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1 1 INTRODUÇÃO A transfusão sanguínea tem como objetivos fornecer elementos sanguíneos (hemácias, plaquetas, leucócitos e plasma) como tentativa de repor as perdas e amenizar as manifestações clínicas relacionadas ao transporte de oxigênio para todos os tecidos, estabilizar o paciente até que seja possível diagnosticar e corrigir a causa subjacente (KNOTENBELT, 2002), corrigir alterações de hemostasia, realizar transferência de imunidade passiva e corrigir hipoproteinemia e hipovolemia não responsiva ao tratamento convencional (PEREIRA; REICHMANN, 2008). As recomendações para transfusão de hemácias variam muito de acordo com o estado clínico do paciente. Em cães com anemia crônica estável sua indicação ocorre a partir de um hematócrito (Ht) de 15% ao passo que, pacientes admitidos no serviço de terapia intensiva com Ht inferior a 29,5% já possuem indicação de transfusão (RABELO, 2008). Nos gatos, recomenda-se a transfusão para pacientes críticos com Ht inferior a 10 a 15 %, levando-se em consideração, principalmente, a condição clínica (KOHN; WEINGART, 2006). A indicação do uso de hemocomponentes ao invés do sangue total vem sendo preconizada (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Assim, há menores riscos de reações adversas e a utilização do sangue de um único doador é otimizada (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). Algumas particularidades são observadas nos gatos. Além de apresentarem três tipos sanguíneos (A, B e AB), também possuem altos títulos de anticorpos naturais contra os demais tipos sanguíneos, o que os tornam predispostos a reações potencialmente fatais desde a primeira transfusão caso o doador e o receptor não sejam compatíveis (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Acrescentando-se o fato de se colher um volume menor de sangue nos gatos em relação aos cães, há necessidade de adequar o volume de sangue obtido em relação à quantidade de anticoagulante disponível na bolsa padrão, uma vez que o volume de anticoagulante-conservante é proporcional a 450 ml de sangue (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). Pode-se utilizar bolsa pediátrica para colheita em sistema fechado (PIMENTA et al., 2010), ou utilizar o sistema aberto. Entretanto, neste último, há maior risco de contaminação (SCHNEIDER, 1995). Pacientes da espécie felina com anemia crônica grave podem não apresentar sintomatologia compatível à anemia, até que seu Ht alcance 7 a 10 %, sendo este um limite muito crítico para o paciente (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004). 2 2 A terapia com hemocomponentes consiste em separar o sangue total em seus elementos celulares e plasma, e administrar o componente sanguíneo apropriado baseado no que o paciente necessita (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). Diminui-se assim a sobrecarga circulatória do paciente normovolêmico que recebe a transfusão, permite-se a transfusão de grandes quantidades do componente necessário para aquele paciente e se conserva os estoques de sangue, beneficiando-se diversos pacientes (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Há de se considerar a utilização de sangue total fresco no paciente em choque hipovolêmico (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995, FORD; MAZZAFERRO, 2007, PEREIRA; REICHMANN, 2008). A administração dos componentes sanguíneos nunca deve ser considerada um procedimento inócuo. Durante o procedimento de transfusão sanguínea, há risco de transmissão de doenças pelo doador, além dos riscos de reações adversas individuais (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). A abordagem da terapia transfusional, sua história, indicações, importância da tipagem sanguínea e metodologia aplicada em pacientes da espécie felina serão abordadas a seguir, constituindo o objetivo desse trabalho. 3 3 1. REVISÃO DE LITERATURA 1.1.História da terapia transfusional As primeiras transfusões de sangue datam do século XVII, realizadas por Richard Lowoer, em 1665 (GINGERICH, 1986). Em 1667, Jean Baptiste Denis, em Montpellier, França, infundiu sangue de carneiro em um doente mental que perambulava pelas ruas da cidade, e este faleceu após a terceira transfusão (STARRR, 2002). Essa prática, denominada transfusão heteróloga, ou seja, entre espécies diferentes, foi considerada criminosa por diversas instituições europeias (SCHMOTZER et al., 1985). Sugere-se que a primeira transfusão de sangue humano tenha sido realizada por James Blundell, em 1818 (SCHMOTZER et al., 1985). No entanto, problemas com a coagulação do sangue e reações adversas pós-transfusionais consistiam em um importante desafio aos cientistas (GINGERICH, 1986). Em 1900, Karl Landsteiner descobriu o sistema ABO de compatibilidade (GIRELLO; KÜHN, 2002; STARR, 2002), baseado em substâncias presentes na membrana eritrocitária e a partir daí, graças a imunizações de animais com hemácias humanas, outros antígenos de grupos sanguíneos foram descritos (SANTOS, 2002). Em 1907 foi realizada a primeira transfusão após provas de compatibilidade, por Reuben Ottenber (GINGERICH, 1986). Em 1914, Hustin fez o primeiro relato da utilização de citrato de sódio e glicose como uma solução diluente e anticoagulante para transfusões e, em 1915 foi determinada, por Lewisohn a quantidade mínima necessária para que não houvesse coagulação do sangue colhido. A idealização de um banco de sangue ocorreu em Leningrado, Rússia, em 1932, mas, somente em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, foi criado o primeiro banco de sangue em Barcelona (SCHMOTZER et al., 1985). Durante a Segunda Guerra Mundial, a separação de componentes sanguíneos se tornou possível, e foi usada em larga escala durante a Guerra das Coreias e a Guerra do Vietnã (SPIESS, 2007). O teste da antiglobulina humana foi descrito em 1945 por Coombs, Mourant e Race, permitindo evidenciar a existência de anticorpos não aglutinantes que são produzidos por aloimunizações feto-maternais ou transfusionais contra antígenos da membrana eritrocitária (SANTOS, 2002). Quarenta anos depois, houve uma nova descoberta que revolucionou o Sistema ABO, a identificação do fator Rh (VAALA, 1990). Cães e gatos, assim como o homem, possuem diferentes grupos sanguíneos. De forma semelhante, podem doar e receber sangue de doadores da mesma espécie, desde que 4 4 haja compatibilidade sanguínea (COLLATOS, 1997). Os primeiros estudos citando as transfusões sanguíneas em Medicina Veterinária com objetivo terapêutico datam da década de 50. O primeiro banco de sangue para animais das espécies canina e felina foi criado nos Estados Unidos da América, nos anos 80. No entanto, estão disponíveis em literaturas pouquíssimos relatos sobre a história da terapia transfusional em Medicina Veterinária (BOTTEON, 2012). 