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Fundamentos da Linguística Comparada

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Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
1 
ALÉXIA T. DUCHOWNY 
JACYNTHO L. BRANDÃO 
JÚLIO C. VITORINO 
SUELI M. COELHO  
FUNDAMENTOS DE LINGUÍSTICA COMPARADA 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
FACULDADE DE LETRAS 
BELO HORIZONTE/2012 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
2 
SUMÁRIO 
  p. 
Introdução  3 
Texto 1A: Definindo Linguística comparada  8 
Texto 1B: Arqueologias   18 
Texto 2: Variação e mudança linguística  30 
Texto 3: O método histórico‐comparativo  41 
Texto 4: Tipologia linguística  52 
Texto 5A: Famílias linguísticas do mundo  62 
Texto 5B: As línguas indo‐europeias  75 
Texto 6: A reconstrução do indo‐europeu  94 
Texto 7A: Sociedade e cultura indo‐europeias  109 
Texto 7B: Fonologia e morfologia indo‐europeias  120 
Texto 8A: O sistema de casos  134 
Texto 8B: A categoria de caso no indo‐europeu  141 
Texto 9A: Contato linguístico  152 
Texto 9B: Pidgins e crioulos  164 
Texto 10: Sistemas de escrita  174 
 
 
   
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
3 
INTRODUÇÃO 
Jacyntho Lins Brandão (Fale/UFMG) 
Houve  uma  vez  em  que  os  estudantes  de  Letras  da  UFMG  mandaram  confeccionar 
camisas com os dizeres: 
 
 
 
 
 
Como  você  vê,  uma  brincadeira  divertida  com  uma  das  frases  que  mais  costumava 
aparecer em  livros  tradicionais para ensino de  línguas estrangeiras, sobretudo  inglês. As 
oito  línguas  faziam  parte  do  rol  das  habilitações  ofertadas  na  Faculdade  de  Letras, 
envolvendo, além das modernas, duas antigas (o latim e o grego clássico) e dois alfabetos 
diferentes (o grego e o latino). No caso do grego, a transliteração para o alfabeto latino é: 
TÒ BIBLÍON ESTÌN EPÌ TÊI TRAPÉZĒI.1 
 Mas, mesmo com essa diversidade, não era difícil entender que as frases correspondiam 
umas às outras praticamente palavra por palavra. Antes de tudo, porque todas são línguas 
de  uma mesma  família,  a  indo‐europeia,  representada  na  relação  por  três  de  suas  dez 
ramificações: o itálico (com o latim e as quatro línguas dele procedentes: francês, espanhol, 
                                                            
1  A  duração  das  vogais,  quando  for  importante marcá‐la,  será  indicada  assim:  a)  vogais  longas:  ā/ē/ī/ō/ū  (o  traço 
horizontal sobre elas se chama macro); b) vogais breves:  ă/ĕ/ĭ/ŏ/ŭ (o símbolo sobre elas se chama braquia). 
THE BOOK IS ON THE TABLE 
 
LE LIVRE EST SUR LA TABLE 
 
EL LIBRO ESTÁ SOBRE LA MESA 
 
DAS BUCH IST AUF DEM TISCH 
 
TO BIBΛION EΣTIN EΠI THI TΡAΠEZHI 
 
IL LIBRO È SUL TAVOLO 
 
LIBER SUPER MENSAM EST 
 
O LIVRO ESTÁ SOBRE A MESA 
 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
4 
italiano  e  português,  chamadas  de  línguas  românicas);  o  germânico  (com  o  inglês  e  o 
alemão); e o grego. 
Na simples comparação, considerando a ordem das palavras e sua semelhança, não será 
difícil que você descubra a correspondência entre as mesmas. Experimente: 
QUADRO 1 
Correspondências de “O livro está sobre a mesa” com o português 
Português  O  LIVRO  ESTÁ  SOBRE  A  MESA 
Inglês  the  book  is  on  the  table 
Francês  le  livre  est  sur  la  table 
Espanhol  el  libro  está  sobre  la  mesa 
Alemão  das  Buch  ist  auf  dem  Tisch 
Grego  to  biblíon  estìn  epì  têi  trapézēi 
Italiano  il  libro  è  su  il  tavolo 
Latim  ‐  liber  est  super  ‐   mensam
Você deve ter encontrado dois problemas: 
1. Com relação ao italiano, sul constitui uma contração da preposição su e do artigo il (do 
mesmo modo que, em português, temos do < de o e no < em o).2 
2. Você deve ter notado que o latim não possui artigos e adota uma ordem diferente dos 
termos da oração: em vez de 
  O livro     está     sobre a mesa 
  Sujeito    verbo    locativo 
a ordem normal em latim é 
  Liber    super mensam  est. 
  Sujeito  locativo    verbo 
Tendo constatado essas duas diferenças, apenas para que a correspondência no quadro se 
faça palavra a palavra, anotou‐se a preposição su separada do artigo il, no caso do italiano, 
e escreveram‐se os termos  latinos na ordem dos demais, deixando em branco os espaços 
em que as outras línguas apresentam artigos. 
                                                            
2 Aos  poucos você se acostumará com os símbolos que utilizaremos: B < A indica que a palavra B procede de A, o que 
pode ser representado também assim, A > B. A ordem da procedência segue sempre a direção indicada pela seta. 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
5 
Agora observe na  terceira coluna do QUADRO 1 as palavras que designam  ‘livro’. Não 
será  difícil  constatar  que  elas  se  distribuem  em  três  conjuntos,  considerando‐se  sua 
semelhança: o primeiro, com cinco termos; o segundo, com dois; e o terceiro, com apenas 
um. Vamos organizá‐los:  
QUADRO 2 
Palavras para ‘livro’  
1  2  3 
livro  book  biblion 
livre  Buch   
libro 
libro 
   
liber     
Repare  que  essa  distribuição  corresponde  exatamente  às  famílias  linguísticas  referidas 
antes: 1.  latim  e as  línguas  românicas; 2.  línguas germânicas; 3. grego. As  semelhanças, 
portanto, não são fortuitas, mas decorrem do fato de que: 
a) o francês, o italiano, o espanhol e o português originaram‐se do latim;  
b) o inglês e o alemão têm uma origem comum; 
c)   o grego constitui um grupo isolado dentre as demais línguas indo‐europeias  
Mesmo que nos três grupos as palavras para designar ‘livro’ sejam diferentes, têm elas em 
comum o fato de que, na origem, nomeavam o material sobre o qual se escrevia: 
a) O termo grego biblíon deriva de byblos, ‘papiro’, a planta natural do Egito com a qual se 
produzia a folha (em grego khárta) em que se escrevia e com as quais se produziam os 
livros. O plural  biblía passou para  as  línguas modernas  como  nome do  conjunto de 
livros sagrados de judeus e cristãos, a Bíblia. 
b) Para book e Buch3 reconstitui‐se, no germânico, a palavra *bōks4, relacionada com *bōka, 
‘faia’, porque os povos germânicos usavam cascas dessa árvore para escrever. De *bōks 
                                                            
3 Em alemão, todos os substantivos se escrevem com inicial maiúscula: Buch, Tisch etc.  
4 Um asterisco antecedendo uma palavra indica que ela não é documentada, mas reconstituída, pelo método 
comparativo, a partir das palavras existentes nas línguas filhas. Isso se faz sistematicamente nos estudos de 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
6 
provêm os termos do inglês antigo bōc (donde, por sua vez, procede book), alemão Buch, 
holandês bock, sueco bok etc., todos significando ‘livro’. 
c) A palavra  latina  liber significa originalmente  ‘casca’, a  ‘entrecasca’ em que se escrevia 
antes da adoção do papiro, passando a nomear, em seguida, o próprio livro. Os termos 
das  línguas  românicas  procedem  de  librum,  o  qual  dá  origem  a  libro,  em  italiano  e 
espanhol, livro, em português, e livre, em francês. 
Examine agora a última coluna do QUADRO 1, agrupando os termos de acordo com sua 
semelhança. Você encontrará quatro tipos, numa distribuição diferente da anterior: 
QUADRO 3 
Palavras para ‘mesa’ 
mensam  table  Tisch  trapézēi 
mesa  table     
mesa  tavolo     
Fica  claro  que  as  palavras  do  espanhol  e  do  português, mesa,  provêm  do  latim mensa. 
Entretanto, também as palavras da segunda coluna têm uma origem latina: tabŭla significa 
‘tábua’,  ‘tabuleiro’,  estando na origem do  italiano  tavolo  e do  francês  table  (o português 
tem, da mesma origem, o termo tábua, assim como o espanhol,tabla; recorde‐se ainda que 
távola,  com  o  significado  de  ‘mesa’,  existe  também  em  português,  embora  seja  um 
arcaísmo,  fossilizado, por exemplo, na referência ao Rei Artur e “os cavaleiros da  távola 
redonda”). 
O  inglês  table procede do  francês, por empréstimo, como acontece com grande parte do 
vocabulário  daquela  língua,  em  consequência  do  domínio  normando  sobre  as  Ilhas 
Britânicas (1066‐1154). 
O  caso  do  alemão  também  se  deve  a  um  longo  processo  de  empréstimos:  (a)  o  termo 
original é o grego dískos, ‘disco, objeto circular’, ‘disco de arremesso’ (como continua a ser 
                                                                                                                                                                                                     
