodos, a Igreja reconhece que essas realidades, no fundo, se originam de Deus mesmo. Mais ainda: Aquele que tenta perscrutar, com humildade e perseverança, os se- gredos das coisas, ainda que desta não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são. Portanto, seja nos permitido la- mentar algumas atitudes que não faltam às vezes entre os próprios cristãos, por não reconhecerem claramente a legítima autonomia das ciências (GS. 36). Sem dúvida, a autonomia dos homens e das coisas não pode sair da alçada de Deus para uma escravização dos detentores huma- nos dos fatores políticos, econômicos, sociais etc. A Antropologia Teológica procura estabelecer, de modo des- cendente, o significado e o valor do ser humano, referindo-se a Deus. Em contrapartida, com base em uma Antropologia Teológica ascendente, é reconhecido o direito da autonomia e da liberdade humanas; mas a Antropologia, ao proceder assim, recorda que, ao se esquecer de Deus, a vida horizontal do ser humano torna-se obscura e descentrada, capaz de levar tantos ao desespero e ao absurdo. Fundada na razão, a modernidade respeitou menos o ser humano ao promover a corrida armamentista e a instalação de determinados regimes econômicos e políticos. Além disso, ao in- tensificar a sede do lucro e a ânsia do poder, especialmente nos últimos séculos, muitas pessoas quiseram construir uma socieda- de sem levar em conta o ser humano. Um progresso embasado numa Antropologia apenas horizontal, infraterrena. Não que tal Antropologia seja, necessariamente, incorreta, mas pode ser in- 203 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) suficiente. Em contrapartida, uma proposta antropológica vertical (embasada em Deus) pode tornar-se ingênua e/ou dogmatista e opressora – e isso não está distante, inclusive, de Igrejas e de reli- giões atuais. Mesmo rápida, deve-se dar, aqui, uma palavra sobre a Antropolo- gia (horizontal) dos ateus. Eles não estão, necessariamente, erra- dos. Podem, isso sim, ter perspectivas incompletas por ignorarem a compreensão do ser humano de modo mais profundo. Alguns ateus e/ou indiferentes podem viver e pensar assim (de modo hori- zontal), como afirma a Igreja, muitas vezes, por culpa dos próprios cristãos. Sobre a Antropologia Teológica subjacente no massacre dos tutsis e dos palestinos, no holocausto nazista e no extermínio de povos do Camboja. Partindo de que Antropologia se pode enten- der a questão da realidade da inquisição e das guerras, inclusive as que ocorreram entre cristãos? O mesmo se pode perguntar diante de certas questões da biotecnologia (clonagens etc.) e dos salários mínimos. A bênção de Deus, no mito etiológico da criação (cf. Gn 1,28 ss), é o caminho de Deus para a responsabilidade e para a liber- dade (igual a autonomia humana). Se o definitivo jardim de Deus será "o novo céu e a nova terra" (Ap 21), o jardim do homem é o espaço em que ele mora, atua, cria e inventa. Atuar livre e res- ponsavelmente é o sinal da autonomia humana. Essa bênção do Senhor torna-se, na verdade, um mandato para a autonomia do homem. O ser humano assume seu jardim, e transforma-o à sua imagem. Enquanto o ser humano é "imago Dei", o mundo é "ima- go homini". Todo ser humano vive com um olho em Deus e com o outro no mundo. Reconhece o significado de Deus para sua vida, mas sabe de sua responsabilidade na construção do seu jardim. Você perceberá no desenvolvimento das próximas ideias que a primeira questão é a da história, enquanto a primeira ação © Antropologia Teológica204 humana é a questão da cultura. Depois, advirão outras questões, umas mais fundamentais que outras, como o trabalho, a constru- ção da história, o cuidado pela natureza, a inter-relação com os outros como construção da sociedade, as questões do amor, da festa, da pesquisa, enfim, do significado do ser humano no seu espaço de vida. Vamos abordar apenas alguns significados. Você mesmo po- derá e deverá desenvolver as outras, sejam elas citadas ou não, porque temos a certeza de que você já adquiriu instrumental e fontes para isso. 6. HISTÓRIA E HISTORICIDADE DO SER HUMANO Nossa perspectiva é, sem dúvida, a da Antropologia Teológi- ca. Não se trata, portanto, de uma simples leitura da vida. Nesse sentido, vejamos o conceito de história e historicidade: 1) História: é o contexto significativo e operativo em que se impõe a salvação revelada por Deus e crida pelos seres humanos. 2) Historicidade: é o modo humano de agir no presente, aberto para o futuro e condicionado pelo passado, den- tro da tensão e dos condicionamentos, bem como do sentido e da liberdade. Dentro da história da salvação, sabemos tanto de nossa origem coletiva e pessoal quan- to do nosso presente e futuro no plano de Deus. Convém, aqui, que você recorde algumas ideias anteriormente citadas: processualidade, perfectibilidade, destinação, esperança, liberdade e outras. Daí é um passo para se afirmar que: o sentido radical e últi- mo da história está no fim, na glória de Deus. A vida é construída de etapas, que mudam de acordo com as circunstâncias. A história é, então, o campo em que a pessoa humana atua na passagem do tempo para a eternidade. 