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AULA 6 Planejamento tributário e desconsideração da person- alidade jurídica Caro(a) aluno(a)! Ilustraremos nesta preleção questões relacionadas à teoria da desconsideração da personalidade jurídica com enfoque no planejamento tributário, chamando a sua atenção para alguns casos práticos que foram objeto de julgamento em âmbito administrativo e judicial, enunciando também exemplos colhidos da doutrina. 1. NOÇÕES PRELIMINARES Também relacionada ao uso abusivo do direito, está a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, conhecida no direito anglo-saxônico pela designação disregard of legal entity, ou lifting ou piercing the corporate veil. Essa doutrina originou-se nos países da common law, tendo migrado, posteriormente, para a doutrina e jurisprudência dos países da civil law. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 52 Quem primeiro se preocupou em estudar essa doutrina em nosso país foi o jurista Rubens Requião, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, com um artigo publicado no final da década de 1960, sob o título “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica” (Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 410, dez. 1969, p. 12-24). Por meio dessa doutrina, pretende-se impedir o uso ilícito ou abusivo da personalidade jurídica em detrimento de terceiros. Esta teoria consiste na possibilidade de, em determinadas situações, diante do abuso do direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para penetrar-se no seu âmago, alcançando as pessoas e os bens que se escondem debaixo de seu véu. Assim, quando se utiliza da pessoa jurídica com o objetivo de fugir às finalidades impostas pelo direito, o julgador pode desconsiderar a sua existência para, no caso concreto que lhe é submetido, responsabilizar os sócios (ou até outra pessoa jurídica) que pretenderem se esconder sob o manto daquela primeira. A pessoa jurídica é desconsiderada quando utilizada de modo ilícito ou fraudulento, seja para iludir credores, furtar-se a uma obrigação contratual ou fugir à aplicação da lei. Inicialmente a aplicação da doutrina em nosso país foi contestada, em especial em matéria tributária, pela inexistência de norma escrita preexistente autorizando o seu emprego. Dessa forma, a doutrina desenvolveu-se por meio de construção jurisprudencial. O instituto em foco foi expressamente reconhecido no Brasil no art. 20 do antigo Código Civil (Lei nº 3.071/16), que dispunha que “[...] as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros” (BRASIL, 1916). Dessa maneira, em princípio, os bens da pessoa jurídica não se confundem com os bens dos seus sócios. No entanto, essa distinção entre a pessoa jurídica e as pessoas que a compõe não pode ser considerada absoluta, havendo vários exemplos na nossa legislação em que ocorre uma limitação a tal distinção. A regra geral é de plena separação dos patrimônios das sociedades e de seus sócios. Entretanto, essa regra geral comporta algumas exceções. 2. EXCEÇÕES À REGRA GERAL DA SEPARAÇÃO PATRIMONIAL I – LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS a) Art. 158, da Lei nº 6.404/76, que dispõe, in verbis: Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto. (BRASIL, 1976). II – NO ÂMBITO DO DIREITO TRIBUTÁRIO Art. 135 do Código Tributário Nacional, in verbis: Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; [...] III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. (BRASIL, 1966). AULA 6 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 53 III – CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO Art. 2º, § 2º, da CLT – Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943: Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, construindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. (BRASIL, 1943). IV – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – LEI Nº 8.078, DE 11.09.1990 O art. 28 proclama pela primeira vez na legislação civil pátria a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, in verbis: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocadas por má administração. (BRASIL, 1990). V – CÓDIGO CIVIL VIGENTE Art. 50, in verbis: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios das pessoas jurídicas. (BRASIL, 2002). 3. CASOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PELA JURISPRUDÊNCIA I – JULGADO DA 8a CÂMARA DO 1o TRIBUNAL DE ALÇADA CIVIL DE SÃO PAULO QUE, EMBORA NÃO SE REFIRA À MATÉRIA TRIBUTÁRIA É DIGNO DE NOTA: [...] A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não visa anular o conceito de pessoa moral, ou coletiva, mas tem por objetivo desconsiderar, em determinados casos concretos e no resguardo de interesses de terceiros, a pessoa jurídica em relação às pessoas ou bens que atrás dela se ocultam. (1o TACIVL – SP – 8a Câm.; Ap. nº 353.867 – SP, rel. Juiz Celso Franco; j. 19.08.1986; v.u.). Em seu voto, assim se manifestou o relator deste acórdão: Existe, isto sim, apenas aparência de sociedade. Está ela só estruturalmente formada. Em outras palavras, unicamente a estrutura formal da pessoa jurídica é que está sendo utilizada. Não tem a empresa, na realidade, vida própria. Confunde-se, visivelmente, com a de seus sócios-apelados, bem assim também o seu patrimônio. Existe um abuso quando se trata, com a ajuda da pessoa jurídica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros. Supera- se, daquele modo, a forma externa da pessoa jurídica para alcançar as pessoas e bens que sob o seu manto se escondem. A investigação se situa, portanto, dentro da chamada concepção realista da pessoa jurídica, a qual entende que é possível e até obrigatório atravessar a cortina daquele conceito formal, que estabelece PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 54 uma radical separação entre a pessoa jurídica e os membros que a integram para julgar os fatos mais de acordo com a realidade, de maneira que permita evitar ou corrigir perigosos desvios na sua utilização. Em face da exaltação da pessoa jurídica como pura forma de organização, ganha terreno hoje em dia a idéia de que é necessário impor-lhe limitações de ordem moral e ética, como freios ante possíveis desvios em sua utilização. Já se começa a afirmar que não basta o frio e externo respeito aos pressupostos assinalados pela lei, para permitir que se oculte alguém sob a máscara da pessoajurídica e desfrute de seus inegáveis benefícios. Acredita-se ter sido encontrado pelos autores e pela jurisprudência o remédio para esses desvios no uso da pessoa jurídica, na possibilidade de prescindir da sua estrutura formal para nela penetrar até descobrir seu substrato pessoal e patrimonial, pondo assim a descoberto os verdadeiros propósitos dos que se amparam sob aquela armadura legal. (R.F. nº 188/269). Sendo patente o uso particular e nocivo da sociedade E., pelos apelados, empresa essa que nada mais é do que a figura dos próprios apelados, tal a comunhão de objetivos e interesses, decorre, naturalmente, que o patrimônio de ambos deve ser havido como comum. II – JULGADO DA 7a CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO: OBJEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE Ordem de penhora, em execução de sentença, sobre bens de sócios da executada. [...] DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Para a aplicação dessa regra de direito, que é excepcional, é necessário que haja deliberada intenção do sócio na utilização fraudulenta da pessoa jurídica, não bastando que sobrevenha prejuízo a terceiro em decorrência da autonomia patrimonial. Com efeito, se não há bens no patrimônio social suficientes para o pagamento de um credor, não poderá a personalidade jurídica da sociedade devedora ser desconsiderada somente por força deste prejuízo que sofrerá o credor, sendo imprescindível que o prejudicado prove ter ocorrido à utilização, fraudulenta ou abusiva, intencional da pessoa jurídica. Sem este elemento subjetivo, não se poderá invocar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Recurso provido. (TJSP – 7a Câm. de Direito Público; AI nº 318.301-5/6-00-Cotia-SP; Rel. Dês. Guerrieri Rezende; j. 16/6/2003; v.u.). III – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL NA SEARA DO DIREITO TRIBUTÁRIO: [...] Ementa oficial: Sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Execução fiscal com penhora em bens do sócio-gerente. Embargos de terceiro. Sociedade realmente fictícia em que sócio-gerente é dono de 99,2% do capital, sendo os restantes 0,8% de sua mãe e de um cunhado. A assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde com a do sócio é um princípio jurídico básico, não um tabu, e merece ser desconsiderado quando a sociedade