1.2.Banco de sangue e escolha de doadores As opções para realização de transfusão de sangue podem incluir a compra de componentes sanguíneos prontos para uso de um banco de sangue, a manutenção de uma colônia fechada de doadores e o uso de animais doadores de funcionários e de clientes. Combinações também são possíveis (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). A elucidação dos clientes sobre a importância e necessidade de doação de sangue dos animais é importante para o recrutamento de doadores (FELDMAN; SINK, 2007). Bancos de sangue comerciais mantêm colônias fechadas de doadores e asseguram à sua clientela que estes animais tenham boa saúde e qualidade de vida. A principal vantagem é saber que estes animais estão livres da exposição a doenças. Normalmente, para compor essa colônia, são selecionados doadores universais que são sistematicamente testados com exames periódicos para garantirsua saúde (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). Contudo, na espécie felina não existem doadores universais (GIGER, 2005). Muitos bancos de sangue optaram por utilizar como doadores animais cujos donos são voluntários. Nesse caso, o custo da manutenção de uma colônia fechada é eliminado (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). No aspecto prático, hoje, no Brasil, muitas vezes depara-se com a falta de estoque nos bancos de sangue existentes (BOTTEON, 2012). Realizar a separação dos componentes sanguíneos requer acesso a uma centrífuga refrigerada (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995), cuja temperatura deve variar entre 1 a 6 °C. É necessário um extrator de plasma e uma balança para pesagem dos hemocomponentes. A estocagem de produtos sanguíneos requer refrigeração entre 1 e 6 °C para sangue total e concentrado de hemácias e congelamento a -18 °C para plasma, e deve haver algum tipo de monitor de temperatura, para assegurar que o hemocomponente esteja armazenado a uma temperatura constante (FELDMAN; SINK, 2007). O anticoagulante deve prevenir a coagulação da unidade de sangue, mantendo assim a unidade fluida, de modo que possa ser transfundida. Também se deve assegurar que a unidade de sangue mantenha sua integridade, 5 5 de maneira que o hemoderivado proporcione o melhor benefício ao seu paciente. Os dispositivos modernos de colheita de sangue utilizam uma solução líquida que contém anticoagulante (citrato) e conservantes (soluções nutritivas contendo dextrose, adenina, fosfatos e solução fisiológica em diferentes proporções). Essas soluções preservam melhor as hemácias e previnem a ocorrência de mudanças prejudiciais no hemoderivado, mantendo constante o pH e promovendo a produção de trifosfato de adenosina (ATP) para assegurar a viabilidade das hemácias. O citrato-fosfato-dextrose (CPD) e o citrato-fosfato-dextrose dupla (CP2D) contêm fosfato e dextrose. O citrato-fosfato-dextrose-adenina (CPDA-1) contém a adição de adenina para favorecer a sobrevivência da hemácia. As soluções anticoagulantes não inibem o crescimento de contaminantes microbianos. A refrigeração de hemocomponentes de hemácias e o congelamento do plasma são preconizados como forma de inibir o crescimento microbiano (FELDMAN; SINK, 2007). Soluções aditivas podem ser utilizadas como conservantes. Trata-se de uma combinação de substâncias químicas utilizadas para prolongar a vida das hemácias, e os componentes dessas soluções variam conforme o fabricante, mas todas contêm dextrose, adenina e cloreto de sódio. Podem ser incluídos fosfato de sódio, manitol, citrato de sódio e ácido cítrico, em conjunto com os anticoagulantes, possibilitando maior sobrevida às hemácias por permitir a remoção de volumes máximos de plasma das unidades de hemácias. Considerando que a solução aditiva é à base de solução fisiológica, o hematócrito do concentrado de hemácias diminui e obtém-se assim uma unidade de sangue menos viscosa e mais fácil de ser transfundida. O aditivo deve ser acrescentado às hemácias até 72 horas depois da colheita (FELDMAN; SINK, 2007). A colheita do sangue deve ser realizada em bolsas plásticas contendo CPDA-1 como anticoagulante e preservante. Frascos de vidro contendo anticoagulante ácido-citrato-dextrose (ACD) não são recomendados, pois o vidro inativa as plaquetas quase que imediatamente (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995), além de desativar os fatores XII e VIII da coagulação (FELDMAN; SINK, 2007). O prazo de validade do hemocomponente é o tempo máximo admissível para seu armazenamento. Esse prazo normalmente se baseia em considerações funcionais sobre os hemocomponentes. A duração do tempo de armazenamento também é afetada pela natureza do dispositivo de colheita de sangue utilizado, que pode ser “aberto” ou “fechado”. No sistema fechado não há exposição do sangue ao ar ou a elementos externos durante a colheita, processamento ou armazenamento. Possuem agulhas e bolsas “satélites” integralmente 6 6 incorporados ao sistema. Nos sistemas de colheita de sangue humano o fabricante adiciona o anticoagulante-conservante e as soluções aditivas ao sistema. As bolsas de sangue adquiridas