205 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) O cristão transforma a sua vida em um tempo de peregrina- ção marcado por três ideias determinantes, a saber: • o tempo está assinalado pelas ações de Deus (cf. Sl 104; 27; Ecl 3,1-8); • é um tempo de salvação (cf. Dt 26,5-10; Js 24,2-13); • adquire uma dimensão escatológica. Deus, que tudo criou, mantém a sua obra e leva-a para a plenitude. Ademais, atua na história, agraciando e salvando o ser humano e o cosmo. Assim agindo, Deus não tira a autonomia da história cósmica e humana, pois, só na história, o ser humano: 1) pode ser livre; 2) encontra o sentido da própria vida; 3) entra em comunhão com Deus e com os irmãos; 4) encontra Deus encarnado; 5) estabelece comunhão concreta com a comunidade hu- mana; 6) pode aperfeiçoar-se. A história é o tempo salvífico no qual a humanidade e as pes- soas se humanizam, vivem a liberdade e tornam-se cocriadoras com Deus. O ser humano, o que faz a história e quem ele é feito por ela Diferenciamos, aqui, as palavras "história" e "historicidade" para indicar não a ciência histórica ou a historiografia. Nosso interesse deve voltar-se para a vida real do ser humano, situada espaço- -temporalmente, e para seu sentido. Lembre-se de, que como pessoa humana, você é um ser em construção e um construtor de sentidos. Em contrapartida, há uma história desde a hominização até a humanização do homo sapiens, a qual tem milhares de anos, quando se pensa na coletividade humana (o que você já estudou na Unidade 3). Contudo, a historicidade dos indivíduos é, também, comunitária. Possui um significado pessoal e social. Cada pessoa © Antropologia Teológica206 sintetiza em si o cosmo e a humanidade sem se fechar em si mes- ma, pois são suas relações que a confirmam exatamente como pessoa. A história de cada um tem um horizonte não apenas remoto, mas também próximo. Aí, incluem-se pais/avós, irmãos/filhos, paren- tes e coabitantes da localidade/cidade. Além disso, nessa história, incluem-se as situações socioeconômicas e culturais, as religiosas e educacionais, as laboriais e políticas etc. A historicidade de cada pessoa está marcada pelo presente, condicionada pelo passado e aberta para o futuro. A historicidade do ser humano Todo ser humano se sente situado no tempo entre o que passou e o que virá. É assim que percebe sua vida como dom de Deus. Ela não é propriedade autônoma sua; é um dom que se tor- na tarefa no espaço e no tempo. Perceber-se no tempo, para o cristão, é viver na alegria de ser criado e amado por Deus e de ser destinado à salvação no coração do próprio Deus. A experiência cristã orienta a vida presente para um futuro absoluto, nutrido por promessas divinas passadas. A vida é vivida na história num crescendo. O nosso futuro já vai existindo a modo de peregrinação ascendente, experimentado nas tensões históricas. Deus encarnado participou de nossa vida no tempo: encarnou e viveu fazendo o bem; crucificado, morreu por nós e foi ressuscitado. Tornou-se Senhor da História porque abriu o significado dela para além de todo projeto humano – sem Deus, só pode ser de uma vida horizontal. É na história que o ser humano vai definindo sua progressivi- dade "em idade, sabedoria e graça", como Jesus (Lc 2,52). Nela, vai descobrindo e decifrando (mais ou menos) os "sinais dos tempos" que Deus coloca. A história é o espaço da revelação de Deus e do homem. A revelação de Deus quer ser salvadora do ser humano. Enquanto 207 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) tempo do ser humano, ela é a concreta possibilidade de cada um e de todos, conjuntamente, afirmarem a singularidade, a subjeti- vidade e a reciprocidade humanas. Nela, o ser humano manifesta quem é e quem pode ser, sobretudo, ao situar, concretamente, toda a história humana – iluminada pela presença do Reino de Deus, suplicado como ensinou Jesus na oração do Pai-Nosso. É construindo-se no cotidiano da história que o ser humano se faz, por meio do trabalho, da família, da cultura, do lazer etc. É nela também que se busca fazer a vontade de Deus, como é feita no céu. Nela, busca-se santificar o nome de Deus nas realidades terrenas e humanas. Mas, nela, também o ser humano, o cuidador do jardim terrestre de Deu, pode agir transcendendo a temporali- dade da natureza e construindo a "temporalidade" que antecipa realidades futuras. Entre o trabalho e a livre decisão, o ser humano intervém no tempo e na história, como tarefa e como responsabili- dade, no lugar de Deus. Afinal, ele não é imagem de Deus? A historicidade constituiu uma dimensão específica dos seres humanos. O universo cósmico e os animais não têm a consciência dela. Só os seres humanos são capazes de perceber e de descrever sua dinâmica. Enquanto histórico, o ser humano vive essa aventu- ra, comum a todos, ao longo das gerações e participa de sua cons- trução rumo ao definitivo – que só se encontra em Deus. Se a transformação cósmica é um processo do dever físico- -químico, a história é feita pelos homens. Nessa história dos ho- mens, Deus faz incidir sua história de nossa salvação. Isso quer di- zer que a história é feita pelos homens e por Deus, que atua se não por ações indiretas, pois colocou nela suas sementes de fertilidade contínua sem a sua necessária intervenção constante e imediata. O resultado do dever histórico é a transformação da natureza pelo trabalho do ser humano, que chamamos natureza segunda. Eleva- da pelo homem como expressão de sua inteligência e liberdade, de sua criatividade do novo. O dever histórico [...] consiste na própria ação do homem, que retoma, reinterpreta e relança os resultados © Antropologia Teológica208 objetivos de sua ação, para o futuro, aberto sempre ao novo [...]