é apenas um alter ego de seu controlador, em verdade comerciante em nome individual. Lição de Konder Comparato. Embargos de terceiro rejeitados. Apelação provida. Ap. 583018577 (reexame) – 1a C. – J. 8.8.84 – REL. Des. Athos Gusmão Carneiro. (comarca de Lagoa Vermelha) AULA 6 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 55 IV – APELAÇÃO CÍVEL Nº 115.478 – RIO GRANDE DO SUL, SEXTA TURMA DO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS: EMENTA AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. OMISSÃO DE RECEITA. - Legitimidade da atuação do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos. - Constituídas foram, no mesmo dia, de uma só vez, pelas mesmas pessoas físicas, todas sócias da autora, 8 (oito) sociedades com o objetivo de explorar comercialmente, no atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufaturados em plástico, no mercado interno e no internacional. - Tais sociedades, em decorrência de suas características e pequeno porte, estavam enquadradas no regime tributário de apuração de resultados com base no lucro presumido, quando sua fornecedora única, a autora, pagava o tributo de conformidade com o lucro real. - Reconhece-se à recorrente, apenas, o direito de compensação do imposto de renda pago pelas aludidas empresas. - Reforma parcial da sentença. - Apelação provida em parte. E consigna em seu voto o relator, Ministro Américo Luz, fazendo referência à decisão de 1º grau: Eis outros tópicos importantes do decisum (fls. 1.070/1.071): A realidade que tomou vulto nestes autos, através de minucioso levantamento das operações entre as aludidas sociedades e a autora, é de que elas só existem e só se justificam para dar lucro à autora, não têm finalidade própria, não têm objeto social próprio, não têm empregados, nem sede própria, pois não passam simulacros de pessoas jurídicas cujas atividades são pré-ordenadas mediante um plano concebido por três sócios da autora, que se revezaram nos quadros daquela, na faina de proporcionar à autora pelo artificioso confronto de dois regimes tributários, apreciáveis diferenças de receitas que podem ser consideradas omitidas pela autora, à luz da interpretação econômica dos fatos geradores. As respostas do laudo não afirmam essa conclusão, porquanto enfatizam meramente o envoltório jurídico das operações cuja finalidade era acobertar a receita omitida representada pela diferença financeira resultante da justaposição de regimes tributários, privilegiados, de um lado, do lucro real de outro. Eis um efeito tributário ilícito, não meramente elisivo, conclusão a que se chega inclusive pela via do absurdo que representa o garantir à autora o beneplácito a um procedimento que quebra o princípio da igualdade de tratamento tributário perante a comunidade de contribuintes. [...] Não se diga, com a resposta do perito, que não se pode falar em lucro, senão após deduzidos gradativamente os valores das despesas comerciais, administrativas, provisionadas, financeiras, etc. (fls.884). Embora possível o conceito de lucro tributável de um tal enfoque, in casu, tais despesas inexistiram, haja vista que as entidades não passam de pessoas jurídicas – papel, (ditas com habilidade pelo culto patrono da autora, cujos trabalhos sempre honraram os processos desta vara, existentes, só necessariamente, são aproveitáveis teoricamente. Quanto às constatações contábeis, somente demonstram a preocupação constante de documentar operações comercialmente desnecessárias (a pseudo distribuição atacadista e consectários), mas, tributariamente úteis, sob o ponto de vista do sonegador de receitas tributáveis. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 56 4. O ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 DIANTE DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL No Código Civil vigente, a desconsideração da personalidade jurídica é do tipo desconsideração- imputação; trata-se de uma via de mão única; ela só é admitida para operar a transferência de responsabilidade por obrigações de uma pessoa jurídica para seus sócios ou seus administradores e, portanto, não é aplicável às situações em que a pessoa jurídica é utilizada como instrumento de fuga de responsabilidade que é empreendida pelo sócio ou administrador (LIMA, 2008, p. 5). A questão que se coloca é: seria o art. 50 do CC o veículo introdutor da figura