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Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Delmo Mattos 2ª e di çã o Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade DIREÇÃO SUPERIOR Chanceler Joaquim de Oliveira Reitora Marlene Salgado de Oliveira Presidente da Mantenedora Jefferson Salgado de Oliveira Pró-Reitor de Planejamento e Finanças Wellington Salgado de Oliveira Pró-Reitor de Organização e Desenvolvimento Jefferson Salgado de Oliveira Pró-Reitor Administrativo Wallace Salgado de Oliveira Pró-Reitora Acadêmica Jaina dos Santos Mello Ferreira Pró-Reitor de Extensão Manuel de Souza Esteves Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Marcio Barros Dutra DEPARTAMENTO DE ENSINO A DISTÂNCIA Diretora Claudia Antunes Ruas Guimarães Assessora Andrea Jardim FICHA TÉCNICA Texto: Delmo Mattos Revisão: Lívia Antunes Faria Maria e Walter P. Valverde Júnior Projeto Gráfico e Editoração: Andreza Nacif, Antonia Machado, Eduardo Bordoni e Fabrício Ramos Supervisão de Materiais Instrucionais: Janaina Gonçalves de Jesus Ilustração: Eduardo Bordoni e Fabrício Ramos Capa: Eduardo Bordoni e Fabrício Ramos COORDENAÇÃO GERAL: Departamento de Ensino a Distância Rua Marechal Deodoro 217, Centro, Niterói, RJ, CEP 24020-420 www.universo.edu.br Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universo – Campus Niterói M444e Mattos, Delmo. Ética, valores humanos e transdisciplinaridade / Delmo Mattos ; revisão de Lívia Antunes Faria Maria e Walter P. Valverde Junior. 2. ed. – Niterói, RJ: UNIVERSO, 2011. 167 p. ; il. 1. Ética. 2. Moral. 3. Ética empresarial. 4. Responsabilidade social da empresa. I. Maria, Lívia Antunes Faria. II. Valverde Junior, Walter P. III. Título. CDD 170 Bibliotecária: ELIZABETH FRANCO MARTINS – CRB 7/4990 © Departamento de Ensino a Distância - Universidade Salgado de Oliveira Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem permissão expressa e por escrito da Associação Salgado de Oliveira de Educação e Cultura, mantenedora da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Informações sobre a disciplina Carga horária: 60 Créditos: 04 Ementa: Ética e moral. A ética profissional. A responsabilidade social. A questão da alteridade como principio da relação social. Os valores humanos fundamentais à construção de uma cultura de paz. Transdisciplinaridade e convergência de conhecimentos. Objetivo geral: oferecer ao discente as condições de referência para a compreensão da ética e da moral, do ponto de vista filosófico, bem como, a sua importância para a sua atividade profissional e acadêmica. Além disso, refletir e discutir sobre a dimensão ética na existência do ser humano, dentro do contexto da crise dos valores da nossa sociedade, conduzindo a uma compreensão global da influência da reflexão ética no âmbito das decisões e responsabilidades inerentes aos atores sociais e econômicos da atualidade. Conteúdo programático Unidade 1 – Fundamentos da Ética e da Moral: contexto histórico e social, conceitos e definições fundamentais. Distinguindo Ética da Moral. O caráter histórico e social da Moral. O caráter histórico e social da Ética. Unidade 2 – Problemas Éticos e problemas morais: consciência moral, virtude, amizade, liberdade e felicidade. A consciência moral e os valores éticos. A busca da felicidade: virtude e o bem viver em Aristóteles. Aristóteles e a amizade como um problema ético-moral. Pensando a liberdade: La Boétie e Sartre. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Unidade 3 – Ética aplicada: a ética na empresa e nos negócios. Pressupostos teóricos da ética empresarial: história e desenvolvimento. Empresa ética e visão ético-empresarial. A ética nos negócios ou negociando com ética: lucro x princípios morais. O código de ética profissional: funções e limites. Unidade 4 - Ética profissional e responsabilidade social. Ética profissional: os valores sociais da profissão. O desempenho ético-profissional: ambiência e relações pessoais. Ética e responsabilidade social nos negócios. Decisões morais racionais. Bibliografia Básica VAZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 304p. CAMARGO, M. Fundamentos de ética geral e profissional. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 118p. Bibliografia Complementar NASH, L. Ética nas empresas: boas intenções à parte. São Paulo: Makron Books, 2001. 359p. ASHLEY, P. A. (Coord.). Ética e Responsabilidade Social nos Negócios. São Paulo: Saraiva, 2002. 340p. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Palavra da Reitora Acompanhando as necessidades de um mundo cada vez mais complexo, exigente e necessitado de aprendizagem contínua, a Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) apresenta a UNIVERSO Virtual, que reúne os diferentes segmentos do ensino a distância na universidade. Nosso programa foi desenvolvido segundo as diretrizes do MEC e baseado em experiências do gênero bem-sucedidas mundialmente. São inúmeras as vantagens de se estudar a distância e somente por meio dessa modalidade de ensino são sanadas as dificuldades de tempo e espaço presentes nos dias de hoje. O aluno tem a possibilidade de administrar seu próprio tempo e gerenciar seu estudo de acordo com sua disponibilidade, tornando-se responsável pela própria aprendizagem. O ensino a distância complementa os estudos presenciais à medida que permite que alunos e professores, fisicamente distanciados, possam estar a todo momento ligados por ferramentas de interação presentes na Internet através de nossa plataforma. Além disso, nosso material didático foi desenvolvido por professores especializados nessa modalidade de ensino, em que a clareza e objetividade são fundamentais para a perfeita compreensão dos conteúdos. A UNIVERSO tem uma história de sucesso no que diz respeito à educação a distância. Nossa experiência nos remete ao final da década de 80, com o bem- sucedido projeto Novo Saber. Hoje, oferece uma estrutura em constante processo de atualização, ampliando as possibilidades de acesso a cursos de atualização, graduação ou pós-graduação. Reafirmando seu compromisso com a excelência no ensino e compartilhando as novas tendências em educação, a UNIVERSO convida seu alunado a conhecer o programa e usufruir das vantagens que o estudar a distância proporciona. Seja bem-vindo à UNIVERSO Virtual! Professora Marlene Salgado de Oliveira Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Reitora Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Sumário 1. Apresentação da disciplina ............................................................................................................. 09 2. Plano da disciplina .............................................................................................................................. 11 3. Unidade 1 – Fundamentos da Ética e da Moral: contexto histórico e social, conceitos e definições fundamentais. ......................................................................... 13 4. Unidade 2 – Problemas éticos e problemas morais: consciência moral, virtude, amizade, liberdade e felicidade. ..................................................................................................47 5. Unidade 3 – Ética aplicada: a ética na empresa e nos negócios ...................................85 6. Unidade 4 – Ética profissional e responsabilidade social .................................................117 7. Considerações finais........................................................................................................................... 153 8. Conhecendo a autora ........................................................................................................................ 154 9. Referências ............................................................................................................................................. 155 10. Anexos ...................................................................................................................................................... 