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Estudos de Literatura Infanto Juvenil

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Núcleo de Educação a Distância
UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS
SEMESTRE 3
ESTUDOS DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL
Créditos e Copyright	
MAGALHÃES, Mical de Melo M.
Estudos da Literatura Infantil e Juvenil. Mical de Melo M.Magalhães. Santos: Núcleo de Educação a Distância da UNIMES, 2007. (Material didático. Curso de Letras).
 
Modo de acesso: www.unimes.br
1. Ensino a distância. 2. Letras. 3. Literatura Infantil e Juvenil. I. Título
CDD 800
	
UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PLANO DE ENSINO
CURSO: Licenciaturas em Letras
COMPONENTE CURRICULAR: Estudos de Literatura Infanto Juvenil
SEMESTRE: 3º
CARGA HORÁRIA TOTAL: 80
 
EMENTA: A fundamentação conceitual da Literatura Infanto Juvenil. Autores basilares Europeus. A importância da formação do leitor. Tipos de texto e estratégias. A literatura infanto juvenil no Brasil 
OBJETIVO GERAL: Conhecer uma concepção de leitura pertinente ao trabalho com textos literários. Compreender as operações mentais e linguísticas envolvidas no ato de ler.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS: 
UNIDADE 1-Preparando o terreno, conhecendo nosso material. 
Conhecer os elementos que constituem o fazer literário. 
UNIDADE 2- A formação do gosto 
Descrever aspectos relacionados ao desenvolvimento do gosto da leitura. 
UNIDADE 3- O que é, então, um bom texto? Alguns critérios. 
Identificar os critérios de avaliação de um bom texto. 
UNIDADE 4- A literatura infantil no cenário mundial 
Conhecer a literatura infantil no cenário mundial. 
UNIDADE 5- Estudos de caso: alguns autores e obras do cenário nacional 
Conhecer alguns autores e obras do cenário nacional.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO:
UNIDADE 1-Preparando o terreno, conhecendo nosso material. 
 Apresentação da disciplina 
UNIDADE 2- A formação do gosto 
 Processo de formação do leitor 
 Práticas docentes para a formação do leitor 
 As operações mentais envolvidas no processo de leitura 
 Autonomia do leitor 
 Estratégias de leitura 
UNIDADE 3- O que é, então, um bom texto? Alguns critérios. 
 A importância da leitura de textos literários de qualidade 
 Estágios da leitura – leitura proficiente 
 A seleção e diversidade de leitura 
 Critérios de seleção de textos literários 
 Reflexão sobre a necessidade de função para do texto literário. 
 As características do texto literário 
UNIDADE 4- A literatura infantil no cenário mundial 
 Conceito de literatura infantil 
 História da literatura infantil 
 Contos de fada 
 Psicanálise dos contos de fada 
 Reflexão sobre a moral e utilidade dos contos de fada 
 Função e mimese 
UNIDADE 5- Estudos de caso: alguns autores e obras do cenário nacional 
 Monteiro Lobato – vida e obra 
 Ruth Rocha – vida e obra 
 Lygia Bojunga Nunes – vida e obra 
TEMA TRANSVERSAL: Literatura infantil indígena e africana
Bibliografia Básica
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do Ensino da Literatura Infantil. São Paulo: Editora Intersaberes, 2013 
GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006. 
PEREIRA, Mara Elisa M. Literatura Infanto-Juvenil. Curitiba: Intersaberes, 2012. 
Bibliografia Complementar
BRODBECK, Jane Thompson; COSTA, Antônio José Henriques; CORREA, Vanessa Loureiro. Estratégias de leitura em língua portuguesa. Curitiba: Intersaberes, 2012 
LAJOLO, Marisa. Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo - 6ª edição. São Paulo: Ática, 2000. 
FABRINO, Ana Maria Junqueira. História da Literatura Universal. Curitiba: Intersaberes, 2014. 
RAMOS, Flávia Brocchetto. Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil. Caxias do Sul: Educs, 2015
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013
METODOLOGIA:
A disciplina está dividida em unidades temáticas que serão desenvolvidas por meio de recursos didáticos, como: material em formato de texto, vídeo aulas, fóruns e atividades individuais. O trabalho educativo se dará por sugestão de leitura de textos, indicação de pensadores, de sites, de atividades diversificadas, reflexivas, envolvendo o universo da relação dos estudantes, do professor e do processo ensino/aprendizagem.
AVALIAÇÃO:
A avaliação dos alunos é contínua, considerando-se o conteúdo desenvolvido e apoiado nos trabalhos e exercícios práticos propostos ao longo do curso, como forma de reflexão e aquisição de conhecimento dos conceitos trabalhados na parte teórica e prática e habilidades. Prevê ainda a realização de atividades em momentos específicos como fóruns, chats, tarefas, avaliações a distância e Prova Presencial, de acordo com a Portaria de Avaliação vigente.
Aula 01_Para começar, uma metáfora.
  
Vamos iniciar nossas reflexões lançando mão de uma metáfora simples e bastante comum quando pensamos em ensino de um modo geral: a metáfora do plantio.
Não raro, compara-se o ato de ensinar (neste caso específico, de ensinar a ler) ao ato de plantar. Essa metáfora é usada para dizer que, assim como o agricultor, quem ensina precisa conhecer o solo que receberá a semente – qual a sua característica, se necessita de algum tratamento prévio -, as características da semente que irá plantar – quais são as especificidades de plantio, como cuidar e em que época do ano deve ser plantada. É preciso ainda conhecer o produto final daquele plantio, para adequar as expectativas. Assim como o agricultor não pode esperar milho se plantou feijão.
Transpondo os termos dessa metáfora aos nossos interesses, cumpre esclarecer que para trabalhar com ensino de leitura (e, especificamente do trabalho com texto literário), o educador precisa, de antemão, ter bem claras as concepções de leitura e leitor sobre as quais pretende que suas práticas incidam.
O agricultor, em meio a uma infinidade de tipos de solos e sementes com que pode lidar, ele precisa escolher aquela que mais se adequa às suas condições e necessidades. O educador também, em meio a várias concepções de leitura e leitor que circulam no meio acadêmico, necessita eleger aquela que melhor atenda aos seus objetivos.
Da mesma forma, em relação às expectativas de resultado, o professor precisa ter uma noção bem definida do público com que trabalha e da maneira como a sua prática pedagógica atinge esse público, para traçar objetivos passíveis de serem atingidos. Isto é importante não só para que o educador não se frustre ao final do processo (o que  é uma questão estritamente pessoal), mas também para que, ao longo do processo, seja capaz de fazer as manobras necessárias a uma “colheita bem sucedida”.
  
Entendidas essas necessidades, passaremos a apresentar uma opção teórica que abarca as concepções de leitura e leitor e que, a nosso ver, são bastante condizentes com as preocupações contemporâneas apontadas para a necessidade de formar leitores que transcendam a decifração do código linguístico e que se tornem autônomas na relação com o texto escrito, questionando-o para a construção de sentido.
Aula 02_Do deciframento ao questionamento
  
Dentre as diversas reflexões sobre a leitura, partiremos aqui dos pressupostos estabelecidos por Jolibert que em seu livro Formando crianças leitoras reflete acerca de experiências alternativas de ensino de leitura. Durante nosso percurso, visitaremos também o pensamento de outros autores que têm contribuído com as discussões acerca deste tema.
Jolibert (1994) aponta para a necessidade de uma prática docente que forme leitores capazes não só de decifrar um texto, mas de questioná-lo em busca da construção do sentido.
Tentando esclarecer a diferença entre as duas operações, lanço mão de um exemplo retirado do universo adolescente: em uma “balada”, um garoto vê uma menina bonita e interessante e tenta chamar a atenção dela, sorrindo, andando em volta, falando alto para aparecer, esperando, a cada tentativa, a reação dela para decidir qual será o próximo passo. Diante de um sorriso,uma gargalhada, um retorcer de boca, certamente o garoto poderá não só identificar cada um deles, mas atribuir-lhes um sentido: ou “Vá em frente! Estou na sua” ou “Sai fora, meu!”
Ao identificar que a garota sorria e ao interpretar esse sorriso como um “Vá em frente”, o garoto ultrapassou o nível do simples deciframento, pois atribuiu ao sorriso um significado.
Para Jolibert, a leitura propriamente dita também ultrapassa a operação de deciframento, aqui relacionada à condição de reconhecer as palavras representadas graficamente, e é entendida como a capacidade de encontrar sentido nas relações entre as várias instâncias linguísticas que compõem o texto.
Para a autora, “toda a leitura é um questionamento de texto, isto é uma elaboração ativa de significado feita pelo leitor a partir de indícios diversos, de acordo com o que está procurando num texto para responder a um de seus projetos.” (p. 149 – grifos meus)
Aula 03_A leitura e as operações mentais
  
A primeira coisa que se torna fundamental na adoção de uma prática docente que privilegia a leitura enquanto questionamento de textos é o entendimento das operações mentais envolvidas no ato de ler.
Para abordar esta questão, continuaremos seguindo as reflexões de Jolibert (1994).
De acordo com a autora, uma criança precisa ter pré-requisitos culturais para se tornar leitora. Dentre esses pré-requisitos estão o conhecimento e a compreensão da função social e cultural dos diversos suportes, a noção de que o escrito é uma produção profissional e que se serve de múltiplas tecnologias, a consideração do contexto em que determinados tipos de textos circulam como ferramenta auxiliar na apreensão dos sentidos que veiculam.
Além destas habilidades culturais, Jolibert chama atenção para o fato de algumas operações mentais que entram em cena no ato de ler. A autora salienta que estes procedimentos mentais não são necessários exclusivos à leitura, mas estão relacionados à construção da inteligência.
Reproduzimos a seguir, algumas operações mentais citadas por Jolibert:
 
Identificar, isolar / relacionar, combinar, comparar, triar, classificar e seriar;
Induzir e deduzir;
Emitir hipóteses e conferi-las;
Simbolizar, codificar, esquematizar e representar;
Reproduzir, transformar, transpor e inventar;
Memorizar e reinvestir.
  