no direito tributário? Com efeito, a desconsideração remove da pessoa jurídica a obrigação que, presume-se, tenha sido assumida por ela ou em que hajam dúvidas razoáveis que seja dela. O dever de suportar os respectivos efeitos é atribuído aos sócios. Este tipo de imputação ou transferência de responsabilidade, para o direito tributário, é matéria de responsabilidade tributária que está sob reserva de lei complementar. Assim é que a responsabilidade dos sócios e administradores está delineada nas disposições dos arts. 134 e 135 do CTN; na falta de menção específica da lei, parece certo que as regras do art. 50 do CC de 2002 não atingem o campo normativo das regras contidas no Código Tributário Nacional. A esse respeito Luciano Amaro (2005, p. 388) é enfático: “[...] o art. 50 do CC não inovou a questão da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas para fins fiscais”. Saliente-se que no campo tributário a matéria responsabilidade está sob a reserva de lei complementar, com base no art. 146 da CF, o que impediria a recepção do art. 50 do CC pelo direito tributário material (ANDRADE FILHO, 2005). Contudo, se poderiacogitar da aplicação da desconsideração da pessoa jurídica em casos de fraude ou de abusos de modo a legitimar a desqualificação ou requalificação de certos atos ou negócios jurídicos em que a personalidade jurídica é instrumento de burla. O poder jurídico de requalificação, que é vinculado à lei, decorre do poder de autotutela que a ordem jurídica atribui à administração para executar, por seus próprios órgãos, os seus direitos. Pelo menos três preceitos do Código Tributário Nacional fundamentam esse direito de levar a cabo a desconsideração-nulificante ou a desconsideração-inoponibilidade: o parágrafo único do art. 116, o inciso I do art. 118 e o art. 148. Um corolário deste poder de autotutela é o poder-dever de realizar o lançamento tributário ou rever os lançamentos realizados pelos particulares na forma da lei sem necessidade de ir ao Poder Judiciário solicitar a definição do direito aplicável em cada caso. Raramente a administração deve ir a juízo para exercer o direito de lançamento tributário; o caso mais recente é do art. 129 da Lei nº 11.196/2005 que, ao mandar aplicar a regra do art. 50 do CC, colocou sob reserva de jurisdição a desconsideração da personalidade jurídica quando a sociedade vier a prestar serviços de caráter intelectual de natureza personalíssima. Em síntese, no Brasil, as únicas possibilidades de desconsideração da personalidade jurídica são as hipóteses de fraude, dolo, sonegação ou conluio. Nestes casos, a administração pode negar, no todo ou em parte, efeitos à personalidade jurídica que for adotada como instrumento para perpetrar qualquer daqueles atos ilícitos. AULA 6 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 57 5. DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA E PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO A desconsideração só tem lugar quando houver fraude, simulação ou abuso de direito que seja prejudicial a alguém. Dizer que algo é prejudicial a alguém significa afirmar que este sofre ou sofreu algum prejuízo ilegítimo, isto é, fora das circunstâncias em que a ordem jurídica permite o chamado dano lícito. Eventuais problemas podem ocorrer quando alguém utiliza o arcabouço da figura pessoa jurídica para ter acesso a um regime mais favorável a si. Tal é o caso, por exemplo: um sujeito convida um amigo ou um parente para tornar-se sócio em determinada sociedade. Essa estratégia foi largamente adotada por certa classe de profissionais que, com o propósito de reduzir a carga tributária sobre sua remuneração, criaram pessoas jurídicas para prestar serviços de caráter personalíssimo, onde a prestação é fundamental na figura de um profissional. De acordo com a legislação vigente em 2005, a prestação de serviços por intermédio de uma pessoa jurídica é altamente vantajosa, se comparada com a tributação que recai sobre os rendimentos de um trabalhador assalariado ou autônomo. A legislação do Imposto sobre Serviços (ISS) também prevê um tratamento mais ameno para as sociedades de profissão regulamentada, que pagam aquele imposto por cabeça ao invés de um percentual sobre o montante dos serviços, como ocorre com todos os outros sujeitos passivos. Há outra nuança da desconsideração da personalidade