comercialmente têm prazo de validade próprio que independe da colheita de sangue, mas que garante a atividade do anticoagulante-conservante e a esterilidade da bolsa (FELDMAN; SINK, 2007). Os sistemas abertos tornam o sangue exposto ao ar ou a elementos externos em algum ponto durante a colheita, o processamento ou o armazenamento. Isso exige que o hemocomponente seja utilizado em até quatro horas após a colheita, se armazenado à temperatura ambiente, ou em até 24 horas se armazenado entre 1 e 6 °C. A heparina e o citrato de sódio são dois anticoagulantes frequentemente utilizados de forma isolada nos sistemas abertos, sendo que a heparina não possui propriedade de preservação dos eritrócitos (há deterioração rápida) e o citrato não é adequado em razão do seu pH. Sendo assim, o anticoagulante de escolha é o CPDA-1 (FELDMAN; SINK, 2007). A adição do sangue felino a um banco de sangue representa um desafio. Enquanto a bolsa padrão para colheita do sangue canino é a humana, com capacidade para 450 mL, o padrão para felinos é aproximadamente 60 mL (sendo cerca de 50 mL de sangue total e 7 mL de anticoagulante-conservante). Esse volume pequeno impõe limitações para a separação do sangue em componentes (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). Os sistemas de colheita fechada não estão comercialmente disponíveis para a separação e estocagem de sangue felino. O que se tem disponível para o mercado, nos Estados Unidos, são pequenas bolsas sem anticoagulante-conservante, mas o sangue nelas colhido está sujeito às consequências inerentes a qualquer tipo de sistema aberto (SCHNEIDER, 1995). Uma alternativa para a colheita de pequenos volumes de sangue seria a utilização de bolsas pediátricas para colheita de sangue de doadores da espécie felina (PIMENTA et al., 2010). Outro desafio para doação de sangue felino é a aversão natural da maioria dos gatos em se manter tranquilamente em decúbito durante vários minutos enquanto o sangue é colhido. Nesse sentido, a sedação tem um importante papel no processo de colheita de sangue dos gatos, o que muitas vezes desencoraja os proprietários dos doadores (FELDMAN; KRISTENSEN, 1995). O doador deve ser um adulto saudável, com boa condição corporal e boa condição clínica, sem históricos de transfusão prévia nos últimos sessenta a noventa dias (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010; KOHN; WEINGART, 2006, , LANEVSCHI; WARDROP, 2001), com peso corporal mínimo acima de 4 kg, livre de doenças e vacinado, sendo preferível gatos com peso corporal entre 5 e 7 kg (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006; SCHNEIDER, 1995). 7 7 O hematócrito do doador deve ser maior que 30 %, desejável ser 35 % a 40 % (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006, KOHN; WEINGART, 2006, SCHNEIDER, 1995). Um exame físico rigoroso deve ser realizado, assim como exames complementares como hemograma, testes de função renal e função hepática (KOHN; WEINGART, 2006), provas sorológicas para garantir a ausência de agentes infecciosos como o vírus da imunodeficiência felina (FIV), o vírus da leucemia felina (FeLV) e Mycoplasma spp. (SCHNEIDER, 1995; WEINGART et al., 2004; KOHN; WEINGART, 2006). Outra exigência é de que o gato trazido voluntariamente para doação de sangue seja domiciliado, mantido dentro de casa, sem contatos com outros gatos, com controle parasitário e vacinação em dia (KOHN; WEINGART, 2006). Em áreas endêmicas, devem ser considerados testes para Bartonellahenselae, Cytauxzoon felis, Babesia sp. e Dirofilaria immits (ABRAMS-OGG, 2000; KOHN; WEINGART, 2006,). O volume total de sangue de um gato chega a 66 mL/kg, sendo que 10 % a 20 % do volume total pode ser colhido de gatos saudáveis sem prejuízos (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006; KOHN; WEINGART, 2006). Após a doação de sangue, os gatos doadores devem ser monitorados. Há indicação de infundir por via intravenosa solução cristaloide (20 mL/Kg de solução de Ringer com Lactato) e, quando doados grandes volumes de sangue, deverá se realizar suplementação com coloide (KOHN; WEINGART, 2006). Para uma nova colheita de sangue do mesmo doador, deve-se respeitar o intervalo mínimo de três meses ou mais, caso o hematócrito do doador se reduza significativamente após a doação (LANEVSCHI; WARDROP, 2001). A via de colheita mais indicada é a veia jugular, após tricotomia, antissepsia da região e sedação do doador (KOHN; WEINGART, 2006; SCHNEIDER, 1995). O sangue pode ser colhido em seringas descartáveis com 1 mL de citrato de sódio 3,13% para 9 mL de sangue, conectada ao dispositivo scalp butterfly 19 G (sistema aberto) (KOHN; WEINGART, 2006), ou pode-se colher 40 mL de sangue em uma seringa de 60 mL contendo 10 mL de solução anticoagulante comercial (ACD ou CPD) (HAGIWARA, 2003). O sangue colhido pelo sistema aberto não deve ser estocado por mais de 24 horas em geladeira. O citrato de sódio deve ser usado como anticoagulante para transfusões imediatas ou em até oito horas. Para estocagens mais longas, recomenda-se o uso de 1,2 mL de CPDA-1 para 8,8 mL de sangue colhido (KOHN; WEINGART, 2006). 