linguística histórico‐comparativa. No Texto 6, entenderemos melhor os procedimentos de reconstituição de 
palavras. 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
7 
usado  nos  jogos  olímpicos);  (b)  o  latim  discus,  ‘prato’,  ‘travessa  redonda’,  constitui  um 
empréstimo da palavra grega citada;  (c) o germânico  tomou emprestado o  termo  latino, 
*disku/diskuz,  significando  ‘prato’,  ‘travessa’,  ‘tábua de  comida’,  ‘bandeja’,  ‘mesa’, donde 
provém  a  palavra  do  antigo‐alto‐alemão  tisk/tisc,  ‘mesa’,  ‘prato’,  ‘travessa’,  ‘trípode’, 
‘bandeja’, origem do termo do médio‐alto‐alemão tisch, ‘mesa’, ‘mesa onde se come’ e do 
alemão Tisch,  ‘mesa’. É  curioso  que  em  alemão  existe  também uma  outra palavra para 
‘mesa’,  ‘tábua’:  Tafel,  que  procede  do  médio‐alto‐alemão  tavele/tabele,  por  sua  vez 
proveniente  do  antigo‐alto‐alemão  tavala/tabala,  empréstimo  do  latim  tabŭla. Veja  como 
esses fatos linguísticos sugerem que os germanos não possuíam uma palavra para ‘mesa’ e 
parecem ter tomado dos romanos tanto o objeto, quanto sua denominação. 
Enfim, o grego trápeza é uma abreviação de tetrapéza, isto é, ‘de quatro pés’, o que remete 
para a forma da mesa. 
Não  continuaremos  a  explorar  a  origem dos demais  termos de nossas  oito  frases. Mas, 
como você pôde observar, tudo que fizemos até aqui teve uma perspectiva comparativista. 
Esse será o vetor no nosso curso, com ênfase nas línguas indo‐europeias. 
Última  observação:  a  atividade  de  comparação  exige  treinar  a  capacidade  de  observar, 
para perceber as semelhanças e diferenças. Como nosso tema é a comparação linguística, 
então nosso principal objetivo é desenvolver em você essa capacidade de observar o que 
acontece nas  línguas. Trata‐se de uma atitude muito  importante para que se  torne capaz 
de observar também o que acontece na nossa própria língua, o português. 
Nas unidades seguintes, você tomará contato com muitas informações novas e conhecerá 
muitos fenômenos  linguísticos. É evidente que não se espera que você aprenda as tantas 
línguas a que se fará referência, mas sim – o que é o mais importante – que tome as línguas 
e a linguística como objeto de conhecimento e de reflexão. Afinal, o homem é um animal 
que fala, logo, as línguas são um dos traços mais preciosos da condição humana.   
Ponto para você que escolheu estudar Letras! 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
8 
DEFININDO LINGUÍSTICA COMPARADA  
Aléxia Teles Duchowny (Fale/UFMG) 
INTRODUÇÃO 
Ao tentar entender o que é Linguística comparada, é bem provável que você encontre uma 
definição diferente em cada autor que consultar. Até mesmo o nome que se dá a esta área 
do  saber  pode  variar:  Linguística  comparativa,  Linguística  genética,  Linguística 
contrastiva, Filologia comparativa...  
Para Robert Trask  (2004),  linguista americano, a Linguística  comparada  interessa‐se por 
identificar a origem comum de um grupo de línguas. O trabalho de reconstrução, que você 
verá no Texto 6 com mais detalhes, permite estabelecer as características de línguas que já 
não  existem mais.  É  possível  entender,  então,  as mudanças  que  levam  as  línguas  a  se 
diferenciarem e a originarem suas línguas‐filhas.  
Aqui vamos entender a Linguística comparada de uma maneira bem mais abrangente do 
que  Trask  (2004).  Para  nós,  trata‐se  de  uma  subárea  da  Linguística  geral,  podendo  ser 
descritiva  (sincrônica),  histórica  (diacrônica),  e  também  especializada.  Ela  identifica 
diferenças, semelhanças e inter‐relações entre duas ou mais línguas, além de verificar se as 
línguas  em  questão  possuem  um  ancestral  comum.  Além  do  mais,  qualquer  nível 
gramatical —  lexical, morfológico,  semântico,  sintático,  fônico —  pode  ser  comparado. 
Vejamos cada uma dessas subpartes da Linguística comparada.  
1 A Linguística descritiva comparada 
A  Linguística  descritiva  comparada  analisa  línguas  específicas,  sem  levar  em  conta  as 
mudanças e variações que toda língua sofre ao longo do tempo. Ela também se preocupa 
com a classificação das  línguas conforme suas características estruturais, sendo chamada 
de Tipologia  linguística,  que  você  verá  no Texto  4. No  caso da Tipologia  linguística,  a 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
9 
O conceito de sujeito nulo (cf. Cunha e Cintra, 2001) 
 
O  que é mesmo sujeito nulo (também chamado de oculto, por alguns autores)? 
 
Em português, dizemos: 
 
(1) Nós fomos à praia. 
 
Mas também é possível dizer, sem alteração de sentido 
 
(2) Fomos à praia.  
 
Em (1), a posição de sujeito está preenchida pelo pronome nós. Já em (2), houve o apagamento do sujeito, o que 
nos leva a afirmar que esta é uma frase de sujeito nulo. Em outras palavras, o sujeito nulo é aquele que não está 
materialmente  expresso na  oração, mas  pode  ser  identificado No  caso  em  questão,  a  identificação  é  feita  pela 
desinência verbal ‐mos. 
comparação  não  leva  em  conta  a  origem  das  línguas, mas  sim  suas  características  em 
comum.  
Vejamos alguns exemplos de estudo de Linguística descritiva comparada. 
John Catford,  em  1980,  comparou  os  sistemas  de  duas  línguas  diferentes,  o  inglês  e  o 
francês,  assim como a ocorrência das preposições nas estruturas de cada uma das línguas. 
Este  linguista  escocês  afirma  que,  em  12  mil  palavras  do  francês,  em 
tradução/correspondência com o inglês, das 134 ocorrências da preposição dans (“dentro”, 
em francês), 73% correspondem a  in (“dentro”, em  inglês), 19% a  into (“para dentro de”, 
em  inglês)  e  8%  a  outras  preposições.  Quando  dans  é  precedida  por  um  verbo  de 
movimento, e seguida por um substantivo de lugar, a correspondência com into é de 100%.  
Para entendermos o próximo exemplo, precisamos relembrar do conceito de sujeito nulo: 
LEMBRETE ! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
10 
O aluno da UFRJ Pablo Teixeira, em sua dissertação de mestrado, investigou o fenômeno 
do  apagamento  do  sujeito  da  frase  na  fala  espontânea  do  português  do  Brasil  e  do 
hebraico moderno. A  capacidade  de  apagamento  do  elemento  que  está  na  posição  de 
sujeito  na  estrutura  sintática,  conhecida  como  fenômeno  do  sujeito  nulo,  é  uma 
característica compartilhada por muitas línguas.  
Dois foram os fatores que motivaram o autor a realizar a sua pesquisa comparativa: (i) o 
distanciamento aparente entre as duas gramáticas e (ii) a produtividade do fenômeno de 
apagamento,  comprovada  por  vários  outros  trabalhos  sobre  as  duas  línguas. Mas,  até 
então, nenhuma das pesquisas tinha tido cunho comparativo.  
Assim,  ele  selecionou  e  transcreveu doze  entrevistas  retiradas da  internet;  sete  falantes 
nativosdo português falado no Brasil e cinco do hebraico falado em Israel. A partir de seu 
corpus, o pesquisador verificou que duas línguas tão diferentes uma da outra apresentam 
vários comportamentos em comum em relação ao apagamento do sujeito. O hebraico e o 
português se mostraram favoráveis ao preenchimento da posição de sujeito em detrimento 
do apagamento. Veja como é em hebraico: 
  Ani      lomed                            ivrit 
   eu        estudar‐pres. ‐ m. s.     hebraico 
   “Eu estudo hebraico” 
Já  a  estrutura  abaixo  é  inaceitável,  diferentemente  do  português,  em  que  é  possível  a 
estrutura “Estudo hebraico”, sem a presença explícita do sujeito “eu”:  
  *Lomed ivrit. 
Nas duas  línguas,  os  fatores  tempo  e pessoa  também  exerceram papel  fundamental  na 
realização do fenômeno do apagamento do sujeito. O tempo presente em ambas as línguas 
revelou taxas de ocorrência de sujeitos nulos menores do que as taxas de preenchimento. 
Mas  não  só  semelhanças  foram  verificadas  pelo  pesquisador.  Em  relação  ao  tempo 
passado, há no hebraico maior número de apagamento do sujeito do que no português. De 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
11 
fato,  em hebraico, o passado  é o  tempo mais  favorável  ao  apagamento do  elemento na 
posição de sujeito. 
O  autor  também  afirma  que  quer  continuar  a  pesquisa  e  verificar,  futuramente,  o 
funcionamento  do  preenchimento  do  sujeito  em  frases  no  futuro.  Através  da  ótica 
comparativa,  P.  Teixeira  colaborou  para  a  construção  de  um  panorama  geral  sobre  o 
fenômeno de apagamento de sujeito das duas línguas.  
Você deve ter observado que a Linguística descritiva comparada é muito importante, tanto 
para  a  Linguística  comparada  como  um  todo,  quanto  para  a  Linguística  comparada 
histórica.  Se,  por  exemplo,  queremos  reconstruir  a  origem  de  dadas  línguas,  é  preciso 
comparar, primeiro, as descrições dessas línguas, não é mesmo? Agora, vejamos como se 
realiza a comparação linguística diacrônica.  
2 A Linguística histórica comparada 
Vamos  tentar  entender  a  vertente  histórica  da  Linguística  comparada  a  partir  da  sua 
trajetória.  
Conforme D´Avino (2003), apesar de as línguas e as linguagens humanas terem suscitado 
interesse entre filósofos, gramáticos e estudiosos em geral, foi só no final do século XVIII, 
com  o  Romantismo,  que  a  história  das  línguas  passa  a  receber  mais  atenção  dos 
pesquisadores. Os alemães Friedrich Schlegel e Franz Bopp colaboraram bastante para a 
nossa disciplina, com a publicação de obras que tratavam das relações de parentesco entre 
as  línguas  e  suas  origens.  Rasmus  Rask  e  Jacob  Grimm  foram  autores  das  primeiras 
gramáticas históricas conhecidas. Nelas, a ênfase era sempre o nível fonético.  
A  Linguística  histórica  comparada,  em  geral,  busca  identificar  e  entender  as  relações 
genéticas, de parentesco,  entre duas ou mais  línguas. Línguas parentes  são aquelas que 
derivam de uma mesma língua anterior. Essa língua anterior pode ser chamada de língua‐
mãe ou de protolíngua.  
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12 
Veja o esquema abaixo:  
 
 
A e B são períodos posteriores no tempo em relação à língua‐mãe. A e B podem, então, ser 
entendidas  como  continuações  divergentes  da  língua  inicial  e  podem,  por  sua  vez, 
também se tornarem línguas‐mães se derem origem a outras línguas. Veja:  
 