Embora essas operações mentais sejam transversais a todas as disciplinas, elas devem ser levadas em conta no momento da elaboração das atividades de leitura, uma vez que as mesmas não “existem por si”, mas merecem ser identificadas, executadas, explicitadas e sistematizadas. (p. 141). 
Aula 04_A leitura e as operações linguísticas
  
Como já pudemos perceber, a leitura é uma operação bastante complexa o que torna a tarefa de formar crianças leitoras igualmente desafiadora.
Já circunscrevemos uma concepção de leitura que envolve o questionamento de textos por parte de quem lê e tocamos as operações mentais demandadas para se empreender este tipo de leitura. Cumpre agora darmos especial atenção as operações relacionadas à matéria-prima que compõe o texto: a linguagem.
Retomemos aqui a citação de Jolibert acerca do que define como sendo o questionamento de textos: “(...) uma elaboração ativa de significado feita pelo leitor a partir de indícios diversos, de acordo com o que está procurando num texto para responder a um de seus projetos.” (p. 149)
Esses indícios de que a autora fala são exatamente as marcas linguísticas que “manifestam-se como indícios pertinentes para construir o significado de um texto” (p. 142). É a partir da identificação e coleta destes indícios deixados no texto que o leitor (-aprendiz) terá “acervo” para construir o sentido do texto.
Jolibert organiza essas marcas linguísticas em sete níveis que devem servir como ferramentas para uma leitura questionadora. Não se trata de levar o aluno a produzir análises de texto a partir destes níveis, nem de estancar a leitura em outro nível de observação, uma vez que o texto não pode ser considerado de maneira fragmentada, mas sim como um todo significativo em que todos os aspectos linguísticos se encaixam harmoniosamente, interagindo a favor da significação.
A atividade de leitura é, nas palavras de Jolibert, um “vaivém entre esses sete níveis” que reproduzimos tal qual a elaboração proposta pela autora, no inventário a seguir:
  
1. Noção de contexto (contexto de um texto, não de uma palavra):
Ao mesmo tempo contexto de situação: Por que vias concretas um texto chegou aos olhos do leitor?
E contexto textual (origem do texto a ser lido): É extraído de um escrito complexo (jornal, revista infantil, álbum, fichário, livro de contos ou poemas, antologia, etc.)? Ou é autônomo (carta, cartaz, panfleto, etc.)?
 
2. Principais parâmetros da situação de comunicação:
Emissor;
Destinatário;
Meta e o que está em jogo;
Objeto.
 
 3. Tipos de textos (no sentido de tipo de escrita funcionando hoje em dia em nossa sociedade): Carta? Cartaz? Relato? Novela? Poema? Artigo informativo? Ficha técnica (receita, regra de jogo, ficha de construção?).
 
 4. Superestrutura que se manifesta sobre a forma:
De organização espacial e lógica dos blocos de texto (“silhueta”);
De esquema narrativo tratando-se de uma “história” (conto, lenda, novela ou romance);
De dinâmica interna (abertura/encerramento e progressão de um ao outro)
 
5. Linguística textual: As escolhas de enunciação (pessoas, tempos, lugares) e suas marcas;
Os substitutos;
Os conectores;
Os campos semânticos (redes de sentido);
A pontuação do texto.
  
6. Linguística da frase:
Sintaxe, classes, grupos, relações (suas marcas) e transformações;
Vocabulário: as escolhas lexicais e as palavras em contexto;
Ortografia dita gramatical e o que pode ser aproveitado dela para o sentido;
Pontuação de frases.
  
7. Palavras e microestruturas que as constituem:
Grafemas (minúsculas e maiúsculas), suas combinações características (...) e as relações grafemas e fonemas;
Microestruturas sintáxicas, marcas nominais (singular/plural, masculino/feminino) e marcas verbais (pessoas e tempos);
Microestruturas semânticas: prefixos, sufixos e radicais.
  
Verificamos, portanto, que no processo de escrita de um texto, o autor vai efetuando várias operações linguísticas que são responsáveis pela “cara” do texto (suas características) e pelos possíveis sentidos a serem construídos.
Aula 05_A título de exemplo
    
Como estudamos na aula anterior, no processo de escrita de um texto, o autor efetua várias operações linguísticas que são responsáveis pela “cara” do texto (suas características) e pelos possíveis sentidos a serem construídos. Durante a leitura, essas marcas linguísticas deixadas pelo autor tornam-se pistas a serem localizadas e utilizadas pelo leitor na construção do sentido do texto.
A título de exemplo, selecionamos um trecho de um texto de Lygia Bojunga – reconhecida escritora da literatura infanto-juvenil brasileira - para demonstrar como esses níveis linguísticos se fundem no texto e como, unidos, constroem sentido. Trata-se de um fragmento da novela A casa da madrinha  que narra as desventuras do Pavão, um de seus personagens, enquanto aluno de uma escola chamada de Osarta do Pensamento.
A escola para onde levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente. A Osarta tinha três cursos: o Curso Papo, o Curso Linha, e o Curso Filtro. O Curso Papo era isso mesmo: papo. Batiam papo que só vendo.
O Pavão até que gostou; naquele tempo o pensamento dele era normal, ele gostava de conversar, de ficar sabendo o que é que os outros achavam; de achar também uma porção de coisas. Só tinha um problema: ele não podia achar nada; tinha que ficar quieto escutando o pessoal falar. Se abria o bico ia de castigo; se pedia pra ir lá fora ia de castigo; se cochilava (o pessoal falava tanto que dava sono), acordavam ele correndo pra ele ir de castigo.O Pavão então resolveu toda a hora abrir o bico, ir lá fora, cochilar – só pra ficar de castigo e não ouvir mais o pessoal falar. Não adiantou nada, deram pra falar na hora do castigo também. E ainda por cima falavam dobrado.
O Pavão era um bicho calmo, tranqüilo. Mas com aquele papo todo o dia, o dia todo a todo instante, deu pra ir ficando apavorado. Se assustava à toa, qualquer barulhinho e já pulava pra um lado, o coração pra outro. Pegou tique nervoso: suspirava tremidinho, a toda a hora sacudia a última pena do lado esquerdo, cada três Quartos de hora sacudia a penúltima do lado direito.
O Curso Papo era pra isso mesmo: pro aluno ficar com medo de tudo. O pessoal da Osarta sabia que quanto mais apavorado o aluno ia ficando, mais o Pensamento dele ia atrasando. E então eles martelavam o dia inteiro no ouvido do Pavão.
- Não sai aqui do Curso. Você saindo, você escorrega, você cai, cuidado, hein? Cuidado. Olha, olha, você tá escorregando, tá caindo, não disse?! Você vai ficar a vida toda pertinho dos teus donos, viu? Não fica nunca sozinho. Ficar Sozinho é perigoso: você pensa que tá sozinho, mas não está: tem fantasma em volta. Olha o bicho papão. Cuidado com a noite. A noite é preta, cuidado.
Inventaram coisas horríveis pra contar da noite. E diziam que se o Pavão não fizesse tudo que os donos dele queriam, ele ia Ter brotoeja, dores de barriga horrorosas, era até capaz de morrer assado numa fogueira bem grande.
O Pavão cada vez se apavorava mais. Lá pro meio do curso ele pegou um jeito esquisito de andar: experimentava cada passo que dava, pra ver se não escorregava, se não caía, se não tinha brotoeja, se não acabava na fogueira. E na hora de falar também achava que a fala ia cair, escorregar, trancava o bico, o melhor era nem falar. E então as notas dele começaram a melhorar.
No princípio do curso o Pavão só tirava zero, um, dois no máximo. Mas com o medo aumentando, as notas foram melhorando: três, quatro, cinco; e teve um dia que o Pavão teve tanto medo de tanta coisa que acabou ganhando até um sete. (Nota dez era só pra quando o aluno ficava com medo de pensar. Aí o curso estava completo, davam diploma e tudo.). No dia que o Pavão ganhou nota sete, de noite ele sonhou. Um sonho muito bem sonhado, todo em Amarelo, azul e verde alface. Sonhou que o pessoal do Curso Papo falava, falava, falava e ele não escutava mais nada: tinha ficado surdo.
Acordou e pensou: taí, o jeito é esse. Foi pra aula. Estavam encerando o corredor da escola. Pegou um punhado de cera e, com um jeito bem disfarçado, tapou o ouvido. Daí pra frente o Pavão ficava muito sério olhando o pessoal do curso falando, falando, e ele – quem bom! – sem poder escutar.
Fizeram tudo. Falaram tanto que ficaram roucos. Um deles chegou até a perder a voz. Mas não adiantava: o medo do Pavão não aumentava; não se espalhava, tinha empacado na nota sete e pronto. Resolveram então levar o Pavão pro Curso Linha.
E o Pavão foi. Com um medo danado de cair. Examinando a perna a toda a hora: pra ver ser uma coceirinha que ele estava sentindo já era a tal brotoeja.
Suspirando tremidinho. Sacudindo a última pena, e a penúltima também. Mas fora disso – normal. 
Assim que se inicia a leitura, o texto oferece ao leitor um desafio: a possibilidade de divertir-se com o nome da escola, elemento textual que não causará apenas diversão, mas fornecerá uma chave de leitura para uma melhor apreensão do sentido. A palavra desconhecida já deverá causar no leitor atento um estranhamento que a autora trata de sinalizar, mas não de entregar de bandeja ao leitor (“Bolaram o nome da escola pra não dar muito na vista. Mas quem estava interessado no assunto percebia logo: era só ler Osarta de trás pra frente.” – linhas 2 a 4).
Além disso, podemos observar que há escolhas feitas pela escritora e que não são aleatórias, ao contrário, corroboram para a formação do sentido, como por exemplo:
a escolha de um pavão para ser o personagem e o encadeamento da palavra pavão com outras que o qualificavam como apavorado, que remontam som e sentido.
a opção por verbos impessoais, com sujeito indeterminado (inventavam, falavam, conversavam). Nos casos de sujeitos explícitos, o lugar sintático é preenchido com expressões também indefinidas (o pessoal da Osarta), em crítica ao comportamento pouco responsável que os diversos segmentos da sociedade vêm assumindo em relação à Educação.
Conduzir a leitura de modo que o aluno perceba essas marcas linguísticas é conduzi-lo a um modo de ler que tira o leitor da passividade e convoca-o a questionar, arguir o texto em seu material e lógica de constituição. 
Aula 06_Leitor que questiona é leitor autônomo
  