8 8 1.3.Sangue total, hemocomponentes e indicações para transfusão em gatos Como o sangue felino e seus hemocomponentes para transfusão são um recurso escasso e particularmente nessa espécie a transfusão de sangue impõe um risco inato, os benefícios clínicos da transfusão sanguínea em gatos devem ser cuidadosamente definidos para cada paciente (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). A anemia é a causa mais comum da indicação de transfusão de sangue em felinos (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010; GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Outras indicações incluem metemoglobinemia grave e intoxicação por paracetamol (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010). Os gatos apresentam maior sensibilidade à metemoglobinemia, pois sua hemoglobina é mais suscetível à oxidação, o que torna mais difícil manter o ferro em sua forma reduzida na célula. A principal manifestação deste quadro é a hemólise, tendo como consequências a ocorrência de anemia, icterícia, hemoglobinúria, hematúria em pacientes metemoglobinemia, cianose, distrição respiratória, edema facial e de membros, depressão do sistema nervoso central, hipotermia e vômito (SANT’ANA, 2009). A cianose pode ser observada na Figura 1. Como também há dificuldades para a separação de componentes sanguíneos para a espécie felina, a transfusão de sangue em gatos é realizada, na maioria das vezes, utilizando sangue total fresco ou estocado. Além disso, se observa menos frequentemente em felinos Figura : Cianose de mucosa oral em paciente da espécie felina com metemoglobinemia. FONTE: BARFIELD, D., ADAMANTOS domésticos a ocorrência de coagulopatias, trombocitopenia, trombopatia, coagulação intravascular disseminada (CID) e hipoalbuminemia, quando comparados aos cães (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). No Brasil, atualmente, há disponibilidade de sangue total, concentrado de hemácias e plasma congelado para a espécie felina1. 1 Em estruturação na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, USP, SP. Referência: BOTTEON, 2012. 9 9 A anemia é caracterizada por uma redução da concentração de hemoglobina, mais comumente acompanhada por uma redução da quantidade de eritrócitos, desencadeando hipóxia tecidual e consequente liberação de eritropoietina, e aumento do tônus simpático (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). Pacientes com anemia aguda e perda profusa de sangue apresentam redução da capacidade de carreamento de oxigênio e, consequentemente, hipóxia tecidual. A perda de sangue quando decorrente de processos hemorrágicos ou de hemólise aguda imunomediada é mais grave que em quadros de anemia crônica não regenerativa. Desta forma, os pacientes com hipovolemia se beneficiarão da abordagem emergencial primária A (vias aéreas patentes) B (boa respiração) C (circulação adequada) guiada por metas, em que a estabilização inicial agressiva visa à manutenção do volume intravascular e a oxigenação tecidual anteriormente à transfusão (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010; RABELO; PIMENTA, 2012). As principais manifestações clínicas da anemia são palidez de mucosas (que pode ser enganosa em gatos), taquicardia, intolerância ao estresse, sopro sistólico baixo e/ou sons de galope, taquipneia e distrição respiratória devido à deficiência de oxigênio durante exercícios ou diante de episódios de estresse. O gato possui a capacidade de modular a afinidade de oxigênio em resposta à anemia, pois apresenta dois tipos de hemoglobina (HbA e HbB, tendo este último tipo alguns subtipos) que apresentam baixa afinidade com o oxigênio e baixas concentrações de 2,3-difosfoglicerato, o que facilita o aporte de oxigênio aos tecidos. Isso explica porque as contagens de eritrócitos e de hemoglobina são normalmente mais baixas que nos cães. Os eritrócitos produzidos em resposta aos quadros de anemia apresentam aumento considerável de 2,3-difosfoglicerato e de ATP, levando à diminuição da afinidade da HbA por oxigênio. Essas células possuem níveis normais de HbA, baixos níveis de HbB e níveis aumentados de subtipos de HbB de alta afinidade, e essa mistura de hemoglobinas com afinidades diferentes ao oxigênio em pressões distintas de oxigênio teciduais pode melhorar a adaptação para uma variação mais ampla da oxigenação em um quadro de anemia (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006; WEISER, 1995). Causas comuns de anemia em gatos que necessitam de transfusão sanguínea são hemorragia, como resultado de sangramento trans ou pós-cirúrgico, traumatismos, Disponível em Pets & Life Banco de Sangue Veterinário, São Paulo, SP. Referência: <http://www.petsandlife.com.br/Pets_%26_Life/HOME.html> Disponível em Hemoterapet Banco de Sangue Veterinário, Rio de Janeiro, RJ. Referência: <http://hemoterapet.com.br/> 10 10 sangramento gastroentérico, neoplasias abdominais, anemia hemolítica imunomediada primária, eritropoiese inefetiva ou ausente, infestação maciça por pulgas (especialmente em filhotes), necrose hepática e isoeritrólise neonatal (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010). Pacientes portadores de hemoplasmas, apresentando anemia aguda (normalmente associada à infecção aguda causada pelo Mycoplasma haemofelis) ou hematócrito inferior a 12 % requerem transfusão de sangue (TASKER, 2010). A anemia também é observada em doenças infecciosas, particularmente nas infecções pelos retrovirus (FeLV, FIV) e pelo Coronavírus mutante, causador da peritonite infecciosa felina (PIF). No entanto, nesses casos, raramente se realiza a transfusão (BARFIELD; ADAMANTOS, 2010). A gravidade das manifestações clínicas em gatos anêmicos está relacionada mais com a cronicidade que com o grau de anemia. Ou seja, uma anemia crônica é mais bem tolerada que uma anemia aguda. Numa anemia crônica, os pacientes podem não demonstrar alterações clínicas até que seu hematócrito se torne menor que 15 %. Assim, a gravidade de uma anemia deve ser determinada a partir do hematócrito do paciente. A investigação da anemia é realizada por exames laboratoriais a partir da leitura do hematócrito, da proteína sérica total, da contagem de hemácias por esfregaço sanguíneoe da contagem de reticulócitos, definindo-se assim a natureza, a duração e a gravidade do quadro. Testes adicionais podem estabelecer as causas da anemia, como o Teste de Coombs (anemia hemolítica), ensaio de eritropoietina, avaliação do metabolismo do ferro e mielograma (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). A anemia é classificada como regenerativa ou não regenerativa, e essa classificação depende do grau de resposta da medula óssea, que por sua vez é determinado por meio da contagem de reticulócitos. Nos gatos, a policromasia constitui um indicador ruim de resposta regenerativa, uma vez que a maior parte dos