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EA D Diálogo Inter-religioso 4 1. OBJETIVOS • Interpretar a abertura das tradições religiosas para o di- álogo, privilegiando aquilo que amplia os horizontes da espiritualidade e da experiência do mistério divino. • Compreender as articulações inter-religiosas contempo- râneas e os esforços dialogais entre as tradições religiosas nas várias partes do mundo. • Entender os desafios do diálogo com as múltiplas tradi- ções indígenas na América Latina. • Conhecer e entender os desafios do diálogo com as tradi- ções de origem africana. 2. CONTEÚDOS • Organismos e acontecimentos mundiais do diálogo inter- -religioso. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso130 • Iniciativas católicas para o diálogo inter-religioso. • Panorama das religiões no mundo. • Diálogo inter-religioso diante da globalização. • Macroecumenismo e religiões indígenas. • Religiões de tradição africana e o diálogo inter-religioso. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Como o catolicismo está presente em quase todas as partes do mundo, há uma diversidade de ações em cur- so que não podem ser reunidas neste texto de estudo. Em vários âmbitos, há diálogo com muçulmanos, judeus, hindus, budistas e outras centenas de tradições religio- sas em vários locais. Nos últimos anos, podemos viajar por notícias e textos do mundo todo no endereço ele- trônico do Pontifício Instituto Missões Exterior (P.I.M.E.). Disponível em: <http://www.pime.org.br>. Acesso em: 9 abr. 2012. 2) Vale a pena ler os poucos e primorosos textos sobre o Diálogo inter-religioso nos números 235 a 239 que compõem o Documento da 5a Conferência Episcopal Latino-Americana de Aparecida (2007). Disponível em: <http://www.celam.org/MisionContinental/Documen- tos/Portugues.pdf>. Acesso em: 23 maio 2011. 3) Da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vale a pena consultar os seguintes trechos dos Docu- mentos de Diretrizes e Planos Pastorais da CNBB: n. 45 (1991/1994), n. 46 (1991/1992), n. 49 (1993/1994), n. 54 (1995/1998), n. 56 (1996), n. 57 (1996/1997), n. 62 (1999) e n. 71 (2003-2006). 4) Para conhecer a maioria desses documentos, há uma coletânea feita por ocasião dos 40 anos da Declaração Nostra Aetate, organizada pelo padre José Bizon e pu- 131 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso blicada pelas Edições Paulinas. Confira a indicação na bibliografia. 5) Sugerimos também que você leia as obras: O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, de Sa- muel Huntington, assim como o texto O choque da igno- rância, de Edward Said. 6) Etnocentrismo é um conceito antropológico, segundo o qual a visão ou avaliação que um indivíduo ou grupo de indivíduos faz de um grupo social diferente do seu é ape- nas baseada nos valores, referências e padrões adotados pelo grupo social ao qual o próprio indivíduo ou grupo faz parte. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Etnocentrismo>. Acesso em: 9 abr. 2012. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta unidade, voltaremos ao tema do diálogo abordado na primeira unidade. É preciso olhá-lo em toda a sua abrangência, desde as relações cotidianas até as dimensões mundiais. Em tempos de globalização, há na sociedade contemporânea o aumento do fluxo de informações e de mercadorias. No entanto, entre as comunidades e as pessoas propaga-se o individualismo, fabrica-se a multidão solitária e cria-se a necessidade de armar-se contra os outros. Nas concentrações religiosas, imaginamos que o ambien- te seja de comunidade e paz. Contudo, além da propagação da desconfiança, do preconceito e da agressividade contra diversos grupos humanos, os participantes, por vezes, nem sequer se re- conhecem como pessoas, centrados e voltados apenas para seus interesses. A religião, em sua originalidade mais bela, expande o ser hu- mano em direção ao infinito mistério do amor, ao encontro soli- dário. Todavia, há outra parcela dos filhos de Deus que amaldiçoa e faz morte em nome de Deus. Usurpa-se e deturpa-se a religião, © Missiologia e Diálogo Inter-religioso132 fazendo-a do tamanho de sua medíocre arrogância, de sua ridícula vontade de condenação. Foi o que analisamos na segunda unida- de, ao estudarmos os fundamentalismos. Atualmente, a sobrevivência da Terra e da humanidade está ameaçada. O ritmo da exploração privada no mundo e a história de colonização e dominação do ser humano criaram desastres in- calculáveis. Por maiores que tenham sido as argumentações cientí- ficas, técnicas, econômicas e políticas, não há como ignorar a des- qualificação do diálogo nestas instâncias. A integridade da criação, a paz entre as nações e a justiça em favor dos mais fragilizados dependem do diálogo que será constru- ído em todos os âmbitos. Na terceira unidade, vimos as relações entre as tradições cristãs, seus acertos e dificuldades, seus encontros e compromis- sos ecumênicos na sociedade. Para além do pluralismo das igrejas cristãs, somos agora con- vidados a mergulhar em águas mais profundas, a encontrar aque- las tradições religiosas que, construídas durante milênios, não são originadas da tradição judaico-cristã. Em outros tempos, não tão distantes, pensava-se que: 1) A diversidade de religiões não vinha de Deus, mas era fruto do mal. 2) Deus queria uma única religião, mas o pecado original e o castigo da Torre de Babel a dividiram em várias religiões. 3) No cristianismo, era Deus quem buscava o homem. Nas outras religiões, eram os seres humanos arrogantes que pretendiam se aproximar de Deus por conta própria. 4) Só Jesus salvava. Desse modo, na África, na Ásia e nas Américas, todos aqueles que não conheceram Jesus estavam no erro e teriam a condenação eterna. Pior era o caso daqueles que conheciam o Evangelho e, mesmo assim, permaneciam em suas religiões de origem. 5) Nas últimas décadas, mais de um bilhão de pessoas tinham passado para a eternidade. Além disso, mais da 133 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso metade delas tinha ido para o tormento do fogo infernal por não terem ouvido falar de Jesus, que morreu para nossa salvação. Será que temos como manter estas antigas concepções? Não será urgente qualificar melhor o encontro entre as tradições religiosas para renovar as religiões e o mundo? Iniciaremos com um relato que pode nos ajudar a ampliar nossos horizontes. Trata-se do depoimento do missionário italiano Pe. Giancarlo Bossi, que foi sequestrado em 10 de junho de 2007, nas Filipinas. Muitos muçulmanos e católicos rezaram pela sua li- bertação, que aconteceu após 40 dias de cativeiro. Ele conta: Meus seqüestradores [...] faziam muitas perguntas a respeito da minha religião. [...] Eles rezavam e eu rezava. Um dia eu lhes disse: será que estamos rezando para o mesmo Deus, uma vez que vocês rezam com a metralhadora na mão direita e com a esquerda me mantêm refém? Eles me responderam: Alá está no coração, não nas escolhas da vida. [...] Por companhia eu só tinha os que me haviam seqüestrado, e que no fundo eram também meus irmãos, filhos do mesmo Deus, paupérrimos, amedrontados, embora segurassem uma arma na mão. [...] Olhando o grupo dos seqüestradores, que, afinal, estava ape- nas cumprindo ordens, eu pedia a Deus que um dia eles pudessem regressar às suas casas e, sentados à mesa com suas famílias, pu- dessem voltar a comer o pão em paz, em liberdade. Quando um dia eu lhes manifestei este meu sentimento, eles ficaram surpresos; talvez porque nunca tivessem ouvido falar do grande amor que o Pai tempara cada um dos seus filhos, portanto, para com cada um deles. [...] Eu não sei se consegui entender mais e melhor os irmãos mu- çulmanos, mas, sem dúvida, esta experiência me ensinou que os impasses, também em questões religiosas, se resolvem dialogando no respeito mútuo. Espiritualmente falando, esta experiência foi para mim uma grande graça de Deus; embora deva dizer que foi muito dura e sofrida (BOSSI, 2008). Leia o trecho a seguir e observe as diferentes relações reli- giosas. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso134 Louis Fischer, na sua obra sobre Gandhi, traz no capítulo Jesus Cristo e o Mahatma Gandhi, a importante questão: como um hindu pode ajudar os cristãos a serem mais cristãos e como um cristão pode ajudar um hindu a ser melhor hindu? Sempre tolerante e de espírito aberto, Gandhi duvidava que so- mente os sagrados Vedas hindus fossem a palavra revelada de Deus. 'Por que não a Bíblia e o Corão?', perguntava ele. Gandhi evitava o estabelecimento de rivalidades entre religiões. Em 1942, quando eu era hóspede de sua casa, notei a única deco- ração que havia nas paredes de barro da sua pequena choupana: uma estampa em branco e preto de Jesus Cristo, sob a qual estava escrito: 'Ele é nossa paz'. Perguntei-lhe o que significava aquilo. 'Vós não sois cristão', observei-lhe eu. 'Eu sou cristão, hindu, mu- çulmano e judeu', respondeu Gandhi. E isso fazia dele um cristão muito mais cristão do que a maior parte dos cristãos. O senhor S. K. George, cristão sírio da Índia e conferencista do Colé- gio do Bispo, de Calcutá, escreveu um livro intitulado Gandhi’s chal- lenge to christianity (O desafio de Gandhi à cristandade), e dedicou- -o 'Ao Mahatma Gandhi, que tornou Jesus e a Sua mensagem reais para mim'. O reverendo K. Matthew Simon, da igreja sírio-cristã de Malabar, na Índia, disse, referindo-se a Gandhi: 'Foi a vida dele que provou, a meus olhos, mais do que qualquer outra coisa, que o cris- tianismo é religião praticável até no século 20'. [...] Sabemos mais a respeito de guerra do que a respeito de paz, mais a propósito de matar do que a propósito de viver. Gandhi não sabia coisa alguma a propósito de matar, mas havia encontrado o segredo de uma vida feliz e útil. Ele era um pigmeu nuclear e um gigante moral. Rejeitava o átomo, por haver aceito o Sermão da Montanha, de Cristo. Era cristão, hindu, muçulmano e judeu. Quem mais o é? Talvez seja essa a razão pela qual foi um hindu que se tornou porta-voz da consciência da humanidade (FISCHER, 1982, p. 188-193). Profecia dialogal com muitos rostos e de muitas origens ––– Se você quiser fazer uma pesquisa na história recente, encontrará inúmeras pes- soas que se dedicaram à construção dialogal de uma sociedade mais humana, rompendo as fronteiras impostas pelas tradições religiosas. Só para instigar, in- dicamos alguns inspiradores dessa profecia dialogal: Albert Schweitzer, Dom Hélder Câmara, papa João XXIII, Thomas Merton, Dalai Lama, Martin Luther King, José Oscar Beozzo, Pe. François de l’Espinay, Hans Küng, Dom Luciano Mendes de Almeida, Sta. Genoveva, Swami Vivekananda, Dom José Maria Pires, Louis Massignon, Marcelo Barros, Amma Sudhamani, rabino Henry Sobel, líder guarani-nhandevá Marçal Tupã-i, Rigoberta Menchú, 135 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Chiara Lubich, arcebispo Desmond Tutu, sacerdote e teólogo jesuíta Jon Sobri- no, Mahatma Gandhi, Rose Marie Muraro, Raimundo Panikkar, teólogo Leonardo Boff, Charles de Foucauld, Dom Frei Paulo Evaristo Arns, Ivone Gebara, madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, São Francisco de Assis, Dom Pedro Casal- dáliga etc. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 5. PERCORRENDO A HISTÓRIA Nos tempos fundadores das tradições religiosas, há textos e vivências que apontam para o respeito à pluralidade das manifes- tações do mistério divino. Em cada tradição, encontramos indica- ções desta diversidade dialogal. O Alcorão, em seus 114 capítulos, chamados suras, possui muitas afirmações abertas ao diálogo. Vejamos a seguir: A cada um de vós entregamos uma regra e assinalamos um cami- nho, enquanto, se Deus o tivesse querido, teria feito de vós uma Comunidade Única, mas não fez isso para vos provar naquilo que vos deu. Competi, pois, nas obras boas, porque a Deus todos re- gressareis (ALCORÃO, 5, 48). O Novo Testamento da tradição judaico-cristã traz: Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um [...] (Col 3, 11,). Não se perturbe o vosso coração [...] há muitas moradas na Casa de meu Pai (Jo 14, 1-3). [...] cada um os escutava falar na sua própria língua (At 2, 6). Mas a hora vem, e é agora, em que os verdadeiros adoradores ado- rarão o Pai em espírito e em verdade (Jo 4, 23). Em todos os tempos, existiram religiosos que buscaram o encontro com tradições diferentes das suas para compreender as múltiplas experiências do divino em sua amplitude. No entanto, as raízes mais recentes do movimento inter-religioso datam de pouco mais de um século, e seus florescimentos têm poucas décadas. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso136 Parlamento Mundial das Religiões Em 1893, realizou-se, em Chicago (EUA), o 1º Parlamento Mundial das Religiões. Pairaram o respeito e o reconhecimento mútuos, em uma união pela busca do lugar social das religiões no mundo. Havia quatro mil pessoas na abertura e os 400 delegados realizaram um marco histórico no diálogo inter-religioso durante os 18 dias de evento. Poucos seguidores de Zaratustra estavam presentes, apenas um muçulmano, um jainista e alguns budistas e hindus. Comemorando um século, em 1993, realizou-se o 2º Parla- mento Mundial das Religiões. Neste momento, já havia 10 mil se- guidores de Zoroastro nos EUA, quatro milhões de budistas, um milhão de hindus e 70 mil jainistas. Somente em Chicago, os mu- çulmanos eram 250 mil e os budistas, divididos em 28 organiza- ções, eram 155 mil (Cf. VIGIL, 2006, p. 425). Neste encontro, os participantes aprovaram a Declaração por uma Ética Mundial – temática na qual são destacadas as con- tribuições do teólogo católico Hans Küng e da Fundação Ética Mundial. Foram aprovados os seguintes princípios: 1) Não é possível uma nova ordem mundial sem uma ética mundial. 2) A exigência fundamental desta ética é que todo ser hu- mano seja tratado de forma humana. 3) É necessário criar urgentemente uma cultura da não vio- lência e do respeito por cada ser vivo. 4) Da mesma forma, são essenciais uma cultura da solida- riedade e uma ordem econômica justa. 5) Deve existir uma cultura da tolerância e de paridade de direitos e igualdade entre homem e mulher. 6) É necessária uma transformação de consciência, sem a qual as propostas anteriores não seriam profundas ou possíveis. Para mais informações sobre o tema, sugeri- mos que leia o texto de Marcelo Barros sobre o Panora- ma atual do diálogo inter-religioso. 137 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Em 1999, prosseguindo com a meta de contribuição das reli- giões para o respeito, o entendimento, a cooperação e a harmonia no mundo, o Parlamento das Religiões reuniu mais de sete mil pes- soas na Cidade do Cabo, na África do Sul. Em 2004, o 4º Parlamento das Religiões do Mundo reuniu oito mil líderes religiosos em Barcelona, na Espanha. Guiados pela ética mundial, temas importantes como a luta contra a violência religiosa, o acesso à água potável, a defesa dos refugiados e o can- celamento da dívida externa dos países em desenvolvimento fo- ram abordados. Organização Mundial das Religiões Um episódio interessante foi a fundação do Templo da Com- preensão em 1960, pertode Washington. A iniciativa foi de Judith Hollister, que colocou entre os membros fundadores o patriarca ecumênico Atenágoras, o Dalai Lama, Thomas Merton, Sarvepalli Radhakrishnan, Albert Schweitzer, U. Thant e os papas João XXIII e Paulo VI. A construção desse templo tem seis alas, sendo cada uma delas oferecida a uma grande religião: budista, cristã, chine- sa, hindu, judaica e muçulmana. Em 1970, em uma Assembleia em Genebra que contou com a presença do Conselho Mundial de Igrejas e da Igreja Católica, houve a proposta de uma Organização Mundial das Religiões. O Templo da Compreensão, apesar de manter seu caráter simbólico, restringiu sua ação aos EUA. Conferência Mundial de Religiões pela Paz Expandindo a sensibilidade dialogal no compromisso com as comunidades mais ameaçadas da Terra, em outubro de 1970, na cidade de Kyoto (Japão), foi realizada a Conferência Mundial de Religiões pela Paz (WCRP). O documento final acentua a convicção da unidade familiar humana e o compromisso com os filhos em maior risco no planeta. Além dos 77 ocidentais, também participa- ram 139 membros da Ásia e da África. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso138 Dom Hélder Câmara, presente no evento, escreveu que este encontro era o sonho de sua vida. Ali, também estiveram presen- tes Raimon Panikkar, Eugene Blake, Thich Nhat Hanh e o metropo- lita de Moscou Galitski Filarete. Ao tornar-se uma organização mundial, a Conferência Mun- dial de Religiões pela Paz continuou realizando uma série de ações com enfoque na ética mundial. Na Assembleia da Jordânia, em 1998, houve uma grande repercussão em razão da ausência de Dalai Lama, motivada por restrições políticas. Em Kyoto, celebraram-se os 30 anos dessa Conferência. Sua realização mais recente, em 2006, também em Kyoto, tratou de temas ligados às religiões na transformação dos conflitos, na cons- trução da paz e no desenvolvimento sustentável. A Conferência Mundial de Religiões pela Paz foi constituindo redes regionais e, em agosto de 2007, foi realizado em Teresópolis o 3º Encontro da Rede Inter-religiosa Latino-americana de Educa- ção para a Paz (RILEP), em uma parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Os desafios da paz não passam apenas pelo enfrentamento das questões bélicas, mas, também, por uma ética mundial de inclu- são social. Assim, outras redes participaram deste processo, como a Rede Mundial de Religiões para as Crianças (GNRC) que, junto ao Unicef, trabalha pela defesa da infância no mundo. Iniciativa das Religiões Unidas (URI) Em 1995, na celebração inter-religiosa que marcou os 50 anos da ONU, o bispo episcopal da Califórnia William Swing per- guntou aos presentes: "Se as nações do mundo inteiro podem se ajuntar para buscar a paz, por que as religiões não podem fazer o mesmo?". Daí por diante, ele percorreu o mundo com esta preo- cupação. Esteve com lideranças religiosas como Madre Teresa de Calcutá, o Dalai Lama, o arcebispo anglicano Fitzgerald de Canter- bury, o cardeal Arinze do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter- -religioso e o próprio papa João Paulo II. 139 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso A finalidade da Iniciativa das Religiões Unidas (URI) é traba- lhar para a erradicação de toda violência feita em nome da reli- gião, para a criação de culturas de paz, para a justiça social, para a garantia dos direitos humanos, para o cuidado com a Terra e a comunidade de vida. Em junho de 1996, realizou-se a 1a Conferência Mundial da URI, que contava com 55 pessoas. Com encontros anuais, esse nú- mero foi se ampliando e, atualmente, opera com mais de 200 cír- culos de cooperação local em mais de 60 países, envolvendo mais de 80 tradições religiosas, grupos espirituais e nações indígenas. Um desses círculos está no Rio de Janeiro e surgiu alguns anos antes como Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro (MIR). O MIR nasceu durante a ECO-92, em um contexto de vigí- lia inter-religiosa no aterro do Flamengo com milhares de pessoas de 25 tradições religiosas. Tornou-se um programa permanente do Instituto de Estudos da Religião (ISER), articulou-se na campa- nha do sociólogo Betinho contra a fome, participou do movimen- to pela ética na política e das manifestações pela paz organizadas pelo Viva Rio. Em 1997, com a troca de experiências entre o MIR e a URI, e com a amizade entre o padre Luís Dollan – argentino radicado em Nova York e membro fundador da Iniciativa das Religiões Unidas – e D. Paulo Evaristo Arns, bem como outras pessoas envolvidas no diálogo inter-religioso em São Paulo, foi possível a organização do 1º Encontro Nacional Inter-religioso da URI. O encontro foi reali- zado em Itatiaia com 140 pessoas de diversas crenças, tais como anglicana, antroposófica, Bahá’i, Brahma Kumaris, candomblé, católica, evangélica, Grande Fraternidade Branca Universal, Le- gião da Boa Vontade, Hare Krishna, hinduísmo, povos indígenas, islã, kardecista, luterana, maçonaria, budismo Mahayana, igrejas messiânica, metodista e presbiteriana, Religião de Deus, Rosacruz, Santo Daime, espiritualismo, sufismo, budismo tibetano, umban- da, xamanismo, xintoísmo, Oomoto e zen-budismo. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso140 Fórum Social Mundial e Religiões Na busca pela construção de uma comunidade humana aberta e dialogal, diversas entidades brasileiras e de várias outras nações organizaram o Fórum Social Mundial (FSM), que se reuniu, pela primeira vez, de 25 a 30 de janeiro de 2001, na cidade de Por- to Alegre, Rio Grande do Sul. Em contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, que formula as estratégias neoliberais de domínio mercantil do mundo, o FSM articula a tomada de posição ativa para colocar em primeiro lugar os interesses da humanidade e da comunidade de vida do planeta, e não os interesses financistas, exploratórios e mercantis. Dentre os avanços do FSM está a presença gradativa das reli- giões. Desde o início, existiam pessoas e grupos ligados a tradições religiosas, mas, pelo caráter laico do FSM, houve resistência a uma participação mais específica e destacada. Com certa improvisação, em 2003, iniciou-se uma presença inter-religiosa que foi avançan- do com mais consistência nos anos seguintes. Ali, estiveram pre- sentes diversos teólogos e lideranças religiosas, no que se chamou Projeto Kairós: articulação inter-religiosa mediada pela Iniciativa das Religiões Unidas (URI), pela Caritas, pela Red Cono Sur de Cen- tros Laicos, Ameríndia, Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Conse- lho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), entre outros. Outro projeto encaminhado ao FSM de 2003 foi a proposta de organizar o 1º Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), com interlocução ecumênica e inter-religiosa. Realizado em Porto Alegre, em 2005, o FMTL teve o tema Teologia para outro mundo possível. Em 2007, o 2º FMTL foi em Nairóbi, no Quênia, com o tema Espiritualidade para outro mundo possível. Em 2009, o 3º FMTL, desta vez em Belém do Pará, trouxe o tema Água, terra, teologia: para outro mundo possível. Um dos critérios de partici- pação é o compromisso inter-religioso, e o primeiro eixo temático é Religiões, Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso. 141 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Promovem o FMTL: a Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT), a Ameríndia, a Sociedade de Teologia e Ciência da Religião (SOTER), o Centre de Théologie et d’Éthique Contextuelles Québécoises (CETECQ), o Centro Ecumênico de Ser- viço à Evangelização e Educação (CESEEP), o Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria (CECA), a Comunidadede Educação Teológica Ecumênica Latino-Americana e Caribenha (CETELA), a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e o Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Iniciativas católicas Com a declaração Nostrae aetate (NA), a Igreja Católica as- sume oficialmente, no Concílio Vaticano II (1962-1965), a abertura de caminhos para o diálogo com as religiões não cristãs, apesar de o documento referir-se, mais diretamente, às tradições judaica e muçulmana. Mais importante do que o texto da declaração foi a tomada de decisão pelo diálogo. O