. Assim, o devir histórico tem lugar na tensão dialética de continui- dade e a descontinuidade, entre o passado, o presente e o futuro (ALFARO, 1988, p. 257-258). Mais decisivo, porém, que o trabalho, é o próprio ser huma- no. Ele é o único capaz de unir o passado, o presente e o futuro, evitando um mero suceder-se do tempo e possibilitando, ainda, a antecipação do futuro. Na história, entretanto, a ação humana é constituída como uma rede de acontecimentos positivos e negativos. Em suma: en- tre ambiguidades. É grande o desenvolvimento humano no campo das ciências e da tecnologia, nos meios de comunicação e da cria- ção artística e na luta pelos direitos humanos. Ao lado do positivo desenvolvimento, não se pode esquecer a expansão bíblica capaz de destruir tudo e todos, a mecanização industrial (nova forma de escravidão), a fome, a favelização, a criminalidade etc. Na antecipação do futuro, é pelas atuais ações humanas que o ser humano transforma a natureza e a si mesmo. Se o ser huma- no, num passado remoto, foi um "gigante" capaz de vencer as in- tempéries da natureza e as adversidades das doenças, da fome, do frio e dos animais, a história deve ser continuada com a superação de tantas restrições econômicas, políticas, sociais e até humanas a que tantos homens e mulheres, por toda parte, ainda estão sub- metidos. Aí, a construção do futuro pertence à humanização de todos: o crescente fazer-se humano em suas diversas dimensões, a saber: orgânica, psíquica, moral, consciência e liberdade. Há, ainda, algumas variantes fundamentais que a Antropo- logia Teológica detecta. São elas: a esperança-esperante (ver para frente: o ser humano como ser de esperança), a questão escatoló- gica (caderno deste curso em semestres subsequentes) e a realiza- ção humana definitiva. O ser humano não constrói sozinho a história. A Antropo- logia Teológica não cessa afirmar a constante presença salvífica 209 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) de Deus. Por vezes, pode parecer que a história dos homens tem só uma dimensão horizontal, que não tem princípio nem fim. Ela pode ser entendida como um caos, um absurdo sem diretividade nenhuma. No entanto, para os que creem, Deus é o Senhor da His- tória. Ele acompanha o cosmo todo e, de modo especial, o ser hu- mano. Deus ama especialmente essa criatura, pois a revelou como a única criada à sua imagem e feita para ser seu "lugar-tenente", seu representante no universo cósmico. O amor divino revelou-se mais ainda quando enviou seu pró- prio Filho para que, sendo um de nós, fosse Deus – Deus conosco (Emanuel). Assim, a história e a historicidade dos homens são pervadi- das pela história salvífica de Deus. Tal história, revelada na Bíblia Sagrada, é um processo extensivo a todos os homens e mulheres da história, de todos os tempos e lugares. Afinal, todos somos fi- lhos e filhas de Deus, aos quais ele quer salvar sem exceção. Como histórico, o ser humano pode localizar-se em tempos e em espaços diversos. Todavia, esteja onde estiver, ele é alguém que ama e é amado, que sofre e participa de sofrimentos. Está vinculado a grupos sociais diversos. É aí que Deus o alcança e confirma sua filiação divina, bem como sua destinação eterna. É aí que Deus o agracia para que ele possa crescer e evoluir. É na história que ele se manifesta como um ser livre, aceitando ou rejeitando Deus. O tema "ser humano como ser de esperança" será abordado adiante, nesta mesma unidade. O seu dia a dia é um processo de libertação em pequenas e em grandes atitudes. Ao concretizar sua história, ele se torna (ou não) construtor de um mundo fraterno, que está comprometido com Deus e com a autonomia das realidades terrestres. O ser humano é um peregrino e um construtor do mundo. Seu empenho histórico está em colaborar no crescimento cósmico © Antropologia Teológica210 e humano de modo autônomo, sem se esquecer de que a sua con- tribuição é sempre algo que se soma ao plano de salvação. A história pessoal e da humanidade toda deve ser lida à luz da história da salvação, na qual Cristo é o centro. 7. CULTURA, DOM DE DEUS E VIDA DO SER HUMANO A historicidade humana concretiza-se na cultura. Deus cha- ma o ser humano para participar de sua obra criacional, e a pessoa "cultiva" o mundo à sua imagem. O mundo é o jardim do ser hu- mano, onde emprega suas forças para cultivá-lo. Cultivo e cultura têm a mesma raiz semântica. É exatamente nelas que Deus mos- tra, pela ação humana, a riqueza de seus dons. Assim, as culturas, que são obras humana, são, também, obras e dons de Deus. Você já pensou no que identifica a cultura humana? É o modo de viver, de agir, de pensar e de trabalhar que identifica a cultura humana por toda parte, a ponto de se dever falar de "culturas lo- cais". Ela é fruto da humanização e da espiritualização da natureza no processo da evolução. É uma das características básicas do des- pertar da consciência na natureza biológica. Ela se foi construindo no domínio da fabricação de pedras polidas e de instrumentos de caça, no culto aos mortos, nas pinturas rupestres, na domestica- ção de animais, no controle da fala, na drenagem dos pântanos, na construção de aquedutos e de pirâmides etc. Isso manifesta a vitória do humano sobre a animalidade. A salvação de Deus per- meia a cultura, e a ação humana não deixa de pertencer à história de sua salvação. Todo o comportamento humano está enquadrado nas cul- turas. Com base na crescente expansão do cérebro, na elaboração do pensamento abstrato e no incentivo à memória e à criativida- de, o ser humano atingiu os maiores patamares da evolução das espécies. Ele produziu culturas que, hoje, exprimem a essência dos povos. O inesperado passo evolutivo criou para a espécie huma- 211 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) na a possibilidade de interpretar (dar) o sentido do cosmo e de si mesma de modo crescente, até chegar à tecnologia de ponta na bioética, na nanotecnologia etc. A tecnologia, que é filha do processo cultural, distancia-se da cultura. Na primeira, expande-se o processo inteligente para fora do