Aqui, C, D, E, F e G são subgrupos distintos de línguas irmãs, cujas línguas‐mães são A e 
B, por sua vez línguas irmãs da língua‐mãe.  
O modelo de  árvore  linguística,  como visto  acima,  tem uma  influência muito  forte nos 
estudos  comparativistas  e  pode  variar  muito.  Ao  longo  do  nosso  curso,  você  terá  a 
oportunidade  de  conhecer  vários  exemplos  de  árvores.  O  estudioso  alemão  August 
Schleicher, no século XIX, foi um dos primeiros a montar uma árvore linguística do Indo‐
europeu, o grupo linguístico que receberá a maior ênfase na nossa disciplina.  
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13 
Veja abaixo: 
 
                       FIGURA 1: Árvore linguística do Indo‐europeu de A. 
                       Schleicher 
                       Fonte: Clackson (2007, p. 10) 
Para  este  professor  da Universidade  de  Praga,  que  também  era  botânico  e  naturalista, 
haveria  uma  língua‐mãe  para  cada  grupo  ou  subgrupo  de  línguas. As  línguas  seriam 
como os seres vivos: crescem, envelhecem e, finalmente, morrem. Hoje estas ideias não são 
mais  aceitas,  mas  seu  papel  foi  fundamental  para  o  desenvolvimento  da  linguística 
comparada, e sua Gramática comparativa das línguas indo‐europeias (1862) é um marco para a 
Linguística histórica comparada.  
Importante  também para a evolução dos estudos de Linguística histórica comparada é a 
tese neogramática. No final do século XIX, na Universidade de Leipzig, na Alemanha, um 
grupo de estudiosos vai rejeitar as orientações comparativistas de A. Schleicher e de seus 
seguidores. As primeiras hipóteses dos neogramáticos eram de que as  leis  fonéticas não 
apresentavam  exceção.  Como  explica  Robbins  (1981,  p.  321),  para  os  neogramáticos, 
“dentro de certos limites geográficos e entre certas datas, uma mudança de um som para o 
outro  em  uma  língua  atingiria  do mesmo modo  todas  as  palavras  contendo  o  som  no 
mesmo ambiente fonético de outros sons.” 
Posteriormente,  a  hipótese  da  regularidade  da  mudança  sonora  será  criticada  e 
reformulada, tendo Hugo Schuchardt e Jules Gilliéron como alguns destes críticos. Afinal, 
as  exceções  eram  inegáveis  e  a  teoria  tão  genérica  dos  neogramáticos  se  mostrou 
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14 
insuficiente  para  dar  conta  da  complexidade  e  da  multiplicidade  das  causas  dos 
fenômenos linguísticos.  
Os  estruturalistas  vão  se  dirigir  em  direção  oposta  aos  neogramáticos.  O  nome  mais 
importante  desta  linha  é  Ferdinand  de  Saussure,  que  vai  ter  um  impacto  enorme  na 
Linguística do século XX. O Estruturalismo, entre tantas outras importantes contribuições 
para  as  Ciências  Humanas,  considerou  não  só  as  unidades  relativas  da  língua,  mas 
também suas inter‐relações.  
E  finalmente  chegamos  aos  séculos  XX  e  XXI.  Os  estudos  recentes  da  Linguística 
comparada histórica devem muito aos estudos anteriores, principalmente do século XIX. E 
eles não deverão parar. Apesar de termos respostas para muitas questões, ainda há muito 
o que descobrir! 
Você  já pode  ter  inferido que a Linguística histórica  comparada não pode  existir  sem o 
pressuposto do Princípio uniformitário, desenvolvido por Osthoff e Brugmann, em 1878. 
Para  estes  dois  estudiosos,  as  propriedades  gerais  da  linguagem  e  dos  processos  de 
mudança  linguísticos  têm  sido  os  mesmos  durante  toda  a  história  da  humanidade. 
Imagine se as línguas pudessem mudar e variar sem restrições? Não seria possível estudar 
as línguas e estágios de línguas do passado e muito menos reconstruí‐las! 
Mas  como  sabemos  que  duas  ou mais  línguas  têm  parentesco  e  fazem  parte  de  uma 
mesma árvore linguística? Com muita sorte, encontraremos textos preservados de estágios 
anteriores às línguas analisadas. Esse é o caso das línguas neolatinas ou românicas: a sua 
protolíngua, o latim, foi preservada pela escrita, a qual chegou até nós por meio de muitos 
textos.  Se  essas  línguas  ainda  existem,  sendo  usadas  para  comunicação  por  uma 
comunidade de  fala, podemos compará‐las e verificarse as  semelhanças  são,  realmente, 
devido a uma mesma origem.  
O mais  comum,  porém,  é  não  termos  documentos  escritos  em muitas  das  línguas  do 
mundo, sendo muita delas ágrafas, isto é, sem sistema de escrita. Nesse caso, será preciso 
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15 
Exemplo: A língua S (Adaptado de R. Langacker (1975)) 
Imaginemos que, na língua S, [tx] ocorre apenas antes de [i] e [t] 
nunca ocorre antes de  [i]. As palavras  [txik] e  [tak], então,  são 
gramaticais, enquanto que *[tik] e *[txak] não seriam produzidas 
por um falante nativo. Entretanto, foram encontrados os termos 
[matx] e  [katx], que contrariam a regra geral, vista acima, “[tx] 
ocorre  apenas  antes  de  [i]”.  Como  você  explicaria  tais 
ocorrências? A explicação mais plausível seria a de que, em um 
estado anterior da língua, as formas [matx] e [katx] terminavam 
em [i],  isto é, [matxi] > [matx] e [katxi] > [katx]. Assim, a partir 
de propriedades dos  estados mais  recentes de uma  língua,  foi 
possível reconstruir um estado anterior dessa mesma língua. 
utilizar  uma  técnica  para  reconstruir  certas  características  de  períodos  passados  das 
línguas em análise, chamada de reconstrução interna. Vale lembrar que é quase impossível 
reconstruir uma protolíngua na sua totalidade. No Texto 6, explicaremos esta técnica com 
mais detalhes. Aqui, apenas uma amostra do que te espera a partir de dois exemplos.  
EXEMPLO 1 
A língua S de Langacker 
Muitas  vezes  não  temos  atestação da  língua‐mãe,  isto  é,  não  se  conhece  nenhum  texto 
escrito nela. Nesse  caso,  será preciso  reconstruí‐la  através do método  comparativo, que 
veremos com detalhe no Texto 3. Será preciso, primeiramente, identificar as línguas‐filhas 
recentes para depois compará‐las.  
A Linguística histórica comparada também se preocupa com a comparação de estágios de 
diferentes  línguas  e  com  a  comparação  das  diferentes  evoluções  de  seus  elementos. 
Identificar,  compreender  e  classificar  as mudanças  e  as variações  linguísticas  também  é 
sua  função,  não  sendo  necessário  que  as  línguas  comparadas  tenham  parentesco.  Por 
exemplo:  Podemos  comparar  o  desenvolvimento  do  verbo  be  (“ser”)  e  do  verbo  have 
(“ter”)  mais  particípio  passado,  do  antigo  inglês,  com  os  mesmos  termos  do  inglês 
moderno.  Em  seguida,  comparamos  os  resultados  dessa  primeira  comparação  com  o 
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16 
desenvolvimento desse mesmo  tipo de construção no  francês,  isto é, avoir  (“ter”) ou  être 
(“ser/estar”) + particípio passado (adaptado de Ellis, 1966). 
3 A Linguística comparada especializada  
É possível, também, comparar línguas diferentes entre si com objetivos específicos. Assim, 
a comparação entre textos escritos em pontos diferentes do percurso de uma língua com os 
textos  de  outra  língua  é  feita  porque  pode  trazer  esclarecimentos  para  o  melhor 
entendimento das  línguas atuais e de sua origem. A Linguística comparada da  tradução 
trata da assimetria entre línguas quando em situação de tradução. O contato entre línguas 
é  outra  área  que  gera  questões  muito  interessantes  para  o  linguista  comparativista. 
Entender melhor o bilinguismo, em que se analisa o contato de línguas entre indivíduos, 
grupos ou comunidades, os empréstimos em geral e a distribuição geográfica de línguas e 
dialetos são também grandes e estimulantes desafios.  
Mas por que as  línguas mudam  continuamente? Como afirma Robbins  (1981), ninguém 
contestará que as mudanças linguísticas ocorrem em todos os níveis gramaticais de todas 
as  línguas.  Mas  as  causas  para  este  processo  contínuo  e  complexo  ainda  não  foram 
compreendidas pelos  linguistas. Há muitas pesquisas sobre o assunto e pode‐se afirmar 
que  dois  fatores  básicos  geram mudança  e  variação:  influência  externas,  como  contato 
entre  falantes,  e  processos  internos,  relacionados  à  transmissão  das  línguas  de  uma 
geração para outra. Você irá entender melhor estes fenômenos no Texto 2.  
Aqui termina a nossa aula. Vimos que a Linguística comparada pode ser dividida em três: 
a  descritiva,  a  histórica  e  a  especializada. Agora  você  já  sabe  o  que  esperar  da  nossa 
disciplina?  Você  imaginava  que  a  Linguística  comparada  pudesse  ser  tão  fascinante  e 
abranger estudos tão diversos?  
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LEITURA COMPLEMENTAR 
A revista Veja, em novembro de 1994, publicou uma reportagem muito interessante sobre 
Linguística comparada aplicada às línguas indígenas brasileiras. Acesse o link abaixo e leia 
o texto com bastante atenção.  
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx  >  ano  de  1994  >  mês  de  novembro  > 
edição 1368 de 30/11/1994 > ir para esta edição (seta verde à esquerda da tela) > página 72.  
Referências 
CATFORD, John. A linguistic theory of translation: an essay in applied linguistics. London: Oxford 
University, 1965. Localização na biblioteca: 418.02 C359l.Pc (FALE) 
 
CLACKSON, James.  Indo‐European Linguistics. Cambridge: CUP, 2007.  
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova 
Fronteira, 2001. Localização na biblioteca: 469.5 C972n 2001 (FALE) 
D´AVINO, Rita. Introduzione a un corso di storia comparata delle lingue classique. Roma: Kappa, 2003.  
ELLIS, Jeffrey. Towards a general comparative linguistics. The Hague: Mouton, 1966.  Localização na 
biblioteca: 410 E47t 1966 (FALE) 
LANGACKER, Ronald W. A linguagem e sua estrutura. Petrópolis: Vozes, 1975. Localização na biblioteca: 401 
L271l.Pa 1975 (FALE) 
ROBBINS, Robert H. Linguística geral. Rio de Janeiro: Globo, 1981. Localização na biblioteca: 410 R657g.Pc 
1977 (FALE) 
TEIXEIRA, Pablo P. Estudo comparativo sobre o fenômeno do sujeito nulo em português do Brasil e hebraico moderno. 
Dissertação de Mestrado (Linguística). UFRJ, 2008. Disponível em: 
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=118471. 
Acesso em: 5 out. 2011. 
TRASK, Robert L. Dicionário de linguagem e linguística. São Paulo: Contexto, 2004. Localização na biblioteca: 
410.3 T775k.Pi 2004 R (FALE) 
   
