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EA D Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões 5 1. OBJETIVOS • Compreender o significado do ecumenismo e do diálogo inter-religioso a partir dos referenciais de cada tradição. • Entender a conexão entre a sabedoria de cada tradição e a perspectiva ecológica contemporânea. • Conhecer delineamentos da sabedoria de algumas tradi- ções na compreensão do ser humano e da ética. 2. CONTEÚDOS • Natureza e religiões. • Parâmetros para o bem comum da humanidade e de toda a criação. • Contribuição das religiões. • Reencantamento da criação nas tradições religiosas. • Dignidade humana e ética nas religiões. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso164 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Antes de começar a Unidade 5, faça uma revisão das uni- dades anteriores. Tenha em mente o caminho percorri- do, desde as concepções de diálogo e fundamentalismo, até chegar ao diálogo ad-intra do cristianismo e ao di- álogo inter-religioso, com suas inúmeras possibilidades. 2) Lembre-se que o processo de diálogo entre as religiões possui um passado e, ao mesmo tempo, uma emergên- cia e intensidade nas últimas décadas. 3) Leve também em consideração que os estudos nesta área estão em curso e que se desenvolvem enquanto a humanidade vive o desafio de uma mutação sem prece- dentes. 4) Tome, pois, os melhores instrumentos bibliográficos e a melhor disposição para um saber conectado, para uma compreensão mais holística, para uma sabedoria despi- da de preconceitos e aberta à contribuição de todas as tradições religiosas. 5) Consulte alguns livros da bibliografia indicada, a fim de ampliar seus horizontes teóricos. Compare outras pro- duções com este material didático e debata com seus colegas e tutor os temas estudados. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Como pudemos ver nas unidades anteriores, há esforços por unir as religiões ao redor de acontecimentos importantes, a partir dos quais são produzidos documentos relevantes sobre uma diver- sidade de temas significativos para a humanidade. Aos poucos, vai se delineando uma viva consciência de que Deus se manifesta na diversidade das tradições religiosas. Desse modo, a pretensão de exclusividade sobre a revelação divina vai se enfraquecendo. Abandona-se aos poucos a arrogância de que- 165 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões rer controlar a dinâmica de gratuidade generosa de Deus, que é sempre maior, infinitude inabarcável, sempre mistério. A Federa- ção das Conferências Episcopais da Ásia (FABC), desde sua primei- ra Assembleia em Taiwan, em 1974, reconheceu que os muitos caminhos impenetráveis das tradições religiosas não devem ser combatidos, mas acolhidos, pois não são simples obra da dinâmica humana, mas respostas ao encontro com o mistério de Deus ou a realidade última. (Cf. SEDOC 33, 2000, p.45) São muitos os documentos históricos que temos em mãos a favor do diálogo inter-religioso. Podemos, pois, retesar o arco e lançar as flechas do futuro. Os textos são sinalizadores, mas eles não se bastam. Os encontros nas conjunturas históricas apontam para uma busca sempre inacabada. Trata-se de desentranhar, das profundezas dos povos, a imensa sabedoria que traz a água pura, a água da vida capaz de regenerar a humanidade superando todas as pretensões de supremacia e afirmando, na humildade, as sintonias e a complementariedade em direção ao mistério dos mistérios. Podemos procurar expressões dessa busca de encontro em Francisco de Assis, Ibn'Arabi, Tereza de Calcutá, Albert Schweitzer, Thomas Merton, Dalai Lama, Ernesto Cardenal, Charles de Fou- cauld, Mahatma Gandhi, Louis Massignon, Henri Le Saux, Raimond Panikkar e tantos outros. Na profundidade, perde o sentido a defe- sa de um único itinerário para emergir a graça de Deus que trans- borda em muitos caminhos. É o que vemos em expressões como a de Ibn'Arabi: "As mais diversas crenças em Deus têm as pessoas. Mas eu as professo to- das: creio em todas as crenças". (IBN´ARABI, 2004, p. 24). Ou como a de Guimarães Rosa: Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Apro- veito de todas. Bebo água de todo rio Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. [...] Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Estremeço. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo (ROSA, 1986, p.8-9). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso166 De um lado, sabemos que não podemos seguir todos os ca- minhos e, de outro, aprendemos que não podemos condenar os caminhos que não conhecemos. Se conhecemos muitas histórias de atravessamentos desastrosos, com a destruição de caminhos dos outros, vivemos também travessias atentas e ternas que nos contam sobre a beleza de encontros profundos, por vezes inefá- veis. Em direção à profundidade, as visões vão se clareando. Na superfície, os embates: no Deus que me pertence, encontro ca- minhos abertos para a intolerância no excesso de afirmação de minha identidade contra a dos outros. Na profundidade, o encon- tro: no Deus que nos lança para o outro, abrem-se caminhos em direção ao infinito da alteridade. 5. A CRIAÇÃO ESTÁ EM PERIGO O mundo está super-habitado pelos seres humanos. Isto pode ser benéfico para o cuidado com todas as outras formas de existir, como também pode ser um desastre. Cada ser que habita a Terra lhe traz riscos e possibilidades. O equilíbrio do planeta, inclusive na questão climática, está liga- do à biodiversidade relacional que cria o aconchego necessário a todas as vidas. Todas as interconexões entre a atmosfera, o sol, as geleiras, os mares, os rios, as florestas, os animais, as bactérias, os astros, criaram uma temperatura média acolhedora, por volta de 14,5ºC, e as condições propícias para uma infinidade de vidas. Nos últimos anos, as pesquisas internacionais indicam um aumento da temperatura que começa a causar alarme. Confor- me o 4º Relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), de 2007, elaborado pelo PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), da ONU, estamos 1ºC acima do equilíbrio de milênios e, no ritmo atual, chegaremos a 2,4ºC nos próximos 40 anos: 167 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões A concentração de dióxido de carbono, de gás metano e de óxido nitroso na atmosfera global tem aumentado marcadamente como resultado de atividades humanas desde de 1750, e agora já ultra- passou em muito os valores da pré-industrialização determinados através de núcleos de gelo que estendem por centenas de anos. O aumento global da concentração de dióxido de carbono ocorre principalmente devido ao uso de combustível fóssil e a mudança no uso do solo, enquanto o aumento da concentração de gás me- tano e de óxido nitroso ocorre principalmente devido à agricultura (IPCC/ONU, 2007). Uma pesquisa da NASA mostra que, entre 2003 e 2008, 2 bilhões de toneladas de gelo do Ártico, Groenlândia e Alasca, der- reteram. Chile e Peru assistem ao degelo da Cordilheira dos Andes. O mesmo acontece nas montanhas do Kênia e Tanzânia. (GUERRA, 2010, p.9-11). As matrizes energéticas, o desmatamento, as intervenções nos rios, o luxo delirante, a sociedade do espetáculo, o fascínio da urbanização ultramoderna, a expansão agrícola com as mono- culturas do agronegócio, são faces de um mesmo processo de de- senvolvimento suicida cheio de mentiras e autoenganos, como diz Dominique Voynet: [...] vivemos uma ficção: sabemos, mas não acreditamos que sa- bemos. A negação da realidade é parte e parcela doprodutivismo: para continuar esbanjando os recursos do mundo, precisamos de um mecanismo de negação e ignorância intencional [...] Esse me- canismo não é totalmente efetivo individual ou globalmente: ele gera ansiedade e agressividade ou, pelo contrário, a necessidade de reafirmação mais ou menos cega, como a oferecida pelo pro- gresso tecnológico ou pelo crescimento, com todos os paradoxos aí envolvidos (CNBB, 2010, p.38). A injustiça humana se torna uma injúria contra a Terra e a exploração devastadora do planeta se torna injustiça para a comu- nidade humana. Participam da perversa ficção tanto as grandes empresas econômico-financeiras, que priorizam os interesses de seus investimentos e consideram muito dispendiosa a sustenta- bilidade do planeta, como os governos que se corrompem ou são fragilizados pelo poder econômico, assim como os próprios traba- lhadores cuja condição de insegurança não lhes permite pôr em risco os postos de trabalho (Cf. CNBB, 2010, p.38). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso168 A Carta da Terra, documento elaborado com muitas contri- buições do mundo inteiro e apresentado na Eco 92, expõe o alerta necessário para os impactos do atual modelo de desenvolvimento econômico na sustentabilidade planetária e da comunidade hu- mana: Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extin- ção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefí- cios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamen- te e o fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causa de grande sofrimento (BOFF, 2002, p.148). A inquietude diante da devastação do planeta nos coloca diante da percepção de ruptura que a sociedade moderna fez com a natureza. Nós, modernos (demasiadamente modernos), nos sen- timos separados do 'resto' da criação. Desde René Descartes, o ser pensante que somos se separa metodicamente de toda a realida- de para examiná-la de fora e tirar dela toda sua aura sagrada. Assim, a modernidade criou um pensamento que, no seu substrato, traz o mito do progresso ilimitado que autoriza toda a exploração, junto com uma reificação utilitarista e um antropocen- trismo arrogante. No desenrolar da história, com toda a ciência e tecnologia despidas do encantamento reverencial, o mundo da natureza vai se tornando uma coisa à disposição do ser humano. Nos tempos mais recentes, à medida que nossas percepções ficam mais claras, a crise desse modelo se faz sentir com o esgotamento de fontes naturais de vida, com a poluição do ar, dos rios, dos ma- res, das terras, com o lixo industrial e tóxico, com a destruição da biodiversidade, com a contaminação da natureza. Neste contexto o coração da humanidade se inquieta, pois: Somos originários do cosmos, da natureza, da vida; mas devido à própria humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa cons- ciência, tornamo-nos estranhos a estes cosmos, que nos parece secretamente íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fa- zem-nos conhecer o mundo físico e distanciam-nos dele. O próprio fato de considerar racional e cientificamente o universo, nos sepa- 169 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões ra dele. Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste 'além' que tem lugar a plenitude da humanidade (MORIN, 2002, p.51). A inauguração de um tempo histórico novo, de novos cami- nhos, está nas mãos de todos os seres humanos e fundamental- mente no coração, nos ritos, na ética, nos gestos das religiões. Convocação ao cuidado com o planeta Diz a Carta da Terra: As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis. A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida. São necessárias mu- danças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos de vida. [...] Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes. Para realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal [...]. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortaleci- do quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida, e com humildade o lugar que ocupa o ser humano na natureza (In: BOFF, 2002, p.149). Para forjar soluções não bastam a ciência e a tecnologia. Um novo espírito solidário com toda a criação pode despertar a cria- tividade e desencadear as energias escondidas na humanidade a serviço da comunidade de vida no planeta. É aqui que a ecologia pode ser um ponto de encontro das religiões, pois há um novo paradigma que conclama a diversidade das contribuições capazes de enfrentar a gravidade da situação planetária. A necessidade de produzir novos modos de viver e conviver no mundo passa por reservas de sentido que estão guardadas na ancestralidade dos povos, nos segredos dos inúmeros caminhos espirituais da huma- nidade. Há uma responsabilidade global de defesa do ser humano e da Terra que pode desencadear o melhor de cada tradição religio- sa para, no compartilhamento, transformar em vida os tormentos © Missiologia e Diálogo Inter-religioso170 da fome, da exclusão, da miséria, da devastação, do abuso de po- der contra as fragilidades da criação. Uma causa comum, uma casa comum, o cuidado com a co- munidade de vida no planeta: tudo isso pode convocar as religiões a deixar seus redutos defensivos e assumir a defesa da criação. Há que buscar nas ancestralidades, por vezes esquecidas, as inspira- ções para uma nova atitude comunitária face à natureza. Podemos lembrar aqui a afirmação do cacique Seattle, da tribo Suquamish, em 1855: Seja o que for que aconteça aos animais e plantas, acontecerá tam- bém ao homem. Todas as coisas estão ligadas. O que suceder à ter- ra sucederá também com os filhos da terra [...] Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse. E com toda a tua força, o teu poder e todo teu co- ração, conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, e esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum (UFPA, 2012). De todas as partes do mundo surge um clamor para esta nova atitude de reverência e brota a expectativa de novas rela- ções, novos pactos e novas atitudes que sejam redentoras dos es- tragos feitos até o momento. Dor e esperança estão na carta de Paulo aos Romanos: A criação foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança de ela também ser liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos interior- mente, suspirando pela redenção do nosso corpo (Rm 8, 20-23). No caminho para a inauguração de um novo tempo (ape- sar dos perigos), está a Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, cujos relatores são Leonardo Boff (Brasil) e Miguel d'Escoto (Nicarágua). Este documento dialoga com a De- claração Universal dos Direitos Humanos e acolhe os anseios mais profundos da comunidade humana neste novo século. 171 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontrodas Religiões –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Leia a seguir algumas informações sobre os redatores da Declaração Universal do Bem Comum da Terra. Leonardo Boff, formado na tradição franciscana, teólogo, criador, juntamente com Gustavo Gutiérrez e outros, da Teologia da Libertação, dedica-se a uma espiritualidade de mudança para o paradigma ecológico, razão pela qual recebeu o Nobel alternativo em 2001. Integra a Comissão da “Carta da Terra”. Juntamente com Sergio Torres, é um dos inspiradores do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Miguel d’Escoto Brockmann, nicaraguense nascido em Los Angeles, membro da Congregação de Maryknoll, engajou-se na revolução sandinista da Nicarágua, tornando-se diplomata e ministro de governo. Foi eleito presidente da Assembleia das Nações Unidas para o período de setembro 2008 a setembro 2009. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Alguns parágrafos da Declaração se referem direta ou tan- gencialmente às religiões: Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Considerando que todos os seres humanos, com suas culturas, línguas, tradições, religiões, artes e visões de mundo, constituem a única família de irmãos e irmãs com dignidade igual e direitos iguais e que a Mãe-Terra providenciou tudo de que necessitamos para viver e que a vida natural e humana depende de uma biosfera saudável, com todos os ecossistemas sustentáveis, com água, matas, animais e incontáveis micro-organismos preservados, e, além disso, que o crescente aquecimento global pode colocar em risco a vitalidade e integridade do sistema Terra e que podem ocorrer graves devastações, afetando milhões e milhões de pessoas, e eventualmente inviabilizar a sobrevivência de toda a espécie humana. [...] Considerando, finalmente, que a consciência da gravidade da situação crítica da Terra e da Humanidade torna imprescindíveis mudanças nas mentes e nos corações, como o sublinha com ênfase a Carta da Terra, e que se forje uma coalizão de forças em torno de valores comuns e princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético e estímulo para práticas que busquem um modo sustentável de viver. As pessoas, as instituições, a iniciativa da Carta da Terra, os líderes políticos, as ONGs, as religiões e igrejas que subscrevem esta Declaração veem a urgência de que se proclame a presente Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, cujos ideais e critérios devem orientar os povos, as nações e todos os cidadãos em suas práticas coletivas, comunitárias e pessoais e nos processos educacionais para que o Bem Comum seja progressivamente reconhecido, respeitado, observado, assumido e promovido universalmente com vistas ao bem viver de cada um e de todos os habitantes deste pequeno planeta azul-branco, nosso Lar Comum. [...] Artigo 10 – O grande Bem Comum da Terra e da Humanidade são os seres humanos, homens e mulheres, portadores de dignidade, consciência, inteligência, amor, solidariedade e responsabilidade. I. É preciso afirmar a dignidade inerente a todos os seres humanos e seu potencial intelectual, artístico, ético e espiritual. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso172 II. A missão dos seres humanos é cuidar e proteger a Terra e a Humanidade como heranças recebidas do universo. III. As comunidades em todos os níveis têm a obrigação de garantir a realização dos direitos e das liberdades fundamentais, criando as condições para que cada pessoa realizar seu pleno potencial e contribuir para o Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade. (...) Artigo 14 – Pertencem ao Bem Comum da Humanidade e da Mãe Terra a multiplicidade das culturas e línguas, os diferentes povos, os monumentos, as artes, a música, as ciências, as técnicas, as filosofias, a sabedoria popular, as tradições éticas, os caminhos espirituais e as religiões. (...) Artigo 19 – Pertence ao Bem Comum da Humanidade a comensalidade que expressa o sonho ancestral de todos os povos de sentar-se juntos, como irmãos e irmãs da mesma família, ao redor da mesa, comendo e bebendo alegremente dos frutos da generosidade da Mãe Terra. Artigo 20 – Pertence ao Bem Comum da Humanidade a compaixão com todos os que sofrem na natureza e na sociedade, aliviando seus sofrimentos e impedindo todo tipo de crueldade contra os animais. Artigo 21– Pertencem ao Bem Comum da Humanidade os princípios éticos de respeito por todo ser, do cuidado da natureza e da responsabilidade universal pela preservação da biodiversidade e pela continuidade do projeto planetário humano e os princípios de cooperação e solidariedade de todos com todos partindo dos mais necessitados, para que todos sejam incluídos na mesma Casa Comum. Artigo 22 – Pertence ao Bem Comum da Mãe-Terra e da Humanidade a busca permanente da paz que resulta da relação correta consigo mesmo, de todos com todos, com a natureza, com a vida, com a sociedade nacional e internacional e com o grande Todo do qual fazemos parte. Artigo 23 – Pertence ao Bem Comum da Humanidade e da Mãe-Terra a convicção de que uma Energia amorosa subjaz a todo o universo, sustenta cada um dos seres e pode ser invocada, acolhida e venerada. Artigo 24 – Todos estes ideais e critérios do Bem Comum da Mãe-Terra e da Humanidade prolongam e reforçam os princípios e valores da Carta da Terra e os direitos humanos contidos na Declaração dos Direitos do Homem proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia da ONU, gerando a esperança de uma biocivilização em harmonia consigo mesma, cheia de cuidado para com a Mãe Terra, fundamentada no espírito de cooperação, irmandade universal e amor incondicional [...] (apud SUSIN, 2010, p. 31ss). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Por que chamar as tradições religiosas para conversar sobre o futuro do planeta? Não bastam as ciências para ajustar o cami- nho da humanidade e da Terra? Com os cientistas, mas contra sua pretensão de autossuficiência, Boff afirma: Os cientistas nos dizem que todo universo é suportado por quatro energias, quatro forças: a gravitacional (que atrai todos os seres), a eletromagnética (que faz as combinações químicas), a nuclear fraca (que mantém o átomo com seus elétrons) e a nuclear forte (que 173 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões faz a irradiação, a luminosidade do inteiro universo). Nós somos unidos por essas energias. O ser humano pergunta: O que havia antes do big-bang? Não era o nada porque do nada não vem nada. O que havia antes era o mistério, o inefável. Era aquele transfundo de energia que os cientistas chamam de vácuo quântico, mas não tem nada de vácuo. Ele é pleno de energia donde tudo sai e para onde tudo volta. Essa energia está atrás de cada ser e nos faz viver, respirar, amar. Essa energia tem as características que as religiões atribuem à fonte originária de todo ser, que é Deus. A palavra en- tusiasmo na sua filologia significa ter um Deus dentro. A vocação humana é brilhar, irradiar porque esse é o desígnio do universo e o propósito do Criador. (BOFF, 2011). Assim, na imensa sabedoria dos povos, expressa imemorial- mente em rituais, mitos, e referenciais éticos, podemos encontrar nova oxigenação espiritual para uma humanidade que desliza em direção ao abismo. Contribuição das religiões O que há de sintonia entre a atual sensibilidade ecológica e as tradições religiosas ancestrais é o fato de captarem a realidade na sua interconexão mais fundamental. A ecologia é uma forma de captar a natureza em seus pontos de encontro e não em suas separações, é um modo de conceber a vida humana na sua rede de interações mútuas, na conexão com o cosmos, com a matéria, com os influxos do ar, da água, do calor, das montanhas, do beija-flor, da semente, e da infinidadede expe- riências relacionais. E, além disso, compreende que nenhum dos processos relacionais tem sentido separadamente, pois há sempre interconexões, interpenetrações, interdependências na maioria das vezes imperceptíveis. Tudo o que existe coexiste. Tudo o que coexiste preexiste. E tudo o que coexiste e preexiste subsiste através de uma teia infindável de relações inclusivas. Tudo se acha em relação. Fora da relação nada existe (BOFF. 1996, p.19). A religião, na sua gênese mais profunda, é a expressão pri- meira dessa busca de conexão. O ser humano é a criatura que mais © Missiologia e Diálogo Inter-religioso174 se esqueceu de sua fundamental ligação com o cosmo. Por isso foi criando símbolos da lembrança, sinais, ritos e narrativas para retomar as ligações perdidas. [...] a re-ligião nos permite identificar o elo perdido. Re-ligar todas as coisas e todas as experiências. Re-ligar todos os eventos cósmi- cos para constituir uma cadeia coerente. Re-ligar todas as etapas da cosmogênese e da antropogênese para dar unidade ao processo evolucionário. Re-ligar o mundo ao eu, o eu empírico ao eu pro- fundo, à sociedade, à história, ao universo e, por fim, re-ligar tudo, tudo à sua origem secreta, Deus. Deus empapa tudo, penetra tudo, anima tudo, re-liga tudo. Tudo está em Deus e Deus está em tudo (panenteísmo, diferente de panteísmo que diz erroneamente: tudo é Deus, Deus é tudo) (BOFF, 2001, p.157). Na grande aventura histórica, com todos seus percalços, cada tradição religiosa guardou uma semente de que precisamos para o replantio dos sonhos, para restaurar a criação, para rejuntar o que está quebrado, para as ações benfazejas necessárias no planeta. Sem a pretensão de completude, sinalizamos aqui alguns traços de tradições religiosas que são indicadores dos muitos caminhos para a tessitura de novas possibilidades ecoteológicas. Em grande marcha global pela salvação do mundo, podemos apontar algumas contribuições dos inúmeros povos e tradições existentes: 1) Os Guarani trazem a Terra Sem Males (Yvý Marane'y) como horizonte de toda sua relação com a natureza, com a humanidade e com o Mistério Divino, consideran- do cada ser humano uma palavra divina. 2) Os Zapoteca trazem a perspectiva de fazer de toda a ter- ra (Guidxilayú) uma casa digna da humanidade inteira em plena harmonia. 3) Os Quéchua trazem a profunda relação com a Mãe-Terra (Pachamama) como manifestação fecunda da dádiva de Deus e a ligação com os antepassados na compreensão do mistério da vida. 4) Os Aimara trazem o universo cheio de vida, as relações com montanhas, planaltos e vales intermináveis, o ca- 175 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões rinho com todos os seres e, especialmente, com o mo- mento do nascimento. 5) Os Maias trazem uma dimensão cósmica da vida, aten- tos à respiração dos astros e construção da felicidade sustentável aqui na terra, buscando harmonia pessoal, na família, na comunidade e no cosmo. 6) Os Raramuri trazem a consciência da fragilidade e a de- cidida recusa à contaminação pela violência de defesa preventiva, enquanto fazem da festa o bem mais precio- so. 7) O Hinduísmo traz o princípio da não violência – que Gan- dhi levou às últimas consequências –, o respeito profun- do por todas as formas de vida e o conhecimento aberto ao infinito. 8) O Budismo traz o princípio da compaixão, a prática das ações virtuosas, a busca do estado de plena iluminação na simplicidade da vida e a afirmação da paz. 9) O Islã traz a prática da misericórdia, o esforço de vida regrada, a irmandade dos humanos com a natureza co- mum, o reconhecimento das dádivas do Criador. 10) O Judaísmo traz a experiência nômade do deserto com a busca da terra prometida, a afirmação do direito e da justiça direcionados ao órfão, à viúva e ao estrangeiro, e o descanso da terra, com o perdão das dívidas. 11) O Cristianismo traz o amor ao inimigo, a ética das bem- -aventuranças, a gratuidade das aves e dos lírios do cam- po, a atenção à criança e a todo fragilizado, a promoção da justiça e da paz. 12) O Candomblé traz a reverência a cada planta e a cada criatura, a retidão dos caminhos, a sabedoria comparti- lhada e o respeito pelo outro, especialmente pelos mais velhos. 13) O Espiritismo traz um convite à coerência entre fé e vida, uma caridade amorosa e gratuita e a insistência no de- senvolvimento moral da pessoa e da sociedade, além de um respeito grande às religiões. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso176 O caminho da compaixão, a ligação criatural entre os huma- nos e todas as formas de vida, o reconhecimento do dom divino, a sabedoria ancestral, a gratuidade, a veneração, a ética, são rique- zas que poderão tecer fraternura e sororidade, amplas e profun- das, com toda a criação. Os traços aqui anotados apontam para os caminhos dos po- vos que poderão se unir, sem se anular, em um abraço simbólico e fecundante de sentido para o futuro do planeta. Desenvolveremos, ao longo desta unidade, alguns dos as- pectos aqui sinalizados. Se você conhece alguém de alguma destas tradições citadas, ou de outra aqui não anotada, amplie estas in- dicações. As riquezas guardadas no coração das tradições religiosas, porém, não emergem automaticamente. Há que fazer um discer- nimento e assumir tarefas no contexto histórico em que a huma- nidade vive. Conforme propõe Marcial Maçaneiro (2011, p. 151- 152), existem muitas possibilidades para que a contribuição de cada tradição seja desencadeadora de vivências cuidadoras do planeta. Anotamos algumas aqui: 1) Fazer uma leitura ecológica de suas próprias fontes: nar- rativas ancestrais, textos sacros, símbolos, ritos, teologia e mística. 2) Explicitar sua mitologia/teologia da criação, discernindo o lugar e o papel do ser humano na Terra. 3) Propor virtudes ecológicas para a conduta individual e coletiva. 