ser humano. Na segunda, busca-se a interiorização pelos valores. As grandes culturas são fundadas em valores fundamentais, nos quais vale o ser humano, primeiro dador de sentido ao cosmo. As culturas estão grávidas dos bens e dos dons divinos, como um prenúncio da vida "nos novos céus e nova terra" (Ap 21,1). É nas culturas que nas- cem as religiões, desde as primitivas até as reveladas. Os inúmeros vínculos das pessoas entre si e com o cosmo, as ciências e as tecnologias constituem-se em culturas que, nova- mente, incentivam a interdependência e abrem novos desafios. A cultura é a humanização do universo real e organizado pela cole- tividade humana. O ser humano torna-se um ser cultural a partir de sua integração comunitária, na qual recebe e oferece sua con- tribuição ao bem comum. Assim, a cultura (que não se confunde nem com a intelectualização nem com o estudo) é algo pessoal e universal. Tanto num nível quanto no outro, torna-se um instru- mento de libertação e crescimento humanos. A cultura não está isenta de ambiguidades. A sua inauten- ticidade está nos sinais de morte, quando se torna uma fonte de dominação e exploração. Podem estar em risco pessoas, grupos e até comunidades quando os valores culturais de uma ou de várias comunidades são desviados do bem comum, o que pode ser resul- tado de opressões econômicas, políticas, religiosas etc. O caráter escravizante de uma cultura aparece quando está em risco a pró- pria dignidade humana – de uma ou de várias pessoas. No sentido positivo, a cultura expressa-se em formas concre- tas no modo de organizar a sociedade e a família; de construir a ciência e o trabalho; de oportunizar a tranquilidade, o lazer e o lú- dico; de gerir conflitos; e de satisfazer anseios. No fundo, a cultura, © Antropologia Teológica212 que humaniza a pessoa e as comunidades, leva-as ao encontro dos bens e dos dons de Deus, colocados na história e orientados para a perfeição definitiva do ser humano. Pela cultura, o ser humano humaniza-se e constrói, com a graça de Deus, seu processo de aperfeiçoamento, que culmina em Deus. Normalmente, percebe-se a cultura apenas em sua dimen- são humana. Você poderia fazer um exercício teológico e perceber a presença ativa de Deus nas culturas. Para facilitar e iniciar esse exercício comece imaginando os elementos que trazem sinais de vida e de morte ao seu contexto familiar e de lazer. Há dons de Deus que não são percebidos como tais. A cul- tura é um deles. Convém lembrar-se de que é apenas em meio ao modo de ser e relacionar-se, de alegrar-se e brincar, de comer e beber, de valorizar e encantar-se, de trabalhar e produzir, de co- municar-se e criar que vive o ser humano. Todas essas atitudes são, por um lado, básicas na vida, mas, por outro lado, são vividas de modos diversos. Você tem, como princípio teológico, que tudo quanto existe e vive é dom de Deus. Tais dons originam-se e desenvolvem-se na história pela ação do homem, que os modifica e se sente modifi- cado por eles. Todo ser humano faz parte da grande e única famí- lia de Deus. Contudo, o fato de se viver neste ou naquele tempo e neste ou naquele lugar cria uma rica diversidade nos próprios modos de viver: no vestir, no comer, no festar, no rezar, no amar etc. ou, ainda, no modo de produzir, de inventar, de trabalhar, de educar, de plantar, de colher etc. A unidade da grande família dos povos – filhos e filhas de Deus – é perpassada pela grande variedade das culturas. Esses modos de viver, que são dons de Deus circunstanciados, são, tam- bém, produtos humanos. O ser humano é o cultivador de todas essas realidades; por isso, é imagem e semelhança de Deus. Ele interfere nelas, mas é igualmente passível de sua influência. 213 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) Desse modo, você deve perceber que a cultura não só molda os seres humanos, mas eles também são moldados por ela. A cul- tura torna-se, portanto, a glória dos homens de cada tempo e de cada região na diversidade dos dons distribuídos por Deus por meio de situa- ções diversas. Você deve se lembrar de que, ao início desse tema, afirmou-se que a cultura e o culto têm a mesma origem etimológica. Pois bem, sem deixar de ser a glória do homem, a cultura transforma-se, em última instância, em culto de glorificação a Deus. Gloriar-se de estar no mundo e de viver é um impulso que decorre de todo ser humano que projeta, que assume e que cons- trói a si mesmo e aos outros. Os inúmeros grupos históricos da humanidade intuíram isso e, com monumentos e símbolos, cânti- cos e danças, poesias e festas, glorificaram seus feitos (culturais). Passar disso à glória de Deus em forma de culto é algo imediato. Sem dúvida, você lembra que o culto religioso é, também, uma expressão cultural. Em síntese: a unidade dos povos nas diversidades culturais constitui a glória dos homens; frequentemente, é levada, em for- ma de culto, à glorificação de Deus A cultura somente se mantém porque está estabelecida com base em valores. Há valores básicos em todos os povos, os quais, ao viverem, querem evitar o mal e buscar o bem. Tais valores sur- gem no inconsciente dos povos e das pessoas; por isso, mantém- -se a coesão dos grupos. Na base das culturas, isto é, desse modo de viver, de pensar e de agir, há valores, os quais são sempre cir- cunstanciados, que vão dar significado à vida do grupo. Há muitas tentativas contemporâneas de se estabelecerem os valores humanos básicos universais para toda família humana. Há, porém, dificuldades de consenso exatamente pela riqueza que é a diversidade humana. A diferença deles e/ou sua ênfase signifi- cam que os modos de conceber a vida e de