165 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Apresentação da Disciplina Caro aluno, Seja bem-vindo à disciplina Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade. O tema da ética constitui-se em uma das áreas de conhecimento da Filosofia que mais desperta interesse em nossa sociedade nos dia de hoje. Sabe-se, por exemplo, a maioria das profissões e empresas possui seus códigos de ética, o que nos leva a supor que estas se preocupam, especificamente, na fundamentação e sistematização dos princípios e valores que orientarão respectivamente as ações dos seus profissionais e dos seus funcionários. Também, podemos constatar um profundo interesse em discutir e refletir sobre os problemas relacionados à vida humana, principalmente, devido às descobertas mais recentes da medicina, da biologia e da genética que promovem uma alteração inigualável nos padrões habituais pelo qual pensávamos e reagíamos a situações, como a clonagem humana, o uso de alimentos transgênicos e a utilização de células tronco. Por outro lado, igualmente, constata-se uma preocupação em revisar os parâmetros habituais do homem em relação ao meio ambiente, assim como do nosso dever em conscientizarmos, do ponto de vista ético, a responsabilidade com o futuro de nossa espécie e das demais que habitam o nosso planeta. Estas são apenas algumas das questões que suscitam um debate relacionado à ética e à moral verificadas por nós diariamente nos jornais, revistas e nos noticiários da televisão. Mas porque este interesse tão grande sobre a ética? A ética, mais do que qualquer outra disciplina, está diretamente relacionada à nossa experiência cotidiana. Ela nos conduz a uma reflexão crítica acerca dos valores adotados por nós, o sentido dos atos praticados e a forma pela qual as nossas decisões são tomadas e que tipo de responsabilidade devemos ter sobre elas. A ética é um campo de estudo altamente controverso e absolutamente relevante para nossa época. Desejando ou não, todos nós somos confrontados por questões éticas a cada dia. Cada vez mais somos sobrecarregados de perguntas que, no fundo, são estritamente éticas. Vemo-nos cercados por decisões acerca de como devemos viver e de que tipo de pessoas devemos ser. De certa forma, possuímos consciência 9 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade de que o que fazemos e quem somos são coisas absolutamente relevantes para nossa conduta enquanto ser social. Diante dessa perspectiva, estamos todos, de certa forma, refletindo sobre a ética. Neste sentido, é concebível afirmar que a ética está tão próxima de nós quanto estamos próximos dela. Contudo, o estudo da ética não se deve limitar em discutir e apresentar apenas os seus pressupostos fundamentais. Necessitamos ir sempre além deles, promovendo em nossa prática cotidiana os elementos que nos conduzirão a sermos indivíduos mais atentos com os valores básicos de nossa sociedade, e assim, tornando-nos capazes de possuirmos responsabilidade sobre nossas ações a fim de torná-las eticamente possíveis. Por isso, espera-se que o estudo da ética não seja tomado somente como exigência acadêmica. A ética é muito mais do que isso! Esta disciplina fora construída tendo em vista a fornecer um quadro geral de uma determinada questão ou problema, o que facilita o seu estudo em profundidade, pois permite facilmente uma visão crítica do âmbito em que está colocada cada questão particular da ética. Sendo assim, esta disciplina não se constitui em uma síntese esquemática e sufocante como muitas vezes acontece com certas apostilas e manuais, mas procura oferecer uma exposição que contempla o que há de mais valioso sobre uma determinada questão ou assunto da ética, deixando outras para que você tenha iniciativa de investigá-la por conta própria diante das variadas sugestões de bibliografia que serão apresentadas ao longo das unidades. Neste contexto, a disciplina apresenta uma integração que se manifesta no equilíbrio da sua exposição, na proporção e divisão dos assuntos abordados de modo a facilitar a compreensão em seu conjunto. Por outro lado, o desenvolvimento linear das unidades tem por finalidade fazer você se contagiar pelo gosto da disciplina, do raciocínio e da utilização da reflexão ética na sua vida pessoal e profissional, pois veremos então que esta disciplina, em lugar de ser penosa como muitos pensam, é condição para o viver em harmonia e liberdade respeitando as diferenças. Estaremos sempre presentes para auxiliá-lo em suas tarefas. Bons estudos! 10 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Plano da Disciplina Esta disciplina fora construída tendo em vista a fornecer um quadro geral de uma determinada questão ou problema, o que facilita o seu estudo em profundidade, pois permite facilmente uma visão crítica do âmbito em que está colocada cada questão particular da ética. Desse modo, esta não se constitui em uma síntese esquemática e sufocante como muitas vezes acontece com certas apostilas e manuais, mas procura oferecer uma exposição que contempla o que há de mais valioso sobre uma determinada questão ou assunto da ética, deixando outras para que você tenha iniciativa de investigá-la por conta própria diante das variadas sugestões de bibliografia que serão apresentadas ao longo das unidades. Diante desse contexto, a disciplina Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade apresenta uma integração que se manifesta no equilíbrio da sua exposição, na proporção e divisão dos assuntos abordados de modo a facilitar a compreensão em seu conjunto. Sendo assim, faremos um breve resumo de cada unidade, enfatizando seus objetivos para que você tenha uma visão geral daquilo que irá estudar: Unidade 1: Fundamentos da Ética e da Moral: contexto histórico e social, conceitos e definições fundamentais Apresenta esquematicamente os aspectos históricos e sociais da ética e da moral e situa os seus elementos constitutivos no desenvolvimento da humanidade. Objetivo: expor a problemática relativa à distinção entre ética e moral e suas respectivas definições e objetos de estudo. Unidade 2: Problemas Éticos e problemas morais: consciência moral, virtude, amizade, liberdade e felicidade Esta unidade fornece os problemas norteadores da ética e discute a problemática da liberdade, da responsabilidade e do determinismo nos filósofos La Boétie e Sartre e, em seguida, dá noções de felicidade amizade e virtude na reflexão filosófica de Aristóteles. 11 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Objetivo: refletir sobre a nossa prática cotidiana e avaliar a direção para a qual nossos valores éticos dirigem-se no mundo em que vivemos hoje. Unidade 3: Ética aplicada: a ética na empresa e nos negócios Trata dos pressupostos teóricos da ética empresarial e seus fundamentos, para a partir deste,expor os aspectos éticos presentes nas relações comerciais ou nos negócios. Objetivo: abordar a prática da ética no nível das organizações e nos negócios. Unidade 4: Ética profissional e responsabilidade social Esta unidade versará sobre problemática relativa à distinção aos valores sociais da profissão. Trata-se, portanto, de debater a essência da ética profissional. Objetivo: expor os conceitos capitais da ética e da responsabilidade social nos negócios e expor os princípios norteadores das decisões morais racionais. 12 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade Fundamentos da Ética e da Moral: contexto histórico e social, conceitos e definições fundamentais Distinguindo Ética de Moral. O caráter histórico e social da Moral. O caráter histórico e social da Ética. 1 Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 14 Caro aluno, bem-vindo à nossa primeira unidade de estudo. Comecemos esta módulo apresentando a você o contexto histórico do surgimento da ética e da moral, assim como os principais conceitos e definições que as envolvem. Trata-se, portanto, de uma unidade introdutória cujo teor da abordagem preparará você ao entendimento seguro das questões tratadas nas unidades seguintes. Espero que, por intermédio desta explicação, você sinta-se confortável ao se introduzir no universo especulativo da ética e seus problemas fundamentais. Objetivos da unidade Apresentar a problemática relativa à distinção entre ética e moral, assim como as suas respectivas definições e objetos de estudo. Esboçar, de forma esquemática, os aspectos históricos e sociais da ética e da moral. Situar os seus elementos constitutivos no desenvolvimento da humanidade. Plano da unidade Distinguindo Ética de Moral. O caráter histórico e social da Moral. O caráter histórico e social da Ética. Como parceiros de sua aprendizagem, desejamos sucesso na sua formação! Bons Estudos! Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 15 Distinguindo Ética da Moral No sentido geral, a palavra ética origina-se do grego antigo ήθική [ήθική φιλοσοφία] "filosofia moral" e do adjetivo ήθος (ēthos) que quer dizer "costume, hábito". Conexo ao conceito de ética está o conceito de moral, também originado de uma palavra grega “mores” (ήθος = mos) possui aparentemente um significado semelhante ao de ética. No entanto, se atentarmos como os gregos realmente usavam a grafia e a pronúncia do termo ēthos, nota-se uma nítida diferença de significado entre ambas. São elas: (pronunciado como êtos) = para designar "costume”. (pronunciado como étos) = para designar a índole, no sentido de caráter e temperamento natural da pessoa. Compreendeu como a diferença da pronúncia de ēthos altera substancialmente o seu significado? Certamente, em um ato concreto realizado por uma pessoa a diferença de sentido entre ambas não são claramente percebida. Por exemplo: o ato do cidadão grego de partir, com seus iguais, para a guerra, em defesa da cidade-estado (pólis), está presente nos dois sentidos indicados pelas duas palavras gregas. É costume da cidade grega que o cidadão seja soldado e não escravo, pois o ato de defender a cidade é um ato honroso. Com efeito, o ato de ir à guerra diz também algo íntimo acerca do homem, pois está relacionado ao seu caráter: ele é um homem corajoso e, como tal, valoroso. Vejam, nestas frases comuns entre nós, como os dois sentidos da palavra ēthos utilizados pelos gregos antigos estão intimamente relacionados: a) "O rapaz foi muito ético: não revidou agressão." b) “Aquele político é um homem ético." c) "Todos aqui o respeitam como um homem de moral." Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 16 Diferentemente dos gregos, os romanos utilizavam a palavra latina mos (mores) para designar o costume ou costumes. Foi a partir deste termo romano que surge o modo como entendemos o significado de moral na Língua Portuguesa. Sendo assim, na nossa Língua, os dois termos, ética e moral, implicam, simultaneamente, de alguma forma, nos dois significados diferentes antigos e, de fato, tanto a ética quanto a moral, incidem sobre estas duas dimensões, ou seja, uma valoração do homem como tal e do seu agir em conformidade ou não com os costumes e a tradição. Reconhecendo as dificuldades para separar de modo consensual e técnico o que é ético do que é moral, em um terreno em que não há acordo fácil entre os filósofos sobre a distinção entre ambas, vejamos como o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda as define: 1. ÉTICA: refere-se ao "estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto" (HOLANDA, 1999, p. 848-849). 2. MORAL: refere-se ao "conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada" (HOLANDA, 1999, p. 978- 979). IMPORTANTE: A distinção do dicionarista está de acordo com a certa tradição filosófica: a de considerar moral como as normas de convivência social e ética como o estudo e a reflexão teórica, sobre a moral, o comportamento moral dos homens e as valorações morais das diferentes culturas e sociedade, segundo uma metodologia estritamente racional, ou seja, filosófica e científica (Cf. VÁZQUEZ, 2001). Percebe-se claramente que as definições de ética e moral fornecidas pelo dicionarista apresentam uma diferença técnica entre os dois termos, segundo seu uso correto em nossa língua, em que está também a chave da solução para Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 17 entender o modo confuso e equivocado com que as duas palavras são usadas: os homens modernos não gostam de dizer que suas ações são morais, pois isto equivaleria a dizer que elas são corretas apenas porque são conformes ao costume e à tradição. Preferem dizer que agem segundo uma ética para denotar um suposto caráter independente, reflexivo e filosófico de sua posição existencial e política. Diante dos clamores da imprensa, dos políticos e dos militantes dos movimentos sociais por "mais ética na política", nos últimos anos, usa-se o termo ética e não o termo moral para uma fuga, até certo ponto fictícia, do caráter "tradicionalista" da moral. Por um lado, se avaliarmos bem quais seriam os "princípios éticos" que, em última análise, se espera dos políticos, encontraríamos antigos valores da cultura ocidental, consignados em mandamentos da lei de Deus, conforme a tradição mosaica e incorporada pelo cristianismo: “Não matarás; não roubarás”; “não levantarás falso testemunho”; “não cobiçarás as coisas alheias” (Cf. VÁZQUEZ, 2001). Diante disso, o apelo por mais ética na política nada mais é do que um apelo por mais fidelidade aos antigos valores morais do mundo ocidental. Desta forma, lá onde se alardeia uma novidade, produto de uma reflexão "filosófico-ética" original, nada mais há do que valores antigos sob novos nomes ou "novas fachadas". Por outro lado, há níveis de complexidade dos problemas humanos reais e concretos que já não são tão facilmente resolvidos com base nos costumes tradicionais. Veja-se que ninguém precisa fazer apelo à reflexão ética para dizer que "é imoral um vizinho roubar o cachorro do outro e dá-lo de presente a um amigo". Em geral, poder-se-ia dizer que a lei moral "não roubarás" surgiu neste mesmo contexto elucidativo, ou seja, problemas humanos antigos continuam sendo suficientemente bem resolvidos pela moral tradicional.Logo, um dos grandes dilemas dos estudos da moral na atualidade pode ser resumido nas seguintes questões: existem ou não valores morais válidos para todos os homens? Como justificar a classificação das ações em moralmente corretas ou incorretas, boas ou más? Tradição mosaica: tradição proveniente dos ensinamentos de Moisés. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 18 Retomando a problemática da distinção conceitual entre ética e moral, Vázquez afirma que a “ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma específica do comportamento humano” (VÁZQUEZ, 2001, p. 12). Essa definição ressalta o caráter científico da ética, isto é, corresponde à necessidade de uma abordagem científica dos problemas morais. Por outro lado, Valls afirma que: “a ética preocupa-se com as formas humanas de resolver as contradições entre necessidade e possibilidade, entre tempo e eternidade, entre o individual e o social, entre o econômico e o moral, entre o corporal e o psíquico, entre o natural e o cultural e entre a inteligência e a vontade, evidenciando as contradições enfrentadas pelos indivíduos na tomada de decisões envolvendo dilemas éticos (VALLS, 1996, p. 48). Comparando as definições fornecidas pelos autores, poderemos traçar o seguinte esquema: 1. a ética relaciona-se com a ciência (o conhecimento científico); 2. a ética relaciona-se com avaliação da conduta humana; 3. a ética é uma ciência normativa; 4. a ética, pelo contrário, é uma reflexão filosófica, logo puramente racional; 5. a ética possui um caráter universalista opostamente ao caráter restrito da moral. Conforme explicitado, os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade; isto os distingue dos problemas morais relativos à vida cotidiana. De acordo com Vázquez, “por causa de seu caráter prático (…), tentou-se ver na ética uma disciplina normativa, cuja função fundamental seria a de indicar o comportamento melhor do ponto de vista moral” (VÁZQUEZ, 2001, p. 10). Desse Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 19 modo, o ético tornar-se-ia uma espécie de “legislador do comportamento moral” dos indivíduos ou da comunidade. No entanto, ainda segundo Vázquez: A função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. Por outro lado, a realidade moral varia historicamente e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas (VÁZQUEZ, 2001, p. 10). Portanto, não cabe à ética formular juízos de valor sobre a prática moral de outras sociedades ou épocas, mas sim explicar a razão de ser destas mudanças de moral, esclarecendo o fato de o homem ter recorrido a práticas morais diferentes e até opostas. É importante notar que a ética não deve ser confundida com moral, como podem induzir expressões correntes como “ética católica” ou “ética do capitalismo”. Segundo Robert Srour: Enquanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é teórico, corresponde a uma generalidade abstrata e formal. A ética estuda as morais e as moralidades, analisa as escolhas que os agentes fazem em situações concretas, verifica se as opções se conformam aos padrões sociais. (…). Distingue-se das morais históricas que imbuem coletividades amplas (nações, classes ou categorias sociais) e que remetem a conceitos específicos ou de “espécie” (SROUR, 2000, p. 270). Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 20 Embora sejam temas de natureza teórica, as definições construídas pela ética podem interferir substancialmente nas práticas morais. Por isso, Vázquez afirma que teoria ética e a prática moral, ainda que distintas, devem viver entrelaçadas ou, nas suas palavras, em “retroalimentação” permanente. Neste sentido, a ética estudaria os comportamentos “prático- morais”, trazendo-lhes depois questionamentos e proposições. Quanto à moral, entende-se um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações entre os indivíduos. O seu significado, função e validade não podem deixar de receber uma variação histórica nas diferentes sociedades. De fato, o comportamento moral varia de acordo com o tempo e o lugar, conforme as exigências nas quais os indivíduos se organizam ao estabelecerem as formas de relacionamento e as práticas de trabalho. À medida que estas relações se alteram, exige- se uma modificação progressiva nas normas do comportamento coletivo. Por exemplo, a idade média caracterizava-se pelo regime feudal, baseado, sobretudo, na hierarquia de suseranos, vassalos e servos (ARANHA, 2003). Neste regime, o trabalho era garantido pelos servos, possibilitando aos nobres uma vida dedicada ao ócio e à guerra. A moral cavalheiresca deriva e baseia-se no pressuposto da superioridade da nobreza, exaltando a virtude da lealdade e da fidelidade — suporte do “sistema de suserania”. Em contraposição, o trabalho é desvalorizado e restrito aos servos. Esta situação foi alterada substantivamente com o aparecimento da burguesia, a qual, formada pelos antigos servos libertos, tendeu a valorizar o trabalho e criticar a ociosidade (Cf. ARANHA, 2003). IMPORTANTE: Diante disso, é possível perceber que uma mudança radical na estrutura social acarreta uma mudança fundamental de moral. Em cada indivíduo, entrelaça-se, de modo particular, uma série de relações sociais próprias ou particulares de sua época ou da sua sociedade, o que demonstra que a sua individualidade possui também um caráter social. Percebe-se, por outro lado, que existe uma gama de padrões que, em cada sociedade, modelam o comportamento individual, o seu modo de trabalhar, o seu modo de se vestir, sentir, amar, etc. Estes padrões variam de uma sociedade para outra e, por isso, não há sentido em falar de uma individualidade fora das relações que os indivíduos encontram na sociedade. Retroalimentação significa, neste contexto, uma troca constante e mútua de elementos da moral e da ética que se entrecruzam simultaneamente. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 21 Contudo, ainda que a moral mude historicamente, e uma mesma norma moral possa apresentar um conteúdo diferente em diferentes contextos sociais, a função social da moral em seu conjunto ou de uma norma particular é a mesma, isto é, regular as ações dos indivíduos nas suas relações mútuas ou as do indivíduo com a comunidade, objetivando preservar a sociedade no seu conjunto ou a integridade do grupo social. Para Vázquez (2001, p. 233): Assim a moral cumpre uma função social bem definida: contribuir para que os atos dos indivíduos ou de um grupo social desenvolvam-se de maneira vantajosa para toda a sociedade ou para uma parte. A moral implica, portanto, uma relação livre e consciente entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade. Mas esta relação está também socialmente condicionada, precisamente porque o indivíduo é um ser social ou um nexo das relações sociais. O indivíduo se comporta moralmente no quadro de certas relações e condições sociais determinadas que ele não escolheu e dentro também de um sistema de princípios, valores e normas morais que não inventou, mas que recebe socialmente e segundo o qual regula as suas relações com os demais ou com a comunidade inteira. Com base nestes elementos conceituais, podemos definir a moral da seguinte forma: “A moral é um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estese a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa e impessoal (VÁZQUEZ 2001, p. 84). Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 22 A moral, portanto, possui um caráter social, porque os indivíduos se sujeitam a princípios, normas ou valores socialmente estabelecidos. Também, regula somente atos e relações que acarretam consequências para outros e exigem necessariamente a sanção dos demais. Por outro lado, cumpre a função social de induzir os indivíduos a aceitar livre e conscientemente determinados princípios, valores e interesses. Com base na definição de moral em Vázquez, delinearemos um quadro comparativo entre ética e moral. Vejamos a seguir: ÉTICA MORAL Parte da filosofia prática que objetiva elaborar um reflexão sobre os problemas fundamentais da moral fundamentado em um estudo metafísico do conjunto de regras da conduta considerada como universalmente válida. A moral é uma forma de comportamento humano que compreende tanto uma aspecto normativo quanto um aspecto factual. Diferente da moral, a ética preocupa-se em detectar os princípios de uma vida conforme a sabedoria filosófica, em elaborar uma reflexão sobre as razões de se desejar a justiça e a harmonia e sobre os meios de alcançá-la. A moral é um fato social. A ética é a ciência da moral, ou seja, de uma esfera do comportamento humano. Neste sentido, a ética não é moral nem a moral é científica. Embora a moral possua um caráter social, o individuo tem um papel fundamental, pois a moral exige a interiorização das normas e deveres. Diante desse quadro comparativo, é possível constatar a confluência dos enunciados com as definições de ética e moral formuladas anteriormente. Ética e moral relacionam-se, mas com objetos diferenciados, específicos e bem definidos. Com efeito, ambas as palavras mantêm uma relação que não possuíam propriamente em suas origens etimológicas. Certamente, a moral diz respeito ao conjunto de normas ou regras adquiridas pelo hábito. Neste caso, a ela refere-se ao comportamento adquirido socialmente ou modo de ser conquistado pelo homem. A ética, por sua vez, baseia-se em um modo de comportamento que não corresponde a uma disposição natural, mas é adquirido ou conquistado pelo hábito. É precisamente esse caráter não-natural da forma de ser do homem que, no período antigo da humanidade, conferia a este mesmo homem uma “dimensão moral”. A seguir, discutiremos com mais detalhe o caráter histórico e social da moral, especificando esta dimensão moral do homem. Preparados? Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 23 O caráter histórico e social da Moral Mesmo considerando a origem divina das ideias morais, por intermédio das quais os indivíduos teriam adquirido a consciência dos meios adequados à sua elevação ao plano espiritual dos valores perenes, a investigação do problema da moral não pode desprezar os processos históricos responsáveis pelos mecanismos de criação, funcionamento e aplicação dos padrões e das regras morais. Todas as sociedades humanas possuem valores padrões, normas de conduta e sistemas que garantem a aplicação e o funcionamento das mesmas. O estudo do modo de implementação social desses sistemas de regulação moral revela-nos que o fundamento sobre o qual repousam constitui-se de hábitos e atitudes firmados diante de “padrões de conduta”, que funcionam como “cimento da unidade social dos grupos humanos”. A questão que nos interessa é saber se estes padrões de conduta moral são impostos a partir da própria estrutura de poder vigente ou se refletem a natureza geral humana. IMPORTANTE: No primeiro caso, a existência desses padrões é objetiva: está posta nas leis e normas emanadas das instâncias de poder. No segundo caso, fazem-se necessárias especulações e discussões sobre o que é a natureza humana e como ela deve ser cuidada para se manter fiel a si mesma. Para auxiliarmos no entendimento destas questões, verificaremos o comentário de Howard Parsons (1982, p. 158) sobre esta problemática: A “moral”, em suas raízes latinas, caracteriza-se como algo de pesado, inamovível e campesino: os mores são os usos e costumes de um povo, embebido de hábitos que estão na base dos seus caracteres e que os une num sólido liame. Destruam os mores, destruirão os homens e a sociedade. A moral tradicional, porém, não satisfaz muita gente hoje em dia. A sociedade e a mores estão em uma convulsão como nunca se viu antes. Deriva daí que a nossa pesquisa não deve voltar-se nem tanto para uma nova moral (os frutos), nem tampouco para velhas morais (troncos vazios), e sim para raízes eternas. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 24 Baseados no comentário citado pelo autor, podemos dividir as concepções quanto à origem da moral em dois tipos básicos: aquelas que explicam esta origem por princípios metafísicos e, como tal, supra-históricos ou a-históricos. Alinham-se neste primeiro tipo as teorias que veem um poder sobre-humano como fonte das normas morais. Também as que veem o homem como origem e fonte da moral, mas referindo-se a uma essência eterna e imutável a todos os indivíduos. De outro lado, estão as teorias historicistas, ou seja, as que procuram a origem da moral no horizonte da história, vendo-a como produto histórico e social do homem. Entre as teorias a-historicistas ou metafísicas, poder-se-ia citar a posição Neotomista. Esta corrente de pensamento europeia e católica (representada por Garrigou-Lagrange e Jacques Maritain) surgiu entre as duas grandes guerras mundiais e que teve penetração no Brasil a partir dos anos cinquenta através do Pe. Leonel Franca e de Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde). Estes seguem o pensamento de São Tomás de Aquino e afirmam que o homem é dotado de um senso moral natural, "no sentido de que possui uma infalibilidade resultante da própria natureza da inteligência" (Cf. ARANHA, 2003, p. 67). O senso moral, segundo Tomás de Aquino, é o "sentimento imediato e absoluto da lei reguladora do conhecimento e da ação práticos", define-se "adequada e essencialmente pelo princípio de que é preciso fazer o bem e evitar o mal". Desta forma, a vontade humana tende necessariamente para o bem. Por esta razão, os sentimentos morais, considerados componentes da consciência moral, manifestem uma tendência ao bem e uma repulsa ao mal, o respeito do dever e a antipatia pela má conduta. Tomás de Aquino que foi chamado o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Média, na escolástica anterior, compaginou um e outro, de forma a obter uma sólida base filosófica para a teologia e retificando o materialismo de Aristóteles. Em suas duas "Summae", sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de sua época : são elas a "Summa Theologiae", a "Summa Contra Gentiles" (Disponível em: <www.wikpedia.com.br>. Acesso em 16 maio 2008.) Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 25 As teorias historicistas, por outro lado, defendem que a moral de uma comunidade encontra-se essencialmente em seus costumes. Em outras palavras, para estes os costumes dizem como cada homem deve agir em situações concretas em função daquilo que a comunidade considera como sendo o bem e o mal. Por isso, consideram o modo de agir e de pensar baseado na "moral" como aquele queestá em conformidade com a moralidade. Por sua vez, para estes a moralidade consiste na obediência ao costume de tal forma que onde não há nenhum costume classificado como certo, não há moralidade, pois se pode agir de diferentes modos sem que nenhum deles seja visto pela comunidade como um ato imoral ou amoral. Mas o que é imoral e amoral? No sentido geral, o termo imoral significa algo que é contrário à moral. Especificamente, diz respeito a uma conduta ou regra que contraria a moral prescrita pela sociedade. Em outras palavras, entende-se por imoral tudo aquilo que uma sociedade (em um determinado espaço e tempo) consensualmente não admite ou julga ser correto ou justo em relação à conduta ou ao comportamento social de um indivíduo e um grupo de indivíduos que pertencem a ela. De outra forma, o termo amoral significa propriamente ausência de moral, ou seja, é o instante que não se pode avaliar ou emitir um juízo de valor de natureza moral ou imoral sobre o agir de um indivíduo ou mesmo um grupo de indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade. Percebeu como estes dois termos estão intimamente relacionados ao comportamento dos indivíduos no seio da sociedade? É exatamente este o ponto de vista de Vázquez (2001, p. 244): A necessidade de ajustar o comportamento de cada membro aos interesses da coletividade leva a que se considere como bom ou proveitoso tudo aquilo que contribui para reforçar a união ou a atividade comum e, ao contrário, que se veja como mau ou perigoso o oposto; ou seja, o que contribui para debilitar o minar a união; o isolamento, a dispersão dos esforços, etc. Estabelece-se, assim, uma linha divisória entre o que é bom e o que é mau, uma espécie de tábua de deveres Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 26 ou obrigações baseada naquilo que se considera bom ou útil para a comunidade. Destacam-se, assim, uma série de deveres: todos são obrigados a trabalhar, a lutar contra os inimigos da tribo, etc. Estas obrigações comuns comportam o desenvolvimento das qualidades morais relativas aos interesses da coletividade: solidariedade, ajuda mútua, disciplina, amor aos filhos da mesma tribo, etc. O que mais tarde se qualificará como virtudes ou como vícios acha-se determinado pelo caráter coletivo da vida social. Numa comunidade que está sujeita a uma luta incessante contra a natureza, e contra os homens de outras comunidades, o valor é uma virtude principal porque o valente presta um grande serviço à comunidade. Por razões análogas, são aprovadas e exaltadas a solidariedade, a ajuda mútua, a disciplina, etc. Ao contrário, a covardia é um vício horrível na sociedade primitiva porque atenta, sobretudo contra os interesses vitais da comunidade. E se deve dizer a mesma coisa de outros vícios como o egoísmo, a preguiça, etc. Cabe notar que a partir desta consideração, Vázquez entra em uma calorosa discussão entre as teses metafísicas e historicistas sobre a origem da moral, o que nos conduz a uma reflexão sobre os seus fundamentos, ou seja, uma discussão a respeito da legitimidade com que a moral se impõe aos indivíduos. Se a moral possui uma origem metafísica, não está ao alcance do homem modificar seus postulados fundamentais, tais como, o princípio "faça o bem e evite o mal". Um princípio metafísico como este garante por si mesmo uma forte fundamentação teórica para o ordenamento moral da sociedade. Se concepções historicistas da origem da moral estiverem certas, a moral a que estamos submetidos relativiza-se os nossos próprios atos, o que torna um desafio repensar os seus fundamentos. Com efeito, torna-se possível não apenas reformá-la, mas fazê-la com a consciência de que ela é apenas um produto humano. Isto retira boa parte de sua força de imposição e legitimidade proveniente da ideia de sua origem metafísica, transcendente e sagrada. O que acontece com o indivíduo e com a sociedade que dessacraliza sua moral? Surge o risco da desordem e da desestruturação da sociedade? Desestruturar a sociedade é correr risco de voltarmos para a animalidade, para a barbárie. Barbárie: estado ou condição de bárbaro. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 27 Por conta disso, o âmbito da moral passar a existir como um traço de formação que todo homem recebe do processo de interação. Essa formação é inteiramente não-religiosa na sua própria justificação: por isso se diz que a moral do homem moderno é laicizada. Os valores morais não são reconhecidos como revelados por uma um origem divina, ou seja, trata de valores que não são sagrados. Ao contrário, estes valores são resultantes do processo histórico de sua dessacralização. A eles recusa-se qualquer transcendência, qualquer caráter sagrado. Mas existem objetivamente e sua existência pode até ser estatisticamente verificada, ou seja, justificada através de critérios científicos. Não é somente o critério científico que a moral justifica-se. Ela pode ainda ser justificada pelos seguintes critérios: critério de justificação social: na medida em que a moral desempenha a função social de garantir o comportamento dos indivíduos de uma comunidade numa determinada direção, toda norma corresponderá aos interesses e necessidades sociais. Em suma, em uma comunidade em que se verifica a necessidade de um indivíduo ou o interesse de um indivíduo particular, justifica-se uma norma que exige o seu comportamento adequado; critério de justificação prática: uma norma moral somente pode ser justificada se forem verificadas as condições reais para que a sua aplicação não se ponha às necessidades sociais da comunidade. Sendo assim, em uma determinada comunidade na qual se verificam as condições necessárias, justifica-se a norma que corresponde a tais condições; critério de justificação lógica: a justificação lógica das normas satisfaz plenamente a função social de toda moral, pois impede que uma comunidade determinada elabore normas arbitrárias ou caprichosas que, precisamente, por não se integrarem no respectivo sistema normativo, entrariam em contradição com os interesses e necessidades da comunidade. Neste contexto, uma norma se justifica logicamente se demonstrada a sua coerência e não- contraditoriedade com respeito às demais normas do código moral do qual faz parte. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 28 Veremos a seguir alguns aspectos desta discussão, apresentando a você o contexto histórico e social da ética. Vamos lá? O caráter histórico e social da Ética Como já discutimos, toda coletividade humana possui sua própria moral ou suas morais (diferentes morais para diferentes grupos da mesma sociedade). Isto, porém, não significa que todo povo tenha uma ética, entendida como um estudo racional da moral. O nascimento (origem ou gênese) da moral data do próprio nascimento da coletividade humana e do seu processo de interação. Pode-se afirmar que as doutrinas éticas nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações entre os homens e, em particular, pelo seu comportamento moral efetivo. Por essa razão, existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e as realidades humana e social, sujeitas historicamente à mudança. Com efeito, as doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a história. Ética e história, portanto, relacionam-se duplamente: com a vida social e com a sua própria história, uma vez que cada doutrina ética está em conexão com as anteriores. Toda moral efetiva se elaboram certos princípios, valores ou normas. Assim,mudando radicalmente a vida social, muda também a vida moral. Os princípios, valores e normas encarnados nela entram em crise e exigem a sua justificação ou a sua substituição por outros. Assim explica-se o surgimento e sucessão de doutrinas éticas fundamentais em conexão direta com a mudança e sucessão de estruturas sociais e, dentro delas, da vida social. A gênese da moral é também um problema em relação à moral estabelecida na atualidade. O fato de ela estar estabelecida, de sustentar-se e perpetuar-se historicamente exige uma explicação. Por isso, do ponto de vista filosófico, há uma necessidade intrínseca para explicar a gênese e os pressupostos fundamentais da moral. A ética, enquanto estudo da moral, por outro lado, tem data de nascimento certa e, graças à história da filosofia, podemos conhecer o seu surgimento e a sua evolução. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 29 A ética surgiu na Grécia, no século V a.C., com o surgimento dos sofistas e com a atitude de reação aos sofistas por parte de Sócrates. A sofística aparece num momento cultural e político muito específico da história e cultura grega. No período clássico grécia, os sofistas rejeitam a tradição mítica ao considerar que os princípios morais resultam de convenções humanas. Embora na mesma linha de oposição aos fundamentos religiosos, Sócrates se contrapõe aos sofistas ao buscar explicar os princípios morais não nas convenções, mas na natureza humana. Segundo Hamlyn (1990 p. 25): A ética propriamente dita começou com Sócrates, embora os sofistas lhe tenham dado um estímulo importante. Isto a despeito do fato de que Sócrates, a julgar pelas indicações que nos dá Platão, se opunha a eles. Para seus contemporâneos, de qualquer maneira, eles provavelmente pareciam mais próximos a ele do que nos parece hoje. Os sofistas eram mestres ambulantes que davam cursos ou aulas individuais sobre vários assuntos e cobravam por esse privilégio. Alguns deles, pelo menos, parecem ter ganho bom dinheiro com essas atividades. É tentador atribuir a esse fato o desfavor em que são hoje tidos, embora seja duvidoso que cobrar honorários por serviços prestados tenha sido motivo de desaprovação para o ambiente ateniense típico de meados do século V a.C. Sócrates censurava-os porque achava que eles alegavam fornecer mais do que realmente davam. Em especial, alegava que eles diziam que podiam ensinar virtude ao homem e achava que não faziam nada disso. Um sofista era um professor e, por este motivo, a palavra sophistés era utilizada para se referir aos poetas, que foram os primeiros educadores na Grécia. Em princípio, a palavra sofista não possui um sentido pejorativo que veio adquirir mais tarde, em Atenas, quando os seus inimigos os acusavam de charlatães e mentirosos. O que ensinavam os sofistas? Os sofistas ensinavam a arte de argumentar e persuadir, arte decisiva para quem exerce a cidadania em uma democracia direta. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 30 Mais uma vez, contudo, se acreditarmos nos diálogos de Platão, os próprios argumentos de Sócrates, considerados puramente como tais, são amiúde pouco melhores do que os de seus adversários sofistas. Pouca dúvida pode haver de que os contemporâneos de Sócrates o teriam julgado tão inigualável a esse respeito como os sofistas. Por outro lado, muitos tributavam a todos eles uma análoga admiração prudente. Sócrates, no entanto, exercia um fascínio próprio, como dá notícia Alcibíades em O Banquete, de Platão, e era o caráter do homem e a profundidade de sua consciência moral que o tornava especial. Inúmeros são os diálogos de Platão em que são descritas as discussões socráticas a respeito das virtudes e da natureza do bem. Resulta daí a convicção de que a virtude se identifica com a sabedoria e o vício com a ignorância. Neste termos, para Platão, a virtude pode ser aprendida. Na célebre passagem de República em que Platão descreve o mito da caverna reaparece essa ideia: o sábio é o único capaz de se soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e, dirigindo-se para fora, contempla o sol, que representa a ideia do Bem. Portanto, "alcançar o bem" se relaciona com a capacidade de "compreender bem". Todavia, apenas o filósofo atinge o nível mais alto de sabedoria, só a ele cabe a virtude maior da justiça e, portanto, lhe é reservada a função de governar a cidade. Outras virtudes menores, mas também importantes para a cidade, caberão aos soldados defensores da pólis e aos trabalhadores comuns, artesãos e comerciantes. IMPORTANTE: Herdeiro do pensamento de Platão, Aristóteles aprofunda a discussão a respeito das questões éticas. Mas, para este, o homem busca a felicidade, que consiste não nos prazeres nem na riqueza, mas na vida teórica e contemplativa cuja plena realização coincide com o desenvolvimento da racionalidade. O que há de comum no pensamento dos dois filósofos gregos em questão é a concepção de que a virtude resulta do trabalho reflexivo, da sabedoria, do controle racional dos desejos e paixões. Além disso, o sujeito moral não pode ser compreendido ainda, como nos tempos atuais, na sua completa individualidade. Os homens gregos são, antes de tudo, cidadãos, membros integrantes de uma comunidade, de modo que a ética se acha intrinsecamente ligada à política e a pólis. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 31 No período helenista, os filósofos se ocupam predominantemente com questões morais, e destacam-se duas tendências opostas: hedonismo e o estoicismo. Para os hedonistas (do grego hedoné, "prazer"), o bem se encontra no prazer. O principal representante do hedonismo grego, Epicuro (341-270 a.C.), considera que os prazeres do corpo são causas de ansiedade e sofrimento. Para permanecer imperturbável, a alma precisa desprezar os prazeres materiais, o que leva Epicuro a privilegiar os prazeres espirituais, dentre os quais aqueles referentes à amizade. Na mesma época, o estoico Zenon de Cítio (336- 264 a.C.) despreza os prazeres em geral, ao considerá- los fonte de muitos males. As paixões devem ser eliminadas, porque só produzem sofrimento e, por isso, a vida virtuosa do homem sábio, que vive de acordo com a natureza e a razão, consiste em aceitar com impassibilidade o destino e o sofrimento (Cf. ARANHA, 2003). As teorias estoicas foram bem aceitas pelo cristianismo ainda na época do Império Romano, tendo também fecundado as ideias ascéticas do período medieval. Durante a Idade Média, a visão teocêntrica do mundo fez com que os valores religiosos impregnassem as concepções éticas, de modo que os critérios do bem e do mal se achavam vinculados à fé e dependiam da esperança de vida após a morte. Na perspectiva religiosa, os valores são considerados transcendentes, porque resultam de doação divina, o que determina a identificação do homem moral com o homem temente a Deus. No entanto, a partir da Idade Moderna, culminando no movimento da Ilustraçao no século XVIII, a moral se torna laica, secularizada. Ou seja, ser moral e ser religioso não são polos inseparáveis, sendo perfeitamente possível que um homem ateu seja moral e, mais ainda, que o fundamento dos valores não se encontre em Deus, mas no próprio homem. Epicuro (341-270 a.C.), filósofo grego (nascido em Samos) atomista, fundador do epicurismo. A base de seu sistema é uma física fundada nos *átomos como em Demócrito. Pontos últimos se deslocando no vazio. Os átomos constituem a explicação última do mundo: nada existe a não ser os átomos e o vazio no qual se move: a alma, como tudo o que existe, é formada de átomos materiais: tudoo que acontece no mundo deve-se às ações e interações mecânicas dos átomos. Visão teocêntrica é aquela que atribui Deus como centro de tudo. Laico e secular significam respectivamente o oposto ao eclesiástico. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 32 O movimento intelectual do século XVIII conhecido como Iluminismo, Ilustração ou Aujklärung e que caracteriza o chamado Século das Luzes exalta a capacidade humana de conhecer e agir pela "luz da razão". Esta critica a religião que submete o homem à heteronomia, que o subjuga a preconceitos e o conduz ao fanatismo. Rejeita toda tutela que resulta do princípio de autoridade. Em contraposição, defende o ideal de tolerância e autonomia. No lugar das explicações religiosas, a Ilustração fornece três tipos de justificação para a norma moral: aquela se funda na lei natural (teses jusnaturalistas), no interesse (teses empiristas, que explicam a ação humana como busca do prazer e evitação da dor) e na própria razão (tese kantiana). A máxima expressão do pensamento iluminista encontra-se em Kant (1724- 1804) que, além da Crítica da razão pura escreveu a Crítica da razão prática e Fundamentação da metafísica dos costumes, nas quais desenvolve a sua teoria moral e ética. A razão prática diz respeito ao instrumento para compreender o mundo dos costumes e orientar o homem na sua ação. Analisando os princípios da consciência moral, Kant conclui que a vontade humana é verdadeiramente moral quando regida por imperativos categóricos. O imperativo categórico é assim chamado por ser incondicionado, absoluto, voltado para a realização da ação tendo em vista o dever. A tradição da moral ocidental encontrou no pensamento do filósofo alemão do século XVIII um momento de aparente resolução do antagonismo histórico entre as fontes judaicas e helênicas da moralidade. Para este, uma ação moralmente justificável deve ser pública e, como tal, não pode estar a serviço de qualquer intenção ou interesse particular ou egoísta. Deve-se, portanto, agir somente na medida em que a nossa ação possa ser imitada por todos sem prejuízo a ninguém. Ou seja, a norma a que obedeço é a norma que eu próprio me dou, mas que deve poder ser defendida publicamente, para que possa ser seguida por toda a humanidade como um “lei universal” ou , no mínimo, não ser rejeitada por esta. Imperativo categórico: Kant criou o termo imperativo no seu livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes, escrito em 1785. Esta palavra pode ser entendida, segundo alguns autores, como uma analogia ao termo bíblico Mandamento. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 33 Para Kant, esse ato de autonomia e de poder agir publicamente, sem ser acusado por ninguém, é a fonte da satisfação moral. Essa atitude moralmente válida decorre unicamente do uso de nossa capacidade racional, da liberdade da nossa vontade e, sobretudo, da orientação que, por educação, imprimimos à nossa vontade para que se torne boa ou para que seja absolutamente boa. Nesse sentido, fica patente que Kant rejeita as concepções morais predominantes até então, quer seja da filosofia grega, quer seja da cristã, e que norteiam a ação moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o interesse privado. Por exemplo, para Kant não faz sentido agir bem com o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar o céu ou não merecer a punição divina. O agir moralmente funda-se exclusivamente na razão. A lei moral que a razão descobre é universal, pois não se trata de descoberta subjetiva (mas do homem enquanto ser racional) e é necessária, pois é ela que preserva a dignidade dos homens. Isso pode ser sintetizado nas seguintes afirmações do próprio Kant (1988, p. 34): "Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta"; "Age sempre de tal modo que trates a Humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, como fim e não apenas como meio". A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Pois todo imperativo se impõe como dever, mas a exigência não é heterônoma — exterior e cega e sim livreniente assumida pelo sujeito que se autodetermina. Vamos exemplificar: suponhamos a norma moral "não roubar”. Para a concepção cristã, o fundamento da norma se encontra no sétimo mandamento de Deus. No entanto, para os teóricos jusnaturalistas (como Rousseau e Hobbes), ela se funda no direito natural, comum a todos os homens; por outro lado, para os empiristas (como Locke, Condillac) a norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito que a desobedece será submetido ao desprazer, à censura pública ou à prisão. Lei moral é a expressão de um princípio moral, sob forma que explicite o que é o bem e o mal, a partir do qual se pode justificar a validade das normas ou valores morais por ele aceitos como fonte de sentido para a sua existência. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 34 Para Kant, a norma se enraíza na própria natureza da razão; ao aceitar o roubo e consequentemente o enriquecimento ilícito, elevando a máxima (pessoal) ao nível universal, haverá uma contradição: se todos podem roubar, não há como manter a posse do que foi furtado. A reflexão ética de Kant foi importante para fornecer as categorias da moral iluminista racional, laica, acentuando o caráter pessoal da liberdade. Mas, a partir do final do século XIX e ao longo do século XX, os filósofos começam a se posicionar contra a moral formalista kantiana fundada na razão universal, abstrata, e tentam encontrar o homem concreto da ação moral. É nesse sentido que podemos compreender o esforço de pensadores tão diferentes como Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard e os existencialistas. Vejamos a posição de Nietzsche. O pensamento de Nietzsche (1844- 1900) se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter encaminhado pela primeira vez a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, nasce aí o homem desconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado com o cristianismo, que acelerou a "domesticação" do homem (ARANHA, 2003). Segundo Machado (1999), em diversas obras, como A genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras palavras, o homem, sob o domínio da moral, se enfraquece, tornando-se doentio e culpado. Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopeias e das tragédias, considerando-a como o momento em que predominam os verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, sendo atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses. Nessa perspectiva, o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto o troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas aquele que é desprezível". Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a "transvaloração de todos os valores" e denuncia a falsa moral, "decadente", "de rebanho", "de escravos", cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Também, contrapõe a ela a moral "de senhores", uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. A “moral de senhores” é positiva, porque baseada no sim à vida e se Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 35 configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Por isso, ela funda-se na “capacidade de criação”,de invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência. O homem que consegue superar-se é o “super-homem”, diz Nietzsche apud MACHADO (1999, p. 67). À moral aristocrática, “moral de senhores”, que é sadia e voltada para os instintos da vida, Nietzsche contrapõe o pensamento socrático-platônico (que provoca a ruptura entre o trágico e o racional) e a tradição da religião judaico- cristã. A moral que deriva daí é a moral de escravos, moral decadente, porque baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão, o “homem- fera”, “animal de rapina”, é transformado em “animal doméstico ou cordeiro”. De acordo com Nietzsche, a moral plebeia estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta vivida pelo homem. O que é proveitoso constitui o valor. O homem é o criador de valores, mas se esquece de sua criação. A moralidade é o instinto gregário do indivíduo, pois quem é punido é quem pratica os atos. Para Nietzsche, na sociedade, existem os “instintos de rebanho”. Atribui-se às palavras um sentido fixo e acha que ela espelha a realidade, que tem caráter transitório. O homem chega, pelos costumes, à convicção de que é preciso obedecer. No inverso disso, existe o prazer, a autodeterminação e a liberdade de vontade. De acordo com Nietzsche (1987, p. 45): Qual a genealogia da moral, isto é, a origem do conceito “bom”?] (...) O juizo “bom” nao provém daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e em pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo o que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu (...). De uma forma geral, o que Nietzsche denomina de valor e, ao contrário do que poderíamos pensar, não é uma entidade utilizada para ajuizamento moral, mas o nome com que se designa todo tipo de manifestação engendrada por esse conflito. Quanto a sua apreensão, os valores podem apresentar-se sob duas disposições fundamentais para o filósofo em questão: Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 36 1. “disposição afirmativa”, como aquela que se faz em sintonia com o lance e cadência do citado binômio, afirmando-o como modo estrutural da realidade em sua gênese; 2. “disposição reativa”, que não se conforma com este modo constitutivo, fazendo que irrompa uma perspectiva derivada, que se arroga no direito de requerer um modo de realização da existência diverso do que se dá nessa instauração. Estes modos dos valores são possibilidades de realização dessa vida para Nietzsche. Estes, por estarem articulados com o próprio modo de dar-se da vida, isto é, com o movimento da vontade, são sempre passíveis de apreensão através de duas disposições fundamentais: as disposições afirmativas e reativas. Respectivamente, aquelas que indicam sintonia e dissintonia com a compreensão de vida como valor. No primeiro caso, a disposição afirmativa surge na sintonia com uma perspectiva que se constrói a partir do “aquecimento” do modo de ser sempre eterno da gênese de realidade, celebrando a vida enquanto experiência de criação (Cf. MACHADO, 1999, p. 78). De acordo com Machado (1999), a esse processo Nietzsche chama “vontade criadora”. No segundo caso, a disposição negativa irrompe em uma perspectiva que, ao se instaurar, nega a si mesma enquanto perspectiva e se arroga o direito de determinar — para além de toda e qualquer instância de realização — o modo de ser da totalidade dos entes. Esta é a compreensão da verdade, como uma instância que surge em função da separação radical frente ao mundo fenomênico, e recebe o nome de “vontade de verdade”. O que Nietzsche revela com isso é que os escravos negam os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. Nesta perspectiva, o homem se torna enfraquecido e diminuído em sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, isto é, o “ódio dos impotentes”. A conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se marcada pelo ressentimento e pela “má consciência”. O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. Por sua vez, para Nietzsche, o “homem ressentido”, incapaz de Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 37 esquecer, é como o dispéptico: fica "envenenado" pela sua inveja e impotência de vingança. Ao contrário, o homem nobre sabe "digerir" suas experiências e esquecer é uma das condições de manter-se saudável. A má consciência ou sentimento de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de pecado, que inibe qualquer ação. Neste sentido, o ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. Assim, as práticas de altruísmo destroem o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos. É por isso que, contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes em fracos (tema constante da reflexão nietzschiana), é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, "além da moral". Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau. A “dimensão das forças”, dos instintos, da vontade de potência, permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém da fraqueza” (MACHADO, 1999, p. 77). IMPORTANTE: Os pontos de vistas éticos apresentados não são os únicos existentes e nem representam a totalidade dos problemas relativos a ética. Existem várias doutrinas que se debruçaram sobre o tema da ética apresentado e refletindo sobre seus fundamentos e aplicacações. Cabe neste momento, apresentar as principais teorias ou doutrinas de ética e suas respectivas especifidades teóricas: ● egoísmo ético: pressupõe que devemos agir apenas em função do nosso interesse pessoal. A única obrigação moral é promovermos o nosso próprio bem- estar. Critério moral: são as consequências que as ações têm para nós próprios que as tornam certas ou erradas. O egoísmo ético é, portanto, uma teoria consequencialista: o que conta são as consequências que as ações têm para nós próprios. Regra moral básica: “age sempre e apenas em função do teu próprio bem-estar”; Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 38 ● utilitarismo ético: pressupõe que devemos agir com a finalidade de promover o máximo de bem-estar a um maior número possível de pessoas, numa perspectiva imparcial. O utilitarismo é também uma teoria consequencialista: o que conta são as consequências que as ações têm para a generalidade das pessoas (e não já apenas para nós próprios). Critério moral: são as consequências que as ações têm para o maior número de pessoas que as tornam certas ou erradas. Sendo assim, uma ação está moralmente certa apenas quando maximiza o bem-estar, ou seja, quando promove tanto quanto possível o bem- estar e está errada quando não o promove. Regra moral básica: “age de tal modo que as tuas ações possam proporcionar o maior bem possível ao maior número de pessoas, imparcialmente consideradas”; ● ética deontológica: pressupõe que devemos agir de acordo com o Dever e não pensar nas consequências das nossas ações. A pergunta a fazer é: toda as pessoas deveriam fazer o mesmo em idênticas circunstâncias? A ética deontológica é, portanto, uma teoria anticonsequencialista. O critério moral desta é a relação das ações com os deveres universais (são os esmos para todos os seres humanos) que as tornam certas ou erradas. Há,portanto, ações intrinsecamente más (ou seja, são más em si mesmas), ainda que tenham consequências boas. Desse modo, uma ação está moralmente certa quando não infringe os nossos deveres e está errada quando infringe intencionalmente algum desses deveres. Regra moral básica: “age de tal modo que as tuas ações possam valer para todo o ser racional, sem nunca infringir os deveres universais”. SUGESTÃO DE FILME Pegue seu caderno de anotações, sente-se e assista ao filme A Letra Escarlate de Douglas Day Stewart, baseado em livro de Nathaniel Hawthorne. Ele contextualizará melhor ainda o conteúdo que você acabou de estudar. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 39 LEITURA COMPLEMENTAR Visando enriquecer seu processo de aprendizagem, procure efetuar a leitura complementar dos seguintes textos: ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. FILOSOFANDO - Introdução à Filosofia. 3ª edição. São Paulo: Editora Moderna, 2001. 439p. MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Brochura, 1999. 116p. HAMLYN, D. W. Uma história da filosofia ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. 416p. GRENZ, S. J. & SMITH, J. T. Dicionário de Ética. 1ª Edição. São Paulo: Brochura, 2005. 184p. VALLS, Á. L.M. O que é ética. 9a edição. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996. 84p. PARSONS, H. As raízes humanas da moral: Moral e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 300p. VAZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 304p. PEREIRA, O. O que é moral? São Paulo: Brasiliense, 1996. 90p. É HORA DE SE AVALIAR! Lembre-se de realizar as atividades propostas no caderno de exercícios! Elas são fundamentais para ajudá-lo a fixar o conteúdo teórico trabalhado, a sistematizar as ideias e os conceitos apresentados, além de proporcionar a sua autonomia no processo ensino-aprendizagem. Caso prefira, redija suas respostas no caderno de exercícios e depois as envie através do nosso ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Procure interagir permanentemente conosco e utilize todos os recursos didáticos e pedagógicos disponibilizados com o objetivo de aprimorar a sua formação acadêmica. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 40 Nesta unidade, você estudou o contexto histórico do surgimento da ética e da moral, assim como os principais conceitos e definições que as envolvem. Apresentamos a problemática da distinção entre ética e moral, assim como as suas respectivas definições e objetos de estudo. Além disso, esboçamos, de forma esquemática, os aspectos históricos e sociais da ética e da moral, objetivando situar você nos elementos do contexto do desenvolvimento da humanidade. Na próxima unidade, discutiremos alguns dos problemas fundamentais no qual a ética se ocupa. Trata-se, portanto, de apresentar a você os temas recorrentes da ética, tais como, a consciência moral e os valores éticos e a dicotomia liberdade versus determinismo, a felicidade, a virtude e a amizade. Bons estudos e até a próxima unidade! Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 41 Exercícios - unidade 1 1ª QUESTÃO: Assinale a letra correspondente à alternativa que preenche CORRETAMENTE as lacunas do texto a seguir: “Vázquez (2001, p. 12) afirma que a “ética é a ________ do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma específica do ___________.” a) Senso comum ou ciência - comportamento antissocial b) Hermenêutica ou ciência - comportamento surreal c) Teoria ou ciência - comportamento humano d) Psicologia jurídica - comportamento social e) Teoria ou anticiência - comportamento antirreal 2ª QUESTÃO: Qual das alternativas abaixo NÃO se relaciona aos pressupostos da ética? a) A ética relaciona-se com a ciência. b) A ética relaciona-se com avaliação da conduta humana. c) A ética é uma ciência normativa. d) Os problemas éticos caracterizam-se pela sua particularidade e a ausência de critérios normativos e científicos. e) A função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. 3ª QUESTÃO: Segundo Robert Srour: “Enquanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é teórico, corresponde a uma generalidade abstrata e formal” (SROUR, 2000, p. 270). Seguindo a afirmativa de Srour, indique qual das alternativas abaixo corresponde ao correto sentido da ‘moral’. Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 42 a) A moral implica uma relação livre e consciente entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade. b) A moral não se relaciona em nada com a ética. c) A moral não cumpre uma função social bem definida. d) A moral não possui um caráter social, porque os indivíduos se sujeitam a princípios, normas ou valores socialmente estabelecidos. e) A moral possui um caráter social, porque os indivíduos se sujeitam a princípios, normas ou valores socialmente construídos com base em normas artificiais. 4ª QUESTÃO: Mesmo considerando a origem divina das ideias morais, por intermédio das quais os indivíduos adquirem consciência dos meios adequados à sua elevação ao plano espiritual dos valores perenes, a investigação do problema da moral não pode desprezar os processos históricos responsáveis de fato pelos mecanismos de criação, funcionamento e aplicação dos padrões e das regras morais. Como base nesta explicação, podemos afirmar que: a) o âmbito da moral passa a existir como um traço de desinformação que se recebe no processo de interação e de identificação a priori. b) as regras morais em nada correspondem aos pressupostos morais. c) os costumes nunca dizem como cada homem deve agir em situações concretas em função daquilo que a comunidade considera como sendo o bem e o mal. d) o termo imoral significa algo que é o mesmo que o de moral. e) todas as sociedades humanas possuem valores padrões, normas de conduta e sistemas que garantem a aplicação e o funcionamento das mesmas. 5ª QUESTÃO: Não é somente o critério científico que a moral justifica-se. Ela pode ainda ser justicada por alguns critérios. Entre estes critérios podemos apontar: Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade 43 a) o critério de justificação social e o critério de justificação prática. b) o critério de justificação metafísica e o critério de justificação anárquica. c) o critério de justificação eloquente e o critério de justificação factual. d) o critério de justificação ilusório e o critério de justificação fatídico. e) o critério de justificação anormal e o critério de justificação multissocial. 6ª QUESTÃO: As doutrinas éticas nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações entre os homens e, em particular, pelo seu comportamento moral efetivo. Uma dessas doutrinas é o egoísmo ético. Sobre esta doutrina afirma-se: a) que devemos agir com a finalidade de promover o mínimo de bem-estar a um menor número possível de pessoas, numa perspectiva imparcial. b) que devemos agir de acordo com o coração e a mente e não pensar nas consequências das nossas ações. c) que devemos agir de acordo com o Dever e não pensar nas consequências das nossas ações. d) que devemos agir com a finalidade de promover o máximo de bem-estar a um maior número possível de pessoas, numa perspectiva imparcial. e) que devemos agir apenas em função do nosso interesse pessoal. Para esta a única obrigação moral é promovermos o nosso próprio bem-estar. 7ª QUESTÃO: No sentido geral, a palavra
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