Tendo percorrido as concepções de leitura que se baseiam no questionamento do leitor sobre o texto e estudado as instâncias cognitivas e linguísticas envolvidas no ato de ler, estamos em condições de refletir, então, sobre aquele que lê. Quem é, afinal, o leitor que queremos formar?
Enquanto leitor-aprendiz, o indivíduo é alguém que depende da suplência de outro para percorrer os caminhos de leitura que ainda não consegue trilhar sozinho. No âmbito das nossas reflexões, o papel de mediador entre texto e aluno é conferido ao professor que deverá, através de atividades de leitura, possibilitar ao aluno a mobilização das operações mentais necessárias ao ato de ler e o trabalho com todos os níveis linguísticos de tessitura textual.
Ao fim do processo de escolarização, o aluno deve, portanto, ser capaz de mobilizar estas categorias de forma autônoma e adequada. O leitor que buscamos formar é, então, o leitor autônomo.
  
Esta autonomia manifesta-se nos seguintes aspectos: 
Condição de selecionar, dentre o acervo de textos presentes na cultura, aquele que sirva a um projeto de leitura específico. Consideremos a seguinte hipótese: se o projeto de leitura é a busca de informações, o leitor autônomo deverá saber onde ele deverá buscar essas informações (em um manual e não em uma antologia poética, por exemplo). 
Condição de empregar estratégias de leitura que otimizem o seu trabalho com o texto. Por exemplo, um leitor autônomo é capaz de antecipar conteúdos e formular hipóteses a partir de elementos extra e para-textuais (título, índice, capa e quarta-capa etc.), não necessitando fazer uma leitura exaustiva do texto para saber se ele atende ou não ao seu projeto de leitura.
Condição de empregar procedimentos de leitura adequados ao tipo de texto selecionado para a leitura. Um leitor autônomo sabe que a maneira que se lê um jornal, por exemplo, difere da leitura feita de um texto instrucional. Enquanto um é formado por vários fragmentos relativamente independentes e que podem ser lidos de forma aleatória, o outro demanda uma linearidade para a construção de sentidos.
Condição de reinvestir um texto de sentidos, sabendo que o texto é um sistema semi-aberto que depende do leitor para ser interpretado. Um leitor autônomo decodifica as partes integrantes de uma peça escrita, mas também as considera como um todo significativo sobre o qual ele tem alguma liberdade de operação, no ato de interpretar-lhe os sentidos possíveis. 
Aula 07 - Possibilidades de posicionamento ante a leitura
    
Nesta aula conheceremos um antigo texto de Geraldi (1994) [1] que, em sua versão inicial, escrita na década de 1980, já apresentava três motivações para a leitura:
  
A busca de informações: realizada com o intuito de extrair informações de um texto pode concentrar-se tanto em aspectos superficiais quanto em níveis mais profundos. Interessante frisar que não apenas textos de caráter predominantemente informativo, tais como textos jornalísticos ou de cunho científico, se prestam a esse tipo de interlocução: também textos literários, como uma poesia, por exemplo, podem ser examinados, numa etapa inicial do trabalho, tendo em vista à obtenção de informações, tais como autor, forma de elaboração do texto, tema etc.
O estudo do texto: caracterizado por um movimento no qual o leitor se debruça sobre um determinado escrito a fim de apreendercomo este se configura, esse tipo de leitura é ato de apreensão e reflexão do qual participam não apenas os aspectos formais de um texto (sua organização, número de parágrafos, seleção vocabular etc.), mas também aqueles que concernem ao seu conteúdo (o ponto de vista nele expresso, a existência de coerência etc.).
Um pretexto para fazer uma atividade indireta: tipo de interlocução na qual o texto apresenta-se como um disparador de outras ações, quer sejam estas outras leituras ou atividades de outro caráter, como a escrita de um outro texto, por exemplo.
d.    A fruição: tendo como cerne o prazer, esse tipo de leitura apresenta-se não apenas em função do contato com textos literários, como se tende a acreditar em uma lógica de acordo com a qual apenas esses textos, compreendidos como obras de arte, poderiam garanti-lo, mas em qualquer tipo de relação com o texto em que a leitura se apresente como um fim em si, cujo resultado não esteja veiculado a qualquer demanda externa, como a necessidade de preencher uma ficha de leitura ou realizar um resumo.
  
Na próxima aula trataremos de estratégias de leitura.
Até lá!
 
[1] GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2004. 3ª ed.
Aula 08_Estratégias de leitura I: antes da leitura
  
 A partir desta aula, analisaremos as estratégias de leitura.
Dentre as estratégias de leitura que um leitor autônomo precisa mentalmente realizar, destacamos aqui àquelas que antecedem a leitura integral do texto. Ela deve ser feita a partir da observação de elementos extra e paratextuais, como suporte do texto, local onde veicula, título, cores, ilustrações, disposição no suporte etc.
Um leitor autônomo percorre esse caminho quase que intuitivamente. No caso do leitor-aprendiz é necessário que o professor, como mediador da leitura, “artificialize” o processo, encaminhando a leitura, para que posteriormente o aluno possa fazê-lo por si só.
São habilidades de leitura a serem mobilizadas antes da leitura integral do texto:
 
• Levantamento do conhecimento prévio sobre o assunto.
• Expectativas em função do suporte.
• Expectativas em função dos textos da capa, quarta-capa, orelha etc.
• Expectativas em função da formatação do gênero (divisão em colunas,
segmentação do texto...).
• Expectativas em função do autor ou instituição responsável pela publicação.
• Antecipação do tema ou ideia principal a partir dos elementos paratextuais, como título, subtítulos, epígrafes, prefácios, sumários.
• Antecipação do tema ou ideia principal a partir do exame de imagens ou de saliências gráficas.
• Explicitação das expectativas de leitura a partir da análise dos índices
anteriores.
• Definição dos objetivos da leitura.
  
Na próxima aula abordaremos as habilidades de leitura a serem exploradas durante a leitura integral do texto.
Aula 09_Estratégias de leitura II : durante a leitura
   
 Nesta aula, discutiremos as habilidades de leitura a serem exploradas durante a leitura integral do texto. Na sala de aula, entre leitores-aprendizes, esse percurso pode ser realizado pelo estudante individualmente, em pequenos grupos ou em situação de leitura compartilhada, de maneira autônoma ou compartilhada com os colegas.
 
São habilidades de leitura a serem mobilizadas durante a leitura integral do texto:
• Confirmação ou retificação das antecipações ou expectativas de sentido
criadas antes ou durante a leitura.
• Localização ou construção do tema ou da ideia principal.
• Esclarecimento de palavras desconhecidas a partir de inferência ou consulta a dicionário.
• Identificação de palavras-chave para a determinação dos conceitos veiculados.
• Busca de informações complementares em textos de apoio subordinados ao texto principal ou por meio de consulta a enciclopédias, Internet e outras fontes.
• Identificação das pistas linguísticas responsáveis pela continuidade temática ou pela progressão temática.
• Utilização das pistas linguísticas para compreender a hierarquização das
proposições, sintetizando o conteúdo do texto.
• Construção do sentido global do texto.
• Identificação das pistas linguísticas responsáveis por introduzir no texto a posição do autor.
• Identificação do leitor-virtual a partir das pistas linguísticas.
• Identificar referências a outros textos, buscando informações adicionais se necessário.
  
Na próxima aula abordaremos as habilidades de leitura a serem exploradas após a leitura integral do texto.
Aula 10_Estratégias de leitura III: depois da leitura
  
Sabendo que a leitura de um texto não deve ser feita de maneira estanque, tendo como final ela própria, elencamos nessa aula as habilidades de leitura que podem ser mobilizadas depois da leitura integral de um texto.
Estas habilidades visam a dar consequência à leitura realizada. Este estágio de leitura parece-nos ser aquele que demanda do seu leitor um maior grau de autonomia, pois exige disponibilidade para questionar o texto e ressignificá-lo através de uma produção própria.
 
São as habilidades pertinentes ao momento após a leitura do texto 
         • Construção da síntese semântica do texto.
• Troca de impressões a respeito dos textos lidos, fornecendo indicações para sustentação de sua leitura e acolhendo outras posições.
• Utilização, em função da finalidade da leitura, do registro escrito para melhor compreensão.
• Avaliação crítica do texto.
  
Como se pode notar, a demanda por um posicionamento crítico está presente em quase todas as habilidades trabalhadas neste estágio de leitura. Nesse momento, o papel do professor (ou daquele que ensina a ler) é fundamental como mediador de leitura. Pode ser que para o exercício destas habilidades, o professor tenha que incidir sobre outras como a capacidade de relacionar conhecimentos prévios, de buscar informações em outros textos para complementar sentidos não apreendidos na leitura da peça escolhida, dentre outras ações.
  