Dignitatis humanae (DH), outro documento que trata da liberdade religiosa, também tem este ca- ráter de reconhecimento das tradições religiosas não cristãs. O Secretariado para os Não Cristãos, instituído pelo papa Paulo VI em 1964, define mais tarde a concepção do diálogo inter- -religioso como o "conjunto das relações inter-religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outras confissões religiosas, para um mútuo conhecimento e um recíproco enrique- cimento" (cf. SECRETARIADO PARA OS NÃO-CRISTÃOS, 2001, n. 3). Esse Secretariado se torna, em 1988, o Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso. Um dos marcos mundiais do encontro das religiões foi a Jornada Mundial de Oração pela Paz, iniciada pelo papa João Paulo II. O evento foi em Assis, na Itália, em 1986, com a presença de budistas, judeus, muçulmanos, representantes das re- ligiões tradicionais da África, ortodoxos cristãos, protestantes e ca- tólicos romanos. A espiritualidade comum e o compromisso social foram duas dimensões do evento que continuaram a repercutir: a © Missiologia e Diálogo Inter-religioso142 oração em comum – Deus escuta em todas as línguas simbólicas das religiões – e a preocupação com a paz – critério ético para le- gitimidade da religião. A convocação para as Jornadas de Oração despertou ativi- dades concomitantes em outras regiões do mundo católico. Em 2002, por exemplo, vimos chamadas como esta: Em união com João Paulo II, que convidou para Assis [...] os dirigen- tes das principais religiões da Humanidade para orarem pela Paz, o Cardeal Patriarca de Lisboa convida todas as Comunidades da Dio- cese a participar nesse mesmo dia em duas celebrações, uma ecu- mênica e outra inter-religiosa (PARÓQUIAS DE PORTUGAL, 2002). Assis é um lugar simbólico. Ali, em 2006, foram celebrados os 20 anos da primeira convocação feita pelo papa João Paulo II, mas as iniciativas se multiplicaram pelo mundo a cada ano. Em 2008, o Chipre foi sede de mais um Encontro Inter-religioso de Oração pela Paz, com o tema A civilização da paz: religiões e cul- turas no diálogo. Documentos para o Diálogo Inter-religioso Do Concílio Ecumênico Vaticano II, os documentos mais con- sultados e citados como inspiradores iniciais do diálogo com as religiões são: Nostra aetate (Declaração do Concílio Vaticano II so- bre as religiões não cristãs, de 1965), Dignitatis humanae (Declara- ção do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, de 1965), Ad gentes (Decreto do Vaticano II sobre a atividade missionária da Igreja, de 1965) e Lumen gentium (Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, de 1965). Dos organismos específicos, vale a pena conhecer o Diálogo e missão (documento do secretariado para os não cristãos sobre igreja e religiões, de 1984) e o Diálogo e anúncio (do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, de 1991). Das Conferências dos Bispos da Ásia, são marcos históricos: Teses sobre o diálogo inter-religioso (consulta teológica de 1987) 143 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso e o Documento de Síntese da Federação das Conferências Episco- pais da Ásia (FABC, 1998). Vivendo como minoria, as igrejas cristãs avançaram muito no diálogo e no empenho pela vida de todos, buscando os recursos na própria história milenar dos povos locais para "colocar-se na defesa dos pobres e dos elos mais fracos da sociedade". Da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), temos alguns posicionamentos na 3a Conferência de Puebla, em 1979, e na 4a Conferência de Santo Domingos, em 1992, além de textos mais aprimorados na 5a Conferência de Aparecida, em 2007, com destaque para o renascimento cultural e religioso dos povos indí- genas do continente e das tradições dos afro-descendentes. Documento Diálogo e Anúncio O Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso elabo- rou, em 1991, o documento Diálogo e anúncio, que se tornou um marco iluminador. Na parte das disposições para o diálogo inter-religioso, diz-se que o diálogo exige equilíbrio. Vejamos trechos desse documento: Requer uma atitude equilibrada [...] outras disposições requeridas são a vontade de se empenhar em conjunto, ao serviço da verdade, e a prontidão em se deixar transformar pelo encontro (n. 47). Diz-se, ainda, que o diálogo exige, também, convicção reli- giosa: A sinceridade do diálogo inter-religioso exige que se entre nele com a integralidade da própria fé (n. 48). E afirma que o diálogo exige abertura à verdade: [...] a verdade não é algo que possuímos, mas uma pessoa por quem devemos nos deixar possuir. Trata-se, portanto, de um pro- cesso sem fim. [...] os cristãos devem estar dispostos a aprender e a receber dos outros e por intermédio deles os valores positivos das suas tradições (n. 49). Quando trata dos obstáculos ao diálogo, aponta algumas causas: © Missiologia e Diálogo Inter-religioso144 Uma fé escassamente enraizada. Um conhecimento e uma compreensão insuficientes do credo e das práticas das outras religiões. As diferenças culturais que surgem dos níveis diversos de instrução ou do uso de línguas diferentes. Fatores sociopolíticos ou certos pesos do passado. Uma compreensão errônea do significado de termos como conver- são, batismo, diálogo. Auto-suficiência, falta de abertura, que levam a atitudes defensivas ou agressivas. A falta de convicção acerca do valor do diálogo inter-religioso, que alguns podem considerar como uma tarefa reservada a especialis- tas e outros como um sinal de fraqueza ou até de traição à fé. A suspeita das motivações dos parceiros para o diálogo. Um espírito polêmico, quando se exprimem convicções religiosas. A intolerância e a falta de reciprocidade no diálogo, o que pode levar à frustração. Certas características do atual clima religioso: o crescente materia- lismo, a indiferença religiosa e o multiplicar-se de seitas religiosas, que geram confusão e novos problemas (n. 52). O documento não termina nos obstáculos e afirma a espe- rança: Houve progressos na compreensão recíproca e na cooperação ati- va. O diálogo também teve um impacto positivo sobre a própria Igreja. Também outras religiões foram levadas, através do diálogo, à renovação e a uma maior abertura. O diálogo inter-religioso per- mitiu à Igreja compartilhar com outros os valores evangélicos. E por isto que, apesar das dificuldades, o empenho da igreja no diálogo se mantém firme e irreversível (n. 54). 6. DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO: URGÊNCIA DA MUN- DIALIZAÇÃO Ao compararmos o mundo em que vivemos atualmente com outros tempos, temos de considerar as continuidades e diferen- ças. Apesar dos impérios e das intervenções coloniais, as socieda- des humanas viveram, durante séculos, seus nichos culturais com 145 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso bastante isolamento. As migrações e os contatos comerciais cria- ram encontros, mas nada comparável ao que vivemos hoje. O conhecimento mútuo, com as novas tecnologias e os meios de comunicação, tornou o mundo uma aldeia global. É o que canta Gilberto Gil, na música "Parabolicamará" (1992): [...] antes mundo era pequeno porqueterra era grande, hoje mundo é muito grande porque terra é pequena, do tamanho da antena parabolicamará . Os livros, as revistas especializadas, os documentários te- levisivos e a internet colocam a população em contato com a di- versidade cultural e religiosa do mundo. Já não têm tanta reper- cussão as publicações preconceituosas ou defensoras da religião oficial. Uma religião africana é apresentada como religião e não mais como superstição. A apresentação do candomblé é feita com o mesmo respeito com que se mostra o zen-budismo ou o cristia- nismo. Nossos avós, ou até mesmo nossos pais, talvez não tenham conhecido nenhuma pessoa de outra religião. Havia uma