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
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ARQUEOLOGIAS 
Jacyntho Lins Brandão (Fale/UFMG) 
Tanto  a  diferença  quanto  a  semelhança  entre  as  línguas  intrigaram  desde  eras muito 
antigas a humanidade. É bastante conhecido o episódio da Torre de Babel, através do qual 
o narrador da Torá, que escreve por volta do século VI a.E.C., busca dar uma explicação 
para a diversidade linguística, nestes termos:5 
Todo  mundo  se  servia  de  uma  mesma  língua  e  das  mesmas  palavras.  Como  os  homens 
emigrassem  para  o  oriente,  encontraram  um  vale  na  terra  de  Senaar  e  aí  se  estabeleceram. 
Disseram um ao outro: Vamos! Façamos  tijolos e  cozamo‐los ao  fogo! O  tijolo  lhes  serviu de 
pedra e o betume de argamassa. Disseram: Vamos! Construamos uma cidade e uma torre cujo 
ápice penetre nos céus. Façamo‐nos um nome e não sejamos dispersos sobre a terra! 
Ora,  Iahweh desceu para ver a cidade e a  torre que os homens  tinham construído. E  Iahweh 
disse: Eis que  todos constituem um só povo e  falam uma só  língua.  Isso é o começo de  suas 
iniciativas!  Agora,  nenhum  desígnio  será  irrealizável  para  eles.  Vamos!  Desçamos  e 
confundamos (nablah) a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros. Iahweh 
os dispersou dali por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade. Deu‐se‐lhe por 
isso  o  nome  de  Babel,  pois  foi  lá  que  Iahweh  confundiu  (balal)  alinguagem  de  todos  os 
habitantes da  terra  e  foi  lá que  ele os dispersou  sobre  toda  a  face da  terra.  (Gênesis,  11,  1‐9. 
Tradução da Bíblia de Jerusalém, com modificações) 
Além da maneira  curiosa  como  a origem da diversidade  é  apresentada, nada mais que 
punição pela  insolência dos homens,  e ainda que a  existência de  línguas diferentes  seja 
explicada  por  esse  modo,  supõe‐se  que  a  diversificação  aconteceu  de  repente, 
transformando uma  situação primitiva  quando  toda  a  humanidade  falava uma única  e 
mesma  língua, ou, nas palavras do Rabi Shlomó Yitzkhaki  (também chamado de Rashi, 
1040‐1105),  quando  possuía  “o  bem  de  ser  um  só  povo  com  uma  só  língua”. Não  se 
esclarece, contudo, qual seria essa língua original nem há qualquer traço de que pudesse 
ser  a  origem  das  demais. O  que  se  deseja  enfatizar  é  como  a  providência  tomada  por 
Yahweh, confundindo a  linguagem humana,  teve o efeito esperado de  imediato, ou seja, 
cessar  a  construção  da  torre.  Conforme  comenta  Rashi,  na  confusão  que  se  instala  de 
                                                            