Refletimos, nesta unidade, sobre o conceito de texto e sobre o ato de ler. Na próxima, discutiremos a formação do leitor.
Aula 11_Cena da vida real para uma analogia
  
Na unidade I, estudamos as concepções de leitura e leitor que, a nosso ver, melhor nos servem na tarefa de formar leitores. Estas concepções dão conta de aspectos estruturais da leitura, mas não passam por questões estéticas e de gosto. Dedicaremos, então, a unidade II, a discutir os aspectos pertinentes à formação do gosto pela leitura e do tipo de leitura que desperta prazer em nossos alunos.
Para nos servir de inspiração, narramos uma cena da vida real que nos dará alguns elementos para discutir o gosto pela leitura de textos complexos, os ditos literários.
Eufóricos com a visita que iriam receber, um casal de amigos que há muito tempo não encontravam, Laura e Francisco, zelavam cuidadosamente dos preparativos do almoço que lhes ofereceriam para que nada saísse errado. Na cozinha, ela ocupava-se dos últimos preparativos para o almoço enquanto seu esposo arrumava sobre a mesa um balde com gelo para manter o vinho na temperatura ideal durante a refeição.
A campainha tocou. Depois de um gostoso bate-papo na sala de estar, o casal de anfitriões convidou Marília, Oscar e o filho pré-adolescente para sentarem-se à mesa impecavelmente arrumada. Laura trouxe o prato. Seus filhos, embora bem comportados, salivavam e não escondiam o quanto gostariam de saborear aquela comida: uma bacalhoada, preparada com esmero, o autêntico bacalhau norueguês e azeite extra virgem, ambos caríssimos!
Todos comentavam a beleza e o cheiro do prato, que já provocava bocas “cheias d’água” ansiosas por experimentá-lo. Laura, envaidecida com os elogios, foi pega de surpresa pelo adolescente visitante: Credo! É disso que vocês estão falando? Essa coisa esquisita é de comer? Não rola um hambúrguer?
 
Tratemos, então, de encontrar, semelhanças entre essa anedota cotidiana e o comportamento leitor da maioria das crianças e jovens que nos chegam como alunos.
 
O comportamento do menino revela trêsaspectos que interessam a nossa reflexão:
A repulsa pelo desconhecido e a falta de disposição em conhecer;
A impossibilidade de apreciar algo sofisticado, diferente da trivialidade do dia-a-dia;
O julgamento de valor por aspectos não-pertinentes a essência do objeto (aspecto visual quando o que define a qualidade é o sabor, nesse caso).
  
Como professores que visam a formar indivíduos-leitores, não raro, nos deparamos com essa mesma situação. Muitas vezes, nossos alunos cultivam verdadeira repulsa pelo texto escrito e restringem-se a ler apenas o que é de fácil digestão. Além disso, selecionam suas leituras por critérios alheios ao conteúdo do texto, como número de páginas, quantidade de ilustrações, mancha do texto na página, tamanho da letra ou espessura do livro.
 
Daniel Pennac, professor francês e romancista, em seu ensaio entitulado Como um romance, discute essas questões e reflete sobre o papel do adulto na construção do gosto pela leitura.
 
Na próxima aula, partiremos do pensamento dele para encaminharmos nossas reflexões.
Aula 12_O apetite pela leitura:do trivial ao sofisticado
   
No ensaio Como um romance, Pennac fala da necessidade de reconciliarmos nossas crianças com o mundo da escrita e procura entender o que acontece com o fascínio que a escrita exercia sobre nós antes da alfabetização e de como essa magia transforma-se em maldição quando passamos a ocupar os bancos escolares.
De fato! Quantos de nós já tivemos a chance de acompanhar uma criança que, sem saber ler, folheia os livros, inventa histórias ou que, assim que alfabetizada, dedica a sua atenção a ler placas comerciais, rótulos de produtos ou qualquer outra coisa que lhe caia à mão?
O que é feito desse fascínio que o texto escrito exerce sobre os pequenos quando lhes é dada a tarefa de (aprender a) ler?
Pennac faz uma apreciação sobre essa situação, fazendo uma alusão à televisão, não como responsável por todos os males, mas por conta da simplificação a que ela nos acostuma e relaciona isso com o que chama de “acalmar o apetite de ler”. Nas palavras do próprio Pennac:
  
Para acalmar este apetite [o de ler] nos pusemos, faz tempo, diante da telinha que faz seu trabalho em cadeia, enfiando-nos goela abaixo desenhos animados, seriados, novelas e aventuras num colar sem fim de estereótipos intercambiáveis: nossa ração de ficção. Isso enche a cabeça como se enche a barriga: isto é, sacia, mas não fica no corpo. Digestão imediata. E depois nos sentimos tão sós quanto antes. (PENNAC, 1998)
  
O autor nos chama a atenção sobre como a ficção veiculada pela televisão, “prêt-à-porter”, sem a demanda de qualquer trabalho intelectual por parte de quem consome, “engana” a necessidade de ficção que o ser-humano tem.
Podemos estender essas reflexões do texto televisivo aos textos simplistas, veiculados em livros povoam abundantemente o ambiente escolar e o mercado de literatura produzida para o público infanto-juvenil. Circunscrevemos esses livros ao grupo daqueles que se caracterizam pela linguagem simples, por um texto desprovido de qualquer desafio linguístico e com uma suplência exagerada das imagens na construção dos sentidos.
A consequência da leitura desses textos é praticamente nula, pois, como o próprio Pennac considera, “isso enche a cabeça como se enche a barriga: isto é, sacia, mas não fica no corpo”, ou seja, entra, ocupa espaço em nossa intelectualidade, mas como não precisa ser processado, dele nada se extrai.
Ora, se o objetivo daquele que ensina a ler é a construção de um leitor questionador e autônomo não há porque poupá-lo dos desafios que um texto pode oferecer, sendo até tirano sonegar-lhe o direito ao prazer que o decifrar dos sentidos cuidadosamente dispostos pelo jogo de palavras, por exemplo, é capaz de dar.
  
Fica a pergunta: o que fazer com esses textos que, em muitas vezes, é o material de que o professor dispõe para trabalhar? O que fazer se, em outras tantas vezes, esse é o tipo de texto que o nosso aluno lê e gosta? 
  
Nas próximas aulas, discutiremos a função destes textos na construção de uma prática pedagógica que os inclua não como finalidade, mas como estágio a ser transposto.
Resumo _Unidade I
 
Nesta unidade, envidamos esforços para cercar um conceito de leitura que nos oferecesse um caminho produtivo na tarefa de ensinar crianças e jovens a se tornarem leitores.
Recuperamos os estudos de Jolibert que diferencia uma leitura decifradora de uma leitura questionadora, sendo a segunda, característica de um leitor que já possui autonomia para, num embate com o texto, assumir uma  postura permeável aos efeitos da linguagem, que permita operar com ela e sobre ela.
Estudamos ainda as operações mentais e linguísticas que a leitura, nesse sentido, envolve. Buscando nos aproximar da prática com o trabalho de leitura, recuperamos de Geraldi os diferentes posicionamentos que podemos assumir diante de um texto dependendo do objetivo de leitura que nos move.
Por fim, estudamos as estratégias de leitura de que um leitor autônomo pode servir-se para otimizar seu próprio ato de ler.
  
Referências bibliográficas
GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1984.
JOLIBERT, Josette. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
RIOLFI, Claudia et al. Ensino de língua portuguesa. São Paulo: Thomson Learning, 2008.
SÃO PAULO. Referencial de expectativas para o desenvolvimento do comportamento leitor e escritor no ciclo II do Ensino Fundamental. SME/DOT, 2006. 
Aula 13_Da quantidade à qualidade
   
Já temos desenhado o cenário de que somos personagens. Já identificamos inimigos, aliados e elementos neutros que podem servir para o bem ou para o mal, dependendo da postura que assumimos diante deles. E temos uma pergunta que não quer calar, que retomamos aqui, como mote para essa aula: 
Diante dos textos simplistas que, em sua lógica de produção, mais se aproximam do fazer televisivo do que do fazer literário, o que fazer quando esses constituem o material de que o professor dispõe para trabalhar? O que fazer se esse é o tipo de texto que o nosso aluno lê e gosta?
Associando os textos que se apresentam e o papel daquele que ensina a ler, podemos ressaltar, baseados nos estudos de Magnani (2001), dois aspectos:
  
A profunda diferença que há entre aprender a ler ou formar o gosto. (ou nas palavras de Dona Benta, personagem de Monteiro Lobato:Entre comer e saber comer, a diferença é apreciável...).
O processo de aprendizagem pressuposto na passagem da quantidade de leitura para a qualidade de leitura.
  
Imbuídos destas tarefas, ao professor cabe adotar uma prática educativa que lhe permita uma interferência crítica na prática leitora do leitor-aprendiz. Em outras palavras, o professor deve forjar uma ação pedagógica que permita romper com o que já está estabelecido em termos de leituras possíveis no universo do seu aluno, propondo assim novas buscas que caracterizem avanço, dando-lhe a possibilidade de sair do lugar de alguém que é capaz de ler muitos textos simples para ocupar o lugar de um leitor que sabe como lidar com as complexidades lingüísticas de textos mais sofisticados.
Ainda nessa direção, Magnani defende que a formação de leitor comprometida com a qualidade passa também pela diversidade, no que diz respeito à seleção e utilização dos textos. 
  