reticulócitos de gatos não fica acentuadamente policromatofílicos. As anemias regenerativas, por sua vez podem ser decorrentes de perda sanguínea ou de hemólise. No Quadro 1 estão listadas as principais anemias regenerativas e não regenerativas descritas por KNOTTENBELT; BLACKWOOD (2006). Anemias crônicas não regenerativas podem ter como forma de tratamento complementar a transfusão sanguínea. Os eritrócitos do receptor apresentam expectativa de vida normal nesses pacientes e, por isso, a transfusão pode ser um método efetivo de tratamento de suporte, podendo estabilizar o paciente por até quatro semanas. É indicado que 11 11 o ponto de conclusão ideal seja a conversão de anemia grave em anemia leve a moderada, pois se o hematócrito pós-transfusional se tornar maior que 25 % poderá haver um atraso na recuperação da hematopoiese normal. Se a anemia não regenerativa for refratária, poderão ser necessárias transfusões sanguíneas repetidas (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). Quadro : Classificação, descrição e causas das principais anemias que acometem os pacientes felinos Classificação Descrição Causa Anemia regenerativa Hemolítica Imunomediada (Mycoplasma haemofelis) Imunomediada associada ao FeLV Imunomediada associada ao lupus eritematoso sistêmico (LES) Isoeritrólise Neonatal Doença das aglutininas frias Danos Oxidativos Fragilidade osmótica eritrocitária Porfiria Hematopoiética Congênita Hemorrágica Perda aguda de sangue Perda crônica de sangue Anemia não regenerativa Sistêmica Deficiência de ferro Doença Renal Crônica (DRC) Associada ao FeLV Doença inflamatória Envenenamento por chumbo Hepatopatia crônica Hipoadrenocorticismo Medular secundária Induzida por drogas Medular primária Anemia aplásica Mielotísica Mielofibrose Mielodisplasia Mielonecrose FONTE: Knotenbelt e Blackwood (2006) Petéquias e equimoses quando encontradas em um exame físico podem ser compatíveis com trombocitopenia ou anormalidades vasculares. Hematomas, hemoperitônio ou hemotórax causados por hemorragias podem sugerir deficiência de fatores de coagulação. Melena, hematoquezia, hematúria ou epistaxe ocorrem tanto em anormalidades vasculares, 12 12 plaquetárias ou na deficiência de fatores de coagulação (KIRBY, 1995). A trombocitopenia pode decorrer da falha de produção de plaquetas, uso ou destruição excessiva deste grupo de células. Na infecção pelo FeLV pode haver destruição imunomediada, assim como na utilização de determinadas drogas, vacinas, infecções e neoplasias (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004). Segundo Wondratschek et al. (2010), a trombocitopenia imunomediada primária é uma condição rara em gatos, mas deve ser considerada um importante diagnóstico diferencial em gatos com sangramentos. Só é possível diagnosticar a trombocitopenia imunomediada primária em gatos quando todas as outras causas forem excluídas (TASKER et al., 1999). A isoeritrólise neonatal (IN) ocorre quando um filhote tipo A ou AB nasce de uma fêmea de sangue tipo B (GRIOT-WENK et al., 1996). Com a ingestão do colostro, são ingeridos altos níveis de anticorpos anti-A presentes na mãe, e estes são absorvidos nas primeiras dezesseis horas de vida (CASAL et al., 1996), resultando na destruição das hemácias do neonato, levando a hemoglobinúria acentuada, letargia e icterícia em vinte e quatro horas após o nascimento. Muitos filhotes morrem em poucos dias, e os sobreviventes podem desenvolver necrose de ponta de cauda (BRIDLE e LITTLEWOOD, 1998). A principal forma de prevenção da IN é impedir o acasalamento de fêmeas tipo B com machos tipo A ou AB (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004; TASKER, 2006), ou garantir que os filhotes tipo A sejam adotados por uma fêmea de sangue tipo A nas primeiras vinte e quatro horas de vida (TASKER, 2006). Após o primeiro dia de vida, os neonatos não absorvem mais os anticorpos, podendo ser devolvidos à sua matriz (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004; TASKER, 2006). Define-se sangue fresco total o sangue que foi colhido há oito horas (no máximo), com todos os seus constituintes – hemácias, leucócitos, plaquetas, fatores de coagulação e proteínas plasmáticas. Este pode ser separado em concentrado de hemácias e plasma, por centrifugação. O sangue total estocado é o armazenado em anticoagulante-conservante, mantido a uma temperatura entre 1 e 6 °C por até trinta e cinco dias (se conservado em CPDA-1), e pode ser utilizado como fonte de hemácias, proteínas plasmáticas e fatores de coagulação. Entretanto, as baixas temperaturas inativam as plaquetas (PEREIRA; REICHMANN, 2008). O plasma fresco congelado é o plasma que foi colhido, separado e armazenado a -18 °C em até oito horas após a colheita. Esse procedimento visa proteger todos os fatores de 13 13 coagulação, principalmente os fatores de coagulação V e VIII, como também a proteção das proteínas plasmáticas e imunoglobulinas. O plasma fresco congelado pode ser processado em crioprecipitado, obtido após o descongelamento parcial do plasma fresco congelado e que contém concentrações altas do fator VIII de coagulação, do fator de Von Willebrand e de fibrinogênio. O produto restante é o crioplasma pobre, que contém albumina e imunoglobulinas. Ambos podem ser armazenados por até um ano a uma temperatura de -18 °C. O plasma congelado provém de um sangue que não foi processado em até oito horas e que conserva os fatores de coagulação vitamina K dependentes (II, VII, IX, X), proteínas plasmáticas e imunoglobulinas. Da centrifugação do plasma fresco se obtém o concentrado de plaquetas, que deve ser conservado a temperaturas entre 20 e 24 °C, sob movimentação constante por no máximo cinco dias (PEREIRA; REICHMANN, 2008). O sangue fresco total tem sua transfusão indicada em pacientes portadores de coagulopatias, como na CID, trombocitopenia e em episódios de hemorragia aguda intensa (FORD; MAZZAFERRO, 2007). O objetivo principal da transfusão de sangue total é recuperar a