5  Torá  é  o  nome  original  que  se  dá  aos  cinco  primeiros  livros  da  Bíblia  judaica,  chamados,  em  grego, 
Pentateuco.  O  livro  da  Torá  que,  também  a  partir  do  grego,  conhecemos  como  Gênesis,  se  chama,  em 
hebraico, Bereshit, ou seja, No princípio. No Oriente Médio, a partir da prática corrente na Mesopotâmia desde 
o segundo milênio a.C., era costume que as obras recebessem como título as palavras com que começavam. 
No caso do Gênesis: “No princípio criou Deus o céu e a terra...” 
Fundamentos de Linguística comparada / Faculdade de Letras da UFMG 
19 
imediato,  “um pede um  tijolo  e  o  outro  lhe  traz  argila;  o primeiro  então  se  enfurece  e 
quebra a cabeça do outro” (YITZJAK, s/d, p. 43‐44). 
Quase  um  século  após  o  relato  da  Torá,  encontramos  em  Heródoto  (séc.  V  a.E.C.)  a 
descrição da pesquisa levada a cabo por Psamético, faraó do Egito entre 664 e 610 a.E.C., o 
qual desejava descobrir que  língua e, em consequência, qual povo seria o mai antigo do 
mundo: 
Os egípcios, antes que Psamético os governasse,  julgavam que eram anteriores (prótoi) a todos 
os  povos.  Uma  vez  que  Psamético,  quando  começou  a  reinar,  quis  saber  quem  seriam  os 
primeiros, disseram‐lhe que  se pensava que os  frígios eram anteriores a eles, egípcios, e eles 
próprios  aos demais povos. Psamético,  como não  conhecia nenhum meio de descobrir quais 
seriam os primeiros homens,  elaborou  este: deu duas  crianças  recém‐nascidas de pessoas de 
baixa  condição  a um  pastor,  para  que  as  alimentasse  entre  os  rebanhos,  com  o  alimento  ali 
usado, ordenando que ninguém, diante delas, emitisse qualquer som (phonén); ele devia deixá‐
las numa cabana solitária e, nos momentos apropriados, levar cabras até elas, dando‐lhes leite – 
e observar o que aconteceria. Psamético fez e levou ao cabo isso por querer ouvir das crianças, 
quando abandonassem os inarticulados gritos sem significado (asémon), qual a primeira palavra 
(phonèn próten) que se poriam a falar. Completados dois anos, ao pastor que cumpria sua tarefa, 
quando  abria  a  porta  e  entrava,  ambas  as  crianças,  arrastando‐se  em  sua  direção,  diziam 
(ephóneon) “bekós”, estendendo as mãos. De  início, ouvindo  isso, ele  ficou quieto, mas, como 
muitas vezes, quando entrava e prestava atenção, essa era a palavra (épos), contou‐o ao rei. Por 
ordem  deste,  conduziu  as  crianças  à  sua  presença.  Tendo‐o  ouvido  o  próprio  Psamético, 
informou‐se  sobre quais dentre homens  chamavam  algo de  “bekós”. Pesquisando, descobriu 
(heúriske)  que  os  frígios  assim  chamavam  o  pão.  Desse  modo,  os  egípcios  aquiesceram, 
concluindo dessa experiência que os frígios eram mais velhos (presbytérous) que eles (Heródoto, 
Histórias 2, 2. Tradução de Brito Broca, com modificações). 
Ressalte‐se que esse interesse em saber qual seria a língua primitiva da humanidade não é 
inocente.  Nesse  tipo  de  pensamento,  que  podemos  chamar  de  arqueológico,  há  três 
perspectivas culturais entrelaçadas. Num sentido amplo e etimológico, arqueologia, palavra 
composta  com  os  termos  gregos  arkhé  e  lógos,  constitui  um  discurso  (lógos)  sobre  o 
princípio  (arkhé). Ora, arkhé cobre  três esferas de significado:  (a) a origem no  tempo, um 
começo  (como  em  arqueolítico);  (b)  o ponto de partida de  onde  outras  coisas procedem 
(como em arquétipo);  (c) o poder  (como em arconte, monarquia, oligarquia etc.). Perguntar, 
portanto, sobre a origem das línguas envolve os três campos: (a) qual a língua mais antiga? 
(b) qual a língua donde as demais procedem? (c) qual a língua, que por ser o princípio das 
demais, exerce sobre elas seu poder e confere poder a quem a conhece? 
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Assim,  escolher uma  língua qualquer  como a original  implica atribuir‐lhe primazia,  em 
termos de precedência, procedência e poder, supondo‐se que aqueles que a falam sejam o 
povo  mais  antigo  ou  descendam  diretamente  dele,  bem  como  são  os  detentores  da 
linguagem  natural,  portanto mais  perfeita,  de  que  todas  as  demais  não  são mais  que 
devedoras. 
Que  o  assunto manteve  seu  interesse  comprova  o  fato  de  que, mais  de  dois milênios 
depois, Frederico II, rei da Prússia (1712‐1786), repetiu, mais de uma vez, a experiência de 
Psamético, com desfechos fatais: 
[Frederico  II]  quis  experimentar  qual  língua  e  idioma  teriam  as  crianças,  chegando  à 
adolescência, sem terem jamais podido falar com ninguém. E por isso ordenou às amas de leite 
e às nutrizes que dessem leite aos infantes (...), com a proibição de falar‐lhes. Com efeito, queria 
saber se falariam o hebraico, que foi a primeira língua, ou talvez o grego, ou o latim, ou o árabe; 
ou  se  não  falariam  sempre  a  língua  dos  próprios  genitores  de  quem  tinham  nascido. Mas 
cansou‐se sem resultado, porque as crianças ou  infantes morriam todos (Salimbene da Parma, 
Cronaca, n. 1664, apud ECO, 2002, p. 5). 
Nesse  contexto, há mais um pressuposto  importante: o de “língua natural”. As  crianças 
falariam a língua primordial da humanidade (supostamente o hebraico) ou de parcela dela 
(o grego, o latim ou o árabe, idiomas igualmente antigos) – ou se expressariam na língua 
materna,  ainda  que  tivessem  sido  separados  das  respectivas  mães,  estando  portanto 
impedidos de aprender a falar como todas as crianças? Noutros termos: a língua é inata ou 
aprendida? Dizendo com mais precisão: é natural ou cultural? 
Essa  última  questão  já  tinha  sido  discutida  por  Platão  no  Crátilo  (séc.  IV  a.E.C.)  e  foi 
enfrentada marginalmente pelo desconhecido autor dos Discursos duplos (Dissoì lógoi), obra 
provavelmente escrita no século V a.E.C. Pela simplicidade como se resolve nesta última 
obra, mostra‐se como é possível encontrar uma resposta sem a necessidade de apelar para 
experimentos cruéis como os de Psamético e Frederico II. O problema que se coloca é se é 
possível alguém ensinar e aprender. Para solucioná‐lo, apela‐se para o que se chama de 
“experiência  mental”:  dada  uma  determinada  situação,  o  rigor  de  análise  levará  à 
alternativa  correta. Assim, declara  o  autor:  “Se  alguém,  quando  ainda  criancinha,  fosse 
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mandado para a Pérsia e  lá  fosse criado, não ouvindo  jamais a  língua da Grécia,  falaria 
persa; se alguém de lá fosse trazido para cá, falaria grego.” (Dissoì lógoi, 6, 12) 
Portanto, a  língua é um dado não da natureza, mas da cultura e as palavras podem ser 
ensinadas eaprendidas, uma vez que a criança esteja exposta a determinados contextos, 
independentemente de sua origem familiar ou étnica. 
Observe‐se  como,  nos  exemplos  citados,  há  reis  dentre  aqueles  que  se  preocupam  em 
desvendar qual seria a língua originária da humanidade, o que nos garante a relação entre 
conhecimento da origem e poder. Não pense que se trata de uma perspectiva que se perde 
nas brumas do passado, bastando recordar como o nazismo se apropriou de descobertas 
no campo da linguística indo‐europeia para justificar desmandos e atrocidades, criando o 
mito da superioridade da raça ariana e de sua pureza (cf. BLIKSTEIN, 1992).  
Conclusão: trabalhar com a linguagem e as línguas não é algo inócuo ou mera curiosidade, 
como se poderia pensar. 
1 A precedência do hebraico e outras candidaturas 
Em geral, a exegese rabínica concordará que aquela “só e mesma  língua” utilizada pelos 
homens  no  princípio  era  o  hebraico  (segundo  Rashi,  a  “língua  santa”),  ponto  de  vista 
adotado também pela quase totalidade dos hermeneutas cristãos antigos e medievais. 
Ainda no início da era moderna insistem na mesma tecla, dentre outros, Guillaume Postel 
(1510‐1581)  e  Claude  Duret  (1570‐1611)  –  atitude  ridicularizada  pelo  filósofo  judeu‐
holandês  Gottfried  Leibniz  (1646‐1716),  o  qual  afirmava  que  “na  suposição  de  que  o 
hebraico  foi a  língua original da humanidade há  tanta verdade quanto na afirmação do 
holandês  Goropius  (...)  de  que  a  língua  que  se  falava  no  Paraíso  era  justamente  o 
holandês” (NIKOLSKI; JAKOWLEW, 1947, p. 21‐22). 
A referência de Leibniz é a Goropius Becanus  (Jan van Gorp, 1519‐1572), modelo de um 
conjunto mais  amplo  de  autores  que  defendiam  outras  candidatas  ao  posto  de  língua 
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originária  (cada  qual  puxando  a  brasa  para  a  própria  sardinha):  assim,  o  poeta  sueco 
George Stiernhielm (1598‐1672) pretendia que o gótico (ou antigo nórdico) fosse a origem 
de todas as línguas, assim como os países nórdicos seriam a vagina gentium, lugar onde se 
originou  a humanidade;  já  o médico  irlandês  James Parsons  (1705‐1770) opinava que  o 
gaélico era a língua mais próxima da primitiva; e mesmo o filósofo Johann Gottlieb Fichte 
(1762‐1814)  defendia  que  o  melhor  candidato  a  língua  originária  (Ursprache)  seria  o 
alemão, em vista de sua “pureza”. Outros optaram por soluções mais diversificadas: para 
um,  “Adão  falava  basco;  para  outro,  ao  contrário,  Adão  e  Eva  utilizavam  o  persa,  a 
serpente,  que  os  seduziu,  o  árabe,  e  o  Arcanjo  Gabriel,  o  turco”  (NIKOLSKI; 
JAKOWLWW, 1947, p. 21‐22). 
Umberto  Eco  resume  bem  os  meandros  de  toda  essa  pendenga,  em  que  se  encontra 
envolvida  a  ideia  de  que  a  língua  original  seria  também  a  língua  perfeita,  o  que  só 
comprova como nada se faz por simples curiosidade: 
Na sua versão mais antiga a busca da língua perfeita assume a forma da hipótese monogenética, 
ou seja, da derivação de todas as línguas de uma única língua‐mãe. (...) Os Padres da Igreja, de 
Orígenes  a Agostinho,  haviam  assumido  como  um  dado  incontestável  que  o  hebraico  tinha 
sido, antes da confusão, a língua primordial da humanidade. A exceção mais importante fora a 
de  Gregório  de  Nissa  (Contra  Eunomium),  que  sustentara  que  Deus  não  falava  hebraico  e 
ironizava a imagem de um Deus‐professor ensinando o alfabeto a nossos pais. (...) Mas a idéia 
do hebraico como língua divina sobrevive ao longo de toda Idade Média. Entre os séculos XVI e 
XVII, não basta mais sustentar que o hebraico era a protolíngua (...): então interessa promover 
seu estudo e, se possível, sua difusão. 
Um lugar particular na história do renascimento do hebraico cabe à figura de erudito utopista 
que  foi Guillaume  Postel  (1510‐1581).  (...) No De  originibus  seu  de Hebraicae  linguae  et  gentis 
antiquitate (1538), afirma ele que a língua hebraica provém da descendência de Noé e que dela 
derivaram o árabe, o caldeu, o índico e, só medianamente, o grego. (...) 
Claude Duret, em 1613, publica um monumental Trésor de l’histoire des langues de cet univers (...). 
Já que Duret mantém  a  idéia de que o hebraico  foi  a  língua universal do gênero humano,  é 
óbvio que o nome hebraico dos animais contém em  si  toda  sua “história natural”. Assim, “a 
águia chama‐se nesher, nome que concorda com shor e isachar, que significam olhar e estar ereto, 
porque este pássaro tem, mais que todos, a vista firme e sempre levantada para o sol”. (...) 
Mas se Duret fazia etimologia regressiva, para mostrar como a língua‐mãe estava em harmonia 
com as  coisas, outros  farão etimologia progressiva, para mostrar  como do hebraico derivaram 
todas as outras línguas. Em 1606, Estienne Guichard escreve L’harmonie étymologique des langues, 
onde demonstra como  todas as  línguas existentes podem ser reconduzidas a raízes hebraicas. 
Partindo da afirmação de que o hebraico é a língua mais simples porque nele “todas as palavras 
são  simples  e  sua  substância  consiste  de  apenas  três  radicais”,  elabora  um  critério  que  lhe 
permite  jogar  com  esses  radicais  por  inversões,  anagramas,  permutações,  segundo  a melhor 
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tradição cabalística. Batar em hebraico significa “dividir”. Como se  justifica que de batar tenha 
provindo, em  latim, dividere? Por  inversão se produz  tarab, de  tarab se chega ao  latim tribus, e 
então  a  distribuo  –  e  a  dividere  (...). Zaqen  significa  “velho”;  transpondo‐se os  radicais,  tem‐se 
zaneq, donde senex em latim; e com uma sucessiva permutação de letras tem‐se cazen, donde em 
osco casnar, de que derivaria o latino canus, que significa justamente “ancião” (...). 
O  século  XVII  oferece‐nos  exemplos  saborosos  de  nacionalismos  linguísticos  (...).  Goropius 
Becanus (Jan van Gorp), em Origines Antwerpianae (1569), sustenta todas as teses correntes sobre 
a inspiração divina da língua primitiva, sobre a relação entre palavras e coisas, e encontra essa 
relação  exemplarmente  presente  no  holandês,  ou  melhor,  no  dialeto  de  Antuérpia.  Os 
antepassados dos habitantes de Antuérpia, os címbrios, descendem diretamente dos  filhos de 
Jafé,  que  não  se  achavam  presentes  junto  da  Torre  de  Babel,  escapando  assim  da  confusio 
linguarum.  Conservaram,  portanto,  a  língua  adâmica,  o  que  se  prova  através  de  claras 
etimologias (...) e pelo fato de que o holandês tem o maior número de palavras monossilábicas, 
supera todas as outras línguas em riqueza de sons e oferece excepcionais possibilidades para a 
geração de palavras compostas. (...) 
Ao  lado  da  tese  holandesa‐flamenga  não  falta  a  tese  “sueca”,  com  George  Stiernhielm  (De 
linguarum origine praefatio, 1671). (...) 
Quanto ao alemão, várias e repetidas suspeitas sobre seu direito de primogenitura agitam‐se no 
mundo germânico desde o  século XIV,  em  seguida ao pensamento de Lutero  (para o qual o 
alemão é a língua que mais que todas aproxima de Deus), enquanto, em 1533, Konrad Pelicanus 
(Commentaria bibliorum) mostra as evidentes analogias entre alemão e hebraico.  (ECO, 2002, p. 
83‐109) 
Enfim, toda essa discussão chegou a tal paroxismo que acabou inteligentemente parodiada 
pelo  filósofo  e  filólogo  sueco Andreas Kempe  (1622‐1689):  em  seu  panfleto  satírico As 
línguas  do Paraíso  (Die Sprachen  des Paradises, de  1688),  seu protagonista,  Simon  Simplex 
(um Simão simplório qualquer), estabelece que Deus se dirigia a Adão em sueco e este lhe 
respondia em dinamarquês – enquanto a serpente falava com Eva em francês, já que esta, 
“a  língua  tradicional da sedução,  ‘mexe como corpo  todo de  tal modo que até a pessoa 
mais sábia pode ser por ela iludida’.” (apud OSTLER, 2003, p. 1). 
2 O que se pode saber sobre a origem da linguagem 
Foi apenas no final do século XVIII e princípios do XIX que o tipo de especulação acima 
apresentado  foi  paulatinamente  substituído  pela  ideia  de  que  as  línguas  do mundo  se 
dividem em diferentes famílias, cujo estabelecimento depende de um paciente trabalho de 
comparação. Esse trabalho iniciou‐se no âmbito das línguas indo‐europeias, num processo 
paulatino, mas contínuo, que abordaremos no capítulo seguinte – processo que marca a 
fundação da linguística moderna. 
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24 
Isso não implica, todavia, que a pergunta sobre a origem – não tanto das línguas, mas da 
linguagem  humana  –  se  tenha  tornado  improcedente. Com  efeito,  se  toda  humanidade 
tem  como  característica utilizar‐se de  línguas  como  forma de  comunicação,  isso  implica 
que há, na  linguagem humana, um  conjunto de  categorias universais  relacionadas  com 
determinados processos  cognitivos, os quais  têm  recebido  cada vez mais  a  atenção dos 
linguistas, com enfoques variados. 
A diferença com relação às interpretações anteriormente expostas está: 
a)  no  estabelecimento  de  que  a  língua  é  um  dado  de  cultura,  não  da  natureza,  não 
havendo portanto línguas ou palavras “naturais”; 
b)  no  abandono  da  ideia  de  que  as  línguas  do mundo  possam  provir  de  alguma  das 
línguas conhecidas, uma vez que qualquer  língua se encontra em processo de constante 
mutação; 
c) na admissão de que é possível, através da comparação, retroceder a estágios anteriores 
das línguas conhecidas, reconstituindo em parte as protolínguas donde uma determinada 
família procede; 
d) finalmente, na constatação de que, a partir da diversidade de línguas e da compreensão 
de como elas funcionam e se modificam, se podem deduzir certos parâmetros relativos à 
linguagem humana. 
Embora tenha sido abandonada por muito tempo e continue recebendo críticas, a hipótese 
de  que  as  línguas  do  mundo  tenham  uma  origem  comum  voltou  a  ser  considerada 
seriamente por  linguistas como Greenberg e Ruhlen,  tendo em vista sobretudo o avanço 
do  conhecimento  relativo  às  macrofamílias  linguísticas,  aliado  às  conquistas  da 
arqueologia, que estuda os dados da cultura material, e, mais  recentemente,  também da 
biologia,  que  vem  trabalhando,  com  bons  resultados,  no  mapeamento  do  genoma 
humano.  Se  o  homo  sapiens  sapiens  tem  uma  origem  comum  –  que  tudo  leva  a  crer  se 
encontra no continente africano –, é razoável supor que também as várias línguas possam 
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25 
ter uma única origem. Evidentemente, não se poderá jamais saber como seria esse sistema 
linguístico primeiro, a não ser em  termos muito gerais, ou seja, naquilo em que  todas as 
línguas coincidem: 
a) a arbitrariedade do signo linguístico; 
b) o uso de  categorias  linguísticas  compatíveis  com os processos  cognitivos através dos 
quais o homem apreende o mundo e com ele se relaciona; 
c) o caráter social da linguagem como meio de comunicação; 
d) o fato de que a língua se encontra em constante processo de variação e mudança. 
Uma especulação em  forma de narrativa  (como as míticas), que parece a única possível 
quando se trata de vislumbrar algo sobre origens que se perdem em tempos imemoriais. É 
o que você lerá na “Leitura complementar” a seguir.   
Referências 
BLIKSTEIN, Izidoro. Indo‐europeu, linguística e... racismo. Revista USP, n. 14, p. 104‐110, jun.‐ago. 1992. 
Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/14/20‐izidoro.pdf. Acesso em: 5 out. 2011. 
ECO, Umberto. La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea. Roma‐Bari: Laterza, 2002. Localização na 
Biblioteca: 410  E19r.Pa  2002  (FALE) 
NIKOLSKI, W.; JAKOWLEW, N. Warum die Menschen in verschiedenen Sprachen sprechen. Berlin: Verlag der 
Sowjetischen Militärverwaltung, 1947. 
OSTLER, Rosemarie. Searching for the first words. Verbatim: The Language Quaterly, v. 28, n. 4, p. 1‐4, 
Winter 2003. Disponível em: www.verbatimmag.com/28_4.pdf. Acesso em: 5 out. 2011. 
YITZJAKI, Shlomó.  ישמוח הרות  השמח רפס: El Pentateuco con el comentario de Rabí Shlomó Yitzjaki (Rashi). 
Traducción directa al castellano del original hebreo por Enrique Jaime Zadoff (El Pentateuco) y Jaime Barilko 
(Rashi). Buenos Aires: Editorial Yehuda, [s/d].  
   