O trabalho com diversidade pode incluir textos com diferentes graus de complexidade, assim como o trabalho com diferentes gêneros textuais, num estudo crítico e comparativo que possa permitir ao aluno o exercício de uma leitura significativa para que tome contato com os diversos níveis de composição do texto. (cf. Jolibert; Unidade I, Aula 4)
Aula 14_Pontos de partida... Linha de chegada
    
O trabalho com diversidade demanda a escolha de um ponto de partida, um marco zero de onde se inicia o trabalho de alargamento dos horizontes do nosso leitor-aprendiz.
É neste estatuto que entram, no ensino da leitura, os textos dos quais os alunos “gostam”.  Estestextos devem entrar como ponto de partida para a reflexão, a análise e a comparação com outros textos. Este trabalho pode ser feito com os mais diversos tipos de textos: de literatura, histórias em quadrinhos e até mesmo programas televisivos, se considerarmos que este é um tipo complexo de texto, que mescla diferentes tipos de linguagem (a verbal, a visual, a musical).
Na seleção deste ponto de partida, é importante identificar o que esses textos têm para que sejam apreciados pelos alunos. É necessário identificar quais os elementos que os fazem textos aprazíveis aos jovens leitores e partir desses itens para a realização de estudos críticos e comparativos baseados na diversidade.
É esse procedimento que permitirá ao professor (e, conseqüentemente, ao seu aluno) fugir da trivialização, do texto “arroz-com-feijão”, daquilo que já é exaustivamente conhecido e “transportar o leitor, através da luta pela busca de significados (...)” (p.93)
Magnani ensina acerca deste trabalho crítico-comparativo:
  
Assim, o estudo crítico e comparativo do texto como um todo (condições de emergência, utilização, funcionamentos conforme e disfuncionamentos) se apresenta como uma forma de desmistificar e desautorizar modelos; de recuperar o prazer de saber que há muitos jeitos de ler e escrever e que não são casuais; de perceber que o prazer não se compra em lojas, nem é automático, mas depende da emoção e da percepção mais ou menos clara do trabalho particular de linguagem e de formas, e tampouco é incompatível com o saber; que a literatura é também novidade e ruptura e só será agente de transformação na medida em que for resultado e lugar de transformação. (p. 93-4)
  
Agora, já estamos em condições de aproximar as reflexões de Magnani, às de Pennac e Jolibert.
Quando Magnani propõe o trabalho com o texto como um todo, podemos entender: nos termos matizados por Jolibert que dirige ao texto um olhar em camadas devidamente interativas e se refere ao prazer advindo do reconhecimento de um trabalho específico de linguagem, recupera, em certa medida, o que poeticamente Pennac sinaliza em seu texto: uma leitura que não só “enche a barriga”, mas deixa marcas em seu leitor, uma vez que demanda dele, implicação para construção de sentidos.
  
É essa a linha de chegada que um trabalho comparativo e diversificado deve ambicionar.
Aula 15_Forma ou conteúdo?
   
Diante de tantas exigências necessárias a um ensino de leitura que privilegia o contato do aluno com textos de qualidade, coloca-se a questão “Como, então, selecionar um bom texto para o trabalho com os alunos? O que seria um texto de qualidade? Que critérios utilizar na seleção de peças escritas que atendam às necessidades de ensinar a ler e formar o gosto?
Este será o tema desta unidade.  
Dentre os critérios que iremos discutir, colocamos em primeiro lugar uma pergunta sobre o que devemos privilegiar em um texto, sobretudo no Ensino Fundamental: forma ou conteúdo?
Posto que a produção literária no Brasil iniciou-se com a literatura religiosa, durante muito tempo a literatura esteve impregnada de um caráter didático-pedagógico, no sentido de que, pretendia, através de suas palavras, transmitir os valores morais e os bons costumes.
Alguns escritos classificados como literatura infanto-juvenil parecem ir na esteira dessa concepção. Isso fica muito claro quando observamos que, em alguns destes textos, há uma preocupação muito maior com os conteúdos veiculados do que com a sua constituição enquanto peça de linguagem.
A infantilização na abordagem dos temas e a linguagem extremamente simplificadas são largamente utilizadas em textos que privilegiam uma mensagem “politicamente correta”, que visa a ensinar algo ao leitor-aprendiz, indivíduo em formação.
Esse procedimento nada tem a ver com o que Magnani chama de literatura como agente de transformação, uma vez que essa transformação só ocorrerá no percurso realizado pelo sujeito em demover sentidos já postos e encontrar novos sentidos possíveis a partir do olhar sobre as marcas textuais que revelam, em certa medida, o processo pelo qual foram concebidos.
Textos desse tipo constituem, ainda, verdadeiras barreiras ao desenvolvimento de um leitor questionador, já que os sentidos, em regra, são dados. Além disso, pela ausência de desafios, esses escritos podem representar um desserviço na formação do gosto, pois correm o risco de se tornarem desinteressantes, tanto do ponto de vista da temática, quanto por conta de seu caráter simplista.  
Reproduzimos, a seguir, um texto presente no mercado editorial e integrante do acervo de muitas bibliotecas e salas de leituras de nossas escolas:
 
Vamos abraçar o mundinho[1] 
Era uma vez um mundinho...
...que vivia muito feliz.
Nele moravam muitos homenzinhos que viviam de bem com suas florestas, animais, rios e oceanos.
Eles eram unidos e cuidavam do mundinho.
Sabiam a importância da preservação e sempre descobriam novas maneiras de protegê-lo.
Aprenderam que o progresso deve ter limites: o que podiam e o que não podiam fazer.
Todos os seres vivos precisam de água para sobreviver. Sabendo disso, os homenzinhos não deixaram poluir as águas do mundinho e economizaram água fechando a torneira.
Para economizar energia, durante o dia usavam a luz do sol. Não se esqueciam de desligar as coisas depois de usá-las e de apagar a luz na saída.
Os homenzinhos eram muito felizes, pois o mundinho lhes dava tudo. Assim, pensaram numa forma de retribuir sua gratidão. Plantaram árvores nas ruas, parques e praças, para melhorar a qualidade do ar.
Proibiram a circulação de carros e caminhões com motores desregulados: suas fumaças são terríveis!
Evitaram também a queima de lixo, de florestas, de carvão e de petróleo.
No mundinho, os homenzinhos eram amigos dos animais. Ao invés de matar, capturar ou comercializar, eles criavam parques e reservas naturais para que os animais vivessem felizes e livres.
Os homenzinhos sempre achavam soluções inteligentes para manter o mundinho limpo e saudável.
Um dia tiveram uma grande idéia: reciclar o lixo, pois grande parte dele é sucata.
O trabalho começava na casa de cada um. Separavam o lixo – papel, plástico, metal e vidro – para depois encaminhá-lo ao local onde seria reciclado.
Nas escolas e em locais públicos colocaram grandes lixeiras coloridas, cada cor para um determinado material. Todos participavam da coleta e separação do lixo, ou melhor, da coleta seletiva.
Os homenzinhos divertiam-se criando novos objetos com garrafas plásticas, latas, caixas e vidros usados.
As cascas de frutas e legumes serviam de adubo para a terra.
Com essas simples atitudes, a quantidade de lixo do mundinho diminuía e, com ela, a poluição do ar, da água e do solo.
Economizaram-se energia, água e material, evitando o desmatamento e o desequilíbrio ecológico.
O mundinho ficou ainda mais feliz e sentiu o quanto os homenzinhos o amavam.
Cada um ajudava um pouquinho...
...E isso era como um grande abraço!
  
Chegamos, assim, ao ponto de podermos formalizar um primeiro critério (ou “não-critério”) na tarefa de seleção de textos que corroborem com a concepção de leitor e de leitura que estamos defendendo. O conteúdo ou a mensagem veiculada por um texto jamais deve ser privilegiada em detrimento ao trabalho artístico com a linguagem, como matéria-prima do texto escrito.
   
[1] BELLIGNHAUSEN, Ingrid Biesemeyer. Vamos abraçar o mundinho. São Paulo: DCL, 2002.
Aula 16_Um contraponto
   
Nesta aula, pretendemos oferecer um contraponto às discussões realizadas na aula anterior.
Se um texto deve ser selecionado, em primeiro lugar, pela sua qualidade enquanto peça de linguagem (e não como ferramenta didática para “passar uma mensagem”) pergunta-se: é possível servir-se desse critério para encontrar textos com qualidade estética no acervo de literatura infanto-juvenil disponível em nosso mercado editorial?
 
Acreditamos que sim e oferecemos um exemplo, sobre o qual empreenderemos uma breve análise a seguir:
 
Aparências enganam[1]
Um ratinho,ainda boboca,
Aventurou-se da toca
A passear pelo quintal.
E pra casa, afinal,
Para a mãe voltou, ligeiro,
O ratinho aventureiro;
E contou, todo excitado,
O que havia observado
– Sabe, mãe, na minha frente
Vi dois bichos diferentes.
Um bonzinho, outro mau,
Lá no meio do quintal.
O malvado, ai que horror!
Era muito assustador:
Pernas pretas, coque rubro,
Olho bravo, arregalado,
Um nariz de gancho horrendo
E um berro esgoelado!
Eu de susto quase estalo!
– Pois te enganas – aliviada,
Disse a mãe: – Esse era um galo,
E o galo não faz nada!
E o outro? Vai contando,
Como era? – Era mansinho,
Estava quieto, murmurando,
Esquentando-se ao solzinho.
A pelagem ele tinha
Branca-e-preta e macia,
E lambendo a patinha,
Calmo, o rabo ele mexia.
– És bobinho, meu filhote –,
Disse a rata – aquele era –
(sorte que não deu um bote!) –
Era o gato, uma fera!
Aparências enganam!
Gato é nosso perigoso
Inimigo! E tu, agora,
Filho – sê mais cauteloso!
  
Estamos diante de um texto que podemos classificar como sendo infantil, que transmite uma mensagem positiva, mas que não relega o trabalho linguístico a um segundo plano. Em primeiro lugar, observamos que estamos diante de uma narrativa que é, no entanto, escrita em forma de versos. A opção por essa forma textual representou um ganho em pelo menos dois aspectos:
o ritmo que a estrutura confere à leitura e
a criação de um espaço para o trabalho sonoro com as palavras.
  