capacidade de transporte de oxigênio e da volemia em casos de anemia grave ou hemorragia aguda. A papa de hemácias é sempre preferida, especialmente quando ocorre perda de hemácias sem alteração da volemia (PEREIRA; REICHMANN, 2008). O plasma fresco e o plasma fresco congelado contêm fatores de coagulação. Sua indicação é para o tratamento e prevenção de sangramentos em pacientes com deficiências de múltiplos fatores de coagulação, como em caso de doenças hepáticas que cursem com insuficiência, intoxicação por antivitamina K, CID e distúrbios hemostáticos congênitos, como a doença de Von Willebrand e hemofilia associada a sangramento importante. O plasma congelado não possui fatores de coagulação lábeis e é indicado para casos de intoxicação por antagonistas da vitamina K, hipofibrinogenemia e hemofilia B, hipoproteinemia e reposição de IgG em pacientes recém-nascidos com falha na transferência de imunidadepassiva (PEREIRA; REICHMANN, 2008). A administração de plasma pode ser utilizada para o tratamento de deficiência de alguns ou todos os fatores de coagulação ou quando é requerida transfusão com sangue total ou associação de seus componentes. Nos gatos, a hipoalbuminemia e as coagulopatias (principalmente devido a doenças hepáticas) são as principais indicações reportadas para a transfusão de plasma (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011). 14 14 Pacientes com trombocitopenia grave, disfunções plaquetárias ou em casos em que esses pacientes serão submetidos a procedimentos cirúrgicos são indicações da transfusão de concentrado de plaquetas. As plaquetas são rapidamente consumidas após a transfusão, sendo que 30 % das plaquetas transfundidas são retiradas por dia, o que muitas vezes leva à necessidade de transfusão de múltiplas unidades de concentrado de plaquetas, para manter a hemostasia primária (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Não há um protocolo geral que indique quando um paciente deve receber transfusão sanguínea (FORD; MAZZAFERRO, 2007; HAGIWARA, 2003). A transfusão deve ser realizada sempre que o paciente apresentar manifestações clínicas decorrentes de anemia como letargia, anorexia, fraqueza, taquicardia, taquipneia e palidez de mucosas (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011; FORD; MAZZAFERRO, 2007). Em pacientes felinos em estado crítico há indicação de transfusão quando o hematócrito alcançar níveis inferiores a 10 a 15 % (KOHN; WEINGART, 2006). Muitas vezes um pequeno aumento no hematócrito do receptor pode controlar uma crise que possivelmente colocaria em risco sua vida (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). Fisiologicamente, há uma adaptação do organismo para manter a oxigenação tecidual. Há aumento do volume sistólico por meio da retenção de sódio e água na intenção de aumentar o débito cardíaco. No entanto, nem sempre os pacientes felinos irão apresentar taquicardia, mesmo na presença de pulso arterial hiperdinâmico. A taquicardia, quando presente, representa um indício de hemorragia aguda. A mensuração dos níveis de lactato pode ser útil para comprovar a ocorrência de metabolismo anaeróbico. Por outro lado, não é incomum gatos com anemia crônica grave (ou seja, com hematócrito menor que 10 %) apresentarem apenas palidez de mucosas como único sinal clínico (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011). É frequente nos pacientes felinos a ausência de manifestações clínicas até haver redução de Ht para valores inferiores a 10 %, sendo indicada a transfusão em decorrência do alto risco de hipóxia cardíaca aguda em um paciente que já esgotou suas adaptações orgânicas (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004). Barfield e Adamantos (2011) propuseram diretrizes para a decisão de quando transfundir um paciente felino. Pacientes que apresentam taquicardia, apesar de normovolemia e hematócrito entre 10 e 20 %, pacientes com hemorragia devido a coagulopatia, os que serão submetidos a procedimento cirúrgico de moderado a grande porte com hematócrito inferior a 20 %, pacientes com perda hemorrágica aguda associada a sinais de hipoperfusão e hematócrito inferior a 18 %, pacientes com perda sanguínea contínua e 15 15 hematócrito de 15 % e pacientes com anemia crônica não regenerativa e hematócrito inferior a 10 % devem ser transfundidos. Estas diretrizes estão esquematizadas no Quadro 1. Quadro 2: Quando transfundir um paciente da espécie felina Taquicardia apesar da normovolemia (Ht 10 –20 %) Hemorragia aguda e sinais de hipoperfusão(Ht < 18 %) Hemorragia por coagulopatia (Ht 15 %) Perda sanguínea contínua (Ht 15 %) Procedimento cirúrgico eletivo (Ht < 18 – 20 %) Anemia crônica não regenerativa (Ht < 10 %) FONTE: Barfield e Adamantos (2011) 1.4. Grupos e tipos sanguíneos dos felinos domésticos A tipagem sanguínea de felinos é importante para que se evite reações hemolíticas agudas e a IN (GIGER, 2005; KOHN; WEINGART, 2004). Os gatos apresentam três tipos sanguíneos: A, B e AB, sendo que o gato AB possui tanto o antígeno eritrocitário A como o B na superfície das hemácias e não há gato sem antígenos eritrocitários, isto é, não há um similar tipo O como em humanos. Uma característica felina é a presença de altos títulos de anticorpos naturais que levam a reações transfusionais hemolíticas desde a primeira transfusão, sendo responsáveis pelo quadro de hemólise (PEREIRA; REICHMANN, 2008), reações transfusionais graves ou fatais e IN (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2004). Em cerca de 95 % da população de gatos há prevalência do sangue tipo A. A ocorrência do tipo sanguíneo B é baixa, compreendendo aproximadamente 5 % dos animais. Porém, essa incidência pode aumentar em animais de raça pura, chegando a 77 % em gatos da raça British Shorthair (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Outras raças nos quais é comum o tipo sanguíneo B são o Van Turco, Angorá (ARIKAN et al., 2003) e Persa (SCHUMACHER, 2012). Siameses e Tonquineses apresentam