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LEITURA COMPLEMENTAR 
A história de Chico 
Rudi Keller 
Era uma vez um grupo de homens‐macaco. Os homens‐macaco eram  seres que haviam 
acabado de ultrapassar o estágio de símios, mas não tinham ainda atingido um ponto em 
que  se  poderia  dizer  que  eram  simplesmente  humanos,  porque  não  tinham  eles  uma 
linguagem.  Todavia,  esses  homens‐macaco  tinham  a  sua  disposição,  exatamente  como 
seus  parentes mais  próximos,  gorilas  e  chimpanzés,  um  rico  repertório  de  expressões 
sonoras. Os mais coléricos batiam a boca e rosnavam quando estavam irados; os vaidosos 
batiam  no  peito  e  rugiam  quando  queriam  exibir‐se.  Eles  batiam  os  dentes  quando  se 
divertiam, ronronavam quando se sentiam confortáveis e emitiam gritos que rompiam os 
ouvidos quando ansiosos. 
Todas essas manifestações estavam  longe de ser signos  linguísticos. Não serviam para a 
comunicação, como hoje a entendemos, mas eram, ao invés disso, a expressão natural de 
eventos internos: sintomas da vida emocional, comparáveis ao suor frio, o riso, as lágrimas 
ou o  rubor. Alguém não  comunica  suas  emoções por meio desses  fenômenos, mas,  em 
certas  condições, pode  revelar  algo  sobre  as mesmas. É que  os  sintomas podem  causar 
efeitos similares aos dos signos linguísticos. 
Um  dos  integrantes  do  grupo  era  um  homem‐macaco  que  a  natureza  pusera  em 
desvantagem: pequeno, mais fraco que os outros e ansioso ao máximo. Podemos chamá‐lo 
de Chico. 
Sendo fraco, Chico era muitas vezes forçado, desde a infância, a ser um tanto mais esperto 
que os outros. Ele tinha de compensar sua falta de força corpórea e seu baixo status social, 
sob o risco de ficar completamente dominado pelos demais. Em especial, os membros mais 
fortes do grupo  afastavam‐no  regularmente da  comida, não deixando que  ficasse perto 
dos  bocados mais  suculentos. Mas,  sendo  ágil  e  esperto,  Chico  conseguia  ultrapassar 
alguns desses obstáculos. 
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Um dia aconteceu algo que teria uma imensa importância para o futuro de toda raça dos 
homens‐macaco.  O  grupo  estava  pacificamente  amontoado  em  volta  da  comida, 
consumindo a presa capturada naquele dia. Como sempre, havia algumas pequenas brigas 
e  empurrões  ocasionais.  Chico  foi  de  novo  empurrado  para  a  borda  exterior,  onde 
descobriu um par de olhos no meio da vegetação  rasteira – os olhos de um  tigre! Seus 
olhos  encontram‐se  com  os  do  animal... Morrendo  de medo,  ele  grita  aterrorizado. O 
grupo  dispersa  instantaneamente. Cada  qual  trata  de  encontrar  abrigo  na  árvore mais 
próxima, porque tal grito era sinal de enorme perigo. Estavam todos condicionados, desde 
a infância, a reagir assim. 
Chico  ficou  parado  lá,  como  se  congelado.  Estar  tão  perto  de morrer  o  havia  tornado 
incapaz de  fugir. Todavia, para  seu grande espanto, os olhos piscavam para ele, de um 
modo nada parecido com o que faz um tigre, e seu proprietário foi‐se embora irritado. O 
que ele havia visto como olhos de tigre pertencia a nada maisque um pacato porco. Chico 
tinha sido vítima de sua vívida imaginação, alimentada por sua natural ansiedade. 
Mas “vítima” é a palavra correta neste caso? 
Quando Chico olhou em volta, desconcertado, desamparado e um pouco envergonhado, 
viu  que  estava  completamente  sozinho,  junto  com  a  comida  deixada  para  trás  pelos 
outros. A expressão de medo em seu  rosto deu  lugar a um  firme e  travesso sorriso. Ele 
quase não podia acreditar. 
Na medida em que passavam os dias e as semanas – e que, a cada vez, a disputa pelas 
melhores partes de alimento tinha lugar – ele era tentado a fazer intencionalmente o que 
lhe havia acontecido por acidente. O que Chico não podia  imaginar é que essa  tentação 
marcava o fim do paraíso da comunicação natural. 
O  que  tinha  de  acontecer  finalmente  aconteceu.  Como  sempre,  ele  tinha  de  ficar 
observando  como aqueles grandalhões  cabeludos  repartiam as melhores partes  entre  si, 
enquanto ele, faminto, se sentava perto, tomado por uma raiva  impotente. Foi então que 
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sucumbiu à tentação. Deu o grito de angústia e, de novo, o grupo dispersou‐se em matéria 
de segundos, incluindo os repugnantes grandalhões. 
A  melhor  parte  da  comida  ficara  ali,  montes  de  comida.  Na  sua  agitação,  Chico,  na 
verdade, nem pôde  saboreá‐la  (talvez  sua má  consciência o  impedisse). Mas o primeiro 
degrau tinha sido galgado e Chico achou muito mais fácil da próxima vez. Com o tempo, 
tornou‐se quase  impiedoso. Achava prazer em executar seu  truque e começou mesmo a 
abusar. 
Como era inevitável, logo alguém suspeitou dele. Quando Chico foi bobo o suficiente para 
gritar pela  segunda vez durante uma mesma  tarde, um outro macaco parou, depois de 
poucos  saltos,  olhou  para  trás  e  começou  a  devorar  a  comida.  Chico  ficou  um  pouco 
irritado, mas  não  se  incomodou, pois  havia  comida  suficiente para  ambos. Mas  logo  o 
cúmplice começou também a usar do expediente que aprendera e, como Chico, a exagerar. 
O número daqueles que não se deixavam enganar pela mentira – e, finalmente, o número 
de  imitadores  –  tomou  dimensões  inflacionárias.  A  comunidade  entrou  num  período 
extremamente  crítico.  Cada  qual  suspeitava  dos  demais.  Os  grandalhões  tentaram 
restaurar  a  antiga  ordem,  penalizando  todo  abuso  do  grito  de  prevenção.  Mas  um 
conhecimento,  uma  vez  adquirido,  não  pode  ser  jamais  erradicado.  Pelo  contrário,  era 
reforçado por todo novo abuso e toda tentativa de penalizar quem dele utilizava. 
O abuso permanente do grito de prevenção representava um perigo para a existência física 
de todo o grupo, uma vez que a crença cega nele era necessária para a sobrevivência. Mas 
essa época havia definitivamente acabado. Os que quisessem sobreviver nesses tempos de 
corrupção tinham de ter bons ouvidos. Tinham de aprender a diferenciar o grito genuíno 
do fingido, algo que não se mostrou difícil para muitos deles. (...) 
A história de Chico não pretende ser realista, mas diz algo sobre a realidade. Ela mostra 
como a  transição da  comunicação natural para a humana poderia  ter acontecido. Não  se 
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trata de uma reconstrução histórica, mas filosófica. Não são os fatos, mas apenas os dados 
lógicos da história que devem estar corretos, a saber: 
1.  As  etapas  que  conduzem  do  grito  natural  de  angústia  ao  ato  intencional  parecem 
plausíveis. A passagem de um ao outro não deve ter apresentado nem furos, nem saltos. 
2. As pressuposições relativas às habilidades dos homens‐macaco parecem ser realistas. A 
história  seria  sem  valor  caso  se  atribuísse  a  Chico  uma  alta  (e  irrealista)  capacidade 
intelectual. 
Traduzido de: KELLER, Rudi. On Language Change: the invisible hand in language. London/New York: 
Routledge, 1994. p. 19‐22. 
   
