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Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 1 ALÉXIA T. DUCHOWNY JACYNTHO L. BRANDÃO JÚLIO C. VITORINO SUELI M. COELHO FUNDAMENTOS DE LINGUÍSTICA COMPARADA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS BELO HORIZONTE/2012 Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 2 SUMÁRIO p. Introdução 3 Texto 1A: Definindo Linguística comparada 8 Texto 1B: Arqueologias 18 Texto 2: Variação e mudança linguística 30 Texto 3: O método histórico‐comparativo 41 Texto 4: Tipologia linguística 52 Texto 5A: Famílias linguísticas do mundo 62 Texto 5B: As línguas indo‐europeias 75 Texto 6: A reconstrução do indo‐europeu 94 Texto 7A: Sociedade e cultura indo‐europeias 109 Texto 7B: Fonologia e morfologia indo‐europeias 120 Texto 8A: O sistema de casos 134 Texto 8B: A categoria de caso no indo‐europeu 141 Texto 9A: Contato linguístico 152 Texto 9B: Pidgins e crioulos 164 Texto 10: Sistemas de escrita 174 Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 3 INTRODUÇÃO Jacyntho Lins Brandão (Fale/UFMG) Houve uma vez em que os estudantes de Letras da UFMG mandaram confeccionar camisas com os dizeres: Como você vê, uma brincadeira divertida com uma das frases que mais costumava aparecer em livros tradicionais para ensino de línguas estrangeiras, sobretudo inglês. As oito línguas faziam parte do rol das habilitações ofertadas na Faculdade de Letras, envolvendo, além das modernas, duas antigas (o latim e o grego clássico) e dois alfabetos diferentes (o grego e o latino). No caso do grego, a transliteração para o alfabeto latino é: TÒ BIBLÍON ESTÌN EPÌ TÊI TRAPÉZĒI.1 Mas, mesmo com essa diversidade, não era difícil entender que as frases correspondiam umas às outras praticamente palavra por palavra. Antes de tudo, porque todas são línguas de uma mesma família, a indo‐europeia, representada na relação por três de suas dez ramificações: o itálico (com o latim e as quatro línguas dele procedentes: francês, espanhol, 1 A duração das vogais, quando for importante marcá‐la, será indicada assim: a) vogais longas: ā/ē/ī/ō/ū (o traço horizontal sobre elas se chama macro); b) vogais breves: ă/ĕ/ĭ/ŏ/ŭ (o símbolo sobre elas se chama braquia). THE BOOK IS ON THE TABLE LE LIVRE EST SUR LA TABLE EL LIBRO ESTÁ SOBRE LA MESA DAS BUCH IST AUF DEM TISCH TO BIBΛION EΣTIN EΠI THI TΡAΠEZHI IL LIBRO È SUL TAVOLO LIBER SUPER MENSAM EST O LIVRO ESTÁ SOBRE A MESA Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 4 italiano e português, chamadas de línguas românicas); o germânico (com o inglês e o alemão); e o grego. Na simples comparação, considerando a ordem das palavras e sua semelhança, não será difícil que você descubra a correspondência entre as mesmas. Experimente: QUADRO 1 Correspondências de “O livro está sobre a mesa” com o português Português O LIVRO ESTÁ SOBRE A MESA Inglês the book is on the table Francês le livre est sur la table Espanhol el libro está sobre la mesa Alemão das Buch ist auf dem Tisch Grego to biblíon estìn epì têi trapézēi Italiano il libro è su il tavolo Latim ‐ liber est super ‐ mensam Você deve ter encontrado dois problemas: 1. Com relação ao italiano, sul constitui uma contração da preposição su e do artigo il (do mesmo modo que, em português, temos do < de o e no < em o).2 2. Você deve ter notado que o latim não possui artigos e adota uma ordem diferente dos termos da oração: em vez de O livro está sobre a mesa Sujeito verbo locativo a ordem normal em latim é Liber super mensam est. Sujeito locativo verbo Tendo constatado essas duas diferenças, apenas para que a correspondência no quadro se faça palavra a palavra, anotou‐se a preposição su separada do artigo il, no caso do italiano, e escreveram‐se os termos latinos na ordem dos demais, deixando em branco os espaços em que as outras línguas apresentam artigos. 2 Aos poucos você se acostumará com os símbolos que utilizaremos: B < A indica que a palavra B procede de A, o que pode ser representado também assim, A > B. A ordem da procedência segue sempre a direção indicada pela seta. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 5 Agora observe na terceira coluna do QUADRO 1 as palavras que designam ‘livro’. Não será difícil constatar que elas se distribuem em três conjuntos, considerando‐se sua semelhança: o primeiro, com cinco termos; o segundo, com dois; e o terceiro, com apenas um. Vamos organizá‐los: QUADRO 2 Palavras para ‘livro’ 1 2 3 livro book biblion livre Buch libro libro liber Repare que essa distribuição corresponde exatamente às famílias linguísticas referidas antes: 1. latim e as línguas românicas; 2. línguas germânicas; 3. grego. As semelhanças, portanto, não são fortuitas, mas decorrem do fato de que: a) o francês, o italiano, o espanhol e o português originaram‐se do latim; b) o inglês e o alemão têm uma origem comum; c) o grego constitui um grupo isolado dentre as demais línguas indo‐europeias Mesmo que nos três grupos as palavras para designar ‘livro’ sejam diferentes, têm elas em comum o fato de que, na origem, nomeavam o material sobre o qual se escrevia: a) O termo grego biblíon deriva de byblos, ‘papiro’, a planta natural do Egito com a qual se produzia a folha (em grego khárta) em que se escrevia e com as quais se produziam os livros. O plural biblía passou para as línguas modernas como nome do conjunto de livros sagrados de judeus e cristãos, a Bíblia. b) Para book e Buch3 reconstitui‐se, no germânico, a palavra *bōks4, relacionada com *bōka, ‘faia’, porque os povos germânicos usavam cascas dessa árvore para escrever. De *bōks 3 Em alemão, todos os substantivos se escrevem com inicial maiúscula: Buch, Tisch etc. 4 Um asterisco antecedendo uma palavra indica que ela não é documentada, mas reconstituída, pelo método comparativo, a partir das palavras existentes nas línguas filhas. Isso se faz sistematicamente nos estudos de Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 6 provêm os termos do inglês antigo bōc (donde, por sua vez, procede book), alemão Buch, holandês bock, sueco bok etc., todos significando ‘livro’. c) A palavra latina liber significa originalmente ‘casca’, a ‘entrecasca’ em que se escrevia antes da adoção do papiro, passando a nomear, em seguida, o próprio livro. Os termos das línguas românicas procedem de librum, o qual dá origem a libro, em italiano e espanhol, livro, em português, e livre, em francês. Examine agora a última coluna do QUADRO 1, agrupando os termos de acordo com sua semelhança. Você encontrará quatro tipos, numa distribuição diferente da anterior: QUADRO 3 Palavras para ‘mesa’ mensam table Tisch trapézēi mesa table mesa tavolo Fica claro que as palavras do espanhol e do português, mesa, provêm do latim mensa. Entretanto, também as palavras da segunda coluna têm uma origem latina: tabŭla significa ‘tábua’, ‘tabuleiro’, estando na origem do italiano tavolo e do francês table (o português tem, da mesma origem, o termo tábua, assim como o espanhol,tabla; recorde‐se ainda que távola, com o significado de ‘mesa’, existe também em português, embora seja um arcaísmo, fossilizado, por exemplo, na referência ao Rei Artur e “os cavaleiros da távola redonda”). O inglês table procede do francês, por empréstimo, como acontece com grande parte do vocabulário daquela língua, em consequência do domínio normando sobre as Ilhas Britânicas (1066‐1154). O caso do alemão também se deve a um longo processo de empréstimos: (a) o termo original é o grego dískos, ‘disco, objeto circular’, ‘disco de arremesso’ (como continua a ser linguística histórico‐comparativa. No Texto 6, entenderemos melhor os procedimentos de reconstituição de palavras. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 7 usado nos jogos olímpicos); (b) o latim discus, ‘prato’, ‘travessa redonda’, constitui um empréstimo da palavra grega citada; (c) o germânico tomou emprestado o termo latino, *disku/diskuz, significando ‘prato’, ‘travessa’, ‘tábua de comida’, ‘bandeja’, ‘mesa’, donde provém a palavra do antigo‐alto‐alemão tisk/tisc, ‘mesa’, ‘prato’, ‘travessa’, ‘trípode’, ‘bandeja’, origem do termo do médio‐alto‐alemão tisch, ‘mesa’, ‘mesa onde se come’ e do alemão Tisch, ‘mesa’. É curioso que em alemão existe também uma outra palavra para ‘mesa’, ‘tábua’: Tafel, que procede do médio‐alto‐alemão tavele/tabele, por sua vez proveniente do antigo‐alto‐alemão tavala/tabala, empréstimo do latim tabŭla. Veja como esses fatos linguísticos sugerem que os germanos não possuíam uma palavra para ‘mesa’ e parecem ter tomado dos romanos tanto o objeto, quanto sua denominação. Enfim, o grego trápeza é uma abreviação de tetrapéza, isto é, ‘de quatro pés’, o que remete para a forma da mesa. Não continuaremos a explorar a origem dos demais termos de nossas oito frases. Mas, como você pôde observar, tudo que fizemos até aqui teve uma perspectiva comparativista. Esse será o vetor no nosso curso, com ênfase nas línguas indo‐europeias. Última observação: a atividade de comparação exige treinar a capacidade de observar, para perceber as semelhanças e diferenças. Como nosso tema é a comparação linguística, então nosso principal objetivo é desenvolver em você essa capacidade de observar o que acontece nas línguas. Trata‐se de uma atitude muito importante para que se torne capaz de observar também o que acontece na nossa própria língua, o português. Nas unidades seguintes, você tomará contato com muitas informações novas e conhecerá muitos fenômenos linguísticos. É evidente que não se espera que você aprenda as tantas línguas a que se fará referência, mas sim – o que é o mais importante – que tome as línguas e a linguística como objeto de conhecimento e de reflexão. Afinal, o homem é um animal que fala, logo, as línguas são um dos traços mais preciosos da condição humana. Ponto para você que escolheu estudar Letras! Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 8 DEFININDO LINGUÍSTICA COMPARADA Aléxia Teles Duchowny (Fale/UFMG) INTRODUÇÃO Ao tentar entender o que é Linguística comparada, é bem provável que você encontre uma definição diferente em cada autor que consultar. Até mesmo o nome que se dá a esta área do saber pode variar: Linguística comparativa, Linguística genética, Linguística contrastiva, Filologia comparativa... Para Robert Trask (2004), linguista americano, a Linguística comparada interessa‐se por identificar a origem comum de um grupo de línguas. O trabalho de reconstrução, que você verá no Texto 6 com mais detalhes, permite estabelecer as características de línguas que já não existem mais. É possível entender, então, as mudanças que levam as línguas a se diferenciarem e a originarem suas línguas‐filhas. Aqui vamos entender a Linguística comparada de uma maneira bem mais abrangente do que Trask (2004). Para nós, trata‐se de uma subárea da Linguística geral, podendo ser descritiva (sincrônica), histórica (diacrônica), e também especializada. Ela identifica diferenças, semelhanças e inter‐relações entre duas ou mais línguas, além de verificar se as línguas em questão possuem um ancestral comum. Além do mais, qualquer nível gramatical — lexical, morfológico, semântico, sintático, fônico — pode ser comparado. Vejamos cada uma dessas subpartes da Linguística comparada. 1 A Linguística descritiva comparada A Linguística descritiva comparada analisa línguas específicas, sem levar em conta as mudanças e variações que toda língua sofre ao longo do tempo. Ela também se preocupa com a classificação das línguas conforme suas características estruturais, sendo chamada de Tipologia linguística, que você verá no Texto 4. No caso da Tipologia linguística, a Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 9 O conceito de sujeito nulo (cf. Cunha e Cintra, 2001) O que é mesmo sujeito nulo (também chamado de oculto, por alguns autores)? Em português, dizemos: (1) Nós fomos à praia. Mas também é possível dizer, sem alteração de sentido (2) Fomos à praia. Em (1), a posição de sujeito está preenchida pelo pronome nós. Já em (2), houve o apagamento do sujeito, o que nos leva a afirmar que esta é uma frase de sujeito nulo. Em outras palavras, o sujeito nulo é aquele que não está materialmente expresso na oração, mas pode ser identificado No caso em questão, a identificação é feita pela desinência verbal ‐mos. comparação não leva em conta a origem das línguas, mas sim suas características em comum. Vejamos alguns exemplos de estudo de Linguística descritiva comparada. John Catford, em 1980, comparou os sistemas de duas línguas diferentes, o inglês e o francês, assim como a ocorrência das preposições nas estruturas de cada uma das línguas. Este linguista escocês afirma que, em 12 mil palavras do francês, em tradução/correspondência com o inglês, das 134 ocorrências da preposição dans (“dentro”, em francês), 73% correspondem a in (“dentro”, em inglês), 19% a into (“para dentro de”, em inglês) e 8% a outras preposições. Quando dans é precedida por um verbo de movimento, e seguida por um substantivo de lugar, a correspondência com into é de 100%. Para entendermos o próximo exemplo, precisamos relembrar do conceito de sujeito nulo: LEMBRETE ! Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 10 O aluno da UFRJ Pablo Teixeira, em sua dissertação de mestrado, investigou o fenômeno do apagamento do sujeito da frase na fala espontânea do português do Brasil e do hebraico moderno. A capacidade de apagamento do elemento que está na posição de sujeito na estrutura sintática, conhecida como fenômeno do sujeito nulo, é uma característica compartilhada por muitas línguas. Dois foram os fatores que motivaram o autor a realizar a sua pesquisa comparativa: (i) o distanciamento aparente entre as duas gramáticas e (ii) a produtividade do fenômeno de apagamento, comprovada por vários outros trabalhos sobre as duas línguas. Mas, até então, nenhuma das pesquisas tinha tido cunho comparativo. Assim, ele selecionou e transcreveu doze entrevistas retiradas da internet; sete falantes nativosdo português falado no Brasil e cinco do hebraico falado em Israel. A partir de seu corpus, o pesquisador verificou que duas línguas tão diferentes uma da outra apresentam vários comportamentos em comum em relação ao apagamento do sujeito. O hebraico e o português se mostraram favoráveis ao preenchimento da posição de sujeito em detrimento do apagamento. Veja como é em hebraico: Ani lomed ivrit eu estudar‐pres. ‐ m. s. hebraico “Eu estudo hebraico” Já a estrutura abaixo é inaceitável, diferentemente do português, em que é possível a estrutura “Estudo hebraico”, sem a presença explícita do sujeito “eu”: *Lomed ivrit. Nas duas línguas, os fatores tempo e pessoa também exerceram papel fundamental na realização do fenômeno do apagamento do sujeito. O tempo presente em ambas as línguas revelou taxas de ocorrência de sujeitos nulos menores do que as taxas de preenchimento. Mas não só semelhanças foram verificadas pelo pesquisador. Em relação ao tempo passado, há no hebraico maior número de apagamento do sujeito do que no português. De Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 11 fato, em hebraico, o passado é o tempo mais favorável ao apagamento do elemento na posição de sujeito. O autor também afirma que quer continuar a pesquisa e verificar, futuramente, o funcionamento do preenchimento do sujeito em frases no futuro. Através da ótica comparativa, P. Teixeira colaborou para a construção de um panorama geral sobre o fenômeno de apagamento de sujeito das duas línguas. Você deve ter observado que a Linguística descritiva comparada é muito importante, tanto para a Linguística comparada como um todo, quanto para a Linguística comparada histórica. Se, por exemplo, queremos reconstruir a origem de dadas línguas, é preciso comparar, primeiro, as descrições dessas línguas, não é mesmo? Agora, vejamos como se realiza a comparação linguística diacrônica. 2 A Linguística histórica comparada Vamos tentar entender a vertente histórica da Linguística comparada a partir da sua trajetória. Conforme D´Avino (2003), apesar de as línguas e as linguagens humanas terem suscitado interesse entre filósofos, gramáticos e estudiosos em geral, foi só no final do século XVIII, com o Romantismo, que a história das línguas passa a receber mais atenção dos pesquisadores. Os alemães Friedrich Schlegel e Franz Bopp colaboraram bastante para a nossa disciplina, com a publicação de obras que tratavam das relações de parentesco entre as línguas e suas origens. Rasmus Rask e Jacob Grimm foram autores das primeiras gramáticas históricas conhecidas. Nelas, a ênfase era sempre o nível fonético. A Linguística histórica comparada, em geral, busca identificar e entender as relações genéticas, de parentesco, entre duas ou mais línguas. Línguas parentes são aquelas que derivam de uma mesma língua anterior. Essa língua anterior pode ser chamada de língua‐ mãe ou de protolíngua. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 12 Veja o esquema abaixo: A e B são períodos posteriores no tempo em relação à língua‐mãe. A e B podem, então, ser entendidas como continuações divergentes da língua inicial e podem, por sua vez, também se tornarem línguas‐mães se derem origem a outras línguas. Veja: Aqui, C, D, E, F e G são subgrupos distintos de línguas irmãs, cujas línguas‐mães são A e B, por sua vez línguas irmãs da língua‐mãe. O modelo de árvore linguística, como visto acima, tem uma influência muito forte nos estudos comparativistas e pode variar muito. Ao longo do nosso curso, você terá a oportunidade de conhecer vários exemplos de árvores. O estudioso alemão August Schleicher, no século XIX, foi um dos primeiros a montar uma árvore linguística do Indo‐ europeu, o grupo linguístico que receberá a maior ênfase na nossa disciplina. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 13 Veja abaixo: FIGURA 1: Árvore linguística do Indo‐europeu de A. Schleicher Fonte: Clackson (2007, p. 10) Para este professor da Universidade de Praga, que também era botânico e naturalista, haveria uma língua‐mãe para cada grupo ou subgrupo de línguas. As línguas seriam como os seres vivos: crescem, envelhecem e, finalmente, morrem. Hoje estas ideias não são mais aceitas, mas seu papel foi fundamental para o desenvolvimento da linguística comparada, e sua Gramática comparativa das línguas indo‐europeias (1862) é um marco para a Linguística histórica comparada. Importante também para a evolução dos estudos de Linguística histórica comparada é a tese neogramática. No final do século XIX, na Universidade de Leipzig, na Alemanha, um grupo de estudiosos vai rejeitar as orientações comparativistas de A. Schleicher e de seus seguidores. As primeiras hipóteses dos neogramáticos eram de que as leis fonéticas não apresentavam exceção. Como explica Robbins (1981, p. 321), para os neogramáticos, “dentro de certos limites geográficos e entre certas datas, uma mudança de um som para o outro em uma língua atingiria do mesmo modo todas as palavras contendo o som no mesmo ambiente fonético de outros sons.” Posteriormente, a hipótese da regularidade da mudança sonora será criticada e reformulada, tendo Hugo Schuchardt e Jules Gilliéron como alguns destes críticos. Afinal, as exceções eram inegáveis e a teoria tão genérica dos neogramáticos se mostrou Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 14 insuficiente para dar conta da complexidade e da multiplicidade das causas dos fenômenos linguísticos. Os estruturalistas vão se dirigir em direção oposta aos neogramáticos. O nome mais importante desta linha é Ferdinand de Saussure, que vai ter um impacto enorme na Linguística do século XX. O Estruturalismo, entre tantas outras importantes contribuições para as Ciências Humanas, considerou não só as unidades relativas da língua, mas também suas inter‐relações. E finalmente chegamos aos séculos XX e XXI. Os estudos recentes da Linguística comparada histórica devem muito aos estudos anteriores, principalmente do século XIX. E eles não deverão parar. Apesar de termos respostas para muitas questões, ainda há muito o que descobrir! Você já pode ter inferido que a Linguística histórica comparada não pode existir sem o pressuposto do Princípio uniformitário, desenvolvido por Osthoff e Brugmann, em 1878. Para estes dois estudiosos, as propriedades gerais da linguagem e dos processos de mudança linguísticos têm sido os mesmos durante toda a história da humanidade. Imagine se as línguas pudessem mudar e variar sem restrições? Não seria possível estudar as línguas e estágios de línguas do passado e muito menos reconstruí‐las! Mas como sabemos que duas ou mais línguas têm parentesco e fazem parte de uma mesma árvore linguística? Com muita sorte, encontraremos textos preservados de estágios anteriores às línguas analisadas. Esse é o caso das línguas neolatinas ou românicas: a sua protolíngua, o latim, foi preservada pela escrita, a qual chegou até nós por meio de muitos textos. Se essas línguas ainda existem, sendo usadas para comunicação por uma comunidade de fala, podemos compará‐las e verificarse as semelhanças são, realmente, devido a uma mesma origem. O mais comum, porém, é não termos documentos escritos em muitas das línguas do mundo, sendo muita delas ágrafas, isto é, sem sistema de escrita. Nesse caso, será preciso Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 15 Exemplo: A língua S (Adaptado de R. Langacker (1975)) Imaginemos que, na língua S, [tx] ocorre apenas antes de [i] e [t] nunca ocorre antes de [i]. As palavras [txik] e [tak], então, são gramaticais, enquanto que *[tik] e *[txak] não seriam produzidas por um falante nativo. Entretanto, foram encontrados os termos [matx] e [katx], que contrariam a regra geral, vista acima, “[tx] ocorre apenas antes de [i]”. Como você explicaria tais ocorrências? A explicação mais plausível seria a de que, em um estado anterior da língua, as formas [matx] e [katx] terminavam em [i], isto é, [matxi] > [matx] e [katxi] > [katx]. Assim, a partir de propriedades dos estados mais recentes de uma língua, foi possível reconstruir um estado anterior dessa mesma língua. utilizar uma técnica para reconstruir certas características de períodos passados das línguas em análise, chamada de reconstrução interna. Vale lembrar que é quase impossível reconstruir uma protolíngua na sua totalidade. No Texto 6, explicaremos esta técnica com mais detalhes. Aqui, apenas uma amostra do que te espera a partir de dois exemplos. EXEMPLO 1 A língua S de Langacker Muitas vezes não temos atestação da língua‐mãe, isto é, não se conhece nenhum texto escrito nela. Nesse caso, será preciso reconstruí‐la através do método comparativo, que veremos com detalhe no Texto 3. Será preciso, primeiramente, identificar as línguas‐filhas recentes para depois compará‐las. A Linguística histórica comparada também se preocupa com a comparação de estágios de diferentes línguas e com a comparação das diferentes evoluções de seus elementos. Identificar, compreender e classificar as mudanças e as variações linguísticas também é sua função, não sendo necessário que as línguas comparadas tenham parentesco. Por exemplo: Podemos comparar o desenvolvimento do verbo be (“ser”) e do verbo have (“ter”) mais particípio passado, do antigo inglês, com os mesmos termos do inglês moderno. Em seguida, comparamos os resultados dessa primeira comparação com o Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 16 desenvolvimento desse mesmo tipo de construção no francês, isto é, avoir (“ter”) ou être (“ser/estar”) + particípio passado (adaptado de Ellis, 1966). 3 A Linguística comparada especializada É possível, também, comparar línguas diferentes entre si com objetivos específicos. Assim, a comparação entre textos escritos em pontos diferentes do percurso de uma língua com os textos de outra língua é feita porque pode trazer esclarecimentos para o melhor entendimento das línguas atuais e de sua origem. A Linguística comparada da tradução trata da assimetria entre línguas quando em situação de tradução. O contato entre línguas é outra área que gera questões muito interessantes para o linguista comparativista. Entender melhor o bilinguismo, em que se analisa o contato de línguas entre indivíduos, grupos ou comunidades, os empréstimos em geral e a distribuição geográfica de línguas e dialetos são também grandes e estimulantes desafios. Mas por que as línguas mudam continuamente? Como afirma Robbins (1981), ninguém contestará que as mudanças linguísticas ocorrem em todos os níveis gramaticais de todas as línguas. Mas as causas para este processo contínuo e complexo ainda não foram compreendidas pelos linguistas. Há muitas pesquisas sobre o assunto e pode‐se afirmar que dois fatores básicos geram mudança e variação: influência externas, como contato entre falantes, e processos internos, relacionados à transmissão das línguas de uma geração para outra. Você irá entender melhor estes fenômenos no Texto 2. Aqui termina a nossa aula. Vimos que a Linguística comparada pode ser dividida em três: a descritiva, a histórica e a especializada. Agora você já sabe o que esperar da nossa disciplina? Você imaginava que a Linguística comparada pudesse ser tão fascinante e abranger estudos tão diversos? Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 17 LEITURA COMPLEMENTAR A revista Veja, em novembro de 1994, publicou uma reportagem muito interessante sobre Linguística comparada aplicada às línguas indígenas brasileiras. Acesse o link abaixo e leia o texto com bastante atenção. http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx > ano de 1994 > mês de novembro > edição 1368 de 30/11/1994 > ir para esta edição (seta verde à esquerda da tela) > página 72. Referências CATFORD, John. A linguistic theory of translation: an essay in applied linguistics. London: Oxford University, 1965. Localização na biblioteca: 418.02 C359l.Pc (FALE) CLACKSON, James. Indo‐European Linguistics. Cambridge: CUP, 2007. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. Localização na biblioteca: 469.5 C972n 2001 (FALE) D´AVINO, Rita. Introduzione a un corso di storia comparata delle lingue classique. Roma: Kappa, 2003. ELLIS, Jeffrey. Towards a general comparative linguistics. The Hague: Mouton, 1966. Localização na biblioteca: 410 E47t 1966 (FALE) LANGACKER, Ronald W. A linguagem e sua estrutura. Petrópolis: Vozes, 1975. Localização na biblioteca: 401 L271l.Pa 1975 (FALE) ROBBINS, Robert H. Linguística geral. Rio de Janeiro: Globo, 1981. Localização na biblioteca: 410 R657g.Pc 1977 (FALE) TEIXEIRA, Pablo P. Estudo comparativo sobre o fenômeno do sujeito nulo em português do Brasil e hebraico moderno. Dissertação de Mestrado (Linguística). UFRJ, 2008. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=118471. Acesso em: 5 out. 2011. TRASK, Robert L. Dicionário de linguagem e linguística. São Paulo: Contexto, 2004. Localização na biblioteca: 410.3 T775k.Pi 2004 R (FALE) Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 18 ARQUEOLOGIAS Jacyntho Lins Brandão (Fale/UFMG) Tanto a diferença quanto a semelhança entre as línguas intrigaram desde eras muito antigas a humanidade. É bastante conhecido o episódio da Torre de Babel, através do qual o narrador da Torá, que escreve por volta do século VI a.E.C., busca dar uma explicação para a diversidade linguística, nestes termos:5 Todo mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. Como os homens emigrassem para o oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e aí se estabeleceram. Disseram um ao outro: Vamos! Façamos tijolos e cozamo‐los ao fogo! O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa. Disseram: Vamos! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus. Façamo‐nos um nome e não sejamos dispersos sobre a terra! Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído. E Iahweh disse: Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles. Vamos! Desçamos e confundamos (nablah) a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros. Iahweh os dispersou dali por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade. Deu‐se‐lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que Iahweh confundiu (balal) alinguagem de todos os habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou sobre toda a face da terra. (Gênesis, 11, 1‐9. Tradução da Bíblia de Jerusalém, com modificações) Além da maneira curiosa como a origem da diversidade é apresentada, nada mais que punição pela insolência dos homens, e ainda que a existência de línguas diferentes seja explicada por esse modo, supõe‐se que a diversificação aconteceu de repente, transformando uma situação primitiva quando toda a humanidade falava uma única e mesma língua, ou, nas palavras do Rabi Shlomó Yitzkhaki (também chamado de Rashi, 1040‐1105), quando possuía “o bem de ser um só povo com uma só língua”. Não se esclarece, contudo, qual seria essa língua original nem há qualquer traço de que pudesse ser a origem das demais. O que se deseja enfatizar é como a providência tomada por Yahweh, confundindo a linguagem humana, teve o efeito esperado de imediato, ou seja, cessar a construção da torre. Conforme comenta Rashi, na confusão que se instala de 5 Torá é o nome original que se dá aos cinco primeiros livros da Bíblia judaica, chamados, em grego, Pentateuco. O livro da Torá que, também a partir do grego, conhecemos como Gênesis, se chama, em hebraico, Bereshit, ou seja, No princípio. No Oriente Médio, a partir da prática corrente na Mesopotâmia desde o segundo milênio a.C., era costume que as obras recebessem como título as palavras com que começavam. No caso do Gênesis: “No princípio criou Deus o céu e a terra...” Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 19 imediato, “um pede um tijolo e o outro lhe traz argila; o primeiro então se enfurece e quebra a cabeça do outro” (YITZJAK, s/d, p. 43‐44). Quase um século após o relato da Torá, encontramos em Heródoto (séc. V a.E.C.) a descrição da pesquisa levada a cabo por Psamético, faraó do Egito entre 664 e 610 a.E.C., o qual desejava descobrir que língua e, em consequência, qual povo seria o mai antigo do mundo: Os egípcios, antes que Psamético os governasse, julgavam que eram anteriores (prótoi) a todos os povos. Uma vez que Psamético, quando começou a reinar, quis saber quem seriam os primeiros, disseram‐lhe que se pensava que os frígios eram anteriores a eles, egípcios, e eles próprios aos demais povos. Psamético, como não conhecia nenhum meio de descobrir quais seriam os primeiros homens, elaborou este: deu duas crianças recém‐nascidas de pessoas de baixa condição a um pastor, para que as alimentasse entre os rebanhos, com o alimento ali usado, ordenando que ninguém, diante delas, emitisse qualquer som (phonén); ele devia deixá‐ las numa cabana solitária e, nos momentos apropriados, levar cabras até elas, dando‐lhes leite – e observar o que aconteceria. Psamético fez e levou ao cabo isso por querer ouvir das crianças, quando abandonassem os inarticulados gritos sem significado (asémon), qual a primeira palavra (phonèn próten) que se poriam a falar. Completados dois anos, ao pastor que cumpria sua tarefa, quando abria a porta e entrava, ambas as crianças, arrastando‐se em sua direção, diziam (ephóneon) “bekós”, estendendo as mãos. De início, ouvindo isso, ele ficou quieto, mas, como muitas vezes, quando entrava e prestava atenção, essa era a palavra (épos), contou‐o ao rei. Por ordem deste, conduziu as crianças à sua presença. Tendo‐o ouvido o próprio Psamético, informou‐se sobre quais dentre homens chamavam algo de “bekós”. Pesquisando, descobriu (heúriske) que os frígios assim chamavam o pão. Desse modo, os egípcios aquiesceram, concluindo dessa experiência que os frígios eram mais velhos (presbytérous) que eles (Heródoto, Histórias 2, 2. Tradução de Brito Broca, com modificações). Ressalte‐se que esse interesse em saber qual seria a língua primitiva da humanidade não é inocente. Nesse tipo de pensamento, que podemos chamar de arqueológico, há três perspectivas culturais entrelaçadas. Num sentido amplo e etimológico, arqueologia, palavra composta com os termos gregos arkhé e lógos, constitui um discurso (lógos) sobre o princípio (arkhé). Ora, arkhé cobre três esferas de significado: (a) a origem no tempo, um começo (como em arqueolítico); (b) o ponto de partida de onde outras coisas procedem (como em arquétipo); (c) o poder (como em arconte, monarquia, oligarquia etc.). Perguntar, portanto, sobre a origem das línguas envolve os três campos: (a) qual a língua mais antiga? (b) qual a língua donde as demais procedem? (c) qual a língua, que por ser o princípio das demais, exerce sobre elas seu poder e confere poder a quem a conhece? Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 20 Assim, escolher uma língua qualquer como a original implica atribuir‐lhe primazia, em termos de precedência, procedência e poder, supondo‐se que aqueles que a falam sejam o povo mais antigo ou descendam diretamente dele, bem como são os detentores da linguagem natural, portanto mais perfeita, de que todas as demais não são mais que devedoras. Que o assunto manteve seu interesse comprova o fato de que, mais de dois milênios depois, Frederico II, rei da Prússia (1712‐1786), repetiu, mais de uma vez, a experiência de Psamético, com desfechos fatais: [Frederico II] quis experimentar qual língua e idioma teriam as crianças, chegando à adolescência, sem terem jamais podido falar com ninguém. E por isso ordenou às amas de leite e às nutrizes que dessem leite aos infantes (...), com a proibição de falar‐lhes. Com efeito, queria saber se falariam o hebraico, que foi a primeira língua, ou talvez o grego, ou o latim, ou o árabe; ou se não falariam sempre a língua dos próprios genitores de quem tinham nascido. Mas cansou‐se sem resultado, porque as crianças ou infantes morriam todos (Salimbene da Parma, Cronaca, n. 1664, apud ECO, 2002, p. 5). Nesse contexto, há mais um pressuposto importante: o de “língua natural”. As crianças falariam a língua primordial da humanidade (supostamente o hebraico) ou de parcela dela (o grego, o latim ou o árabe, idiomas igualmente antigos) – ou se expressariam na língua materna, ainda que tivessem sido separados das respectivas mães, estando portanto impedidos de aprender a falar como todas as crianças? Noutros termos: a língua é inata ou aprendida? Dizendo com mais precisão: é natural ou cultural? Essa última questão já tinha sido discutida por Platão no Crátilo (séc. IV a.E.C.) e foi enfrentada marginalmente pelo desconhecido autor dos Discursos duplos (Dissoì lógoi), obra provavelmente escrita no século V a.E.C. Pela simplicidade como se resolve nesta última obra, mostra‐se como é possível encontrar uma resposta sem a necessidade de apelar para experimentos cruéis como os de Psamético e Frederico II. O problema que se coloca é se é possível alguém ensinar e aprender. Para solucioná‐lo, apela‐se para o que se chama de “experiência mental”: dada uma determinada situação, o rigor de análise levará à alternativa correta. Assim, declara o autor: “Se alguém, quando ainda criancinha, fosse Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 21 mandado para a Pérsia e lá fosse criado, não ouvindo jamais a língua da Grécia, falaria persa; se alguém de lá fosse trazido para cá, falaria grego.” (Dissoì lógoi, 6, 12) Portanto, a língua é um dado não da natureza, mas da cultura e as palavras podem ser ensinadas eaprendidas, uma vez que a criança esteja exposta a determinados contextos, independentemente de sua origem familiar ou étnica. Observe‐se como, nos exemplos citados, há reis dentre aqueles que se preocupam em desvendar qual seria a língua originária da humanidade, o que nos garante a relação entre conhecimento da origem e poder. Não pense que se trata de uma perspectiva que se perde nas brumas do passado, bastando recordar como o nazismo se apropriou de descobertas no campo da linguística indo‐europeia para justificar desmandos e atrocidades, criando o mito da superioridade da raça ariana e de sua pureza (cf. BLIKSTEIN, 1992). Conclusão: trabalhar com a linguagem e as línguas não é algo inócuo ou mera curiosidade, como se poderia pensar. 