cultivá-la têm possibi- lidades diversas. © Antropologia Teológica214 Fundamentos teológicos da cultura Fundamentando-se na Antropologia Teológica, pode-se es- tabelecer, com base nessas ideias, um primeiro fundamento da cultura. Deus, desde o início, em todos os tempos e em todos os lugares, espalhou as chamadas "sementes do Verbo". A propósito, você sabe qual é o significado dessa expressão e quem é que a cunhou? Para saber mais, leia atentamente a dica a seguir. Essa expressão teológica, cunhada por São Justino (+165), quer expressar o amor de Deus, que dotou a família humana de valores críticos capazes de preparar os povos para a grande salvação, mesmo que eles não venham a conhecer, de modo explícito, a manifestação encarnada do Verbo, a qual conhecemos como Je- sus Cristo. Estabelecido o primeiro fundamento da cultura, que possui caráter teo-lógico, passemos ao segundo, de caráter cristo-lógico. Jesus fez-se um de nós e um conosco. Ele é Emanuel, quer dizer, é Deus conosco. Ao se encarnar, assumiu um corpo e uma realidade histórica concreta, tornando-se judeu na história e na cultura ju- daica. Dela, aprendeu seus valores, sua religiosidade, sua ética, seus costumes e suas tradições. Ademais, moldou sua vida centrada em Deus, a quem seu povo cultuava como "Deus único" e acompanha- va na história desde Abrão até o "pequeno resto de Israel". A expressão "pequeno resto de Israel" indica que não todo o povo, mas apenas alguns hebreus sempre foram fiéis à convoca- tória de Javé Deus, seja no tempo da liberdade cívica, sejam nos períodos de escravidão. Tende-se a aplicar a expressão mais apro- priadamente àqueles que, ao tempo de Jesus, esperavam a reali- zação das promessas divinas. Eram fiéis a Deus mesmo com recri- minações dos outros, e fiéis mantinham-se na observância da Lei. Desse grupo, destacam-se: Zacarias, Isabel e João Batista; Joaquim e Ana; Simeão e Ana; José e Maria; além de outros que esperavam a salvação. 215 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) Jesus assumiu os valores culturais de sua gente nas festas (como nas bodas de Caná), nos costumes de pôr-se à mesa como companheiro, na partilha do pão e, ainda, no acatamento aos ex- cluídos, aos doentes, aos estrangeiros, aos pobres, às viúvas e às crianças. Além disso, submeteu-se às leis do templo e foi teologi- camente contemplativo dos fatos e da natureza que o rodeavam. Foi profundamente religioso, mesmo sem ser funcionário ou com- prometido no templo. Sobretudo, penetrou a fundo no espírito da religiosidade de seu povo – mais que nas tradições que afastavam de Deus. Não aboliu a Lei e nem espiritualizou-a, sublimando-a; ao contrário, viveu dando-lhe pleno cumprimento. O princípio cristo-lógico decorrente pode ser anunciado as- sim: Jesus assume a cultura humana vivida concretamente por um povo para evidenciar as riquezas que a nutrem em sua profundi- dade maior. A cultura torna-se fonte, inclusive, de culto e de glória dos homens e de Deus. A fé cristã crê na ação do Espírito do Pai e do Filho entre nós. É papel principal do Espírito divino acompanhar o assemelhamen- to a Deus de cada pessoa e de todas as comunidades. Todavia, a ação do Espírito ao distribuir seus dons e seus carismas de modo algum supõe o abandono das realidades terrenas, salvo o mal e o pecado. É a partir da cotidianidade das pessoas no contexto cultural em que vivem que o Espírito as vai iluminando no caminho rumo a Deus. É importante lembrar-se, aqui, do que diz São João em sua primeira carta: "quem diz que ama a Deus e não ama seu irmão é mentiroso" (1 Jo 4,20). No processo de santificação, o Espírito não propõe, para a grande maioria dos fiéis, uma "fuga" do mundo. Antes, é com base nas realidades culturais (no povo) em que os fiéis estão inseridos que o Espírito move os corações. O mundo é o campo da atuação do Espírito. É partindo daí que ele ajuda os fiéis a buscarem a Deus e aos irmãos. É, também, fundamentado nesse mundo cultural © Antropologia Teológica216 que o Espírito atua para a renovação dos corações e do mundo. In- -habitando no coração dos homens e do mundo (cf. Rm 8,19-23), o Espírito ajuda a construir o Reino de Deus, tão solicitado pelos crentes quando estes rezam o Pai-nosso. O princípio pneumatológico decorrente da ação do Espírito pode ser anunciado da seguinte maneira: o Espírito trabalha o co- ração do homem e do mundo desde dentro, a fim de confirmar os dons de Deus na história e de encaminhar ambos para a definitiva cultura comunional da Trindade Santa. Ao mesmo tempo, ajuda os homens e as mulheres não apenas a transformarem a cultura em sua glória, mas, sobretudo, a transformá-la em culto de adoração e de louvor a Deus. 8. TRABALHO, FONTE DE DIGNIDADE HUMANA O trabalho e o trabalhador O trabalho é filho da cultura, da necessidade e do prazer (realização pessoal). Ele é a forma mais básica e radical, nos tem- pos presentes, de identificação social de uma pessoa. Pelo traba- lho, o ser humano apresenta-se socialmente em tudo quanto ele é. No trabalho, transparece sua identidade como ser de relações, como criador de sentido, como ser de esperança e livre e, ainda, como portador das graças de Deus – das quais a ênfase funda- mental está em ser chamado à vida como imagem e filho de Deus, destinado à glória divina. A existência humana realiza-se mediante o trabalho, que de- pende da cultura e que é, ao mesmo tempo, sua base. Ele é, simul- taneamente, a raiz da satisfação básica das necessidades humanas e a fonte da integração psicossocial. O trabalho, seja ele manual ou intelectual, torna-se a fonte mediadora na construção de uma sociedade fraterna, de justiça e 217 