distân- cia significativa entre as comunidades das religiões, de tal modo que não se colocava a questão do diálogo. No máximo, havia uma curiosidade intelectual ou imaginação literária. Agora, o mundo é outro. Na mesma cidade e no mesmo bairro convivem etnias di- ferentes, culturas variadas, tradições religiosas muito distintas. A pluralidade das religiões está no trabalho, na cidade, nos bairros, nos prédios residenciais e até dentro de uma mesma família. Mesquitas, templos hindus, sinagogas, capelas, terreiros de orixás e templos evangélicos compartilham o mesmo espaço urba- no e, muitas vezes, com excessiva proximidade. Pela primeira vez na história da humanidade, vivemos em um contexto tão plural. O diálogo está aí como possibilidade imediata. Não se trata do encontro com uma religião distante no tempo e no espaço. A oportunidade está no presente, basta tomar a iniciativa. As religi- © Missiologia e Diálogo Inter-religioso146 ões não são abstrações longínquas. Elas têm o rosto da vizinhança, dos amigos e dos moradores de uma mesma região. Apesar disso, alguns ainda propõem a teoria do conflito de civilizações. O livro O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial, de Samuel Huntington, ajudou a passar uma ideia de que a sociedade ocidental greco-cristã está sob grave risco, e que há de se enfrentar, agressivamente, o avanço das ameaças que pesam sobre nós. São apresentadas as questões mundiais centradas nos embates entre as religiões e os grandes blocos de civilizações. É um recado que dificulta os esforços de diálogo porque propõe o alerta defensivo contra comunidades humanas em bloco, como se fossem sociedades fechadas, como um exército à espera de um comando de ataque. Contestando esta visão míope e destacando o interfluxo que faz das civilizações e das culturas o campo do encontro, a ocasião de engrandecimento mútuo e a oportunidade de avanço criativo da história humana, Edward Said escreve o texto O choque da ig- norância. Apesar das intransigências dos poderes econômico, po- lítico e religioso, as comunidades humanas sempre promoveram trocas de saberes e compartilhamento de valores, e estão disponí- veis para projetos dialogais. Panorama das religiões no mundo Os números também podem nos ajudar a dimensionar o atual desafio mundial. Vejamos a tabela a seguir: Tabela 1 Adeptos na população mundial – diversas religiões e não religiosos – metade de 2005 Continentes África Ásia Europa América Latina América do norte Oceania Mundo % Número Países Cristãos 410,9 350,6 553,2 517,1 275,3 26,4 2.133,8 33,1 238 Muçulmanos 357,8 910,3 33,3 1,7 5,2 0,4 1.308,9 20,3 206 Hindus 2,6 853,3 1,4 0,7 1,4 0,4 860,1 13,3 116 Confucionistas Taoistas 0,3 403,5 0,2 0,2 0,7 0,1 404,9 6,3 94 Budistas 0,1 372,7 1,6 0,7 3,1 0,5 378,8 5,9 130 147 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Continentes África Ásia Europa América Latina América do norte Oceania Mundo % Número Países Étnicos 107,1 143,1 1,2 3,1 1,2 0,3 256,3 4,0 144 Judeus 0,2 5,3 2,0 1,2 6,1 0,007 13,0 0,2 56 Sem religião 6,0 602,3 108,3 16,1 32,6 3,9 769,3 11,9 237 Ateus 0,6 123,7 21,9 2,7 2,0 0,4 151,6 2,3 219 Outras religiões 2,3 152,7 1,6 14,7 4,5 0,5 176,9 2,7 - Total População 887,9 3.917,5 724,7 558,2 332,1 32,9 6.453,6 100,0 238 % por continente 13,7 60,7 11,2 8,6 5,2 0,5 100,0 232,3 Fonte: adaptado de ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA – Book of the Year (2006, p. 282). Observe os maiores grupos religiosos do mundo – cristãos, muçulmanos, hindus e budistas – e veja em que continentes estão mais presentes. É interessante notar, também, o expressivo nú- mero dos “sem religião”, principalmente na Europa, na Ásia e na América do Norte. Assim como no Brasil, conforme a Tabela 3 da unidade anterior, o avanço dos sem religião foi de 0,8%, em 1970, para 7,4%, em 2000, fato que deve ser considerado. Observe, por fim, a incidência de religiões ligadas às origens étnicas da África e da Ásia. Na América Latina, embora seja em número pequeno, a visibilidade e a diversidade das comunidades indígenas que afirmam suas tradições originais vem crescendo nos últimos tempos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O islamismo, há uma década, já superou o catolicismo em número de adeptos, e cresce na Europa, África Ocidental, Estados Unidos, e também no Brasil. Há que destacar a presença muçulmana na Europa: são mais de 500 mesquitas na Holanda, está chegando a um milhão de adeptos na Espanha, já supera o número de anglicanos na Inglaterra, com quase um milhão também. Nos Estados Unidos, há mais muçulmanos (cinco milhões) do que presbiterianos, mais que judeus, mais que episcopalianos. O budismo, com quatro milhões de adeptos nos EUA, tem em Los Angeles a cidade mais budista do mundo (VIGIL, 2006, p. 33). Por todo o planeta, a presença da diversidade religiosa torna-se instigação decisiva para o diálogo inter-religioso. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– © Missiologia e Diálogo Inter-religioso148 7. DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO COM AS TRADIÇÕES INDÍGENAS E DE ORIGEM AFRICANA Ao longo da História, o etnocentrismo contaminou tradições religiosas de tal modo que lhes obscureceu o olhar. Com a dificul- dade de colocar-se no ponto de vista do outro, foi exigido que sua verdade e seus modelos fossem impostos aos povos com que se defrontaram. Quando há um exagerado etnocentrismo, o vasto mundo das diferenças é visto como inconveniente, reprovável, estranho, peri- goso e condenável. Em vez da abertura ao outro, desenvolvem- -se olhares suspeitosos, que enxergam as multiformes expressões humanas como desviadas, distorcidas e fora do caminho. Cresce, assim, o desejo de repressão aos projetos dos outros. Nos últimos séculos, negros e indígenas foram proibidos de falar seu próprio idioma na América Latina. As pessoas não po- diam falar seu próprio nome em sua língua nativa nem viver seu próprio ritual em sua religião. Os pajés, ialorixás, profetas e tantos outros sábios foram perseguidos. Não podiam fazer suas curas com suas bênçãos nem cantar as canções de sua própria alma. As religiões dos orixás fo- ram proibidas, perseguidas e demonizadas. Parecia ser normal o ataque às expressões religiosas dos outros, vistas como maléficas e perversas. Na defesa natural da verdade, o preconceito disfarça- va-se em normalidade; Deus era tomado como parceiro em gra- víssimas perseguições e violências contra povos diferentes e suas tradições religiosas. Ao atravancar a ação do Espírito de Deus, que fala em muitas línguas e de muitas formas, o diálogo inter-religioso é prejudicado por aqueles que ainda participam deste desrespeito. Podemos dizer que na América Latina, como também em outras partes do mundo, as comunidades humanas, mediante ca- minhos muitas vezes tortuosos, fizeram das diversas tradições re- ligiosas uma síntese que integra o tecido cultural em que vivemos. 149 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Se nos tempos de negação do diálogo dizemos que "Deus escreveu certopor linhas tortas", podemos nós, hoje, acertar as linhas para que Deus não precise fazer tantos milagres e para que brote o grande milagre do amor que supera as barreiras das into- lerâncias. Por mais estranho que pareça a quem vive o diálogo inter- -religioso, ainda existem perguntas inquietantes aos setores reli- giosos: 1) As religiões indígenas pré-colombianas e afro-america- nas tinham algum valor espiritual? 2) As orações que milhões de indígenas e africanos diri- giam a Deus eram ou não acolhidas? 3) As religiões indígenas e africanas têm apenas uma pe- quena parcela de verdade ou são verdadeiras? 