1 A precedência do hebraico e outras candidaturas Em geral, a exegese rabínica concordará que aquela “só e mesma língua” utilizada pelos homens no princípio era o hebraico (segundo Rashi, a “língua santa”), ponto de vista adotado também pela quase totalidade dos hermeneutas cristãos antigos e medievais. Ainda no início da era moderna insistem na mesma tecla, dentre outros, Guillaume Postel (1510‐1581) e Claude Duret (1570‐1611) – atitude ridicularizada pelo filósofo judeu‐ holandês Gottfried Leibniz (1646‐1716), o qual afirmava que “na suposição de que o hebraico foi a língua original da humanidade há tanta verdade quanto na afirmação do holandês Goropius (...) de que a língua que se falava no Paraíso era justamente o holandês” (NIKOLSKI; JAKOWLEW, 1947, p. 21‐22). A referência de Leibniz é a Goropius Becanus (Jan van Gorp, 1519‐1572), modelo de um conjunto mais amplo de autores que defendiam outras candidatas ao posto de língua Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 22 originária (cada qual puxando a brasa para a própria sardinha): assim, o poeta sueco George Stiernhielm (1598‐1672) pretendia que o gótico (ou antigo nórdico) fosse a origem de todas as línguas, assim como os países nórdicos seriam a vagina gentium, lugar onde se originou a humanidade; já o médico irlandês James Parsons (1705‐1770) opinava que o gaélico era a língua mais próxima da primitiva; e mesmo o filósofo Johann Gottlieb Fichte (1762‐1814) defendia que o melhor candidato a língua originária (Ursprache) seria o alemão, em vista de sua “pureza”. Outros optaram por soluções mais diversificadas: para um, “Adão falava basco; para outro, ao contrário, Adão e Eva utilizavam o persa, a serpente, que os seduziu, o árabe, e o Arcanjo Gabriel, o turco” (NIKOLSKI; JAKOWLWW, 1947, p. 21‐22). Umberto Eco resume bem os meandros de toda essa pendenga, em que se encontra envolvida a ideia de que a língua original seria também a língua perfeita, o que só comprova como nada se faz por simples curiosidade: Na sua versão mais antiga a busca da língua perfeita assume a forma da hipótese monogenética, ou seja, da derivação de todas as línguas de uma única língua‐mãe. (...) Os Padres da Igreja, de Orígenes a Agostinho, haviam assumido como um dado incontestável que o hebraico tinha sido, antes da confusão, a língua primordial da humanidade. A exceção mais importante fora a de Gregório de Nissa (Contra Eunomium), que sustentara que Deus não falava hebraico e ironizava a imagem de um Deus‐professor ensinando o alfabeto a nossos pais. (...) Mas a idéia do hebraico como língua divina sobrevive ao longo de toda Idade Média. Entre os séculos XVI e XVII, não basta mais sustentar que o hebraico era a protolíngua (...): então interessa promover seu estudo e, se possível, sua difusão. Um lugar particular na história do renascimento do hebraico cabe à figura de erudito utopista que foi Guillaume Postel (1510‐1581). (...) No De originibus seu de Hebraicae linguae et gentis antiquitate (1538), afirma ele que a língua hebraica provém da descendência de Noé e que dela derivaram o árabe, o caldeu, o índico e, só medianamente, o grego. (...) Claude Duret, em 1613, publica um monumental Trésor de l’histoire des langues de cet univers (...). Já que Duret mantém a idéia de que o hebraico foi a língua universal do gênero humano, é óbvio que o nome hebraico dos animais contém em si toda sua “história natural”. Assim, “a águia chama‐se nesher, nome que concorda com shor e isachar, que significam olhar e estar ereto, porque este pássaro tem, mais que todos, a vista firme e sempre levantada para o sol”. (...) Mas se Duret fazia etimologia regressiva, para mostrar como a língua‐mãe estava em harmonia com as coisas, outros farão etimologia progressiva, para mostrar como do hebraico derivaram todas as outras línguas. Em 1606, Estienne Guichard escreve L’harmonie étymologique des langues, onde demonstra como todas as línguas existentes podem ser reconduzidas a raízes hebraicas. Partindo da afirmação de que o hebraico é a língua mais simples porque nele “todas as palavras são simples e sua substância consiste de apenas três radicais”, elabora um critério que lhe permite jogar com esses radicais por inversões, anagramas, permutações, segundo a melhor Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 23 tradição cabalística. Batar em hebraico significa “dividir”. Como se justifica que de batar tenha provindo, em latim, dividere? Por inversão se produz tarab, de tarab se chega ao latim tribus, e então a distribuo – e a dividere (...). Zaqen significa “velho”; transpondo‐se os radicais, tem‐se zaneq, donde senex em latim; e com uma sucessiva permutação de letras tem‐se cazen, donde em osco casnar, de que derivaria o latino canus, que significa justamente “ancião” (...). O século XVII oferece‐nos exemplos saborosos de nacionalismos linguísticos (...). Goropius Becanus (Jan van Gorp), em Origines Antwerpianae (1569), sustenta todas as teses correntes sobre a inspiração divina da língua primitiva, sobre a relação entre palavras e coisas, e encontra essa relação exemplarmente presente no holandês, ou melhor, no dialeto de Antuérpia. Os antepassados dos habitantes de Antuérpia, os címbrios, descendem diretamente dos filhos de Jafé, que não se achavam presentes junto da Torre de Babel, escapando assim da confusio linguarum. Conservaram, portanto, a língua adâmica, o que se prova através de claras etimologias (...) e pelo fato de que o holandês tem o maior número de palavras monossilábicas, supera todas as outras línguas em riqueza de sons e oferece excepcionais possibilidades para a geração de palavras compostas. (...) Ao lado da tese holandesa‐flamenga não falta a tese “sueca”, com George Stiernhielm (De linguarum origine praefatio, 1671). (...) Quanto ao alemão, várias e repetidas suspeitas sobre seu direito de primogenitura agitam‐se no mundo germânico desde o século XIV, em seguida ao pensamento de Lutero (para o qual o alemão é a língua que mais que todas aproxima de Deus), enquanto, em 1533, Konrad Pelicanus (Commentaria bibliorum) mostra as evidentes analogias entre alemão e hebraico. (ECO, 2002, p. 83‐109) Enfim, toda essa discussão chegou a tal paroxismo que acabou inteligentemente parodiada pelo filósofo e filólogo sueco Andreas Kempe (1622‐1689): em seu panfleto satírico As línguas do Paraíso (Die Sprachen des Paradises, de 1688), seu protagonista, Simon Simplex (um Simão simplório qualquer), estabelece que Deus se dirigia a Adão em sueco e este lhe respondia em dinamarquês – enquanto a serpente falava com Eva em francês, já que esta, “a língua tradicional da sedução, ‘mexe como corpo todo de tal modo que até a pessoa mais sábia pode ser por ela iludida’.” (apud OSTLER, 2003, p. 1). 2 O que se pode saber sobre a origem da linguagem Foi apenas no final do século XVIII e princípios do XIX que o tipo de especulação acima apresentado foi paulatinamente substituído pela ideia de que as línguas do mundo se dividem em diferentes famílias, cujo estabelecimento depende de um paciente trabalho de comparação. Esse trabalho iniciou‐se no âmbito das línguas indo‐europeias, num processo paulatino, mas contínuo, que abordaremos no capítulo seguinte – processo que marca a fundação da linguística moderna. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 24 Isso não implica, todavia, que a pergunta sobre a origem – não tanto das línguas, mas da linguagem humana – se tenha tornado improcedente. Com efeito, se toda humanidade tem como característica utilizar‐se de línguas como forma de comunicação, isso implica que há, na linguagem humana, um conjunto de categorias universais relacionadas com determinados processos cognitivos, os quais têm recebido cada vez mais a atenção dos linguistas, com enfoques variados. A diferença com relação às interpretações anteriormente expostas está: a) no estabelecimento de que a língua é um dado de cultura, não da natureza, não havendo portanto línguas ou palavras “naturais”; b) no abandono da ideia de que as línguas do mundo possam provir de alguma das línguas conhecidas, uma vez que qualquer língua se encontra em processo de constante mutação; c) na admissão de que é possível, através da comparação, retroceder a estágios anteriores das línguas conhecidas, reconstituindo em parte as protolínguas donde uma determinada família procede; d) finalmente, na constatação de que, a partir da diversidade de línguas e da compreensão de como elas funcionam e se modificam, se podem deduzir certos parâmetros relativos à linguagem humana. Embora tenha sido abandonada por muito tempo e continue recebendo críticas, a hipótese de que as línguas do mundo tenham uma origem comum voltou a ser considerada seriamente por linguistas como Greenberg e Ruhlen, tendo em vista sobretudo o avanço do conhecimento relativo às macrofamílias linguísticas, aliado às conquistas da arqueologia, que estuda os dados da cultura material, e, mais recentemente, também da biologia, que vem trabalhando, com bons resultados, no mapeamento do genoma humano. Se o homo sapiens sapiens tem uma origem comum – que tudo leva a crer se encontra no continente africano –, é razoável supor que também as várias línguas possam Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 25 ter uma única origem. Evidentemente, não se poderá jamais saber como seria esse sistema linguístico primeiro, a não ser em termos muito gerais, ou seja, naquilo em que todas as línguas coincidem: a) a arbitrariedade do signo linguístico; b) o uso de categorias linguísticas compatíveis com os processos cognitivos através dos quais o homem apreende o mundo e com ele se relaciona; c) o caráter social da linguagem como meio de comunicação; d) o fato de que a língua se encontra em constante processo de variação e mudança. Uma especulação em forma de narrativa (como as míticas), que parece a única possível quando se trata de vislumbrar algo sobre origens que se perdem em tempos imemoriais. É o que você lerá na “Leitura complementar” a seguir. Referências BLIKSTEIN, Izidoro. Indo‐europeu, linguística e... racismo. Revista USP, n. 14, p. 104‐110, jun.