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) de dignificação. É isso porque é capaz de investir espiritualmente na natureza e na sociedade. Ao mesmo tempo, ele é o instrumento de espiritualização da natureza e da sociedade, em que o ser hu- mano evidencia seu ser semelhante a Deus. O próprio espírito se desenvolve por meio deste investimento, porquanto descobre cada vez mais ampla e conscientemente sua capacidade de conhecer, querer, planejar e realizar. Também a ma- téria se desenvolve pelo investimento do espírito não só porque sua utilidade em relação ao homem se torna mais qualificada. Mas também por que ela mesma se espiritualiza, cada vez mais por este investimento, se humaniza, desenvolve racionalmente suas poten- cialidades, é inserida ao domínio humano e com isto mais se asse- melha ao espírito (DAVID, 1980, p. 213). A sociedade torna-se mais justa e fraterna pelo trabalho, cujo resultado se transforma em um bem comum, como a autos- sustentação, a subsidiariedade e o aperfeiçoamento coletivo. O espírito laborial mesmo desenvolve-se porque exige a interação, obriga a união e a colaboração, incentiva a sociabilidade e produz um patrimônio comum. Trabalhar para si, para os outros e com os outros é desen- volver-se, é aperfeiçoar a si mesmo e, também, a coletividade humana. Por ele, conquista-se a autonomia e a independência da natureza. Ao mesmo tempo, dá-se historicidade ao plano divino. Ele comporta um sentido escatológico, pois, como diz o Apocalipse (14,13): "suas obras o seguem". "O trabalho santifica tanto ao que trabalha como a quem recebe seus frutos. Ele nos faz participar da obra do Filho, que trabalha também como Pai" (cf. Jo 8,17). Por fim, é preciso lembrar que o trabalho é, em muitas situa- ções, a ocasião do pecado, da escravidão e da morte. A exploração do trabalhador, o subemprego, os baixos salários, o desenvolvi- mento predatório da natureza e o seu desperdício são a "dia-boli- zação" dele. Tanto o dano à natureza quanto a exploração humana são ações anti-humanas que destroem e negam o significado últi- mo do trabalho. A coisificação do trabalhador e as injustiças a que ele é submetido indicam o grau de desumanização do dador de © Antropologia Teológica218 trabalho, que, por sua vez, é fruidor do trabalho dos outros. Fun- damentados em tudo o que foi dito até aqui, é importante fazer uma observação. Acompanhe-a e aprofunde seus conhecimentos. O trabalho exige solidariedade e compromisso com a cons- trução da sociedade humana no presente e no futuro. É graças à espiritualização da matéria e à humanização pelo trabalho que a pessoa humana se torna mais semelhante a Deus. Assim, ela pode- rá participar de sua glória em Cristo Jesus – aquele que trabalhou com mãos humanas. O Vaticano II, na GS nº. 34-35.37-39, apresenta o valor teoló- gico da atividade humana. Aqui, você tem um resumo disso. Veja-o a seguir: 1) Corresponde ao plano de Deus desde a criação. Ao ser humano, compete o trabalho de cuidar da Terra e do que ela contém, governando o mundo na justiça e na santi- dade. Tudo quanto é obtido pelo trabalho serve para a glória de Deus. 2) Jesus – aquele que trabalhou com mãos humanas (cf. GS 22a) –, pela sua cruz e pela sua ressurreição, é a fonte da superação da atividade humana corrompida pelo pe- cado. 3) Com o trabalho, contribui-se na construção da família, no sustento da vida cotidiana, no desenvolvimento dos interesses sociais e na execução do plano divino na his- tória. 4) O trabalho está em função do ser humano e de seu pró- prio aperfeiçoamento. 5) É a possibilidade de se alcançar maior justiça, mais am- pla fraternidade e uma organização mais humana nas relações sociais para além do valor do progresso técnico. 6) Com esse ministério, prepara-se a matéria para o reino celeste ou prepara-se "o novo céu e a nova terra" (1Pd 3,13). 7) Dado que o nosso mundo, nem sempre, é lugar da fra- ternidade justa e verdadeira, o trabalho que prioriza in- teresses próprios ou o lucro em vez do bem de todos 219 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) pode transformar-se em fonte de exploração do irmão, em soberba e em amor desordenado de si. 8) O desemprego e a falta de trabalho humilham o ser hu- mano, sobretudo, por fazê-lo perder sua identidade so- cial. Ao mesmo tempo, o não querer trabalhar é negar a própria realização e destruir a solidariedade da família humana. São Paulo já prevenia as suas comunidades: "quem não quiser trabalhar, também não coma" (às ex- pensas da comunidade) (2Ts 3,10). 9. ECOLOGIA HUMANA A Antropologia Teológica tem uma palavra a dizer sobre a responsabilidade humana diante do mundo e da questão ambien- tal. Ela é uma criação e um dom de Deus. Não só em São Francisco de Assis, mas também no livro de Daniel (3,36ss), encontramos um belíssimo louvor das criaturas todas ao Senhor que denota o compromisso humano com a criação/natureza. O cosmo todo, em sua longa história e evolução, é um pre- sente que as gerações têm em suas mãos. Moralmente, devem entregá-lo melhor e mais espiritualizado às gerações vindouras. O cuidado pelo meio ambiente e pela Terra toda exige o empenho antropológico e ético. A criação é uma obra de Deus que também aguarda sua redenção (cf. Rm 8,20-21) e sua renovação (cf. 1Pd 3,13; Ap 21,1). Nela, o ser humano, além de filho e irmão, não pode exercer seu senhorio senão como servo da criação – que inclui os animais, as águas e os ares. Em 1991, vários organismos internacionais projetaram nove princípios para a sustentabilidade do planeta que merecem a con- sideração e o apreço da Antropologia Ecológica. São eles: 1) construir uma sociedade sustentável; 