4) Se essas religiões forem falsas, não teria sido uma injus- tiça Deus tê-las privado, por milhares de anos, da verda- de? 5) Pode-se dizer que indígenas e africanos eram idólatras e não conheciam o verdadeiro Deus? A história do encontro entre o cristianismo e a grande diver- sidade de tradições afro-ameríndias é um desafio à compreensão e aos projetos de futuro das nações da América Latina e do Caribe. O longo, profundo e ainda desconhecido encontro das cul- turas e religiões indígenas com as tradições religiosas e práticas africanas está instigando os olhares mais atentos e dialogais. Diálogo com as tradições de origem africana O encontro malsucedido com as populações africanas nos últimos 500 anos nos desafia a compreender o passado e nos aler- ta para novos itinerários. Carlos Josaphat diz que é preciso reco- nhecer três grandes orientações dos processos que se deram no período colonial: A primeira foi a integração das populações negras no catolicismo, ao qual trazem uma contribuição muito particular como vitalidade e como expressão cultual [...]. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso150 Uma segunda reação das populações africanas foi a afirmação da sua religiosidade, em sua autonomia cultural e espiritual, mas com uma grande capacidade de adaptação e de acolhida de elementos da cultura branca [...]. A terceira é, sem dúvida, a versão mais nítida e forte da persistência das religiões africanas, que se ufanam de guardar as características negras dentro de uma inculturação brasileira cada vez mais afirma- da (JOSAPHAT, 2003, p. 115). Com presença significativa da população afrodescendente por toda a América Latina e Caribe, especialmente no Brasil, na Colômbia, em Cuba e no Haiti, negros pertencentes às diversas tra- dições religiosas desde a década de 1960 passaram a se organizar buscando o reconhecimento público de seu valor e a revisão ra- dical do estatuto de subalternidade que a sociedade impôs sobre suas origens culturais e religiosas. Na América Latina e no Caribe, a compreensão da necessi- dade de diálogo com as religiões de origem africana amadurece especialmente na década de 1970, e os movimentos ecumênicos acolhem, explicitamente, a articulação do diálogo na década de 1980. Dentre outros momentos históricos, podemos indicar os en- contros teológicos que foram chamados de Consultas sobre Teolo- gia e Culturas Afro-americanas e Caribenhas, realizados em 1985 e 1994. A Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT) recolheu a prática e a reflexão do Diálogo afro-inter-reli- gioso que foi se estabelecendo entre as diversas tradições cristãs e as religiões de origem africana. Na primeira consulta, em 1985, havia cristãos católicos roma- nos, metodistas, presbiterianos, batistas e episcopais, e também representantes do vodu, candomblé e lumbalu, com participantes do Haiti, República Dominicana, Curaçau, Suriname, Colômbia, Pa- namá, Peru, Brasil e Costa Rica (ASETT, 1986). Muitas organizações eclesiais, populares e universitárias se organizaram, fortalecendo o conhecimento das tradições religio- 151 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso sas de origem africana e o diálogo com elas. Em cada país, muitas iniciativas avançaram nas últimas décadas, não sendo sequer pos- sível descrever aqui todo este rico processo. No Brasil há também intenso trabalho em alguns setores ecumênicos que buscam este diálogo com as religiões de origem africana. Em 1990, nasceu em São Paulo o Atabaque, um grupo de reflexão interdisciplinar sobre teologia e negritude que reúne pessoas ligadas à Teologia, Filosofia, Pedagogia e outras áreas, ne- gros e brancos, mulheres e homens, de igrejas cristãs e de religiões afro-brasileiras. O grupo está vinculado ao Programa de Teologia e Culturas Afro-americanas da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT, 1986). No âmbito católico, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), trabalhando com a mobilização de bispos, sacerdo- tes e agentes de pastoral negros, organizou a Campanha da Frater- nidade de 1988 sob o tema Os 100 anos da Lei Áurea. Isso foi um marco importante para o difícil avanço em direção ao diálogo com as tradições afrodescendentes. No contexto do diálogo inter-religioso, as vivências e os tra- balhos de elaboração intelectual provocaram o avanço da reflexão, com a contribuição significativa de D. José Maria Pires, de Antô- nio Aparecido da Silva, de José Geraldo da Rocha, de Marcos Ro- drigues, de Volney Berkenbrock, de Raimundo Cintra, de Maricel Mena López, de Peter Nash, de Sílvia Regina de Lima e Silva, de Heitor Frisotti e, principalmente, do Pe. François de l’Espinay. Com a aproximação atenta e respeitosa destes últimos ao candomblé na Bahia, o diálogo ganhou uma consistência especial. Na palestra de abertura da 2a Consulta de Teologia e Cultu- ras Afro-americanas e Caribenhas, em novembro de 1994, D. José Maria Pires disse que as religiões vindas da África já foram tratadas como superstições diabólicas e grosseiras e que, em tempos não muito remotos, uma consulta de teologia africana seria tratada como heresia e blasfêmia. No entanto, atualmente, esta pode ser considerada um momento de: © Missiologia e Diálogo Inter-religioso152 Ecumenismo, porque em uma atitude de humildade e de grandeza, reconhecemos que a África tem o que nos ensinar sobre Deus e sobre o seu projeto do reino: um mundo fraterno, solitário, alegre e feliz (PIRES, 1994). Entre as publicações do movimento ecumênico, o livro Abrindo sulcos aponta para as veredas que teólogos e teólogas ne- gros estão escavando em diálogo criativo. A leitura do referencial judaico-cristão a partir de uma sensibilidade negra, a leitura da tradição africana em perspectiva cristã, a percepção da riqueza do encontro afro-indígena e a autonomia de grupos africanos mais tradicionais e resistentes ao sincretismo, são campos semeados, cultivados, com muito que colher. O futuro dirá (Cf. LÓPEZ, 2004). A presença de representantes do candomblé no Rio de Ja- neiro, em 2005, na 3ª Jornada Ecumênica em Mendes, convocada pelo Fórum Ecumênico Brasil (FE-BRASIL), é fruto deste caminho dialogal recém-iniciado. É encantador o testemunho da comunidade negra, que, em- bora desrespeitada, não quer guardar ressentimentos paralisantes e deseja participar da construção conjunta de um mundo em que todos caibam, em que as diferentes formas de celebrar e defender a vida se encontrem. Diálogo inter-religioso e povos indígenas A década de 1970 também foi significativa para o diálogo com os povos indígenas do continente latino-americano. Tomou- -se consciência de que houve na história da América Latina, ao lado de uma trágica imposição cultural europeia contra os povos, um encontro religioso cultural ainda mal conhecido. De um lado, muitos elementos religiosos indígenas entraram no cristianismo. De outro, elementos do cristianismo foram reinterpretados pelas matrizes religiosas indígenas. Ainda assim, houve povos que se dis- tanciaram para manter suas religiões originais. Nosanos 1970, a ampla reflexão sobre o diálogo do cristia- nismo com as religiões tradicionais fez surgir a Articulação Ecumê- 153 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso nica Latino-Americana de Pastoral Indígena (AELAPI), que reuniu organismos ecumênicos, lideranças religiosas indígenas, teólogos, pastores e agentes de pastoral cristãos. Promovendo cursos ecu- mênicos de formação regional e continental, e participando das consultas e encontros das igrejas cristãs, a AELAPI mantém suas reuniões, realizadas duas vezes ao ano, em sete regiões das Amé- rica Latina. Em uma década, seis encontros latino-americanos foram de- dicados a esta temática: em Melgar, na Colômbia, em 1968; em Caracas, na Venezuela, em 1969; em Iquitos, no Peru, em 1971; em Assunção, no Paraguai, em 1972; em Manaus, no Brasil, em 1977; e em Tlaxcala, no México, em 1978. Em uma consulta ecumênica em 1986, no