4) Oferecer elementos hermenêuticos, pedagógicos e mo- tivacionais para o saber e a prática ecológicos. 5) Favorecer espaços de discussão e busca comum de so- luções para problemas ecológicos locais: fóruns, painéis, assembleias, simpósios, grupos de debate etc. 6) Contribuir para a consolidação da justiça ambiental, es- pecialmente em relação aos pobres e excluídos. 177 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões 7) Promover a educação ambiental em todos os níveis de sua organização: meios de comunicação, escolas, igre- jas, mesquitas, templos, sinagogas, mosteiros, hospitais, centros culturais, universidades etc. 8) Participar do diálogo inter-religioso em vista de uma agenda ecológica conjunta. Temas eco-religiosos Aqui, vamos acompanhar a indicações de alguns povos em cada temática que abordaremos. Vamos caminhar pelas veredas da admiração com a criação e da afirmação da dignidade humana. Vamos seguir, de mãos dadas, as comunidades indígenas, as gran- des religiões e as tradições africanas. Buscaremos aqui indicações que se afiguram como contri- buição relevante para o diálogo e para a ecologia. Trata-se de um primeiro acesso a uma Ecoteologia inter-religiosa, dimensão im- portante do diálogo inter-religioso. Alguns fragmentos dos textos e dos referenciais simbólicos das religiões serão disponibilizados, apenas como pontos de partida para sinalizar os horizontes irredu- tíveis de tradições milenares. Partilhamos da convicção de que as religiões podem revisitar sua tradição para oferecer à comunidade humana as melhores ri- quezas que possui. É o que Giuseppe Barbaglio afirma: Nessa operação, alguns dados serão modificados, outros enrique- cidos com as contribuiçõesde culturas diferentes, outros ainda serão oferecidos em sua integridade às outras religiões. Nenhuma religião pode renunciar a essa tarefa universal [...]. Elas poderão exercer a sua missão somente com a condição de que saibam viver uma fidelidade nova. Isto é, com a condição de que acolham os estímulos da própria tradição, mas ao mesmo tempo exige que ela seja superada na modalidade com que foi acolhida e compreendia até este momento. (in CANTONE, 1995, p.544) Vejamos agora alguns temas comuns a muitas tradições re- ligiosas, com suas características diferenciadas e possibilidades de interfluxo seminal. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso178 6. REENCANTAMENTO DA CRIAÇÃO As tradições religiosas lidaram sempre com experiências ori- ginárias, guardadas na memória, no corpo e na cultura, das múl- tiplas expressões do cosmos: o voo do beijaflor e o raio do sol, a imensidão do mar e a simplicidade da gota d’água, a magnitude da montanha e o pequeno igarapé, o fugidio do fogo e a permanência da rocha. E os povos se encantaram com o arco-íris, com a lua, com as chuvas, a neve, o granizo e os ventos, com os pássaros e gafa- nhotos, com os peixes pequenos e grandes, com a água, as flores- tas e as areias do deserto (Cf. Eclo. 43). Em tudo, há vivências sim- bólicas inoculadas nos povos. Um novo modo de habitar o mundo com olhar poético, estético, com escuta atenta, com o pacto de aliança com o Todo, será, como diz Faustino Teixeira, "uma nova forma de instalação no mundo, marcada pela 'delicadeza espiritu- al', pela simpatia, cortesia e retomada do senso da maravilha" (In OLIVEIRA, 2009, p.212). O maravilhamento e o reencantamento do mundo brotam de experiências do cotidiano, mas ganham nas religiões densidade simbólica, conforme afirma Maçaneiro: Infinitude, devir, renovação, potência, encanto e transcendência serão impressos na psique profunda, desenhando arquétipos uni- versais. Os objetos e lugares em que tais experiências foram vivi- das são demarcados como “espaço sagrado” (locus sacer). Fontes, rochedos, montanhas, arco-íris, constelações e subterrâneos se transformam em acesso para o Divino, trazendo a eternidade para dentro do tempo e o infinito para dentro do finito. São janelas de transcendência que se abrem, nos céus e na terra. Esses lugares ir- radiam poder e inspiram reverência, porque são "casa da divindade e portal celeste" (Gn28,17) (MAÇANEIRO, 2011, p.128). No âmbito das tradições religiosas, a natureza não é vista apenas na sua utilidade mercantil que hoje ganha ares de supre- macia. A visão religiosa também não despreza a natureza para, as- sim, se aproximar do Absoluto. É na criação que se reconhece a manifestação do Sagrado. Isso acontece, por exemplo, na tradição de muitos povos indígenas: o encontro com Deus inclui necessa- 179 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões riamente a relação com toda a criação, como captou Dom Pedro Casaldáliga na Missa da Terra sem Males: Eu adorava Deus, Maíra em toda coisa [...] A vida era meu culto, a dança era meu culto, a terra era meu culto, a morte era meu culto, eu era um culto vivo! Eu tinha uma cultura de milênios antiga como o sol, como os montes e rios da grande Llakta Mama. Eu plantava os filhos e as palavras. Eu plantava o milho e a mandioca. Eu cantava com a língua das flautas. Eu dançava, vestido de luar, enfeitado de pássaros e palmas. Eu era a cultura em harmonia com a Mãe Natureza. Eu era a Paz comigo e com a Terra. Eu conhecia o ouro, o diamante, a prata, a nobre madeira das matas, mas eram para mim os enfeites sagrados do corpo da Terra Mãe. Eu respeitava a Natureza como se respeita a própria esposa (CASALDALIGA, 2000, p.19-21). Na tradição judaica Os salmos são um documento bastante extenso da expres- são de encanto diante das maravilhas da criação. Grande parte © Missiologia e Diálogo Inter-religioso180 dessa poesia religiosa traz o cosmos todo em sintonia com a histó- ria humana na presença de Deus. A atitude de admiração está bem expressa no salmo 8: Iahweh, Senhor nosso, quão poderoso é teu nome em toda a terra! Ele divulga tua majestade sobre o céu. Pela boca das crianças e bebês. [...] Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste, [...] ovelhas e bois, todos eles, e as feras do campo também; a ave do céu e os peixes do oceano que percorrem as sendas dos mares. Iahweh, Senhor nosso, quão poderoso é teu nome em toda a terra (Sl 8). Junto com a admiração, a oração judaica dos salmos traz o louvor, como nos hinos do final do saltério: Louvai a Iahweh no céu, Louvai-o nas alturas [...] Louvai-o, sol e lua, Louvai-o, astros todos de luz, Louvai-o, céus dos céus e águas acima dos céus! Louvem o nome de Iahweh pois ele mandou e foram criados; fixou-os eternamente, para sempre, deu-lhes uma lei que jamais passará. Louvai a Iahweh na terra, monstros marinhos e abismos todos raio e granizo, neve e bruma, e furacão cumpridor de sua palavra; montes e todas as colinas, 181 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões árvore frutífera e todos os cedros, fera selvagem e o gado todo, réptil e pássaro que voa [...] (Sl 148). No Salmo 19 reflete-se sobre o reconhecimento encantado com a criação, que, plena de beleza, prescinde da palavra humana para revelar a incomensuravel grandeza de Deus. Os céus narram a glória de Deus e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia entrega a mensagem ao outro dia, e a noite a faz conhecer a outra noite. Não há termos, não há palavras, Nenhuma voz que deles se ouça; E por toda a terra a sua linha aparece E até aos confins do mundo a sua linguagem (Sl 19,2-5). Na tradição cristã Há um encantamento diante da beleza criativa de Deus, que tudo sustenta (Cf. Cl 1,17), tudo realiza: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3), e tudo transforma, fazendo novas todas as coisas, criando novos céus e nova terra (Cf. Ap 21,3- 5). Nos ensinamentos de Jesus, o ambiente metafórico é todo permeado da natureza. As parábolas refletem uma intimidade com a natureza habitada pelo encontro encantando do ser huma- no com a criação: Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. [...] Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em todo o seu esplendor, se vestiu como um deles. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso182 Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existe hoje e ama- nhã será lançada ao forno, não fará ele muito mais por vós, homens fracos na fé? [...] (Mt 6, 25-34). A teologia de Paulo dá uma dimensão cósmica à sensibilida- de criatural e relacional manifesta nos Evangelhos. Jesus, o Cristo, Verbo de Deus, aparece, no Novo Testamento, reunindo em si toda a criação, dando sentido divino a todos os seres: Ele é a Imagem do Deus invisível, Primogênito de toda a criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, no céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste. Ele é a Cabeça da igreja, que é o seu Corpo. Ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos, (tendo em tudo a primazia), pois nele aprove a Deus fazer habitar toda Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus. (Cl 1,15-20). A Carta aos Romanos traz o anseio de toda a criação pela re- tomadado valor divino que lhe foi subtraído pelas relações de vo- racidade e dominação que desvirtuam a obra de Deus. Esta visão ganha tons escatológicos e apocalípticos anunciando "novos céus e nova terra, onde habitará a justiça" (2Pd 3,10-13). Existe aqui uma sintonia radical e uma responsabilidade en- cantada com a natureza que se unem a um anseio de reconciliação universal, a uma sacramentalidade fundamental que, no Cristia- nismo, será vivida de modo radical por Francisco de Assis. No seu Cântico das Criaturas, ele expressa como se configurou em seu co- ração o desejo de Jesus de Nazaré e a teologia de Paulo: todo o universo reconciliado. Fez-se dia em sua noite escura. Sentiu-se no Reino de Deus que é o símbolo da total reconciliação, da superação de todas as contra- 183 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões dições e a máxima realização do ser humano com o cosmos e com Deus. Levantou-se. Pôs-se a meditar um pouco e entoou o hino a todas as criaturas: Altissimu, omnipotente, bom Signore [...] Chama os irmãos e com eles canta o hino recém-composto. Este cântico de luz surgiu no meio de uma noite escura do corpo e da alma. Emergiu das profundezas de uma existência que foi se erguendo, sofrida e atribulada, como um botão que busca, insaciável, no meio da mata escura, luz do sol (BOFF, 1982, p. 58). Francisco de Assis chama todas as criaturas para, em uma grande irmandade, louvar o Criador. Há aqui delicada sensibilida- de de comunhão e apreço pela criação, que traz novidade com relação aos salmos da tradição judaica, pois as criaturas não só se somam aos humanos, cada uma louvando ao Criador, mas se en- trelaçam e glorificam a Deus no ato de comunhão mútua. Tem-se aqui um encantamento sem precedentes: Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda bênção. A ti somente, Altíssimo, são devidos e homem algum é digno de te mencionar. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente meu senhor o irmão sol que, com luz, ilumina o dia e a nós. E ele é belo e radiante com grande esplendor: de ti, Altíssimo, carrega significação. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã luz e as estrelas, no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento e pelo ar e nublado e sereno e todo o tempo pelo qual dás sustento às tuas criaturas. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo pelo qual iluminas a noite e ele é belo e jucundo e robusto e forte. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso184 Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa mãe terra que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. Bem-aventurados aqueles que sustentam a paz porque por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa morte corporal da qual nenhum homem vivente pode escapar. Infelizes aqueles que morrem em pecado mortal; bem-aventurados aqueles que se encontram em tua santíssima vontade porque a morte segunda não lhes fará mal. Louvai e bendizei a meu Senhor e agradecei e servi-o com grande humildade (CÂNTICO DO IRMÃO SOL, s/d). O mundo interior de Francisco de Assis se une ao mundo exterior das criaturas em um encantamento orante. O mistério do brilho divino interior e o contato com os mistérios da criação são um só movimento. Francisco de Assis pede permissão a Deus, reconhecendo a pequenez de quem não é digno nem de mencionar tão sublime nome, e aí abraça amorosamente toda a comunidade de vida: transfigurou-se e nele se reconciliaram o céu e a terra. Na tradição do Islã Um sinal para eles é a terra árida que vivificamos e da qual fazermos surgir os grãos que nos alimentam. Nela produzimos jardins de tamareiras e videiras; E dela fazemos brotar fontes, para que possais comer dos seus fru- tos; E do quanto vossas mãos produzem. Acaso reconhecem? 185 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões Glória Àquele que criou os pares tudo o que a terra produz. (Sura, 36,33-36) Na tradição das religiões dos orixás Vida é bem mais do que vida exterior com movimento. A reverência a cada detalhe da natureza vai em direção ao princí- pio universal da vida, à raiz última do axé, como diz Edson Santos (2007, p. 32-33): Vivemos em um universo vivo, onde a vida pulsa incessantemente. Este universo foi criado por Olodumaré, o Espírito único que rege a criação. A vida latente nas rochas, a vida que flui nas plantas, a vida que pulsa no ser humano e nos outros seres vivos, toda forma de vida, provém de uma única fonte; portanto, tudo e todos são, fundamentalmente, uma só Vida em Olodumaré, que ordenou aos orixás concretizarem a criação que Nele – Olodumaré – já existia [...]. Nele reside a força vital de tudo que no mundo visível e invisível existe. Na tradição Guarani Os Guarani estão diante da natureza sempre encantados. Cada ser é visto, ouvido e tocado com o respeito de quem sente ali algo de divino. E desde a mais tenra idade, as crianças aprendem de forma mística na Casa de Reza (Opy), na aldeia e na mata. Sem o canto e a dança na Casa de Reza a criança se perderia, seria como uma abandonada sem rumo. Por isso, as mães estão na Opy dan- çando com seus recém-nascidos no colo, embalados pelos sons dos cantos sagrados. É deste ambiente místico que nasce a admi- ração constante com a grandeza, com a delicadeza, com as cores, com as vozes, com o brilho de tudo. Bartolomeu Meliá diz que o guarani tem uma percepção auditiva, visual, plástica da natureza: © Missiologia e Diálogo Inter-religioso186 Como é belo ver e escutar a terra com suas múltiplas cores e suas inúmeras vozes! O monte é alto: ka'á yvaté; é grande: ka'á guassú; é lindo: ka'á porã; é áureo e perfeito: ka'á ju; é semelhante a uma chama resplandecente: ka'á rendi; é coisa brilhante: mba'é verá. Os rios são claros: y satí; brancos: y morotí; negros: y hu; vermelhos: y pytã; ou como uma corrente de água coroada de plumas: paraguá y. O mar é, enfim, a cor e todas as cores: pará. [...] Um povo que du- rante séculos viveu num ambiente como este só podia pensar sua verdadeira terra em termo de luz e de voz; falam não só as aves, os insetos e as águas, mas também as árvores, como o cedro do qual 'flui a palavra: yvyrá ñe'erý' (apud MARZAL, 1989, p.337-338). O encantamento com a natureza repercute nos nomes das pessoas. O nome é expressão de uma tarefa divina, uma missão para a comunidade e para toda a criação. Assim serão muitos os nomes das palavras-alma recebidos no batismo guarani: Flor Bela (Poty Porã), Homem Flor (Avapoty), Senhor da Luz Verdadeira (Ka- raí Katu), Pequeno Dono (Karaí Mirim). Os Karaí, por exemplo, são vistos como os cuidadores da saúde e do espírito na aldeia (na Tekoá), pois sua origem divina os coloca dispostos a construir a liderança espiritual mergulhando na profundidade da natureza e do mistério das pessoas em contato com Ñanderu: Da sabedoria contida em seu ser celeste, em virtude de seu saber que se abre em flor, Nosso Pai fez que se abrisse a palavra fundamental e que se fizesse como ele, divinamente celeste. Quando não existia a terra, no meio da escuridão antiga, quando nada se conhecia, fez que se abrisse a palavra fundamental, que com Ele se tomara divinamente celeste; isto fez Ñamandú, o Pai verdadeiro, o primeiro (apud MARZAL,1989, p.306-308).Aqui o encantamento vai em direção ao mistério de onde brota a Palavra-Fundamento de todas as coisas. O momento do nascimento e do batismo é sagrado porque ali se realiza a chegada 187 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões de mais uma palavra-alma, ansiosamente esperada. Por isso, não se lhe dá um nome qualquer. Ela traz um recado divino. Ela própria é o recado divino. Assim, para descobrir o nome que possa revelar sua origem, há todo o ritual que vai desde o relato dos pais que entraram em contato, em sonho, com a alma do filho, até o discer- nimento do pajé que, em contato com Ñanderu (“Nosso Pai Último Primeiro”), em meio ao canto e à oração, vê com clareza quem é esta palavra-alma que chegou à vida da aldeia. Encantamento e mística planetária O encantamento com a criação e um re-encantamento da percepção e ação da humanidade estão esboçados nos textos da sabedoria dos povos. A experiência mística, que colhe e medita os textos e a vida com generosidade espiritual, tem sido capaz de superar tendência a confrontos superficiais entre as religiões e conclamar todos para a espiritualidade do encontro com o outro, com o cosmos e com Deus, sem fronteiras. É o que afirma Faustino Teixeira: Nada mais urgente no tempo atual que a afirmação de uma nova aliança em favor do resgate da Terra e da salvaguarda da criação. [...] Esse cuidado planetário essencial tem viva fundamentação na mística inter-religiosa. O respeito à natureza é um desdobramento evidente de toda perspectiva mística, pois ela mesma, em sua bele- za, reflete os rastros de Deus, ou do Mistério maior, sem nome. Os místicos falam do mistério inacessível de Deus, da impossibilidade de sua compreensão no tempo. Apontam, porém, a possibilidade de captar sua fragrância nesse espaço da contingência. Toda místi- ca autêntica busca revelar um novo olhar sobre o mundo, ou me- lhor ainda, captar o outro mundo que habita esse mundo. Abre-se com ela a possibilidade de ver o mundo transfigurado, de ver "a chama das coisas", e resgatar o "corpo energético da terra". Daí a importância fundamental de reafirmar o sentido místico da consci- ência planetária (OLIVEIRA, 2009, p.221). O que poderia ser lido apenas na chave da atenção à nature- za, na verdade capta a integridade da criação. Assim, podemos e devemos nos debruçar sobre os referenciais religiosos que, com o mesmo encantamento, inspiram as relações sociais, políticas, eco- nômicas e culturais. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso188 7. CUIDADO, ÉTICA E DIGNIDADE HUMANA Novos desafios, como o que acabamos de estudar, desenca- deiam a busca pelas inspirações mais consistentes dos primórdios das religiões, dos momentos de sua fundação. O atual momento da história, com a urgência do despertar da responsabilidade pla- netária, incita energias fundamentais que pareciam adormecidas, na defesa da comunidade de vida e da comunidade humana: Por mais díspares que se apresentem as religiões, nesses dois pon- tos encontram seu denominador comum. Elas valorizam a vida; defendem-na, promovem-na, prometem-lhe a eternidade. Em seguida, todas as religiões desenvolvem com-paixão para com as vidas vulneradas, dos deficientes físicos e mentais, dos doentes, dos pobres e dos injustiçados. Toda a sociedade se organiza para compensar o que a natureza lhes negou. Portanto, as religiões de- fendem a vida a partir daquelas vidas mais ameaçadas e feridas (BOFF, 2000, p. 75). No desenrolar das relações entres as tradições cristãs (ecu- menismo) e entre a diversidade das religiões (diálogo inter-religio- so) vão se afinando as cordas para a sinfonia comum da vida em dimensão espiritual. As cordas que tocam a visão de ser humano em cada povo, em cada experiência religiosa, têm suas diferenças, mas também seu ponto de encontro nos acordes e nas harmonias. Quem é o ser humano? Para respondermos essa questão, há que escutar atentamente a humanidade que está sendo vivida neste tempo histórico e perscrutar seu sentido mais profundo. A pessoa humana, imagem do mistério divino, apresenta-se inaca- bada, criatura aberta, ser desejante, infinitamente insaciável, que caminha entre a necessidade de plenitude e a busca de sentido e habita uma multiplicidade de símbolos, transformando o mundo com práxis criativa, transcendendo o presente em direção a um futuro aberto. Assim, quem olha mais atenta e ternamente o ser humano faz o mesmo com o Mistério Divino presente nas tradições religio- sas. O ser humano é Mistério. 189 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões Toda vida humana guarda uma marca da divindade. É imagem e semelhança de Deus. Mais ainda, cada pessoa humana, saída de Deus, é entendida como filho e filha de Deus. Por mais singela que seja a sua origem e por mais contraditória a expressão, cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes no coração de Deus, Pai e Mãe de bondade (BOFF, 2000, p. 76). Quem quer dar uma definição do ser humano quer transfor- má-lo em um objeto, fechar o campo do sentido. A pessoa não se esgota nas explicações, teorias ou fórmulas. Ela é indefinível, ina- prisionável, inapreensível, inexplicável. Feliz ou infelizmente, nós não podemos nos explicar. Para nos compreendermos, precisamos engajar nosso ser no encontro com o outro e envolver nossa vida naquilo que somos e fazemos. Quem busca definir a essência do ser humano, ou a essên- cia do divino, talvez esteja procurando aprisionar um objeto. Nem Deus, nem o humano são objetos. Cada pessoa se torna mais hu- mana e mais divina quanto mais o outro e o totalmente Outro se tornam significativos para ela. Aqui se fundamenta a ética do ponto de vista das religiões. Os povos originários dos cinco continentes, com todas as suas mestiçagens, trazem sua contribuição para um novo momen- to fecundo da humanidade divinamente conectada com o cosmos, como afirma Diego Irarrazaval: A Ásia acentua a bondade do Tao que, como a água, beneficia a todos e flui por lugares baixos. Os povos com herança sânscrita acentuam bhakti (interação amorosa), dharma (ordem no mundo), moksa (libertação). Outro fundamento asiático é a energia sagrada: shakti (força no universo e em divindades hindus), Gi e Ch’i (ener- gia vital, em coreano e chinês), e a atitude hindu e budista de não prejudicar entidades vivas, de compaixão, de harmonia cósmica e ética. Em numerosas culturas africanas se reconhecem espíritos e poderes na natureza que condicionam a existência humana; nas regiões dos bantos são invocadas divindades e antepassados; há clara consciência dos vínculos entre o divino, a natureza, o humano, entre as quais há força vital, vital participação. Na América Latina, existe o axé afro-americano (dinamismo que sustenta tudo), sumaj kawsay e suma jakana (vida boa quéchua/aimará) e outras filoso- fias de vida plena em sentido corporal, cósmico, espiritual, humano (apud SUSIN, 2011, p.305). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso190 As milenares sabedorias asiáticas, africanas, ameríndias, eu- ropeias e da Oceania participam da busca contemporânea de um novo paradigma centrado na vida. É uma mudança de perspectiva que pode superar a arrogância humana presente na hegemônica visão antropocêntrica que devasta o planeta e oprime os seres hu- manos. Adonai Deus modelou o ser humano com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida, e o ser humano se tornou um ser vivente (Gn 2,7) O universo é como um homem gigante: podemos falar de seu olho, que é o sol; de seu alento, que é o vento; de seus membros de seu coração, de seu pensamento. Do mesmo modo o homem é um uni- verso em medida menor: podemos falar de seu sol,que é o olho; e de seu vento, que é a respiração (Brihadaranyaka Upanishad V, 1). No nosso universo nada se acaba, tudo se transforma. O que foi ser humano passa a ser ancestral (baba egum). Oya é a responsável por esta passagem do aye (terra) para o orun (eternidade). O nosso ancestral é o nosso orientador aqui no aye (Mãe Stella de Oxossi). Embora inesgotável o tema, acenamos aqui alguns horizon- tes para os quais podemos direcionar os olhares e os estudos que compõem a compreensão dos itinerários do diálogo ecumênico e inter-religioso. Nas religiões dos orixás Para as várias tradições religiosas de origem africana, a sabe- doria que sustenta toda a realidade não se esgota na argumenta- ção, no campo das ideias. O axé é o dinamismo criador, o fogo vital divino que sustenta, ativa e direciona as forças de todo o cosmos, de toda a natureza, de toda a ação humana em sintonia com a di- mensão sagrada da vida. A ligação entre a ética e a visão cósmica é fundamental. O mesmo axé que preside a natureza também está presente nos va- lores e nas práticas humanas. O povo Igbó, da Nigéria, tem uma concepção da ética que integra a harmonia cósmica com a justiça, em um dinamismo que reclama pela ação. 191 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões A paz não é algo que acontece, mas sim uma situação quando a jus- tiça acontece. É um estado feliz das coisas que acontecem quando o estado das coisas é justo […] é o resultado da ordem e do alinha- mento […] E não somente a paz está baseada na justiça, e sim: A paz é justiça e a justiça é paz. Sem a justiça, a paz perde a consistência e torna-se palavra vazia. Entre as pessoas de origem Igbó, podemos citar o Cardeal Francis Arinze, da Igreja Católica, nigeriano, líder da Igreja na Áfri- ca que foi amigo próximo do papa João Paulo II. Já as comunidades de candomblé nos trazem algumas virtu- des, apontadas por Marcial Maçaneiro: 1) Respeitar as vidas mineral, animal e vegetal, nas quais circulam o axé (energia universal); 2) Seguir a sabedoria dos ancestrais: "Se não houver folha, não há vida"; 3) Agir com arbítrio de virtude: bondade, respeito, equida- de, gratidão; 4) Educar para o uso sustentável dos recursos da natureza. A perspectiva ética passa pelo refinamento das relações. Formar comunidade é prática fundamental para produzir relações justas. A inserção respeitosa no terreiro põe em jogo um dinamis- mo de produção de harmonia e paz. A comunidade é absolutamente fundamental para os seres huma- nos, e conflitos na comunidade são causados por falhas humanas ou poderes malignos. Conflitos não são parte integrante da socie- dade e análises de conflitos não estão revelando os fundamentos básicos para uma sociedade no pensamento africano (HOVLAND, 1993, p.216). Os contos, as danças, as experiências da vida é que darão conta de direcionar a sociedade para a justiça e paz. Oxossi, por exemplo, caçador, dono dos mistérios e segre- dos, é a ancestralidade da busca de si mesmo, do seu projeto, do lançar harmonizado do arco da autoridade espiritual e da flecha que penetra os mistérios para conquistar uma vida de comunhão © Missiologia e Diálogo Inter-religioso192 fraterna e produzir gestos de solidariedade nas lutas da vida. Isto também está presente em Milton Nascimento – “eu, caçador de mim”. (Cf. BOTAS, 1996, p. 66-69). O mito de Xangô provoca muitos olhares. Este casal é venta- nia (Oya) e raio (Xangô). Os dois produzem o fogo, mas ninguém é dono dele. O fogo aponta para o vir-a-ser contínuo (aquilo que for gasto será consumido), que renova e purifica. Nada fica impune ao amor e à justiça. Aqui há que tomar posição diante das mentiras e violações. São os medíocres que deixam os fatos decidirem a sua história e vida. Nem Xangô nem Oya suportam a vida medíocre dos seus fi- lhos e filhas e por isso fazem justiça e os repreendem com amor. Por isso são temidos, porque, como o fogo, trazem à luz a medio- cridade das pessoas e seus interesses míopes e individuais que aca- bam negando a generosidade da vida – a da vida em comunidade e comunhão com os poderes cósmicos e a