‐ago. 1992. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/14/20‐izidoro.pdf. Acesso em: 5 out. 2011. ECO, Umberto. La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea. Roma‐Bari: Laterza, 2002. Localização na Biblioteca: 410 E19r.Pa 2002 (FALE) NIKOLSKI, W.; JAKOWLEW, N. Warum die Menschen in verschiedenen Sprachen sprechen. Berlin: Verlag der Sowjetischen Militärverwaltung, 1947. OSTLER, Rosemarie. Searching for the first words. Verbatim: The Language Quaterly, v. 28, n. 4, p. 1‐4, Winter 2003. Disponível em: www.verbatimmag.com/28_4.pdf. Acesso em: 5 out. 2011. YITZJAKI, Shlomó. ישמוח הרות השמח רפס: El Pentateuco con el comentario de Rabí Shlomó Yitzjaki (Rashi). Traducción directa al castellano del original hebreo por Enrique Jaime Zadoff (El Pentateuco) y Jaime Barilko (Rashi). Buenos Aires: Editorial Yehuda, [s/d]. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 26 LEITURA COMPLEMENTAR A história de Chico Rudi Keller Era uma vez um grupo de homens‐macaco. Os homens‐macaco eram seres que haviam acabado de ultrapassar o estágio de símios, mas não tinham ainda atingido um ponto em que se poderia dizer que eram simplesmente humanos, porque não tinham eles uma linguagem. Todavia, esses homens‐macaco tinham a sua disposição, exatamente como seus parentes mais próximos, gorilas e chimpanzés, um rico repertório de expressões sonoras. Os mais coléricos batiam a boca e rosnavam quando estavam irados; os vaidosos batiam no peito e rugiam quando queriam exibir‐se. Eles batiam os dentes quando se divertiam, ronronavam quando se sentiam confortáveis e emitiam gritos que rompiam os ouvidos quando ansiosos. Todas essas manifestações estavam longe de ser signos linguísticos. Não serviam para a comunicação, como hoje a entendemos, mas eram, ao invés disso, a expressão natural de eventos internos: sintomas da vida emocional, comparáveis ao suor frio, o riso, as lágrimas ou o rubor. Alguém não comunica suas emoções por meio desses fenômenos, mas, em certas condições, pode revelar algo sobre as mesmas. É que os sintomas podem causar efeitos similares aos dos signos linguísticos. Um dos integrantes do grupo era um homem‐macaco que a natureza pusera em desvantagem: pequeno, mais fraco que os outros e ansioso ao máximo. Podemos chamá‐lo de Chico. Sendo fraco, Chico era muitas vezes forçado, desde a infância, a ser um tanto mais esperto que os outros. Ele tinha de compensar sua falta de força corpórea e seu baixo status social, sob o risco de ficar completamente dominado pelos demais. Em especial, os membros mais fortes do grupo afastavam‐no regularmente da comida, não deixando que ficasse perto dos bocados mais suculentos. Mas, sendo ágil e esperto, Chico conseguia ultrapassar alguns desses obstáculos. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 27 Um dia aconteceu algo que teria uma imensa importância para o futuro de toda raça dos homens‐macaco. O grupo estava pacificamente amontoado em volta da comida, consumindo a presa capturada naquele dia. Como sempre, havia algumas pequenas brigas e empurrões ocasionais. Chico foi de novo empurrado para a borda exterior, onde descobriu um par de olhos no meio da vegetação rasteira – os olhos de um tigre! Seus olhos encontram‐se com os do animal... Morrendo de medo, ele grita aterrorizado. O grupo dispersa instantaneamente. Cada qual trata de encontrar abrigo na árvore mais próxima, porque tal grito era sinal de enorme perigo. Estavam todos condicionados, desde a infância, a reagir assim. Chico ficou parado lá, como se congelado. Estar tão perto de morrer o havia tornado incapaz de fugir. Todavia, para seu grande espanto, os olhos piscavam para ele, de um modo nada parecido com o que faz um tigre, e seu proprietário foi‐se embora irritado. O que ele havia visto como olhos de tigre pertencia a nada maisque um pacato porco. Chico tinha sido vítima de sua vívida imaginação, alimentada por sua natural ansiedade. Mas “vítima” é a palavra correta neste caso? Quando Chico olhou em volta, desconcertado, desamparado e um pouco envergonhado, viu que estava completamente sozinho, junto com a comida deixada para trás pelos outros. A expressão de medo em seu rosto deu lugar a um firme e travesso sorriso. Ele quase não podia acreditar. Na medida em que passavam os dias e as semanas – e que, a cada vez, a disputa pelas melhores partes de alimento tinha lugar – ele era tentado a fazer intencionalmente o que lhe havia acontecido por acidente. O que Chico não podia imaginar é que essa tentação marcava o fim do paraíso da comunicação natural. O que tinha de acontecer finalmente aconteceu. Como sempre, ele tinha de ficar observando como aqueles grandalhões cabeludos repartiam as melhores partes entre si, enquanto ele, faminto, se sentava perto, tomado por uma raiva impotente. Foi então que Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 28 sucumbiu à tentação. Deu o grito de angústia e, de novo, o grupo dispersou‐se em matéria de segundos, incluindo os repugnantes grandalhões. A melhor parte da comida ficara ali, montes de comida. Na sua agitação, Chico, na verdade, nem pôde saboreá‐la (talvez sua má consciência o impedisse). Mas o primeiro degrau tinha sido galgado e Chico achou muito mais fácil da próxima vez. Com o tempo, tornou‐se quase impiedoso. Achava prazer em executar seu truque e começou mesmo a abusar. Como era inevitável, logo alguém suspeitou dele. Quando Chico foi bobo o suficiente para gritar pela segunda vez durante uma mesma tarde, um outro macaco parou, depois de poucos saltos, olhou para trás e começou a devorar a comida. Chico ficou um pouco irritado, mas não se incomodou, pois havia comida suficiente para ambos. Mas logo o cúmplice começou também a usar do expediente que aprendera e, como Chico, a exagerar. O número daqueles que não se deixavam enganar pela mentira – e, finalmente, o número de imitadores – tomou dimensões inflacionárias. A comunidade entrou num período extremamente crítico. Cada qual suspeitava dos demais. Os grandalhões tentaram restaurar a antiga ordem, penalizando todo abuso do grito de prevenção. Mas um conhecimento, uma vez adquirido, não pode ser jamais erradicado. Pelo contrário, era reforçado por todo novo abuso e toda tentativa de penalizar quem dele utilizava. O abuso permanente do grito de prevenção representava um perigo para a existência física de todo o grupo, uma vez que a crença cega nele era necessária para a sobrevivência. Mas essa época havia definitivamente acabado. Os que quisessem sobreviver nesses tempos de corrupção tinham de ter bons ouvidos. Tinham de aprender a diferenciar o grito genuíno do fingido, algo que não se mostrou difícil para muitos deles. (...) A história de Chico não pretende ser realista, mas diz algo sobre a realidade. Ela mostra como a transição da comunicação natural para a humana poderia ter acontecido. Não se Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 29 trata de uma reconstrução histórica, mas filosófica. Não são os fatos, mas apenas os dados lógicos da história que devem estar corretos, a saber: 1. As etapas que conduzem do grito natural de angústia ao ato intencional parecem plausíveis. A passagem de um ao outro não deve ter apresentado nem furos, nem saltos. 2. As pressuposições relativas às habilidades dos homens‐macaco parecem ser realistas. A história seria sem valor caso se atribuísse a Chico uma alta (e irrealista) capacidade intelectual. Traduzido de: KELLER, Rudi. On Language Change: the invisible hand in language. London/New York: Routledge, 1994. p. 19‐22. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 30 VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA Sueli Maria Coelho (Fale/UFMG) INTRODUÇÃO A comparação entre duas ou mais línguas, conforme proposto na primeira aula de nosso curso, demonstra haver entre elas aspectos que as diferenciam, quer em maior quer em menor escala, dependendo do grupo linguístico a que pertençam os idiomas comparados. Assim, se compararmos entre si línguas originárias do ramo indo‐europeu6, nós identificaremos muito mais semelhanças que se compararmos línguas originárias desse ramo com aquelas provenientes do ramo afro‐asiático, família linguística com 353 línguas vivas presentes na Ásia e na África. Compreender que as línguas variam quando se comparam dois ou mais idiomas é relativamente fácil, principalmente porque, na maioria das vezes, as diferenças saltam aos olhos já no plano do código. A compreensão da diversidade torna‐se, contudo, menos visível quando o objeto de análise se restringe a uma mesma língua. Será que as línguas são homogêneas, isto é, será que todos os falantes de uma língua dizem as mesmas coisas da mesma forma? Além disso, será que as línguas conservam as mesmas características ao longo dos séculos? É exatamente sobre essas questões aparentemente simples, porém não tão óbvias, que você é convidado a refletir cientificamente nesta unidade, tomando como objeto de análise dados da língua portuguesa falada no Brasil. 1 Variação linguística Ao buscar resposta para a primeira pergunta acima — as línguas são homogêneas? —, é provável que você logo se lembre de que, no português do Brasil, a pronúncia de determinadas palavras, muitas vezes, varia de uma região para outra do país, o que já constitui um indício de que as línguas não são homogêneas. Pense, por exemplo, na forma 6 Família linguística composta de dez ramificações e 426 línguas vivas, entre elas o português, e distribuídas em várias regiões do mundo. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 31 como os paulistas pronunciam a palavra tio, comparando‐a com a forma como nós, mineiros, a pronunciamos. Certamente, você identificou alguma diferença no modo de se articular o som /t/. O mesmo se dá quando se compara, por exemplo, a fala de um carioca com a fala de um gaúcho ou com a de um nordestino. Se você ainda não tinha se atentado para esse fato, ao fazê‐lo, verá que cada um desses grupos de falantes do português tem formas peculiares de articular determinados sons e também de cadenciá‐los ao pronunciar as palavras de uma frase, o que faz com que, ao ouvi‐los, logo identifiquemos as diferenças entre um falar e outro. Essas diferenças, que se dão na forma de se pronunciarem as palavras, mas que não atrapalham a compreensão, permitindo que falantes de qualquer região do país conversem e se entendam, são denominadas de variação fonética. Se você refinar um pouco mais a sua observação, prestando atenção no o modo como as pessoas falam, perceberá que as diferenças não se limitam apenas à pronúncia das palavras, embora estas sejam mais facilmente perceptíveis. A diversidade se estende também a outros níveis ou estratos da língua, como, por exemplo, ao nível do léxico, ou seja, do conjunto de palavras que compõem a língua. Compare as sentenças apresentadas no quadro abaixo e veja que, apesar de elas preservarem o mesmo sentido, há diferenças entre as palavras utilizadas para se referir a um determinado ingrediente da culinária regional: a. Fui ao mercado e comprei macaxeira para acompanhar o churrasco.b. Fui ao mercado e comprei aipim para acompanhar o churrasco. c. Fui ao mercado e comprei mandioca para acompanhar o churrasco. Certamente, você percebeu que tanto macaxeira, quanto aipim e mandioca são termos utilizados para se referir à mesma raiz de massa branca ou amarela, originária da América do Sul e que é muito utilizada na alimentação humana. Apesar de as palavras utilizadas para se referir a esse alimento serem diferentes, elas, quando empregadas pelos falantes de Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 32 regiões diferentes do Brasil, evocam o mesmo referente, isto é, remetem o falante/ouvinte para o mesmo elemento do mundo real. Quando isso acontece, dizemos que há uma variação lexical, ou seja, os mesmos elementos da realidade recebem denominações diferentes, dependendo da região em que são empregados. É muito pouco provável que, ao comunicar a alguém o fato de ter ido à feira comprar mandioca para um churrasco, um morador de Belo Horizonte ou de qualquer outra cidade de Minas Gerais profira o primeiro dos três enunciados apresentados no quadro, mas tal enunciado é bastante previsível quando a pessoa que o emite provém de cidades do nordeste do país, onde o termo mandioca não é tão empregado como aqui. Antes de continuar a pensar sobre a diversidade linguística, é muito importante que você esteja consciente de que nenhuma dessas formas é melhor que a outra, já que todas elas dizem a mesma coisa, cumprindo, de modo eficaz, a sua função comunicativa. Como adverte Faraco (1998), “do ponto de vista exclusivamente lingüístico [...], as variedades se equivalem e não há como diferenciá‐las em termos de melhor ou pior, de certo ou errado: todas têm organização (todas têm gramática) e todas servem para articular a experiência do grupo que as usa.” (p. 19) As distinções de valoração entre as diversas variedades são atribuídas socialmente; assim, algumas delas, normalmente aquelas faladas por grupos privilegiados socialmente, adquirem uma marca de prestígio, enquanto outras, geralmente porque são faladas por grupos de pouco ou nenhum prestígio social, não são reconhecidas e aceitas pela sociedade em geral. As variedades que são socialmente reconhecidas e valorizadas denominam‐se variante padrão e aquelas que são estigmatizadas pela sociedade são denominadas de variante não‐padrão. Mudando o foco de nossa observação do léxico para o conjunto de regras de uma língua, ou seja, para a sua gramática, você perceberá que também é possível identificar algumas variações. Pense no modo como os falantes do português combinam as palavras para produzir sentenças. Logo perceberá que também nesse plano não se pode falar em homogeneidade, já que existem muitas possibilidades de combinação que traduzem a mesma ideia. Esse tipo de diversidade é chamado de variação sintática, porque se dá no Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 33 plano da sintaxe da língua. Para entender melhor esse conceito, pense, a título de ilustração, na regência do verbo assistir e analise‐a nos enunciados dispostos neste quadro: a. Eu não sei se meu time ganhou, porque não assisti o jogo. b. Eu não sei se meu time ganhou, porque não assisti ao jogo. c. A final do campeonato foi assistida por milhares de torcedores. As duas primeiras sentenças do quadro são variantes linguísticas, isto é, são formas distintas de se dizer a mesma coisa, mantendo, no contexto em que são empregadas, o mesmo sentido. Embora saibamos que, segundo prescreve a norma culta, o verbo assistir, no sentido de ver, é transitivo indireto e exige a preposição a, sabemos também que essa não é a variante preferida pelo falante. No uso coloquial da língua, a preferência pela forma transitiva direta do verbo assistir – talvez por analogia com a regência do verbo ver – é muito maior. A regência não‐padrão já é tão natural na língua, que é possível encontrar, em jornais impressos, registros do verbo assistir empregado em voz passiva, conforme ilustra (c) acima, o que não é admitido para os demais verbos transitivos indiretos, tal como gostar, por exemplo, cuja regência exige sempre a preposição. Eis aqui mais uma demonstração de que a língua não é tão homogênea como o falante, ingenuamente, acredita ser. Você já foi apresentado à variação fonética, à variação lexical e à variação sintática. Falta ainda exercitar sua atitude de linguista no plano da morfologia, buscando verificar se as palavras da língua também podem sofrer variação quanto à sua flexão ou quanto ao seu processo de formação. Caso isso se constate, você estará diante de uma variação morfológica. Certamente, em alguma situação de uso da língua, você já teve dúvidas quanto ao plural de alguma palavra terminada em –ão e, quando não teve a oportunidade de consultar um dicionário ou uma gramática, teve que arriscar, optando por uma das formas possíveis na língua. Ao fazê‐lo, você incorre no risco de empregar uma flexão que não é aquela considerada padrão. Quem nunca ouviu alguém dizer cidadões em vez de cidadãos? Trata‐ Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 34 se de um caso de variação morfológica, pois a flexão de número plural de uma palavra foi feita de duas formas distintas. O mesmo se dá quando o falante pluraliza o substantivo degrau apoiando‐se no princípio utilizado para pluralizar canal, por exemplo, e produz a palavra degrais, quando a forma padrão é degraus. Também no processo de formação de palavras por meio da derivação é comum ocorrerem variações no emprego dos afixos. Tais variações geralmente ocorrem