A escolha das palavras também não é vã e conduz o leitor a um engodo que é desfeito apenas ao final do texto. O gato, animal que representa perigo, é descrito por palavras marcadas pela afetividade e pela docilidade. O uso do diminutivo colabora na construção dessa imagem. Em contrapartida, o galo, que ao rato não representa qualquer ameaça, é descrito por palavras que inspiram algo ameaçador. Essa escolha não só enriquece o texto, como captura o leitor que se vê convocado a ler o texto até o final para apreender um sentido que não lhe é dado “de bandeja”.
Além disso, a maneira como as falas do rato filho e da rata mãe também merecem destaque. O uso da segunda pessoa, tu, por ser arcaico no português do Brasil, coloca a mãe como detentora de um conhecimento mais antigo, o que consolida a imagem dela enquanto personagem experiente, assim como o uso dos vocativos “Filho”, “meu filhote”, reforçam também a ideia de conselheira.
Textos como esse demonstram que é possível realizar uma escolha que privilegia a qualidade estética do texto, mesmo quando o público-alvo são crianças bem pequenas, desde que tenhamos um olhar apurado para seus elementos constituintes e sensibilidade na condução da leitura dos mesmos com os pequenos. 
[1] BELINKY, Tatiana. Aparências enganam. São Paulo: Cortez, 2004.
Resumo_ Unidade II
 Essa unidade foi dedicada à reflexão sobre a formação do gosto em um leitor aprendiz. Buscamos diferenciar as tarefas de ensinar a ler e a de formar o gosto, usando a metáfora da gastronomia que permeou nosso raciocínio.
Nessa empreitada, recuperamos o ensaio de Daniel Pennac que, com poesia e sensibilidade, convida a uma reflexão sobre o assunto. Destacamos, do pensamento deste autor, o processo de simplificação de leituras a que nossos jovens têm sido submetidos pelo contato com meios de comunicação que funcionam nessa lógica.
Trouxemos também para nosso estudo, o trabalho de Magnani, extraindo dele, alguns aspectos básicos, a serem considerados em uma prática que vise forjar no leitor o gosto estético do texto escrito: o uso de textos mais “palatáveis” como ponto de partida, a diversificação na oferta de textos aos alunos e um estudo crítico-comparativo do texto.
Esses aspectos corroboram para a transposição de “níveis” de leitura: do texto simples e de “fácil digestão” a textos mais complexos, do ponto de vista estético.
  
  
Referências Bibliográficas
JOLIBERT, Josette. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
MAGNANI, Maria do Rosário M. Leitura, literatura e escola. Subsídios para uma reflexão sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PENNAC, D. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
Aula 17_O texto literário e suas especificidades - I
   
Tendo observado, em aulas anteriores, duas possibilidades de textos e de trabalho em sala de aula, cumpre formalizar quais seriam as características pelas quais podemos reconhecer um texto de valor literário e refletir sobre as vantagens de trabalhar com uma peça deste tipo.
A primeira característica que gostaríamos de ressaltar é a que confere também ao trabalho com esses textos um caráter desafiador.
Em meio à lógica absolutamente utilitarista, é difícil convencer nosso jovem público acerca do valor de um texto que, assim como as demais manifestações artísticas, serve em primeira instância “ao puro gozo do corpo” (RIOLFI et al, 2007). Assim é o texto literário: desprovido de objetivos diretos, sua função é expor o ser-humano às possibilidades de trabalho com a faculdade que o diferencia dos demais animais, ou seja, a possibilidade de fazer arte com a linguagem. 
Não negamos, porém, a possibilidade de que um leitor, a partir da leitura de um texto, experiencie um novo olhar acerca de determinada questão ou aspecto do mundo/humanidade. Porém, essa experiência será singular a cada leitor e só será possível mediante a articulação de seus conhecimentos prévios com o texto que lê.
 
Por isso é que se diz que o texto é um sistema semi-aberto de significação e que depende do leitor para “fechá-lo” desta ou daquela maneira. Considerando isso, considerando que cada leitor é um sujeito, único, e que não é possível prever todos os leitores possíveis de um texto, podemos afirmar que a literatura tem seu valor  “enquanto objeto de múltiplos significados”, não possuindo assim, um “valor quantificável e claro.” (op.cit)
 
Além disso, entendo o texto como produto de linguagem. Sua fruição demanda a disposição para deter-se no jogo de palavras que constituem determinada peça escrita; num exercício de análise que vai para além de reconhecê-la como integrante de determinado gênero textual, mas compreender a peça em sua tessitura, assim como na sua relação com os contextos (de situação ou de produção), primeiro nível a ser considerado em uma leitura. (cf. Jolibert)
Aula 18_O texto literário e suas especificidades- II
 
Sobre o texto literário e suas especificidades, para melhor clareza, observemos um exemplo: 
 
TORTA DE CEBOLA PARA PRENDER NAMORADO
Minha avó já dizia
que homem se prende
é pela boca
os tempos estão mudados
hoje são muito diferentes
os namorados
mas pelo sim pelo não
vai neste poema uma torta
caprichada
faça a massa com farinha
manteiga uma gema de ovo
e de sal uma pitada
depois corte um quilo
de cebolas graúdas
(aproveite para chorar antigas
mágoas esquecidas)
ponha margarina na panela
e deixe a cebola dourar
bata três ovos inteiros
e despeje tudo lá dentro
ponha queijo ralado
alguns segredos delicados
e bastante noz-moscada
assim está pronto o recheio
agora é só assar em forno brando
e servir bem quente com muitos
beijos e vinho branco.
 
Este é um poema da carioca Roseana Murray, evidenciando o que dissemos em relação à circunscrição de um texto a um determinado gênero e ao significado que ele adquire quando observamos o seu papel na relação com outros textos que circulam na cultura e com relação a sua própria construção interna.
“Torta de cebola para prender namorado” apresenta características formais de um texto poético, porém traz em si elementos típicos do gênero receita.
Apenas para exemplificar recuperamos o trecho em que se observa o emprego da palavra chorar (depois corte um quilo/de cebolas graúdas/(aproveite pra chorar/antigas mágoas esquecidas).
Diferentemente de uma receita convencional em que as palavras são usadas da maneira menos ambígua possível, a poetisa aqui se vale justamente da multiplicidade de sentidos que um vocábulo porta. Chorar refere-se ao lacrimejar (conseqüência docontato com as substâncias ácidas da cebola) e ao lamentar, lastimar. Esse é um dos elementos que nos permitem, por exemplo, concluir que para prender um namorado não basta possuir os dotes de uma mulher prendada, mas é preciso também deixar para trás antigas mágoas.
Trata-se, enfim, de uma “receita poética” ou de um “poema-receita”?
Trata-se do fenômeno de relativização do gênero. Sobre ele, Orlandi (1999) ensina que “faz parte da estratégia de leitura levar em conta o tipo, não de forma estanque, mas na sua relação com o funcionamento discursivo”, ou seja, uma análise que se preocupa apenas com as características formais de um texto não dá conta de abarcar seus sentidos possíveis.  
É justamente por esses motivos que o olhar sobre um texto literário sob a perspectiva de uma leitura questionadora não deve ser o “o que o texto diz”, mas “como o texto diz”, de modo que aquele que frui o texto interaja com ele, buscando recuperar pelas marcas linguísticas parte do percurso de sua criação, onde reside todo o diferencial de um texto repleto de trabalho com a linguagem.       
Aula 19_Afinal,o que é literatura infanto-juvenil?
            
Ao longo dessa disciplina já discutimos os aspectos pertinentes à formação do leitor, assim como concepções de leitura e de texto. Resta-nos direcionar nosso olhar para a Literatura Infanto-Juvenil, sabendo que, a partir disto, podemos enriquecer o nosso trabalho, enquanto professores, uma vez que as transformações sofridas por esse gênero, ao longo dos tempos, trazem em seu escopo mudanças de perspectiva a respeito da infância, das relações humanas e da Educação.
Faz-se necessário um recuo histórico, na tentativa de delimitar o gênero (afinal de contas, o que podemos colocar no conjunto “Literatura infanto-juvenil) e compreender em que circunstâncias teria surgido a necessidade de circunscrever um tipo específico de leitura às crianças e jovens.
Recuperamos aqui os estudos de Magnani (2001) acerca do tema da literatura infanto-juvenil[1].
Em primeiro lugar, é interessante tentarmos compreender o verdadeiro sentido que o sintagma “infanto-juvenil” compreende e que ideologias ele carrega.
 
O termo literatura “infanto-juvenil” designa, concomitantemente, três aspectos:
um lugar de circulação, a saber, o ambiente escolar;
um modo de circulação, uma vez que este tipo de literatura é feita com o objetivo de ”despertar o gosto pela leitura” (e não com um fim direto, como apreensão de informações, aprovação em processos seletivos, entre outros); e
um público, uma faixa etária consumidora.
 
Se considerarmos tão somente esses aspectos, já estamos diante de uma grande especificidade do texto infanto-juvenil em relação às demais peças de Literatura que, minimamente, não são escritas com tanta precisão no que diz respeito ao público a ser atingido, a um local de circulação e um “objetivo subjetivo”, que é a formação do gosto (por mais paradoxal que essa formulação possa parecer).
 
Essa especificidade acarreta também num modo específico de ler. A existência de um tipo de literatura com objetivos tão restritos demanda do sujeito que a lê uma leitura também bastante direcionada: a “leitura da literatura infanto-juvenil”. (p. 48)
 
Outra característica importante da literatura infanto-juvenil é a fluidez na divisão entre o que se direciona ao jovem e à criança, hoje mais definida, mas que foi incerta, durante muito tempo. Isso se explica pelo fato de que o desenvolvimento da literatura Infanto-juvenil sempre caminhou lado a lado com os estudos sobre a infância e adolescência (realizados pela Psicologia e Pedagogia), marcados por constantes reformulações acerca dos limites que marcavam o fim de uma fase da vida do indivíduo e o início de outra. Assim, a linha que dividia jovens e adultos não tinha uma rigidez ou era constantemente recolocada.
 