natureza. [...] Xangô e Oya são os poetas da vida, porque são os que produzem o fogo na sua relação amorosa e na exigência de justiça. O fogo não é proprieda- de de ninguém e, como a vida, ninguém possui o seu segredo nem resolve o seu enigma a não ser pela busca incessante do desvela- mento do seu próprio segredo e do seu próprio enigma. A vida é uma construção permanente dos nossos sonhos, desejos e utopias que transcendem as mesquinharias, miopias e misérias pessoas im- postas a cada momento histórico (Idem, p. 79 e 83). Aqui não há espaço para pactos com a corrupção, a mentira e a injustiça. Trata-se da paz comunitária, da harmonia cósmica e da luta pela justiça. Ao contrário, os que são capazes de fidelidade e generosidade se unem para defender as causas fundamentais, para fazer a justiça e o amor vitoriosos. Na tradição guarani Este canto dos guarani M’bya, recolhido por Cadogan, dá a dimensão desta consciência cósmica original e da origem de todo o compromisso social. O verdadeiro Pai Ñamandú, o primeiro, [...] Tendo já feito abrir-se em flor para si o fundamento da palavra fu- tura, 193 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões tendo já feito abrir-se em flor para si uma parte do amor, tendo já feito abrir-se em flor para si um esforçado canto, conside- rou detidamente a quem fazer participar do fundamento da palavra, a quem fazer participar desse único amor, a quem fazer participar da série de palavras que compunham o can- to. [...] Tendo-o já considerado profundamente, fez que despontassem os que seriam companheiros de seu celeste divino ser [...] fez que despontassem os Ñamandú de coração grande. Fê-los despontar com o reflexo de sua sabedoria, quando a terra não existia no meio da escuridão antiga [...] (apud MARZAL,1989, p.306-308). Aqui está o fundamento das relações na comunidade, pois os guarani se sentem direcionados ao aperfeiçoamento da pala- vra-alma. É desse modo que buscarão as virtudes desejadas: O bom ser: tekó porã; a justiça: tekó jojá; as boas palavras: ñe'e porá; as palavras justas: ñe'e jojá; o amor recíproco: joayhú; a dili- gência e a disponibilidade: kyre'y; a paz entranhável: py'a guapy; a serenidade: tekó ñemboro'y; um interior líquido e sem duplicida- des: py'a potí (MELIÁ, 1976, p.188). Ao lado dessa positividade ética, há uma consciência do mal da terra que precisa ser contestada com a esperança de alcançar a Terra sem Males. Cataclismas cósmicos, destruições ambientais, enfermidades, fome, mal-estar social e injustiças são desgraças que motivam muitos momentos de rituais na Casa de Reza. Junto com a oração, a resistência guarani aponta para a luta que visa assegurar as terras que ainda não foram comercializadas ou exploradas. A justiça e a paz são sentidas quando a terra ainda não foi violada, quando o mba'é menguá (mal radical) ainda não tomou conta de tudo. Com força espiritual, os guarani conectam a ecologia e a eco- nomia, a pessoa e a sociedade, a política e a profecia, a palavra © Missiologia e Diálogo Inter-religioso194 divina e a palavra humana, o arco da resistência, a corda do amor e a flecha do futuro de Justiça e Paz. Na tradição hindu Os Vedas são os primeiros textos sagrados da tradição hindu e datam dos séculos 12 a 8º a.C. Trazem as referências fundan- tes de deuses guerreiros como Indra e Varuna. Posteriormente os Upanixades, dos séculos 7º a 3º a.C., trazem a violência sacrificial dos brâmanes e a impessoalidade da mística intelectual. Entre o século 3º e 2º a.C.surge uma espiritualidade terna e cordial que se condensa na Bhagavad Gita (Canção do Bem Aven- turado) e que foi incluída na Mahabharata no século 2º a.C. Há uma perspectiva de superação da violência através da luta. (Cf. PI- KAZA, 2008,132-146) A Canção do Bem Aventurado (Gita) parte da ordem imposta das castas: brâmanes (religiosos), ksatriyas (nobres guerreiros) e vaisyas (comerciantes e agricultores). Na exterioridade destas cas- tas estão os intocáveis. Vamos examinar alguns aspectos da classe dos ksatriyas. A luta dos ksatriyas (Arjuna, o herói guerreiro). A perspectiva hindu não sacraliza a guerra, a luta. O guerreio não luta a serviço da religião, ou seja, não há nenhum mandato divino em jogo. O guerreiro cumpre seu dharma, sua missão, seu dever, porque está ali para isso. E ao guerreiro cabe lutar. Mas, que luta é essa? De um lado, está a roda da realidade (samsara) com o mun- do dividido em grupos em litígio. De outro, está a realidade fun- damentada na paz (não na guerra), conhecida como moska ou libertação sagrada. Sendo assim, um ksatriya realiza seu projeto (dharma) não quando vence ou quando é glorificado na sua vitó- ria, mas ao realizar seu projeto. 195 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões Vishnu é a expressão divina que assegura o dharma, no caso, que faz o guerreiro ser guerreiro. A canção (Gita) do Bem Aventu- rado traz Vishnu, sob a forma (avatar) de Krishna que abre o cami- nho do guerreiro para a experiência profunda e relacional com o mistério durante a luta, no ato de exercer sua missão. Assim, o guerreiro não se contamina com a guerra e seu re- sultado, mas com o valor da grande batalha da vida. O que vale é a ordem sagrada (moksa), o sentido da luta. Arjuna, o guerreiro que está prestes a desanimar da luta: Fraquejam meus membros, seca-me a boca e um calafrio percorre meu corpo. Meu arco cai-me das mãos, arde minha pele [...]. Não posso me sustentar, minha mente delira [...]. Não desejo, Krishna, a vitória nem o reino nem os prazeres [...] Mestres, pais, filhos [...], tios, sogros, netos, cunhados, parentes: não desejo matá-los, em- bora eu tenha que morrer [...]. Como poderíamos ser felizes matan- do nosso povo? (Gita 1,29-39). Arjuna vive o encontro com Krishna/Vishnu que aponta para sua identidade guerreira: De onde nasceu este abatimento, impróprio de um nobre, que não agrada ao céu e afasta a glória? Não caias na covardia, filho de Par- tha [...]. Levanta-te, lançando para longe a vil fraqueza do coração (Gita 2,2-3). Aqui não se trata de encontrar forças para matar ou de dei- xar a luta por algum motivo aparentemente pacífico. No meio do conflito, dos riscos, dos perigos, Arjuna se dispõe a receber o en- sinamento divino não para ganhar a guerra em nome da divinda- de, mas para cumprir sua missão (seu dharma). Se vencer a nobre batalha, continuará sua jornada neste mundo de lutas; se morrer, alcançará o céu. A guerra aí está, mas não é decisiva, pois o sen- tido profundo da realidade está mais além e a guerra não pode prejudicar a verdade da vida inteira. Assim, em meio à batalha, o guerreiro se dá conta de que a realidade divina mais decisiva está acima dela, mas não fora da luta da qual não se pode escapar. Deves perseguir a ação, mas só ela, não seus frutos; que estes não sejam teu incentivo; mas tampouco te apegues à inação. Quanto tiveres alcançado a ioga, realizarás tuas ações sem interesse, intré- © Missiologia e Diálogo Inter-religioso196 pido diante do fracasso ou do êxito, pois esta tranqüilidade é o que a ioga produz (Gita 2,47-48). A quebra da violência interior produz no eu profundo uma transformação a serviço da paz. De fato, o mal está aí e há que enfrentá-lo. É possível, porém, encarar o mal sem se contaminar com ele. Nessa perspectiva do guerreio transparece toda a realidade com suas “unidades duais”: desejo e consciência, atividade e re- pouso, saber e não saber, masculino e feminino, exterior e interior, criação e destruição. Das letras sou a primeira. Das palavras compostas, sou o composto dual. Sou também o tempo inexaurível. E dos criadores, sou Brah- ma (Bhagavad-Gita 10,33). Foi desta tradição, em sua vertente ética, que Mahatma Gan- dhi tirou as bases de sua ação transformadora na Índia da primeira metade do século 20. Conforme Maçaneiro, a doutrina do amor devocional (bhakti) prescreve: Praticar a não violência; Não prejudicar nenhum ser vivo, racional ou irracional; Não roubar; Não cometer adultério; Não mentir ou proferir palavras inúteis; Não difamar nem caluniar ninguém; Cultivar o autodomínio; Cultivar a sinceridade; Observar os deveres rituais; Irmanar-se com as pessoas moralmente boas; Praticar boas ações, com sabedoria e desapego [...] Esta doutrina se chama "via da ação" (karma yoga) e afirma o devo- to como sujeito proativo no bem, irmanado com todas as criaturas racionais e irracionais. [...] Tal ensinamento favorece iniciativas res- ponsáveis pela justiça, paz e harmonia em relação ao próximo e em relação à natureza (MAÇANEIRO, 2011, p. 26-27). 