quando os sufixos ou os prefixos empregados, “embora distintos sob o ponto de vista fonético, apresentam o mesmo sentido e/ou função.” (ROCHA, 1999, p. 112). Nesse caso, o falante, normalmente por desconhecer a forma que deseja empregar no contexto, recorre a outra, que é criada com base em recursos que a língua lhe oferece, promovendo uma variação, conforme ilustram estes exemplos: a. Aqueles dois lá estão numa bajulação que ninguém aguenta. b. Aqueles dois lá estão num bajulamento que ninguém aguenta. É possível que você esteja se perguntando se a forma bajulamento não é errada. Como já mencionado, não nos cabe, na análise da variação linguística, qualquer julgamento normativo, já que não se tem por objetivo considerar uma variante como melhor que a outra, mas reconhecer a diversidade dos usos. Há, sem dúvida, níveis de aceitabilidade das variantes, mas o fato de uma delas gozar de maior prestígio que outra na escala social não anula a sua existência na língua. Até agora, deve ter ficado claro para você que uma língua não exibe diferenças apenas quando comparada à outra. Isso se dá porque nenhuma língua é homogênea, o que significa dizer que toda língua apresenta variação. Essa variação, que consiste na coexistência de formas distintas para se falar a mesma coisa, se manifesta tanto no nível do léxico, quando no da gramática e, dependendo do estrato atingido, ela se classifica como variação fonética, variação lexical, variação sintática ou variação morfológica. Resta, agora, tentar entender que fatores determinam a variação, aspecto que será tratado na próxima subseção. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 35 1.1 Fatores determinantes de variação Como você deve ter percebido ao longo dadiscussão promovida na seção anterior, são vários os fatores que determinam as variações de uma língua no plano sincrônico, isto é, num determinado momento de sua história. Tais fatores, entretanto, podem ser reagrupados em dois tipos principais, o que nos permite descrever a motivação da variedade segundo dois parâmetros básicos: o dos fatores geográficos e o dos fatores sociais. Conforme demonstrado quando da apresentação da variação fonética e da variação lexical, falantes de diferentes regiões do país podem pronunciar e cadenciar os sons de forma diferenciada, além de também poderem empregar termos diferentes para se referir aos mesmos elementos da realidade. A esse tipo de variação relacionada a “diferenças lingüísticas distribuídas no espaço físico, observáveis entre falantes de origens geográficas distintas” (ALKMIN, 2001, p.34), dá‐se o nome de variação geográfica ou diatópica. Cumpre aqui um alerta no tocante aos domínios da variação diatópica. Às vezes, é comum se associar esse tipo de variação apenas a espaços geográficos mais amplos, como as regiões de um país ou estado, mas é preciso ficar claro que ela abrange todas as variedades originárias de espaço físico. Dessa forma, as variações que se identificam entre falares de pessoas que residem na zona urbana e aquelas que residem na zona rural, ou mesmo de falantes que residem em regiões centrais ou em regiões periféricas de uma determinada comunidade linguística também são interpretadas como variações geográficas. Além do fator geográfico, as línguas ainda variam, conforme mencionado, em decorrência de fatores sociais, tais como (i) classe social a que pertence o falante, (ii) seu nível de escolaridade, (iii) sua idade, (iv) seu sexo ou ainda (v) sua profissão. Mesmo nos precavendo contra qualquer tipo de julgamento preconceituoso, não nos passa despercebido que, por uma série de fatores, dentre os quais se citam nível cultural e maior ou menor grau de letramento, a língua falada pelos membros de classes sociais distintas exibe traços característicos próprios, o que nos permite não só reconhecer diferenças linguísticas entre as classes, como também identificar a classe a que pertence o falante a partir do modo como ele fala. Além da classe social, o nível de escolaridade do falante Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 36 também interfere no modo como ele utiliza os recursos linguísticos. Falantes escolarizados recorrem a formas de dizer que diferem sensivelmente daquelas utilizadas pelos que sequer são alfabetizados, já que determinadas construções linguísticas só são adquiridas por meio de instrução formal. Não se espera, por exemplo, que um falante não alfabetizado empregue o pronome relativo cujo em sentenças como O funcionário de cuja competência eu desconfio não compareceu à reunião. Para expor essa mesma ideia, esse falante provavelmente recorrerá a uma construção menos complexa, como, por exemplo, O funcionário que eu desconfio da competência dele não foi na reunião. Não é apenas no domínio da sintaxe que se percebem variações decorrentes do nível de escolaridade do falante. Os exemplos de variação morfológica ilustrados na seção anterior também podem ser determinados pelo grau de instrução do falante, que, desconhecendo a flexão ou o afixo padrão, recorre a uma forma alternativa para se expressar. Se compararmos ainda a linguagem empregada por uma criança com aquela empregada por um adolescente, também identificaremos variações, agora motivadas não pela escolaridade, mas pela faixa etária do falante. O mesmo se verifica quando comparamos entre si a fala de um jovem, a de um adulto e a de um idoso. Outro fator social que também provoca variação linguística é o sexo do falante. O emprego de diminutivos e a entonação mais pausada para intensificar os adjetivos (“Você está des‐lum‐bran‐te!”) são traços mais característicos da fala feminina que da masculina. A profissão do falante é outra variável que pode promover variação, especialmente no plano da linguagem técnica. Um professor de linguística poderá recorrer aos termos técnicos da área quando discute determinado fenômeno da língua com um colega de profissão ou quando apresenta uma comunicação em um congresso ou profere uma conferência, mas não poderá fazê‐lo ao conversar sobre o mesmo fenômeno com um cidadão leigo, pois, caso o faça, correrá o risco de não ser compreendido ou de o ser apenas parcialmente. A esse conjunto de fatores que se relacionam não apenas com a identidade do falante, mas também com a organização sociocultural da sua comunidade de fala e que acarreta formas distintas de se dizer a mesma coisa, dá‐se o nome de variação social ou diastrática. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 37 Além dos cinco fatores sociais apresentados, existe outro que também determina a variação linguística e que será tratado à parte e de modo um pouco mais aprofundado que os demais, dada a sua importância para a competência pragmática do falante, isto é, para que o usuário do sistema linguístico selecione adequadamente os recursos de que dispõe de modo a alcançar a eficácia na comunicação. Trata‐se do contexto de produção do discurso. Você certamente já observou que, dependendo não apenas da pessoa a quem o falante se dirige no ato comunicativo, mas também do grau de formalidade da situação, ele recorre a uma linguagem mais ou menos formal. Assim como situações sociais de maior formalidade, como casamento e formatura, por exemplo, exigem um figurino mais a rigor e situações mais descontraídas, como um churrasco entre amigos, pedem um traje mais à vontade, o uso da variante linguística também deve estar de acordo com a situação. Ninguém utiliza uma linguagem padrão formal para falar com os membros da família, com os amigos ou mesmo com os colegas de trabalho. Da mesma forma, ninguém faz uso (ou pelo menos não deveria fazê‐lo) de uma linguagem extremamente informal quando se dirige a uma autoridade ou quando é solicitado a se pronunciar em público. O fato é que determinadas situações exigem um estilo de linguagem mais formal, mais elaborado, enquanto outras requerem um estilo mais informal e mais despojado. A esse tipo de variação em que o estilo de linguagem é determinado pela situação de uso, dá‐se o nome de variação contextual, estilística ou diafásica. 2 Mudança linguística Para responder à segunda questão proposta na introdução desta unidade – será que as línguas conservam as mesmas características ao longo dos séculos? –, compare os dois textos a seguir. O primeiro é um fragmento da Cantiga 18, extraído do livro Cantigas de Santa Maria, obra datada do séc. XIII, cuja autoria é atribuída a D. Afonso X, o Sábio. O segundo é uma versão modernizada do texto medieval, numa tentativa de se preservar o mesmo sentido do original. Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 38 promessa fez, Depois que fez a promessa, senpre creceron cresceram os bichos‐da‐seda os babous ben dessa vez e dessa vez e non morreron; não morreram; mas a dona con vagar mas a dona muito grande que y prendia, se demorava e nisso d’a touca da seda dar sempre se esquecia senpre ll’escaecia. de dar a touca de seda. Por nos de
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