Além disso, estamos diante de um gênero que sofre constante enviasamento por parte do adulto, em todos os seus aspectos. É o adulto quem produz os textos tanto em sua produção, bem como é ele o responsável pela sua difusão ou seleção, tanto na escola, quanto no seio da família.
  
Assim, o adulto ocupa uma posição de autoridade, já que só chega à criança o que passa pelo seu julgamento, o que confere a este tipo de literatura um caráter fortemente pedagógico, ou seja, de uma literatura que pretende ensinar algo.
 
 
 
 
[1] Todo conteúdo desta unidade tem como fio condutor os estudos de Magnani (2001) – Cf. Ref. Bibliográficas
Aula 20_Um recuo histórico
 
Voltemos agora o nosso olhar para o momento da gênese de uma literatura infantil...
O cenário é a Europa. Os personagens, a burguesia em ascensão.
 
O surgimento da literatura infantil coincide com uma nova concepção de criança e infância que começava a se formar, assim como a institucionalização da educação, como uma maneira de salvaguardar as crianças burguesas das promiscuidades da vida.
 
A família burguesa se recolhe “ao aconchego do lar” e assume a responsabilidade de formação de suas crianças como futuros cidadãos, tanto do ponto de vista moral, como do ponto de vista espiritual. “A educação torna-se, então, verdade e necessidades universais” (p. 48)
 
A educação formal escolar surgiu, marcada por influências religiosas e moralizantes, com o objetivo de manter a criança reclusa e protegida da promiscuidade da vida social. Assim, a infância passa a ter outro estatuto: passa a ser vista com interesse psicológico e com uma preocupação moral.
 
Os trabalhos de Rousseau, entre outros, procuravam dar conta de compreender e descrever, teorizando e sistematizando, as aquisições das diversas habilidades na infância e o desenvolvimento das crianças, conferindo a elas um estatuto de indivíduos que tinham o direito de serem compreendidas, mais do que estudadas. (Rousseau)
 
Esse cenário que se desenhava, delineava também um novo público consumidor, em função do qual, “alteravam-se costumes, brinquedos, roupas e também a criação cultural”, (p. 49) inclusive, a literária. É o nascimento da literatura infanto-juvenil.
 
Neste primeiro momento, porém, não é possível falar em uma produção dirigida especificamente à clientela infantil. Dom Quixote de la Mancha,Robinson Crusoé e As Viagens de Gulliver são exemplos de obras que, apesar de terem sido escritas para um público adulto, encontraram boa acolhida entre as crianças e, ainda hoje, freqüentam as escolas, mesmo que de forma fragmentada ou em adaptações.
 
Deste momento histórico surgem as compilações de narrativas colhidas na tradição oral, dentre as quais podemos citar as realizadas por La Fontaine e Charles Perrault, textos que, efetivamente, fundaram a literatura infanto-juvenil e, agora, sim estamos em condições de usar essa denominação de maneira apropriada.
  
Para estudar essas obras, dedicaremos as próximas aulas, dada a sua importância como marco zero do gênero.        
Aula 21_Contos de fadas:marco zero da Literatura Infantil
  
Como marco-zero da Literatura Infantil no cenário mundial, os contos de fadas merecem que façamos uma pausa em nossa linha do tempo para observá-los com mais vagar.
  
Além de sua importância histórica, os contos de fadas foram objetos de muitos estudos em diversas áreas de conhecimento que levaram em conta vários de seus aspectos interessantes aos estudos literários, psicanalíticos e pedagógicos. Fora isso, os contos de fadas (e os contos maravilhosos, de um modo geral) resistem à passagem do tempo, não raro, são textos caros aos programas de ensino de leitura, além de parecerem nunca sair do gosto de pais e professores e de continuarem fazendo sucesso entre as crianças.
  
O primeiro registro de contos de fadas foi feito por Charles Perrault, no século XVII, na França. O francês recolheu oito histórias da memória popular. Sob o título de Contos da mãe gansa, encontravam-se as seguintes histórias: A Bela Adormecida no Bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, Cinderela (ou A Gata Borralheira), Henrique do Topetee O Pequeno Polegar.
  
Na mesma época, Jean de La Fontaine dedica-se a recolher e compilar fábulas – pequenas narrativas com uma função moralizadora. La Fontaine, porém, diferente de Charles Perrault, não se restringiu a consultar apenas a memória popular, antes se dedicou a recuperar essas fábulas em fontes documentais da Grécia e Roma Antigas (Esopo e Fedro, respectivamente). La Fontaine é considerado  o responsável pelo fato de o mundo culto contemporâneo conhecer as fábulas, marcadas, sobretudo, pelo anonimato e pela atemporalidade, uma vez que suas “lições”, já que representam reflexões sobre a essência do comportamento humano, não envelhecem.
 
 No entanto, a constituição da literatura infantil, propriamente dita, deu-se apenas um século depois (século XVIII), na Alemanha, com as pesquisas linguísticas realizadas pelos Irmãos Grimm. Filólogos de formação, os irmãos buscavam determinar a autêntica língua alemã, recorrendo para tanto ao recolhimento de narrativas tradicionais ainda presentes na memória popular e transmitidas oralmente. Muitos desses contos, originalmente, eram carregados de crueldade e finais não tão felizes, o que levou os Grimm, imbuídos do espírito cristão que começava consolidar o Romantismo alemão e cedendo à crítica de alguns intelectuais da época, a reformularem as narrativas que compunham sua coletânea. Esse episódio foi fundante na constituição da Literatura Infantil, tal qual a conhecemos hoje.
  
No âmbito dos contos de fadas, não poderíamos deixar de fazer menção a Hans Christian Andersen que, no início do Romantismo (século XIX), completa o acervo da Literatura Infantil Clássica. Sua coletânea parece carregar o mote de que a vida é “um ‘vale de lágrimas’ que cada um tem de atravessar para alcançar o céu” (COELHO, 2003). Como a voz que falava as crianças na transmissão de padrões de comportamento, alguns valores ideológicos são facilmente identificáveis nas histórias contadas por Andersen.
 
A seguir, para nosso conhecimento, reproduzindo a sistematização de alguns deles, proposta por Coelho (2003; 25-6):
 
	VALORES
	HISTÓRIAS
	Defesa dos direitos iguais, pela anulação das diferenças de classe.
	·         A Pastora
·         Limpador de Chaminés
	Valorização do indivíduo por suas qualidades próprias e não por seus privilégios ou atributos sociais.
	·         O Patinho Feio
·         A Pequena Vendedora de Fósforos
	Ânsia de expansão do Eu, pela necessidade de conhecimento de novos horizontes e da aceitação de seu Eu pelo outro.
	·         O Sapo
·         O Pinheirinho
·         A Sereiazinha
 
	Consciência da precariedade da vida, da contingência dos seres e das situações.
	·         O Soldadinho de Chumbo
·         O Homem das Neves
	Crença na superioridade das coisas naturais em relação às artificiais.
	·         O Rouxinol e o Imperador
	Incentivo à fraternidade e à caridade cristãs; à resignação e à paciência com as duras provas da vida.
	·         Os Cisnes Selvagens
·         Os Sapatinhos Vermelhos
	Sátira às burlas e às mentiras usadas pelos homens para enganarem uns aos outros.
	·         Nicolau Grande e Nicolau Pequeno
·         A Roupa Nova do Imperador
	Condenação de arrogância, do orgulho, da maldade contra os fracos e os animais e, principalmente, contra a ambição de riquezas e poder.
	·         A Menina que Pisou no Pão
·         Nicolau Grande e Nicolau Pequeno
·         Os Cisnes Selvagens
	Valorização da obediência, da pureza, da modéstia, da paciência, do recato, da submissão, da religiosidade, como virtudes básicas da Mulher.
	Ideal patente em todos os contos, confirmando o ideal feminino de consagrado pela tradição: pura/impura, bruxa/fada, mãe/madrasta.
Aula 22_A Psicanálise dos Contos de Fadas
  
Como já afirmamos anteriormente, os contos de fadas foram (e ainda são) objetos de estudos e inquietação de diversas áreas de conhecimento humano. Dentre os diversos estudos realizados sobre este tipo de texto, merecem destaque, as abordagens psicanalíticas.
 
O trabalho com arquétipos e a noção de inconsciente coletivo advindos da psicanálise junguiana, assim como a abordagem freudiana acerca dos sonhos e da sublimação têm sido bastante produtivas nas discussões sobre a literatura infantil, principalmente no que diz respeito a sua faceta maravilhosa.
 
Dentre os estudiosos da literatura infanto-juvenil, especialmente das narrativas maravilhosas, parece haver uma adesão maior aos preceitos junguianos, uma vez que os trabalhos de Freud consideram o sujeito em sua individualidade. Os seus seguidores envidam esforços no sentido de estudar a possível influência da simbologia dos contos de fadas em pacientes tratados em clínica. Jung, por sua vez, considera sonhos e contos de fadas como representações de acontecimentos psíquicos, sendo estes de natureza coletiva, uma vez que se constitui de material comum a todos os homens, enquanto aqueles são de natureza singular, pessoal, não compartilhável.
 