197 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões Na tradição budista Na Índia, entre o século 3º e 2º a.C., surge uma espiritualida- de terna e cordial que se condensa na Bhagavad Gita (Canção do Bem Aventurado) e que foi incluída na Mahabbarata no século 2º a.C. Há nela indicações para a superação da violência (Cf. PIKAZA, 2008,132-146). Como no hinduísmo, também o budismo compreende a rea- lidade e suas múltiplas expressões: a fatalidade (samsara), a con- dição encarnada (karma), o projeto/missão de cada um (dharma) e a iluminação (maksa ou nirvana). Gautama Sakyamuni, também um nobre guerreiro como Ar- juna (protagonista da Gita), toma rumo diferente e inicia o que se tornou o Budismo. Buda, o Iluminado, vai às raízes da violência e da infelicidade humanas no próprio coração da vida. Ele supera toda a violência, seja esta externa seja interna. Além da autoconsciência do seu projeto, da pacificação interior em meio à guerra, o Iluminado re- nasce superando o sistema de castas. A vida se expande para a paz. Não há mais lugar para a con- tinuidade das castas ou para o fatalismo da guerra, como ainda aparece no hinduísmo. Buda, no seu processo de iluminação, se dá conta de quatro verdades básicas: tudo é sofrimento; o sofrimento é desejo; o de- sejo superado faz superar o sofrimento; a superação das paixões é libertação para a vida plena em comunidade. Caminho óctuplo Há consequências sociais e éticas dos caminhos indicados pelo Buda. O caminho óctuplo, isto é, as oito regras de conduta que sintetizam os passos do caminho são: 1. Visão adequada – reconhecer as quatro verdades essenciais: o sofrimento humano existe; a origem deste sofrimento se deve © Missiologia e Diálogo Inter-religioso198 aos desejos egocêntricos; a eliminação dos desejos egocên- tricos faz cessar o sofrimento; é possível trilhar o caminho de libertação dos sofrimentos, proposto por Buda. 2. Intenção adequada – manter a paz, a bondade e a compaixão como intenções que antecedem as ações. 3. Discurso adequado – não mentir nem agredir verbalmente o próximo. 4. Ação adequada – agir tendo como propósito o bem de todos os seres. 5. Meios de subsistência adequados – que possibilitem a subsis- tência da pessoa sem causar sofrimentos aos outros. 6. Esforço adequado (em relação ao corpo) – abster-se de ma- tar e preservar a vida; abster-se de roubar e ser benevolente; evitar uma conduta sexual que provoque o sofrimento alheio. 7. Atenção adequada (em relação à palavra) – abster-se de mentir e dizer sempre a verdade;abster-se de maldizer e apaziguar as discórdias; abster-se de injuriar e falar com calma e simpatia. 8. Concentração adequada (em relação à mente) – abster-se de invejar e alegrar-se com o bem dos outros; abster-se de ser mal-intencionado e colocar boa vontade nos seus atos; abster- -se de adotar perspectivas dualistas, buscando reconhecer a unidade na diversidade (MAÇANEIRO, 2011, p.37). O budismo atingiu uma experiência altamente consistente para superar toda forma de dominação e de imposição. O largo e paciente caminho da vida iluminada rompe com toda a contami- nação da violência. Sociedades pacíficas são comunidades que vinculam os se- res humanos sem a violência. Desse modo, um mundo de imensa gratuidade, justiça e paz vai se delineando pelos caminhos ascen- dentes propostos pelo budismo. Nos textos do Tripitaka não está evidente a ligação entre os que são desprendidos dos bens (appicchã) e o compromisso com os pisoteados da sociedade humana (daliddã). Mas Aloisius Pierri nos explicita tal conexão. O Buda observa que a indigência material é uma miséria real (dukkha) para os que procuram prazer (isto é, os não renunciado- res) da sociedade. [...] Implícita no texto está a insinuação de que a 199 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões dukkha, mencionada pelo Óctuplo Caminho Nobre como aquilo de que se deve procurar libertação, inclui pobreza material, enquanto é admitido que a libertação daquela dukkha (da pobreza material) não vem do acúmulo de riquezas. Temos aqui um caminho de meio a ser descoberto. [...] A implicação é que, desde o ponto de vista do Buda, tanto a pobreza em virtudes religiosas (carência do kusala- dhammã) quanto a pobreza em necessidades econômicas básicas são dilemas indesejáveis [...] A fomentação da pobreza espiritual ou appichatã (isto é, buscar a liberdade de posses) enquanto prática soteriológica básica que leva ao Nirvana e a eliminação da pobreza material, ou dãliddiya (isto é, buscar a liberdade do desapossamen- to), enquanto um contexto social desejável para essa prática de falta de cobiça, são, portanto, interconectadas. Uma manifestação visivelmente coletiva dessa interconexão seria uma prova que o Dhamma criou raízes numa determinada sociedade ou nação (PIE- RIS, 2008: 91-93). Assim, a perspectiva budista tem como horizonte uma so- ciedade de justiça e paz que brota da experiência pessoal e tem como horizonte uma sociedade em que não exista a produção da miséria material (dukkha) e não falte a generosidade das virtudes religiosas. Na tradição cristã A Bíblia mostra Deus como doador da vida, concedendo-a singularmente ao ser humano: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher os criou" (Gn 1,27). Há toda uma história do povo de Deus que deixou o le- gado da compreensão bíblica para o ser humano. O salmo 8 traz a pergunta sobre o ser humano e depois responde: "o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e honra o coroaste" (Sl 8,6). Ao contrário da arrogância de Salomão, que se quis fazer único filho de Deus, os profetas insistiram na filiação universal: todos são filhos e filhas de Iahweh. Para os cristãos, na linha do profeta Isaías, a chegada sempre desejada do messias criança se realiza em Belém da Judeia, local irrelevante que ganha centralida- de salvífica e inspiradora: ali nasce a divina humanidade. É assim © Missiologia e Diálogo Inter-religioso200 que o papa Bento XVI apresenta o pequeno grande acontecimento da encarnação do Verbo de Deus, na homilia de abertura do ano de 2009: Eis, portanto, a mensagem oferecida hoje: a pobreza do nascimen- to de Cristo em Belém. [...] Essa nos ensina que para combater a miséria, tanto material quanto espiritual, o caminho a percorrer é o da solidariedade, que levou Jesus a partilhar nossa condição huma- na. [...] penso que a Virgem Maria tenha se feito mais de uma vez esta pergunta: por que Jesus quis nascer de uma menina simples e humilde como eu? E depois, por que quis vir ao mundo em um estábulo e ter como primeira visita a dos pastores de Belém? [...] Deus se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza cheia de amor, para nos exortar a frear a cobiça insaciável que sus- cita lutas e divisões, para nos convidar a moderar a ânsia de possuir e a estar assim disponíveis à partilha e ao acolhimento recíproco (BENTO XVI, 2009). Na prática e na prédica de Jesus, a mensagem das bem-aven- turanças, a proclamação e vivência do Reino em prol dos mais frá- geis e as parábolas, especialmente as do samaritano com o caído na estrada e do filho pródigo, são revelações da face de Deus como Abba (paizinho) amoroso. Aqui há um destaque para os pobres. De um lado, os po- bres de espírito que por opção assumem a perspectiva do Reino de Deus e, de outro, os empobrecidos que assim se encontram pelas circunstâncias. Os primeiros praticam o desprendimento interior, a humildade, o seguimento de Jesus. Os segundos estão em circuns- tâncias indesejáveis, em situação social de opressão, pois se tor- naram pobres por causa da injustiça, como afirmaram os profetas Amós, Jeremias, Oseias, Isaías. Cada um dos dois grupos, a seu modo, é visto na tradição cristã como escolhido por Deus para confundir os fortes e arrogan- tes que impedem o Reino de Deus. Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos; sim, Pai, eu te bendigo porque assim foi do teu agrado (Mt 11,25- 26). 201 Claretiano - Centro Universitário © U5 - Ecologia e Ética: Horizontes para o Encontro das Religiões Os dois grupos de pobres são destinatários, anunciadores definitivos do Reino de amor e de justiça, herdeiros e portadores da mensagem de Jesus. A renúncia de uns a confiar nas riquezas e no poder, e a incapacidade de outros de agarrar-se aos absolutos frágeis dos bens da terra tornam os dois grupos parecidos no Rei- no de Deus. O primeiro grupo contesta a existência da injustiça com sua opção de renunciar ao egoísmo e ao pacto com a riqueza e seus abusos. O segundo grupo é vítima da cobiça e da injustiça. O primeiro grupo dos discípulos sente como exigência evan- gélica o desprendimento. O segundo revela que a vida e salvação conforme o Reinado de Deus não se realizou com a seriedade devi- da. Uns se libertam das inclinações pessoais para a cobiça e os ou- tros denunciam, com sua vida, a morte que as estruturas de cobiça impuseram em nome de algum deus, contra Deus e seus filhos e filhas. A morte de Jesus na cruz também foi expressão desta teo- logia da solidariedade e da paz. O condenado que não condenou é expressão de uma inocência tal que a própria morte acaba ven- cida. A morte de Jesus tornou-se morte da morte. É tão completa a inocência da vítima que é desvendado todo o sistema vitimário. Não há mais como legitimar a morte dos fracos em nome de algo bem maior. Não há bem maior do que a vida dos filhos e filhas de Deus, e vida em abundância. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um [...] (Colossenses 3,11). Não se perturbe o vosso coração [...] há muitas moradas na Casa de meu Pai (João, 14,1-3). [...] cada um os escutava falar na sua própria língua (At 2,6). Mas a hora vem, e é agora, em que os verdadeiros adoradores ado- rarão o Pai em espírito e em verdade. (João 4, 23). © Missiologia e Diálogo Inter-religioso202 A justificativa da violência perdeu o sentido. A teologia da ressurreição é a consagração do projeto da inocência que vence as absolutizações das forças condenatórias ancoradas na lei e na riqueza. A ressurreição plenifica esta perspectiva,
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