2) respeitar e cuidar das comunidades dos seres vivos; © Antropologia Teológica220 3) melhorar a qualidade de vida humana; 4) conservar a vitalidade e a diversidade do planeta terra; 5) permanecer nos limites da capacidade de suporte do planeta terra; 6) modificar atitudes e práticas pessoais; 7) permitir que as comunidades cuidem de seu próprio meio-ambiente; 8) gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvi- mento e conservação; 9) constituir uma aliança global ( cf. BOFF, 1988, p. 134). Quatro temas bíblicos embasam a reflexão antropológica so- bre a ecologia, a saber: 1) Ao ser humano, é confiada a natureza toda para que ele cuide (domine) dela no lugar de Deus. 2) O ser humano é, também, membro da comunidade da criação. Não está à parte. Partilha da mesma origem e natureza da obra criacional, mesmo que seja o único portador da "ruah" divina. A criação é uma realidade téo-cêntrica. Ela existe para Deus. O Salmo 148 e o Ap 5,13 indicam corretamente que o dom de Deus dado ao ser humano é devolvido a ele em forma de louvor e adoração. d) A esperança da salvação estende-se a toda a criação, não apenas ao ser humano. Ela também será salva (cf. Rm 8,20-21; 1Pd 3,13; Ap 21,1). A Teologia do Catecismo da Igreja Católica ainda acrescenta o seguinte: 1) A criação é o começo e o fundamento de todas as obras de Deus (198). 2) A criação, feita do nada, não é uma emanação da subs- tância divina (296). 3) Ela se origina e participa da bondade de Deus, que viu que tudo quanto fizera era bom e, até, muito bom (296). 4) Deus transcende a criação e, ao mesmo tempo, está pre- sente nela. Ele a mantém e a sustenta (300/1). 221 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) Santo Agostinho comenta: "Sim, tu amas tudo o que criaste não te aborreces com nada do que fizeste, se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito. E como poderia subsistir alguma coisa, se não a tivesses querido? Como conservaria sua existência se não a tivesse chamado? Mas, a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigos da vida" (AGOSTINHO, 1997 apud CATECISMO DA IGREJA CATOLICA, 301). Apresentemos mais algumas ideias teológicas contemporâ- neas: 1) Deus quis fazer que as criaturas participassem de sua sa- bedoria e de sua obra. 2) Destinou a Terra e tudo quanto ela contém ao cuidado do ser humano, porque ele é sua imagem e será o res- ponsável por ela. 3) Compreender a criação ajuda-nos a compreender nossa vocação e nosso valor. 4) Contemplá-la é um estímulo a reconhecer o amor do Criador. 5) A natureza não está pronta, acabada, nem é perfeita. A mão de Deus dirige-a, mas, ao ser humano, compete fazê-la crescer e progredir. Nisso, também está a aliança de Deus com o homem e com o próprio cosmo. Daí, po- de-se afirmar que: o homem é "imago Dei" e o universo é "imago homini". 6) O ser humano é, também, filho e irmão da natureza; 7) Além disso, "finalmente, nós acreditamos que Deus criou todas as coisas com sabedoria e amor. Fez o ser humano à sua imagem e semelhança e lhe confiou o uni- verso, a fim de que servindo seu Criador, como um in- tendente fiel, ele reine sobre a criação [...]. Aos homens e às mulheres é confiada a harmonia da criação visível, o justo relacionamento dos indivíduos entre si, entre os indivíduos e a sociedade, entre a sociedade e o desen- volvimento integral da natureza criada. [...] O significado verdadeiro e último da ação criadora é, pois, a harmonia entre os seres animados e inanimados; harmonia confia- © Antropologia Teológica222 da à responsabilidade do ser humano para a maior gló- ria de Deus" (PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ apud FILIPPI, 1990, p. 202 e 204). O ser humano só tem uma casa: seu planeta. Ele próprio é um ser cósmico; é "poeira do universo". É o responsável histórico por sua casa e, portanto, tem o compromisso de entregá-la mais aperfeiçoada às gerações vindouras. O dever de empenho pela vida do planeta encontra-se dentro si mesmo. O ser humano deve levar em conta, também, a ternura, o cuidado, a compaixão e a responsabilidade pelo ecossistema. Neste último tópico, você se debruçou sobre três questões: a his- tória, a cultura e o trabalho. Nossa intenção foi situar o ser huma- no com base nesses elementos globalizantes, nos quais ele pode colocar toda a sua capacidade e corresponsabilidade na história em que vive. Nela, ele descobre e produz, pela(s) cultura(s), o modo de viver e de agir para humanizar-se crescentemente. Pelo trabalho, que é filho da cultura e da necessidade, é capaz de apro- fundar seu ser humano, de espiritualizar a matéria ao modificá-la em prol da coletividade e de colaborar, escatologicamente, com o progresso da criação rumo à perfeição final. Um tema particular chama a atenção nesses tempos: o respeito e o cuidado pelo meio ambiente – donde, inclusive, somos filhos. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) O ser humano normalmente fala sobre (e exige sua) liberdade. O domínio de Deus sobre o ser humano seria a teonomia. Como justificar a "autonomia". 2) Justifique a seguinte afirmação: "É na história que o ser humano vai definin- do sua progressividade "em idade, sabedoria e graça", como Jesus (Lc 2,52). Nela, vai descobrindo e decifrando (mais ou menos) os "sinais dos tempos" que Deus coloca". 3) Comente a seguinte afirmação, dando ênfase ao sentido teológico: "A uni- dade dos povos nas diversidades culturais constitui a glória dos homens; frequentemente, é levada, em forma de culto, à glorificação de Deus". 223 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) 4) Quais os argumentos que devem constar numa teologia do trabalho? 