jurídica que tem criado apreensão, especialmente para as pessoas que obtêm rendimentos por intermédio de uma pessoa jurídica mas prestam serviços de cunho pessoal; as autoridades fiscais têm lavrado auto de infração utilizando-se de critérios jurídicos próprios da legislação que rege as relações de trabalho de natureza empregatícia. Esse problema afeta diretamente os prestadores de serviços que não se enquadram como empresa individual ou não estão organizados sob a forma de sociedade de profissão regulamentada. Ao ficarem impedidos de escolher a via de pessoa jurídica, esses trabalhadores ficam em posição de desvantagem em relação aos demais, o que traduz uma discriminação não razoável e, por tal razão, inconstitucional. Não há dúvida acerca de que a desconsideração de personalidade jurídica é admitida em caso de fraude ou conluio. Ocorrendo qualquer destas figuras, a desconsideração pode ser levada a efeito pelas autoridades fiscais. 6. INTERPOSIÇÃO DE PESSOAS: AS SOCIEDADES HOLDINGS Trata-se de um campo fértil para a aplicação das normas sobre desconsideração da personalidade jurídica. O ordenamento jurídico brasileiro, em regra, outorga às sociedades holdings uma personalidade jurídica autônoma em relação a cada uma das sociedades relacionadas por qualquer forma. Em certas circunstâncias, essa autonomia é recortada por normas que estipulam solidariedade por obrigações. Por outro lado, do ponto de vista tributário, o ordenamento jurídico não cogita da tributação em conjunto que chegou a ser prevista como possibilidade jurídica, mas nunca foi adotada. A chamada sociedade holding não é exatamente uma espécie societária. No ordenamento jurídico pátrio, as sociedades estão sujeitas ao princípio da tipicidade e, deste modo, não é possível escolher sociedades que não estejam tipificadas e expressamente previstas em lei. Logo, quando da criação de PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 58 uma holding, esta deve submeter-se a um dos tipos societários previstos na legislação, e entre esses tipos existem inúmeras possibilidades, daí surgindo a sociedade por ações de capital aberto, de capital fechado, as sociedades limitadas, por conta de participação etc. O uso de holdings para fins elisivos tributários teve pelo menos duas épocas de ouro num passado recente. A primeira delas ocorreu após a Constituição de 1988, devido à discussão que girava em torno do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD). Os planejadores da época indicavam que as holdings poderiam ser um instrumento para adiantar a sucessão, de modo a evitar a incidência do imposto que viria a ser instituído. Outra época de ouro dessa figura ocorreu no início dos anos 1990 com as privatizações. A Lei nº 9.532/97 permitiu que o valor do ágio pago por investidores pudesse ser deduzido, dependendo da situação, no prazo de cinco anos, o que foi um atrativo para os adquirentes. Para que a dedução pudesse ser feita, todavia, era necessário criar um mecanismo que permitisse que ágio e atividade lucrativa estivessem num mesmo lugar. Assim, era sempre necessário que houvesse a interposição de sociedade holding que, posteriormente, seria incorporada ou que incorporaria a empresa lucrativa. Elas faziam o papel de ponte para dedução do ágio, já que a lei, praticamente, induzia esse arranjo. A holding tem um importante caráter instrumental de organização empresarial. Não raro, os grandes grupos empresariais sempre têm uma sociedade holding debaixo da qual estão as sociedades operativas. Esse caráter instrumental permite que a holding seja utilizada como cash company, voltada para a administração financeira, e, em outros casos, elas são fornecedoras de utilidades. Tais utilidades são, em geral: a) apoio jurídico; b) auditoria; c) processamento de dados; d) outros serviços que são adquiridos ou criados pela sociedade holding, que os distribui para as empresas operativas sob a forma de rateio de despesas. No que respeita as práticas elisivas propriamente ditas, via de regra, a figura da holding é bastante útil nos casos em que o grupo econômico tem negócios distribuídos em várias empresas no exterior que apuram lucros e prejuízos. A partir da Medida Provisória nº 2.158, versão 34, os lucros obtidos no exterior são tributados como equivalência patrimonial, mas não é permitida a compensação de prejuízos