somente exemplares com tipo sanguíneo A (GIGER et al., 1991; KNOTTENBELT et al., 1999). O tipo AB é raro (GRIOT-WENK; GIGER, 1995) apesar de já terem sido identificados exemplares do tipo AB nas raças Sagrado da Birmânia, Abissínio, Somali, British Shorthair, Scottish Fold e Norueguês da Floresta (FORD; MAZZAFERRO, 2007). Entre março de 2007 e março de 2008, Gunn-Moore, Simpson e Day realizaram um estudo, publicado em 2009, no qual analisaram amostras de cem gatos adultos da raça Bengal, no Reino Unido, com o objetivo de levantar a tipagem sanguínea predominante nessa raça. Foram usados três métodos para avaliação, sendo dois 16 16 deles para possíveis falsos positivos. Cem por cento das amostras, no estudo final, foram do tipo A, concluindo-se que, para aquela população, há uma predominância de gatos tipo A, mas que esses fatores dependem da origem dos animais, importação ou exportação. Os antígenos de tipo sanguíneo são definidos por carboidratos em membranas de hemácias. A transmissão genética dos tipos sanguíneos em felinos é baseada em uma herança autossômica mendeliana em que o tipo A é completamente dominante sobre o tipo B. No entanto, ao contrário do que ocorre em humanos, o tipo AB não é resultado de herança codominante dos tipos A e B (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Gatos AB raramente são descendentes de acasalamentos entre gatos tipo A e B. O alelo AB parece ser recessivo em relação ao alelo A, mas dominante em relação ao alelo B. GRIOT-WENK; GIGER chegaram a essa conclusão, pois gatos do tipo AB são encontrados apenas em raças nas quais gatos com sangue tipo B foram observados. Os gatos portadores de sangue tipo B possuem hemolisinas e hemaglutininas anti-A de extrema potência. Gatos tipo A possuem hemolisinas e hemaglutininas anti-B que possuem menor potência (KNOTTENBELT, 2002). Dessa forma, gatos tipo A que recebem sangue tipo B podem desenvolver uma reação moderada que consiste em agitação, taquicardia, taquipneia e no encurtamento da vida das hemácias para dois dias (KOHN; WEINGART, 2006, PEREIRA; REICHMANN, 2008). Quando um gato tipo B recebe sangue tipo A, pode ocorrer uma reação hemolítica aguda, grave e irreversível, resultando no óbito do paciente. Essa reação se caracteriza por letargia, bradicardia, dispneia, arritmia cardíaca, sialorreia, emese, desordens neurológicas, defecação e micção espontâneas. Se o gato sobreviver, pode desenvolver taquicardia, taquipneia, hemoglobinemia e hemoglobinúria (KOHN; WEINGART, 2006). Assim, gatos tipo A só devem receber sangue tipo A, e gatos tipo B, sangue tipo B. Foi proposto que gatos com tipagem sanguínea AB não possuem anticorpos contra outros tipossanguíneos (PEREIRA; REICHMANN, 2008). As hemácias dos gatos tipo AB possuem ambos os receptores na superfície celular e, portanto há deficiência de aloanticorpos naturais (FORD; MAZZAFERRO, 2007). No entanto, há possibilidade de incompatibilidades antigênicas não relacionadas ao sistema AB. Provas cruzadas incompatíveis entre doadores e receptores do tipo AB, além de reações transfusionais após realização de transfusões com doadores e receptores pertencentes ao tipo AB foram descritas (BIGHIGNOLI et al., 2011). Em 2005, a partir da utilização de técnicas padrões em tubo e de coluna de gel, foi identificada a presença de um aloanticorpo cuja relevância era importante clinicamente, que se formava contra um antígeno eritrocitário felino, o qual foi denominado Mik (WEINSTEIN et al., 2007). A identificação da 17 17 compatibilidade pré-transfusional passou a ser mais complexa, uma vez que não basta a tipagem padrão devido à ausência de estudos de prevalência do antígeno Mik, ressaltando a importância de provas cruzadas pré-transfusionais (BIGHIGNOLI et al., 2011). O teste de compatibilidade detecta a presença de níveis séricos significativos de anticorpos contra antígenos das hemácias (KNOTTENBELT, 2002). Algumas técnicas foram desenvolvidas para realização de tipagem sanguínea, dentre elas, foi desenvolvido um cartão teste (Rapid VetRH Feline®, DMS Laboratories, Flemington, NJ, Figura 2). Caso a tipagem não seja possível, pode-se realizar um teste rápido de reação cruzada (cross matching), no qual se adiciona uma pequena amostra do sangue do doador com a amostra do receptor (KOHN; WEINGART, 2006). O teste de reação cruzada maior é realizado após a colheita do sangue do doador em um tubo com EDTA. Esse tubo é centrifugado a 3000 RPM por dez minutos. O sobrenadante é descartado e solução salina é adicionada ao precipitado, que é resuspenso. É novamente centrifugado, e todo o processo é repetido, por três vezes. Por fim, é adicionada solução salina a fim de deixar a solução a uma concentração de 3 a 5 %. Coloca-se uma ou duas gotas dessa solução em uma lâmina de vidro e instila-se uma ou duas gotas do plasma do receptor colhido em heparina. Observa-se aglutinação ou hemólise. Já o teste menor segue os mesmos passos, no entanto utilizam-se as hemácias do receptor para reação com o plasma do doador. É indicado realizar ambos os testes para evitar reações transfusionais pela impossibilidade de tipagem Mik (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011). Caso haja aglutinação, doador e receptor são incompatíveis. Os testes de reação cruzada maior e menor não previnem sensibilização aos antígenos, pois somente detectam os anticorpos presentes no doador ou receptor. Isso pode resultar em reações hemolíticas durante a transfusão. Para a transfusão do plasma, doador e receptor devem ser compatíveis. O cross-matching entre doador e receptor do mesmo tipo sanguíneo deve ser negativo. No entanto, em gatos que passaram por várias transfusões, mesmo se houver compatibilidade, poderão ocorrer reações (KOHN; WEINGART, 2006). 