5) A ecologia teológica é um tema novo entre nós. Como caracterizá-la? 6) A partir do esquema conceitual a seguir, procure elaborar uma síntese da Unidade 7. AUTONOMIA HUMANA (e as realidades terrestres) A construção do mundo TEONOMIA (Leis de Deus) Cultura, Dom de Deus e vida do ser humano História e historicidade do ser humano O desenvolvimento técnico e científico O retrocesso humano O cultivo (cuidado) do mundo Humanização Ciência e tecnologia Ecologia humana Ciência e tecnologia Trabalho, fonte de dignidade humana Co-criador com Deus Fonte de identificação Fonte de realização pessoal Fonte de construção da fraternidade humana Fonte de Justiça Possibilidade de escravização Meio ambiente + criação de Deus e do ser Humano 9 princípios de sustentabilidade 4 princípios de antropologia bíblica Princípios do Catecismo da Igreja Católica Princípios teológicos para a ecologia humana MUNDO = IMAGO HOMINIS 11. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, você foi convidado a refletir sobre questões fundamentais do ser humano, tais como: a autonomia humana, a história e a historicidade do ser humano, a cultura, o trabalho e a questão ecológica. © Antropologia Teológica224 O processo de aperfeiçoamento humano só acontece na his- tória da salvação – que é ação de Deus –, mas a pessoa humana vive-o no seu modo de agir e de decidir, de esperar e de realizar suas obras. Ao historicizar sua vida, o ser humano cria a cultura, composta de bens e dons divinos, como imagem de si mesmo. A cultura humana revela o apreço humano por si, pelo cosmo e pelo próprio Deus. O trabalho, como mais básico filho da cultura, asse- melha mais ainda o ser humano a Deus. Afinal, não é ele a imagem de Deus? Pelo trabalho, o ser humano humaniza-se, constrói a frater- nidade e espiritualiza a matéria. Um empenho particular do tra- balho humano está no cuidado com o meio ambiente. Essa nossa única casa é um bem precioso que legaremos aos nossos filhos. Nossa responsabilidade é cuidar dela. 12. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos ao fim deste Caderno de Referência de Conteúdo, mas não ao final dos questionamentos. Por um lado, o dever está cumprido; por outro, fica uma ponta de insatisfação por não po- dermos enfocar muitos outros temas, os quais não são só relevan- tes, mas são também existenciais desde a Antropologia Teológica ou Cristológica. Esperamos que, com certos critérios aqui estabelecidos, você possa ter a oportunidade de continuar estudando e de fazer um caminho teológico próprio, inclusive de Antropologia. Por isso, não se esqueça dos grandes pressupostos antropológicos sugeri- dos como essenciais a um conhecedor deste estudo. Eles podem ser resumidos em 16 teses. Veja: 1) A Antropologia Teológica ou Cristológica é a reflexão cristã bíblico-sistemática sobre o ser humano. Ela leva em conta a revelação (normatividade dada pela Bíblia Sagrada), as contribuições filosóficas, as experiências de vida e a perspectiva escatológica da destinação final. Ela 225 Claretiano - Centro Universitário © U7 - O Ser Humano em Sua Autonomia (Antropologia Descendente) tem uma palavra particular à luz da fé diante de todos os outros "logos". 2) O Concílio Vaticano II, sobretudo pela GS, renovou os es- tudos da Antropologia Teológica, imprimindo neles uma direção cristológica. 3) Só Jesus Cristo revela verdadeiramente o ser humano ao próprio ser humano. 4) Todo ser humano é criado em Cristo e é, nele, feito ir- mão e filho de Deus. 5) Todo ser humano é imagem e semelhança de Deus, a exemplo do Verbo encarnado. 6) Por Cristo e por ele, fomos feitos "criaturas novas". 7) Temos uma vocação transcendente: realizar-nos em Deus como sua glória. 8) Desde dentro da história da salvação, somos chamados a realizar a fraternidade comum. 9) Fomos criados livre, gratuita e pessoalmente por Deus, mesmo tendo consciência do grande processo de evolu- ção contado pelas ciências naturais. 10) A dignidade ímpar do ser humano provém da própria na- tureza humana e, especialmente, de Deus. 11) Nós nos identificamos pelos nossos corpos. É essa reali- dade misteriosa que é caminho de Deus e do ser huma- no. 12) O ser humano vive porque Deus o agracia constitutiva- mente com a vida em todas as fases de sua história. 13) Ele é um ser de esperança e livre, porque Deus o fez para a liberdade. Deu-lhe, inclusive, a liberdade de pôr- -se "contra" Deus pelo pecado, o que o marca desde o início. 14) No mundo, o ser humano tem realidade e au- tonomia próprias. 14) Como imagem de Deus, o ser humano é cocriador e "guardador" do planeta em que vive. 15) A Antropologia Teológica, por fim, faz-nos ver o apreço de Deus por essa criatura, amada por si mesma, a ponto de o Verbo ter querido fazer-se um de nós para levar-nos a Deus. © Antropologia Teológica226 Finalmente, esperamos que esta reflexão sobre a Antropolo- gia Cristológica tenha entusiasmado e ajudado você a prestar mais atenção (teológica) no ser humano, essa criatura tão especial e única que pode dizer e crer com certeza: Deus, tu me amas desde toda e a eternidade e sempre me amarás. 13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BINGEMER, M. C.; FELLER, V. G. Deus-amor: a graça que habita em nós. São Paulo: Paulinas; Valencia (Esp): Siquém, 2003. COMBLIN, J. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998. FRANÇA MIRANDA, M. A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004. PRETTO, H. A teologia tem algo a dizer a respeito do ser humano? São Paulo: Paulus, 2003. QUEIRUGA, A. T. Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da experiência cristã. São Paulo: Paulus, 1999.
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