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VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA 
Sueli Maria Coelho (Fale/UFMG) 
INTRODUÇÃO 
A comparação entre duas ou mais línguas, conforme proposto na primeira aula de nosso 
curso, demonstra haver entre elas aspectos que as diferenciam, quer em maior quer em 
menor escala, dependendo do grupo linguístico a que pertençam os idiomas comparados. 
Assim,  se  compararmos  entre  si  línguas  originárias  do  ramo  indo‐europeu6,  nós 
identificaremos muito mais  semelhanças  que  se  compararmos  línguas  originárias desse 
ramo com aquelas provenientes do ramo afro‐asiático, família linguística com 353 línguas 
vivas presentes na Ásia e na África. 
Compreender  que  as  línguas  variam  quando  se  comparam  dois  ou  mais  idiomas  é 
relativamente fácil, principalmente porque, na maioria das vezes, as diferenças saltam aos 
olhos  já  no  plano  do  código. A  compreensão  da  diversidade  torna‐se,  contudo, menos 
visível quando o objeto de análise se restringe a uma mesma  língua. Será que as  línguas 
são homogêneas, isto é, será que todos os falantes de uma língua dizem as mesmas coisas 
da mesma forma? Além disso, será que as línguas conservam as mesmas características ao 
longo dos séculos? É exatamente sobre essas questões aparentemente simples, porém não 
tão óbvias, que você é convidado a refletir cientificamente nesta unidade, tomando como 
objeto de análise dados da língua portuguesa falada no Brasil.  
1 Variação linguística 
Ao buscar resposta para a primeira pergunta acima — as línguas são homogêneas? —,  é 
provável  que  você  logo  se  lembre  de  que,  no  português  do  Brasil,  a  pronúncia  de 
determinadas palavras, muitas vezes, varia de uma  região para outra do país, o que  já 
constitui um indício de que as línguas não são homogêneas. Pense, por exemplo, na forma 
                                                            