suportados por outras empresas. Assim, a interposição de uma sociedade holding permitiria a mistura do lucro e do prejuízo, e, desta forma, faria com que a tributação recaísse apenas sobre o resultado líquido das operaçõesrealizadas no exterior. Outra variação desse mesmo tema acorrerá caso haja um negócio no exterior e esse negócio gere lucro e esteja localizado em país com o qual o Brasil celebrou tratado para evitar bitributação. Com Portugal, por exemplo, o acordo diz que só se podem tributar os lucros quando eles forem efetivamente distribuídos, e não quando apurados, segundo a MP nº 2.158/2001. A sociedade holding resolve esse problema, pois se houver a interposição de uma sociedade holding em Portugal, entra-se nas regras do tratado, que permite que a tributação ocorra apenas com a efetiva distribuição dos lucros. A criação de sociedade holding não pode ser considerada a priori como uma forma de abuso da personalidade jurídica, pois isso implicaria em proscrever ou aniquilar a figura que tem importante papel instrumental na vida econômica. De qualquer sorte, as autoridades fiscais podem desconsiderar a personalidade jurídica nos casos de fraude, conluio ou sonegação. AULA 6 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 59 7. SOCIEDADES DE CURTA DURAÇÃO As denominadas sociedades de propósito específico não constituem um tipo societário, são assim intituladas porquanto são constituídas para exploração de um específico negócio que pode ter duração curta ou longa, a exemplo do que pode ocorrer com a figura do consórcio societário. As sociedades de propósito específico têm um importante caráter instrumental no mercado de capitais. No Brasil, o problema do prazo de duração passou a ser secundário, após o advento do parágrafo único do art. 981 do CC, segundo o qual “[...] a atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados” (BRASIL, 2002). Portanto, a permanência ou duração de uma sociedade não é um requisito de validade para a constituição e a utilização de uma pessoa jurídica, pois o próprio ordenamento jurídico já se encarregou de realizar as valorações pertinentes ao tempo de duração de uma sociedade. Em termos de planejamento tributário, vale o que já foi dito acerca das formas do direito privado; a lei tributária adota-as in totum, ou estabelece critérios de não aceitação ou consideração de apenas alguns efeitos de certos atos ou negócios jurídicos. Nesse campo, a lei é o único e idôneo juiz das valorações que fundamentam a validade ou invalidade. 8. PESSOA JURÍDICA PRESTADORA DE SERVIÇOS DE NATUREZA PESSOAL Em vários casos, as autoridades fiscais do Imposto de Renda, com lastro no parágrafo único do art. 116 do CTN, desconsideram a pessoa jurídica criada para prestar serviços de natureza personalíssima. Exemplos: Um conhecido treinador de futebol que recebia a remuneração por seus serviços por intermédio de uma pessoa jurídica formada por ele e sua esposa. As autoridades fiscais desconsideraram a pessoa jurídica e exigiram que o tributo fosse imputado à pessoa física porque entenderam que houvera simulação entre o treinador e a sociedade esportiva, que teriam agido em conluio para dissimular contrato de trabalho regido pela CLT. Para justificar a autuação, pesou o fato de que a pessoa jurídica não estava revestida sob a forma de sociedade civil de profissão regulamentada expressamente mencionada no § 3o do art. 146 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR). A certa altura, o relator, após transcrever trechos da CLT, anota: A relação trabalhista entendida pelas autoridades lançadora e julgadora de primeira instância advém de o trabalho ser prestado de forma individual e personalíssima, repita-se, o que estaria conforme os ensinamentos doutrinários transcritos no Termo de Verificação Fiscal e no Acórdão recorrido. Se foi este, pessoa física, quem prestou os serviços, a este cabe a remuneração e a correspondente tributação do Imposto de Renda como determina a legislação tributária transcrita. (José Ribamar Barros Penha). Decisão proferida quando do julgamento do Recurso nº 134.110, realizado pela 4a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes. O sujeito passivo, um conhecido clube de futebol, foi autuado porque remunerava jogadores de seu plantel sob a forma de direitos de imagem e direitos de arena pagos a uma pessoa jurídica titular daqueles direitos. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 60 A decisão deu razão às autoridades fiscais que lavraram auto de infração desconsiderando a pessoa jurídica. Na ementa da decisão está dito que [...] os jogadores e técnicos, cujos serviços são prestados de forma pessoal, terão seus rendimentos tributados na pessoa física, incluídos aí os rendimentos originados no direito de arena/cessão do direito de uso de imagem, sendo irrelevante a existência de registro de pessoa jurídica para tratar de seus interesses. (Decisão da 4a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes de São Paulo, Recurso nº 134.110). Outro caso envolvendo conhecido apresentador de programa de televisão, a mesma 4a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes manteve o entendimento de que a prestação de serviços de natureza pessoal não pode, para fins fiscais, ser feita por intermédio de uma pessoa jurídica. Quando do julgamento do Recurso nº 127.793, de 4.12.2002, aquele Tribunal decidiu que: [...] os apresentadores e animadores de programas de rádio e televisão, cujos serviços são prestados de forma pessoal, terão seus rendimentos tributados na pessoa física, sendo irrelevante a existência de registro de pessoa jurídica para tratar de seus interesses. Decisão proferida quando do julgamento do Recurso no 145.322, ocorrido em 16.06.2005, pela 6a Câmara do 1o Conselho de Contribuintes. Pode o Fisco desconsiderar a personalidade jurídica da empresa toda vez que restar caracterizada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação pela pessoa física responsável. Mudança do quadro normativo acerca da sujeição passiva do Imposto de Renda para certas empresas prestadoras de serviços, com o advento da norma inserta no art. 129 da Lei no 11.196/2005. Ao fazer menção ao caráter personalíssimo ou não dos serviços intelectuais, a sobredita norma indica que para sua aplicação basta a existência da sociedade legalmente constituída. O preceito acaba por permitir, para fins fiscais, a existência de uma sociedade sem empresa e a forma de tributação com base no lucro presumido. Assim, a exploração de atividade de natureza científica, artística ou cultural pode ser feita por intermédio de uma pessoa jurídica sem que as autoridades possam contestar a natureza pessoal dos trabalhos que geram as receitas em cada caso. SÍNTESE Aplicado aluno(a), finalizamos a sexta aula concluindo que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento de reação da ordem jurídica contra o uso abusivo e fraudulento da personalidade jurídica. Ela é como uma espécie de sanção e tem um pressuposto inarredável: só se pode cogitar de desconsideração se houver dano lesivo a terceiro e que tenha relação causal com o uso da pessoa jurídica para aquele específico fim ilícito. nfim, convoco você a pesquisar de forma científica os temas abordados, visando a um aproveitamento mais eficaz sobre tão importante matéria. Aguardo você na próxima aula. AULA 6 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 61 QUESTÕES PARA REFLEXÃO » Comente acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica a partir da visão do art. 50 do Código Civil vigente. » O preceito normativo expresso no art. 50 do Código Civil vigente tem aplicação no âmbito tributário? Comente a resposta. » As disposições insertas nos arts. 134 e 135 do CTN podem ser consideradas como hipóteses configuradoras de desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária? Comente os dispositivos citados. » É correto afirmar que a desconsideração de personalidade jurídica é admitida em matériatributária em caso de fraude ou conluio? Comente a resposta, discorrendo sobre o que entende por fraude e suas manifestações. LEITURAS INDICADAS BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <www.planalto. gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 8 jan. 2010. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 5 jan. 2010. ______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: <www. planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5172.htm>. Acesso em: 8 jan. 2010. SITES INDICADOS http://www.planalto.gov.br/ http://www.senado.gov.br/ http://www.jus.com.br/ http://www.mundojuridico.adv.br/ http://recantodasletras.uol.com.br/textosjuridicos/274232
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