Foi, no entanto, um trabalho de perspectiva freudiana, que se tornou um dos trabalhos mais conhecidos, nesse sentido: o do psicólogo infantil Bruno Bettelheim. Seu livro, “A Psicanálise dos Contos de Fadas”,  surge como um relato da sua experiência clínica com crianças com perturbações graves, acompanhadas por ele. Em sua prática, o psicanalista passou a utilizar os contos de fadas como uma ferramenta na tentativa de auxiliar as crianças ao que ele chamou de “restaurar um significado na vida delas” (p. 12). Segundo ele, “os contos de fadas representam, sob forma imaginativa, aquilo em que consiste o processo sadio de desenvolvimento humano, e como os contos tornam tal desenvolvimento atraente para o engajamento da criança nele.” (p. 20)
Bettelheim trabalha com o princípio freudiano da identificação, definido da seguinte maneira por Chemama: “Assimilação de um eu estranho, resultando que o primeiro se comporta como o outro em determinados pontos de vista, que ele limita de alguma forma, e que acolhe em si mesmo, sem se dar conta disso.” (CHEMAMA, 1995, 102)
 
Ou seja, trata-se de um processo inconsciente, pelo qual alguém “se mira” exageradamente em outro eu (que não o seu próprio) de modo a assumir traços alheios, como se fossem seus. Este mecanismo que pode ter facetas “para o bem ou para o mal” é aquele de qual Bettelheim se serve no trabalho com os contos de fadas. Para ele, a criança, tomando contato com essas histórias, identifica-se com os personagens que a compõem, tomando posteriormente para si (e de modo inconsciente) os valores que ele – o personagem – carrega em si. O “ensinamento” dos valores se dá, então, de maneira indireta, já que a criança se identifica a este ou àquele personagem e não ao certo ou ao errado, ao moral ou ao imoral.
  
Magnani (2001) faz algumas ressalvas ao trabalho de Bettelheim, mas reconhece que “esse autor levanta problemas que, de uma forma ou de outra, se encontram presentes na acomodação da literatura infanto-juvenil ao desenvolvimento dos estudos teóricos sobre a infância e a adolescência.” (p. 52).
Resumo_Unidade III
Nesta unidade, tratamos da necessidade de apresentarmos ao aluno, aprendiz de leitor, textos aos quais ele não está acostumado, visando à formação do gosto e à ampliação do acervo cultural.
Reconhecendo que o professor tem papel fundamental neste processo, uma vez que, na escola, ele é um dos responsáveis pela escolha dos textos que chegam às mãos dos alunos, discutimos os critérios que devem nortear esta seleção, considerando que o texto que pode ser circunscrito no conjunto dos textos literários é aquele que apresenta maiores possibilidades de trabalho, de acordo com a concepção de leitura já discutida no início do curso.
Ressaltamos como características importantes a contraposição da literatura à lógica utilitarista a qual estamos subjugados e à primazia do jogo das palavras sob o tipo, na construção dos sentidos.
Os textos trazidos como exemplos visaram a demonstrar algumas possibilidades de trabalho, ainda quecom crianças bem pequenas, sem que se descarte, no entanto, o papel mediador do professor nessas leituras.
  
 
 
Referências Bibliográfica
RIOLFI, Claudia et al. Ensino de língua portuguesa. São Paulo: Thomson Learning, 2008.
Aula 23_O útil ao agradável: uma dicotomia
  
Depois de uma parada estratégica para observamos mais atentamente os contos de fadas, enquanto fundadores de uma literatura infantil, e as consequências deste gênero até os dias de hoje, podemos retornar a uma análise das características da literatura produzida para as crianças.
 
Até o surgimento da literatura infantil enquanto gênero, com a compilação dos Irmãos Grimm, era considerado um gênero menor ocupado por escritores de talento inferior.
 
Este início marcado pela tradição popular e folclórica é contagiado pelo traço mitológico que traz em seu escopo aspectos importantes, quais sejam: a iniciação ao gozo estético ou a possibilidade de encontrar prazer no ato de apreciar uma manifestação artística ou do prazer gratuito ligado ao lúdico.
 
Em contrapartida, a esse início que mescla o popular e o infantil reforça a preocupação com uma fuga da promiscuidade cultural. É aí que passam a circular entre as crianças os textos clássicos em versões adaptadas ou em fragmentos, visando à propagação das virtudes.
 
É, ainda, marca característica das origens da literatura infantil uma preocupação em conciliar o útil ao agradável, tendo a utilidade primazia sobre o prazer, neste binômio. Com o tempo, porém, esse binômio se inverte, acompanhando os conceitos burgueses de prazer que passam a preocupar-se com a ludicidade da leitura. 
 
Com essa inversão, fica em situação de prioridade o prazer burguês, caracterizado pela efemeridade, pois é momentâneo e perecível. É nessa medida que a literatura infantil passa a dialogar com a lógica capitalista do consumo. Esclarecendo: podemos dizer que se a sua função primeira passou a causar prazer em quem lê e que esse prazer é efêmero e precisa ser imediatamente substituído por outra experiência prazerosa, o leitor ocupa então o lugar de ávido consumidor.
 
Magnani (2001) esclarece que, equilibrando essa dicotomia, porém, “o discurso literário se desloca para a manifestação retórica da linguagem, procurando comover, numa especulação empobrecedora da tendência infantil à fabulação e à percepção sensorial do mundo, para convencer pela razão.
  
Retornando assim à gênese da literatura infantil, estes movimentos entre os termos do binômio útil/agradável ajudam-nos a compreender o perfil da literatura infantil contemporânea, que tende a direcionar para o bem, de forma racional, explicando os porquês e não permitindo que o leitor, num enfrentamento com o texto e sua instância simbólica, possa formular hipóteses de encaminhamentos para suas próprias questões e àquelas relativas ao mundo que o cerca.
Aula 24_Função e mimese
 
Para discutir a função da literatura infantil, Magnani (2001) recupera do ensaio de Antonio Candido, intitulado “O direito a literatura”,  a principal função da literatura – a “função humanizadora”, a função de “confirmar a humanidade do homem”, de onde derivam outras funções:
  
“satisfazer a necessidade universal de fantasia”;
“contribuir para a formação da personalidade”;
ser “uma forma de conhecimento do mundo e do ser”; e
exprimir o homem e depois atuar na própria formação do homem.
  
Magnani acrescenta à literatura, no caso da criança e do adolescente, a função do gosto e de identificação e, ainda refletindo sobre a função histórica e social da Literatura Infantil, evoca o conceito de mimese (imitação), cujas bases estão no pensamento de Aristóteles e Platão.
 
Platão, numa busca por um mundo livre das paixões e da concupiscência, alerta para a necessidade de uma seleção criteriosa das obras de ficção. Essa censura recai sobre as más obras, ou seja, principalmente aquelas que se constroem sobre a mentira, que se distanciam dos “modelos”, apresentando uma imagem, que o filósofo classifica como falsa, dos deuses e dos homens. Assim, defende que as primeiras leituras de um indivíduo devem ter preocupação de veicular o amor e a virtude. “Educar se torna, assim, para o filósofo meio eficaz para a correção da natureza do homem” e a literatura deve estar, então, a serviço deste propósito.
 
Aristóteles, por sua vez, tem uma concepção mais “materialista de arte como imitação da realidade”, distinta da ciência. Nesta perspectiva, compreende a Arte de maneira desconexa com a Moral e concebe uma poesia que, não necessariamente, serve a ideais pedagógicos.  Para ele, a poesia (a literatura enquanto arte) não precisa narrar as coisas como elas são, antes trabalha sobre a possibilidade, seguindo o princípio da verossimilhança.
 
Observando essas duas posições e a orientação que norteia a produção de livros para a escola e, conseqüentemente, a formação de leitores, percebe-se uma adesão ao pensamento platônico, pois essa literatura, assumindo uma função educativa, prima pelas utopias, mesmo que para isso seja necessária a desfiguração dos fatos adequando-os a modelos moralizantes.
 
Assumir essa posição coloca esse tipo de produção literária em lugar de risco duplo: o risco de imitar um falso mundo da criança e do jovem (uma vez que este é concebido do ponto de vista do adulto) e o de fracassar em sua pretensa função formativa, uma vez que se constrói sobre as leis adultas e capitalistas. Neste sentido, admite-se como verossímil apenas o que for verdadeiro e bom, com prejuízo do valor estético, que “se perde nas malhas da ética e das aparências” (p. 56)
  
Assim em sua gênese, quando a sociedade burguesa buscava salvaguardar-se das “promiscuidades da vida cultural”, a Literatura Infantil continuava sendo produzida sob a tendência de proteger o leitor das problematizações sobre a humanidade e o mundo, privando-a de sua função primeira enquanto literatura que, entre outras coisas, exprime o homem para depois atuar na sua própria formação, ou seja, ser agente de transformação. 
Aula 25_A trivialização do gênero
   
Nesta aula, discutiremos mais uma característica da Literatura Infantil contemporânea: a sua trivialização.
 
A literatura trivial (ou literatura de massa) encontrou sua origem na literatura francesa do século XIX, com o surgimento do folhetim.    
  
Eram romances publicados por partes, em rodapés de jornais, vendidos a preços baixos e com grande tiragem. O sucesso se deveu à forma mais racional de um novo veículo de comunicação para satisfazer às velhas necessidades de fantasia e ficção, agora as da burguesia triunfante. (p.57)
  
No Brasil, os principais representantes deste tipo de literatura foram Joaquim Manoel de Macedo, com o romance A Moreninha e José de Alencar, com a publicação de Diva. Outros autores, como o próprio Machado de Assis, serviram-se da publicação como alternativa às dificuldades de edição e impressão. Originalmente, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado nesses moldes, sem obtenção de sucesso junto ao público.
  
Isso demonstra que o que caracteriza a literatura trivial não se restringe ao tipo de suporte utilizado (no caso, o jornal), mas uma estrutura textual própria, desprovida de qualquer preocupação com a durabilidade e a consistência, e que visa tão somente a entreter a juventude de classe alta e, eventualmente, de classe média.
É no contexto das grandes tiragens que encontramos o germe da moderna indústria cultural.
  
E em que medida a literatura trivial pode ser relacionada à literatura infantil?
 
Na medida em que a produção literária a jovens e crianças, assim como a literatura de massa, passa a ter valor de mercadoria, produzida não como arte, mas em função de um público e das suas condições de uso. O leitor é encarado como um consumidor cujas demandas utilitárias e por prazer precisam ser atendidas.
 
O fato de a obra impressa passar a ser elemento fundamental no ambiente escolar corroborou para que este cenário de uma literatura trivializada se delineasse.

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