Equador, lideran- ças indígenas de 15 nações apontaram para a forte sujeição reli- giosa que desqualificou a grandeza das crenças originárias, além de colocar a questão dos 75 milhões de parentes violentamente extintos durante o período colonial. Desde 1990, a AELAPI promoveu, ainda, cinco Encontros Continentais de Teologia Índia. Sempre com maioria indígena de participantes, os encontros foram realizados no México, em 1990; no Panamá, em 1993; na Bolívia, em 1997; no Paraguai, em 2002 e no Brasil, em 2006. Com a presença de indígenas, de cristãos indí- genas e de assessores, foram estabelecidos três objetivos: • Articulação das organizações indígenas e daqueles que atuam com os povos indígenas; • Promoção da teologia índia e a articulação com outros te- ólogos da América Latina e de outros continentes; • Capacitação dos futuros formadores de agentes de pasto- rais indígenas. No 5º encontro, de 21 a 26 de abril de 2006, com o tema A força dos pequenos: vida para o mundo, dois representantes da Europa (Alemanha e Holanda) e outros de 13 países das três Amé- © Missiologia e Diálogo Inter-religioso154 ricas, bem como religiosos e lideranças indígenas, dialogaram so- bre o fortalecimento da autonomia religiosa indígena. Anísio de Souza Macuxi afirma: [...] o encontro com os parentes de outras partes do continente nos dá a consciência da importância da nossa religião na luta por sobre- vivência, por liberdade. (CIMI, 2006). No Brasil Desde a década de 1950, com a presença silenciosa das Ir- mãzinhas de Jesus junto aos Tapirapé, uma nova sensibilidade para com as tradições religiosas indígenas cresceu no Brasil. Genoveva, Elizabeth e Mayle, missionárias francesas durante mais de 50 anos, ficaram ao lado de uma comunidade com sua sobrevivência terri- velmente ameaçada. Não converteram ninguém nem anunciaram o Evangelho explicitamente, mas salvaram um povo da extinção. Não há uma igreja Tapirapé ou um Tapirapé cristão, mas há um povo que cresce e que pode dialogar com base em sua experiência cultural e religiosa. É iluminador o testemunho de D. Pedro Casal- dáliga sobre esta "pequena-grande-simbólica" presença: Para minha conscientização e para minha pastoral, tive a sorte de viver o primeiro contato com os povos indígenas à sombra lumino- sa das Irmãzinhas de Jesus no povo Tapirapé. [...] Logo no início desta nova "missão", que seria depois a Prelazia de São Félix do Araguaia, eu senti como um detalhe amoroso da Providência a presença aqui de uma Fraternidade das Irmãzinhas. [...] contribuição pioneira à nova pastoral indigenista que apenas despontava (CASALDÁLIGA apud FOUCAULD, 2002, p. 8). Em 1972, constituiu-se o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reunindo as práticas missionárias mais abertas com os po- vos indígenas de todo o Brasil. Como organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Cimi tornou-se a referência aglutinante das ações ecumênicas e do diálogo com as tradições indígenas. Foi organizada a Articulação Nacional do Diálogo Inter- -religioso e Inculturação (ANDRI) para promover o estudo, a refle- xão e a redefinição das práticas missionárias. Com isso, abriu-se caminho para uma Igreja com rosto, língua e expressões indígenas. 155 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Com o tema Por uma terra sem males, a Campanha da Fra- ternidade de 2002 foi uma oportunidade para a disseminação crescente do reconhecimento dialogal dos mais de 200 povos ain- da presentes no Brasil e da luta pela garantia da terra e dos direitos indígenas. Por toda a América Latina, também houve intensa transfor- mação na prática missionária de inserção na vida de centenas de povos. Na Igreja Católica da América Latina No Encontro de Pastoral Indígena, promovido pela Celam, no Chile, em 1985, os bispos tomaram por compromisso trabalhar infatigavelmente pelo resgate das culturas indígenas. Na consulta feita pela CELAM em 1987 no México, os 47 in- dígenas, de 20 povos diferentes, já em clima de preparação dos 500 anos da chegada dos europeus à América, além de solicitar o pedido de perdão por parte do cristianismo, fizeram convocações pelo fortalecimento da resistência apoiada na fé que receberam de seus antepassados. Em cada país, essas tomadas de posição foram crescendo. Em 1989, os bispos da América Central, principalmente os do Mé- xico, escreveram uma declaração conjunta assumindo os indíge- nas como povo, como sujeitos dialogantes com toda a sua estru- tura, sua vida, sua história, como um povo de autodeterminação, cosmovisão e religião. A obra O rosto índio de Deus, de Manuel M. Marzal, Bartolo- meu Melià, Eugenio Mauser e outros autores, reuniu consistentes reflexões baseadas no novo esforço pelo encontro com os povos indígenas. Com estudos sobre a religião dos Guaranis do Paraguai, dos Maias de Chiapas e da Guatemala, dos Quéchuas do Peru, dos Aimaras do Chile, do Peru e da Bolívia, e dos Rarámuri-Pagótuame do México, foi possível observar que muitas outras nações conti- nuam a emergir práticas dialogais. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso156 Toda esta mobilização repercutiu nas Conferências Latino- -Americanas de Puebla, de Santo Domingos e, recentemente, em 2007, na Conferência de Aparecida. Neste movimento de encontro (ou reencontro) das tradições indígenas, buscou-se a acolhida ou a construção de uma teologia índia-cristã, a partir da reunião, já em curso, da sensibilidade dialogal com o mútuo simbolismo, e de uma teologia índia-índia, que brota da originalidade das religiões tradicionais. Cristãos indígenas têm vivido suas experiências religiosas de forma singular. É o que expressa o sacerdote zapoteca Eleazar Lo- pes: Nós estamos cindidos interiormente por um duplo amor que não nos deixa viver tranqüilos: amamos nosso povo e cremos em seu projeto de vida. E amamos nossa comunidade eclesial e cremos no seu projeto de salvação. Dois amores que convivem em nós. [...] Somos filhos de povos que, para sobreviver, cavaram profundos poços onde guardaram seus tesouros. [...] Cremos que o diálogo teológico será não só benéfico para os povos indígenas, mas também enriquecedor para as Igrejas que através dos indígenas se reencontrarão com o que há de mais puro da tradição cristã (LOPES, 1991, p. 5-17). 8. MACROECUMENISMO Dois momentos fortes deste itinerário dialogal com as reli- giões afro-ameríndias foram a Missa dos quilombos e a Missa da terra sem males. Contando com os artistas Milton Nascimento e Pedro Tierra na composição musical, com o influxo, a criação e a arte de D. Pedro Casaldáliga e a presença de D. José Maria Pires e D. Hélder Câmara, estes eventos marcaram época e repercutem, ainda hoje, nos caminhos desse macroecumenismo. A Missa da terra sem males, de D. Pedro Casaldáliga, PedroTierra e Martín Coplas, foi concelebrada, pela primeira vez, por quase 40 bispos na Catedral da Sé de São Paulo, no dia 22 de abril de 1979. Na canção de abertura, escuta-se a oração: 157 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso Em nome do Pai de todos os Povos, Maíra de tudo, excelso Tupã. Em nome do Filho, que a todos os homens nos faz ser irmãos. No sangue mesclado com todos os sangues. Em nome da Aliança da Libertação. Em nome da Luz de toda Cultura. Em nome do Amor que está em todo amor. Em nome da terra-sem-males, perdida no lucro, ganhada na dor, em nome da Morte vencida, em nome da Vida, cantamos, Senhor! (CASALDÁLIGA; TIERRA; COPLAS, 1980). Já a Missa dos quilombos, de D. Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento, foi celebrada pela primeira vez pelo próprio D. Pedro Casaldáliga, D. Hélder Câmara e D. José Maria Pi- res em 22 de novembro de 1981, no Recife. Na abertura, rezou-se: Em nome do Deus, que a todos os Homens nos faz da ternura e do pó. Em nome do Pai, que faz toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue. Em nome do Filho, Jesus nosso irmão que nasceu moreno da raça de Abraão. Em nome do Espírito Santo, bandeira do canto do negro folião. Em nome do Deus verdadeiro que amou-nos primeiro sem dividi- ção. Em nome dos Três, que são um Deus só, Aquele que era, que é, que será. Em nome do povo que espera, na graça da Fé, à voz do Xangó, o Quilombo-Páscoa que libertará. Em nome do Povo sempre deportado pelas brancas velas no exílio dos mares; marginalizado nos cais, nas favelas e até nos altares. Em nome do Povo que fez seu Palmares, que ainda fará Palmares de novo. – Palmares, Palmares, Palmares do Povo!!! A denominação afro-ameríndia, para redefinir a compreen- são da diversidade que vivemos no continente latino-americano, acompanhou os esforços dialogais das últimas décadas. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso158 Macroecumenismo também é outra designação original que emergiu das práticas e reflexões dialogais. Foi pela constante pre- sença profética, pastoral e poética de D. Pedro Casaldáliga e na Te- ologia da Libertação que este diálogo, acentuadamente afro-ame- ríndio, surgiu e foi assumido como macroecumênico. Trata-se de uma das grandes novidades da reflexão teológica latino-americana nestes últimos anos. O macroecumenismo começa cristão-afro-ameríndio e, de- pois, abre-se a todas as tradições religiosas e a toda a criação. Em Quito (Equador, 1992) foi realizada a Assembleia do Povo de Deus, um encontro inter-religioso de ampla preparação e arti- culação popular. Não foi um evento dos representantes oficiais das religiões, mas das pessoas que já viviam o ecumenismo, na luta em defesa da vida e dos direitos humanos. Lançado nessa Assembleia, o livro Espiritualidade da liber- tação, de D. Pedro Casaldáliga, publicamente propõe o termo "macroecumenismo" como o reflexo da prática latino-americana em curso. Na obra, afirma-se que, na experiência espiritual deste continente, acolheu-se a revelação do Deus macroecumênico, na sua amorosa comunicação com todos os povos e na convocação à construção da plural unidade em defesa dos pobres, como sinal do macroecumenismo das tradições religiosas (CASALDÁLIGA, 1992). José Maria Vigil (2006, p. 336) expressa a radicalidade latino- -afro-ameríndia desse macroecumenismo: Deus não está ligado a nenhuma raça, cultura ou gênero. Não tem dono, nem procurador nem substituto. Não é branco, ocidental, nem masculino. [...] Sequer é um Deus cristão, em contradição com o ser hindu, judeu, muçulmano... Nem sequer tem um nome, porque é o 'Deus de todos os nomes'. Todas as qualificações e determinações de Deus são fabricadas por nós, humanos, é responsabilidade nossa, e expressam nossas limitações. Deus está além de tudo o que sobre ele dizemos, con- fessamos e ensinamos. É um Mistério inabarcável, inapreensível e inexpressável. 159 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso [...] Esta experiência de Deus que não se vincula com exclusividade nem privilegiando a nenhuma minoria, e que age e salva em todo o universo e em toda a história, amplia nosso olhar e desparticulariza nosso comportamento. [...] O Ecumenismo de Deus nos impede de absolutizar mediações tais como nossa própria Igreja ou Religião. [...] Nosso 'lugar social religioso' que já não é o pequeno mundo de uma confissão particular, e sim – à imagem e semelhança de Deus – o amplo âmbito macro ecumênico, o universo das religiões, a hu- manidade buscadora de Deus. Cada vez mais, hoje, para ser reli- gioso há que sê-lo inter-religiosamente, e macro ecumenicamente. O macroecumenismo apresenta-se como um grande abraço à causa da humanidade plural e da comunidade de vida no planeta Terra. Trata-se de uma espiritualidade cósmica com terna amoro- sidade por cada criatura. Esse ecumenismo planetário retoma o sentido do termo oikoumene, que é toda terra habitada como casa comum. Esta consciência macroecumênica postula o profundo en- trelaçamento da família humana no mútuo enriquecimento e na cooperação entre as tradições religiosas e as culturas. 9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Retome as afirmações inspiradoras para o diálogo que estão na primeira uni- dade. Faça o exercício de citá-las de cor ou peça para alguém lê-las enquanto você identifica os autores. 2) Sobre o Diálogo Inter-religioso: a) A paridade para o diálogo inter-religioso só pode ser reconhecida na dig- nidade dos interlocutores e não nas doutrinas. b) O diálogo inter-religioso acolhe o processo das próprias civilizações e cul- turas que são pontuadas pela dinâmica de intercâmbio e diálogo. c) A interação das artes, técnicas e outros artifícios culturais são o âmbito de diálogo possível, sem os riscos da pretensão de diálogo também no religioso. d) O diálogo é afirmação clara das identidades, sem riscos de discernimento das vulnerabilidades mútuas. © Missiologia e Diálogo Inter-religioso160 e) O diálogo inter-religioso envolve uma distância e desenraizamento com a fé de cada participante do diálogo. 3) Quanto aos acontecimentos recentes para o diálogo inter-religioso: a) A Declaração do Vaticano II, Nostra Aetate, não abordou as questões necessárias sobre as relações entre a Igreja Católica e as religiões não cristãs. b) A Conferência Mundial das Religiões em favor da Paz (Kyoto, 1970) recu- sou o compromisso comum das religiões com os oprimidos por ser tema da Teologia da Libertação. c) A Jornada Mundial de Oração pela Paz (Assis, 1986) foi feita à revelia do Papa João Paulo II, que não quis confundir diálogo com espiritualidade. d) A Jornada de Assis reuniu cristãos das tradições católico-romana, orto- doxa e protestante, budistas, judeus, muçulmanos e praticantes de reli- giões da África e das Américas. e) O Parlamento das Religiões (Chicago, 1993) reuniu 6.500 pessoas que recusaram a Declaração para uma Ética Mundial. 10. CONSIDERAÇÕES Chegamos ao término desta unidade de Diálogo Ecumênico e Inter-religioso. Tivemos a oportunidade de conhecer o panorama da mobilidade das religiões no mundo e de compreender a positi- vidade do pluralismo religioso. Ao nos depararmos com os organismos e acontecimentos mundiais do diálogo inter-religioso, pudemos captar o mundo em sua criativa construção dialogal. Estudamos as iniciativas católicas para o diálogo inter-reli- gioso e os desafios da globalização, bem como as urgências éticas e espirituais do diálogo entre as tradições religiosas. Na América Latina também há um desafio próprio, que é de caráter local, mascom repercussão mundial. Foi o que estudamos com relação às religiões indígenas, às tradições de origem africana e à perspectiva macroecumênica desencadeada por religiosos e teólogos da América Latina e do Caribe. Há ainda muito por fazer. Um próximo passo pode ser a to- mada de textos da sabedoria de vários povos, de várias tradições religiosas, para avançar no diálogo. 161 Claretiano - Centro Universitário © U4 - Diálogo Inter-religioso 11. E-REFERÊNCIAS Sites pesquisados BARROS, M. Panorama atual do diáologo inter-religioso. Disponível em: <http:// latinoamericana.org/2003/textos/portugues/Barros.htm>. Acesso em: 9 abr. 2012. BLOG DO MANATEE. Zaratrusta ou Zoroastro. 4 ago. 2006. Disponível em: <http:// manateesp.blogspot.com/2006/08/zaratrusta-ou-zoroastro.html>. Acesso em: 9 abr. 2012. CASALDÁLIGA, P.; TIERRA, P.; COPLAS, M. Missa da terra sem males. São Paulo: Edições Paulinas Discos, 1980. Disponível em: <http://www.servicioskoinonia.org/Casaldaliga/ poesia/terra.htm>. Acesso em: 9 abr. 2012. CELAM – Consejo Episcopal Latinoamericano. Disponível em: <http://www.celam.org/ MisionContinental/Documentos/Portugues.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2011. CIMI. Conselho Indigenista Missionário. Abr. 2006. 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