6 Família linguística composta de dez ramificações e 426 línguas vivas, entre elas o português, e distribuídas em várias 
regiões do mundo. 
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como  os  paulistas  pronunciam  a  palavra  tio,  comparando‐a  com  a  forma  como  nós, 
mineiros, a pronunciamos. Certamente, você identificou alguma diferença no modo de se 
articular o som /t/. O mesmo se dá quando se compara, por exemplo, a fala de um carioca 
com a fala de um gaúcho ou com a de um nordestino.  
Se você ainda não  tinha se atentado para esse  fato, ao  fazê‐lo, verá que cada um desses 
grupos de falantes do português tem formas peculiares de articular determinados sons e 
também de cadenciá‐los ao pronunciar as palavras de uma  frase, o que  faz com que, ao 
ouvi‐los, logo identifiquemos as diferenças entre um falar e outro. Essas diferenças, que se 
dão na  forma de se pronunciarem as palavras, mas que não atrapalham a compreensão, 
permitindo  que  falantes  de  qualquer  região  do  país  conversem  e  se  entendam,  são 
denominadas de variação fonética.  
Se você refinar um pouco mais a sua observação, prestando atenção no o modo como as 
pessoas  falam,  perceberá  que  as  diferenças  não  se  limitam  apenas  à  pronúncia  das 
palavras,  embora  estas  sejam  mais  facilmente  perceptíveis.  A  diversidade  se  estende 
também a outros níveis ou estratos da  língua, como, por exemplo, ao nível do  léxico, ou 
seja, do conjunto de palavras que compõem a língua. Compare as sentenças apresentadas 
no quadro abaixo e veja que, apesar de elas preservarem o mesmo sentido, há diferenças 
entre  as  palavras  utilizadas  para  se  referir  a  um  determinado  ingrediente  da  culinária 
regional: 
a. Fui ao mercado e comprei macaxeira para acompanhar o churrasco.b. Fui ao mercado e comprei aipim para acompanhar o churrasco. 
c. Fui ao mercado e comprei mandioca para acompanhar o churrasco. 
Certamente,  você  percebeu  que  tanto  macaxeira,  quanto  aipim  e  mandioca  são  termos 
utilizados para se referir à mesma raiz de massa branca ou amarela, originária da América 
do Sul e que é muito utilizada na alimentação humana. Apesar de as palavras utilizadas 
para se referir a esse alimento serem diferentes, elas, quando empregadas pelos falantes de 
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regiões diferentes do Brasil, evocam o mesmo referente, isto é, remetem o falante/ouvinte 
para  o mesmo  elemento  do mundo  real. Quando  isso  acontece,  dizemos  que  há  uma 
variação  lexical,  ou  seja,  os  mesmos  elementos  da  realidade  recebem  denominações 
diferentes, dependendo da região em que são empregados. É muito pouco provável que, 
ao comunicar a alguém o fato de ter ido à feira comprar mandioca para um churrasco, um 
morador  de  Belo  Horizonte  ou  de  qualquer  outra  cidade  de  Minas  Gerais  profira  o 
primeiro  dos  três  enunciados  apresentados  no  quadro,  mas  tal  enunciado  é  bastante 
previsível quando a pessoa que o emite provém de cidades do nordeste do país, onde o 
termo mandioca não é tão empregado como aqui.  
Antes de continuar a pensar sobre a diversidade linguística, é muito importante que você 
esteja consciente de que nenhuma dessas  formas é melhor que a outra,  já que  todas elas 
dizem  a mesma  coisa,  cumprindo,  de modo  eficaz,  a  sua  função  comunicativa.  Como 
adverte Faraco (1998), “do ponto de vista exclusivamente lingüístico [...], as variedades se 
equivalem e não há como diferenciá‐las em termos de melhor ou pior, de certo ou errado: 
todas têm organização (todas têm gramática) e todas servem para articular a experiência 
do grupo que as usa.” (p. 19) As distinções de valoração entre as diversas variedades são 
atribuídas  socialmente;  assim,  algumas  delas,  normalmente  aquelas  faladas  por  grupos 
privilegiados socialmente, adquirem uma marca de prestígio, enquanto outras, geralmente 
porque são faladas por grupos de pouco ou nenhum prestígio social, não são reconhecidas 
e  aceitas  pela  sociedade  em  geral.  As  variedades  que  são  socialmente  reconhecidas  e 
valorizadas denominam‐se variante padrão e aquelas que são estigmatizadas pela sociedade 
são denominadas de variante não‐padrão.  
Mudando o foco de nossa observação do léxico para o conjunto de regras de uma língua, 
ou seja, para a sua gramática, você perceberá que também é possível  identificar algumas 
variações.  Pense  no modo  como  os  falantes  do  português  combinam  as  palavras  para 
produzir  sentenças.  Logo  perceberá  que  também  nesse  plano  não  se  pode  falar  em 
homogeneidade,  já  que  existem muitas  possibilidades  de  combinação  que  traduzem  a 
mesma  ideia. Esse  tipo de diversidade  é  chamado de variação  sintática, porque  se dá no 
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plano  da  sintaxe  da  língua.  Para  entender  melhor  esse  conceito,  pense,  a  título  de 
ilustração, na regência do verbo assistir e analise‐a nos enunciados dispostos neste quadro: 
a. Eu não sei se meu time ganhou, porque não assisti o jogo. 
b. Eu não sei se meu time ganhou, porque não assisti ao jogo. 
c. A final do campeonato foi assistida por milhares de torcedores. 
As  duas  primeiras  sentenças  do  quadro  são  variantes  linguísticas,  isto  é,  são  formas 
distintas de  se dizer a mesma  coisa, mantendo, no  contexto  em que  são  empregadas, o 
mesmo sentido. Embora saibamos que, segundo prescreve a norma culta, o verbo assistir, 
no sentido de ver, é transitivo  indireto e exige a preposição a, sabemos também que essa 
não  é  a  variante  preferida  pelo  falante. No  uso  coloquial  da  língua,  a  preferência  pela 
forma transitiva direta do verbo assistir – talvez por analogia com a regência do verbo ver – 
é muito maior. A regência não‐padrão já é tão natural na língua, que é possível encontrar, 
em  jornais  impressos,  registros  do  verbo  assistir  empregado  em  voz  passiva,  conforme 
ilustra  (c)  acima,  o  que não  é  admitido para  os demais  verbos  transitivos  indiretos,  tal 
como  gostar, por  exemplo,  cuja  regência  exige  sempre  a preposição. Eis  aqui mais uma 
demonstração  de  que  a  língua  não  é  tão  homogênea  como  o  falante,  ingenuamente, 
acredita ser.  
Você  já foi apresentado à variação fonética, à variação  lexical e à variação sintática. Falta 
ainda exercitar sua atitude de  linguista no plano da morfologia, buscando verificar se as 
palavras da  língua também podem sofrer variação quanto à sua flexão ou quanto ao seu 
processo de formação. Caso isso se constate, você estará diante de uma variação morfológica. 
Certamente, em alguma situação de uso da língua, você já teve dúvidas quanto ao plural 
de alguma palavra terminada em –ão e, quando não teve a oportunidade de consultar um 
dicionário ou uma gramática, teve que arriscar, optando por uma das formas possíveis na 
língua.  Ao  fazê‐lo,  você  incorre  no  risco  de  empregar  uma  flexão  que  não  é  aquela 
considerada padrão. Quem nunca ouviu alguém dizer cidadões em vez de cidadãos? Trata‐
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34 
se de um caso de variação morfológica, pois a flexão de número plural de uma palavra foi 
feita de duas  formas distintas. O mesmo se dá quando o  falante pluraliza o substantivo 
degrau apoiando‐se no princípio utilizado para pluralizar canal, por exemplo, e produz a 
palavra degrais, quando a  forma padrão é degraus. Também no processo de  formação de 
palavras por meio da derivação é comum ocorrerem variações no emprego dos afixos. Tais 
variações  geralmente  ocorrem  quando  os  sufixos  ou  os  prefixos  empregados,  “embora 
distintos  sob  o  ponto  de  vista  fonético,  apresentam  o  mesmo  sentido  e/ou  função.” 
(ROCHA, 1999, p. 112). Nesse caso, o falante, normalmente por desconhecer a forma que 
deseja empregar no  contexto,  recorre a outra, que é  criada  com base em  recursos que a 
língua lhe oferece, promovendo uma variação, conforme ilustram estes exemplos: 
a. Aqueles dois lá estão numa bajulação que ninguém aguenta. 
b. Aqueles dois lá estão num bajulamento que ninguém aguenta.  
É possível que você esteja se perguntando se a  forma bajulamento não é errada. Como  já 
mencionado,  não  nos  cabe,  na  análise  da  variação  linguística,  qualquer  julgamento 
normativo,  já que não  se  tem por objetivo  considerar uma variante  como melhor que a 
outra, mas  reconhecer a diversidade dos usos. Há,  sem dúvida, níveis de aceitabilidade 
das variantes, mas o fato de uma delas gozar de maior prestígio que outra na escala social 
não anula a sua existência na língua.  
Até agora, deve  ter  ficado  claro para você que uma  língua não  exibe diferenças apenas 
quando  comparada  à  outra.  Isso  se  dá  porque  nenhuma  língua  é  homogênea,  o  que 
significa  dizer  que  toda  língua  apresenta  variação.  Essa  variação,  que  consiste  na 
coexistência de formas distintas para se falar a mesma coisa, se manifesta tanto no nível do 
léxico, quando no da gramática e, dependendo do estrato atingido, ela se classifica como 
variação fonética, variação lexical, variação sintática ou variação morfológica. Resta, agora, 
tentar entender que  fatores determinam a variação, aspecto que será  tratado na próxima 
subseção. 
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35 
1.1 Fatores determinantes de variação 
Como você deve  ter percebido ao  longo dadiscussão promovida na  seção anterior,  são 
vários os fatores que determinam as variações de uma língua no plano sincrônico, isto é, 
num  determinado  momento  de  sua  história.  Tais  fatores,  entretanto,  podem  ser 
reagrupados  em  dois  tipos  principais,  o  que  nos  permite  descrever  a  motivação  da 
variedade segundo dois parâmetros básicos: o dos fatores geográficos e o dos fatores sociais. 
Conforme  demonstrado  quando  da  apresentação  da  variação  fonética  e  da  variação 
lexical,  falantes de diferentes  regiões do país podem pronunciar  e  cadenciar os  sons de 
forma diferenciada, além de também poderem empregar termos diferentes para se referir 
aos mesmos  elementos da  realidade. A  esse  tipo de  variação  relacionada  a  “diferenças 
lingüísticas distribuídas no espaço físico, observáveis entre falantes de origens geográficas 
distintas” (ALKMIN, 2001, p.34), dá‐se o nome de variação geográfica ou diatópica. Cumpre 
aqui  um  alerta  no  tocante  aos  domínios  da  variação  diatópica. Às  vezes,  é  comum  se 
associar esse tipo de variação apenas a espaços geográficos mais amplos, como as regiões 
de  um  país  ou  estado, mas  é  preciso  ficar  claro  que  ela  abrange  todas  as  variedades 
originárias de espaço físico. Dessa forma, as variações que se identificam entre falares de 
pessoas que residem na zona urbana e aquelas que residem na zona rural, ou mesmo de 
falantes que  residem em  regiões centrais ou em  regiões periféricas de uma determinada 
comunidade linguística também são interpretadas como variações geográficas.  
Além do fator geográfico, as línguas ainda variam, conforme mencionado, em decorrência 
de  fatores  sociais,  tais  como  (i)  classe  social  a  que  pertence  o  falante,  (ii)  seu  nível  de 
escolaridade,  (iii)  sua  idade,  (iv)  seu  sexo  ou  ainda  (v)  sua  profissão.  Mesmo  nos 
precavendo  contra  qualquer  tipo  de  julgamento  preconceituoso,  não  nos  passa 
despercebido que, por uma série de fatores, dentre os quais se citam nível cultural e maior 
ou menor grau de  letramento, a  língua  falada pelos membros de classes sociais distintas 
exibe  traços  característicos  próprios,  o  que  nos  permite  não  só  reconhecer  diferenças 
linguísticas entre as classes, como  também  identificar a classe a que pertence o  falante a 
partir do modo  como  ele  fala. Além da  classe  social, o nível de  escolaridade do  falante 
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36 
também interfere no modo como ele utiliza os recursos linguísticos. Falantes escolarizados 
recorrem  a  formas  de  dizer  que  diferem  sensivelmente  daquelas  utilizadas  pelos  que 
sequer são alfabetizados,  já que determinadas construções  linguísticas só são adquiridas 
por  meio  de  instrução  formal.  Não  se  espera,  por  exemplo,  que  um  falante  não 
alfabetizado empregue o pronome  relativo  cujo em  sentenças  como O  funcionário de  cuja 
competência eu desconfio não compareceu à reunião. Para expor essa mesma ideia, esse falante 
provavelmente  recorrerá  a  uma  construção  menos  complexa,  como,  por  exemplo,  O 
funcionário que eu desconfio da competência dele não  foi na reunião. Não é apenas no domínio 
da sintaxe que se percebem variações decorrentes do nível de escolaridade do falante. Os 
exemplos  de  variação  morfológica  ilustrados  na  seção  anterior  também  podem  ser 
determinados pelo grau de  instrução do  falante, que, desconhecendo a  flexão ou o afixo 
padrão,  recorre  a  uma  forma  alternativa  para  se  expressar.  Se  compararmos  ainda  a 
linguagem  empregada  por  uma  criança  com  aquela  empregada  por  um  adolescente, 
também identificaremos variações, agora motivadas não pela escolaridade, mas pela faixa 
etária do falante. O mesmo se verifica quando comparamos entre si a fala de um jovem, a 
de um adulto e a de um idoso. Outro fator social que também provoca variação linguística 
é  o  sexo  do  falante.  O  emprego  de  diminutivos  e  a  entonação  mais  pausada  para 
intensificar os adjetivos  (“Você está des‐lum‐bran‐te!”) são  traços mais característicos da 
fala  feminina  que  da  masculina.  A  profissão  do  falante  é  outra  variável  que  pode 
promover  variação,  especialmente  no  plano  da  linguagem  técnica.  Um  professor  de 
linguística  poderá  recorrer  aos  termos  técnicos  da  área  quando  discute  determinado 
fenômeno da língua com um colega de profissão ou quando apresenta uma comunicação 
em um congresso ou profere uma conferência, mas não poderá fazê‐lo ao conversar sobre 
o mesmo  fenômeno  com um  cidadão  leigo, pois,  caso o  faça,  correrá o  risco de não  ser 
compreendido  ou  de  o  ser  apenas  parcialmente.  A  esse  conjunto  de  fatores  que  se 
relacionam  não  apenas  com  a  identidade  do  falante, mas  também  com  a  organização 
sociocultural  da  sua  comunidade  de  fala  e  que  acarreta  formas  distintas  de  se  dizer  a 
mesma coisa, dá‐se o nome de variação social ou diastrática.  
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Além  dos  cinco  fatores  sociais  apresentados,  existe  outro  que  também  determina  a 
variação linguística e que será tratado à parte e de modo um pouco mais aprofundado que 
os demais, dada a sua importância para a competência pragmática do falante, isto é, para 
que o usuário do sistema linguístico selecione adequadamente os recursos de que dispõe 
de modo  a  alcançar  a  eficácia  na  comunicação.  Trata‐se  do  contexto  de  produção  do 
discurso. Você certamente  já observou que, dependendo não apenas da pessoa a quem o 
falante se dirige no ato comunicativo, mas  também do grau de  formalidade da situação, 
ele  recorre  a  uma  linguagem mais  ou menos  formal. Assim  como  situações  sociais  de 
maior formalidade, como casamento e formatura, por exemplo, exigem um figurino mais a 
rigor e  situações mais descontraídas, como um churrasco entre amigos, pedem um  traje 
mais à vontade, o uso da variante linguística também deve estar de acordo com a situação. 
Ninguém utiliza uma  linguagem padrão  formal para  falar  com os membros da  família, 
com os amigos ou mesmo com os colegas de trabalho. Da mesma forma, ninguém faz uso 
(ou pelo menos não deveria fazê‐lo) de uma linguagem extremamente informal quando se 
dirige a uma autoridade ou quando é solicitado a se pronunciar em público. O fato é que 
determinadas  situações  exigem  um  estilo  de  linguagem mais  formal, mais  elaborado, 
enquanto  outras  requerem  um  estilo mais  informal  e mais  despojado.  A  esse  tipo  de 
variação em que o estilo de linguagem é determinado pela situação de uso, dá‐se o nome 
de variação contextual, estilística ou diafásica. 
2 Mudança linguística 
Para  responder à  segunda questão proposta na  introdução desta unidade  –  será que as 
línguas  conservam  as mesmas  características  ao  longo dos  séculos?  –,  compare  os dois 
textos a seguir. O primeiro é um  fragmento da Cantiga 18, extraído do  livro Cantigas de 
Santa Maria, obra datada do séc. XIII, cuja autoria é atribuída a D. Afonso X, o Sábio. O 
segundo é uma versão modernizada do texto medieval, numa tentativa de se preservar o 
mesmo sentido do original. 
   
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promessa fez,      Depois que fez a promessa, 
senpre creceron      cresceram os bichos‐da‐seda 
os babous ben dessa vez    e dessa vez 
e non morreron;      não morreram; 
mas a dona con vagar    mas a dona muito 
grande que y prendia,    se demorava e nisso 
 d’a touca da seda dar    sempre se esquecia 
senpre ll’escaecia.      de dar a touca de seda. 
Por nos de

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