18 18 Figura 2: RapidVet-H® cartões de tipagem sanguínea de felinos. À esquerda, o paciente testado pertencia ao tipo A, e à direita, o paciente pertencia ao tipo B. FONTE: Barfield e Adamantos (2011) 1.5.Realização da transfusão sanguínea A via preferencial de administração é a intravenosa (IV), usando cateter de 16 G a 22 G. Em gatos filhotes ou animais com via IV inacessível, a via intraóssea é uma alternativa a ser realizada (GRIOT-WENK; GIGER, 1995) em região de fêmur proximal (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). O sangue deve ser transfundido com equipo especial com filtro. Durante a transfusão, o paciente não deve receber alimento, com objetivo de evitar a ocorrência de vômito. Neste momento também é contraindicado administrar qualquer tipo de fluido intravenoso simultaneamente (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). A infusão inicial, nos primeiros quinze minutos, deve ser lenta. Segundo Mathews (2006 apud SCHUMACHER, 2012) a velocidade de infusão deve respeitar cerca de 0,25 mL/kg/h para permitir a detecção de reações transfusionais agudas, especialmente as alérgicas e hemolíticas. Subsequentemente, dependendo do estado do paciente, a velocidade de infusão pode ser aumentada. Gatos normovolêmicos podem receber até 10 mL/kg/h, gatos cardiopatas devem receber de 1 a 4 ml/kg/h. Em caso de hemorragia grave, a transfusão deve ser realizada o mais rapidamente possível. A transfusão deve ser encerrada em até quatro horas, devido ao risco de contaminação e crescimento bacteriano (KOHN; WEINGART, 2006). O volume a ser transfundido depende do Ht e da condição clínica do paciente (KOHN; WEINGART, 2006). Pode ser calculado utilizando-se a fórmula demonstrada no Quadro 2. Esta fórmula estima que a cada 2 mL/kg de sangue total transfundido aumente o Ht do receptor em 1 %, assumindo-se que o doador tenha 40 % de Ht. Clinicamente, observa-se 19 19 que mesmo uma pouca quantidade de sangue que seja administrada ao paciente é suficiente para se observar melhora dos sinais clínicos (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011). Quadro 3: Fórmula para cálculo do volume de sangue total a ser infundido em pacientes da espécie felina. Volume de sangue a ser transfundido (mL) = P (Kg) x Fator x (Ht pretendido - Ht receptor) (Ht da bolsa) Fator: gatos = 70 FONTE: Pereira e Reichmann (2008) O Ht alvo para o receptor deve ser 20 %, embora na prática o Ht alcançado não chegue a esse valor (BARFIELD; ADAMANTOS, 2011). Gatos com coagulopatias recebem o plasma a uma dose de 10 mL/kg (KOHN; WEINGART, 2006). O sangue refrigerado deve ser suavemente aquecido até uma temperatura entre 22 e 37 °C imediatamente antes da transfusão, sendo mantido em temperatura ambiente de trinta a sessenta minutos ou em banho-maria a no máximo 37 °C por trinta minutos. Forno de micro-ondas não é recomendado, pois há risco de hemólise. Se a velocidade de infusão for muito lenta, o aquecimento não se faz necessário, uma vez que o sangue eSTARRá à temperatura ambiente (PEREIRA; REICHMANN, 2008). Tratamento prévio com antibióticos ou corticosteroides não foi comprovadamente eficiente para evitar reação transfusional em gatos, apesar de serem utilizados com frequência (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). 1.6.Reações transfusionais As reações transfusionais podem acontecer durante ou logo após a transfusão, e serem decorrentes da infusão de quaisquer componentes sanguíneos. Estas reações se dividem em reações agudas imunológicas (reação hemolítica aguda, pirexia não hemolítica, urticária e edema de face), reações agudas não imunológicas (desbalanços eletrolíticos como hipocalcemia, hipercalemia e hipomagnesemia, embolismo, choque endotóxico, sobrecarga circulatória, contaminação do sangue por bactérias, protozoários e espiroquetas, hipotermia, vômito), reações imunológicas tardias (hemólise tardia, púrpura pós-transfusional) e reações não imunológicas tardias (doenças infecciosas transmitidas, tais como FIV, FeLV, PIF, bartonelose e hemoplasmoses). As reações agudas acontecem durante a transfusão ou em um curto espaço de tempo após o término do procedimento (até 48 h) e as reações tardias em dias, 20 20 meses e anos após a transfusão. Em gatos, reações tardias não foram descritas (KOHN; WEINGART, 2006). Reações agudas decorrentes de incompatibilidade sanguínea são um risco à vida do paciente (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Todos os pacientes que recebem sangue total ou seus produtos devemser intensamente monitorados durante o procedimento de transfusão. As manifestações clínicas observadas durante uma reação transfusional incluem vocalizações, vômito, prurido, depressão, distrição respiratória, taquipneia, tosse, taquicardia ou bradicardia, tremores e convulsões. Uma vez que a reação seja grave, o paciente pode apresentar sinais de choque anafilático evoluindo para parada cardiorrespiratória e, caso apresente reações mais tardias, pode-se observar anorexia e icterícia (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). Em caso de reação anafilática, deve-se suspender imediatamente a transfusão e realizar avaliação clínica rigorosa a fim de determinar quais os passos terapêuticos serão necessários. Indica-se sondagem urinária, se possível, e utilização de cateter venoso central para que se possa avaliar o débito urinário e a pressão venosa central respectivamente. A fluidoterapia deve ser implementada para evitar lesão renal (FORD; MAZZAFERRO, 2007). Deve-se testar soro e urina para constatação de hemoglobinemia e hemoglobinúria respectivamente (KOHN; WEINGART, 2006). A gravidade da resposta hemolítica está diretamente relacionada ao número de eritrócitos destruídos (ABRAMS-OGG, 2000). Pode-se observar febre, inquietação, sialorreia, incontinência urinária e choque. As consequências da hemólise intravascular são hemoglobinemia, hemoglobinúria, vasoconstrição, isquemia renal em associação à falência renal aguda, CID e óbito (TOCCI, 2010). Deve-se interromper a transfusão, iniciar fluidoterapia com cristaloides e monitorar o paciente quanto a evidências de choque e CID. Se necessário, iniciar terapia contra choque (corticosteroides intravenosos) e fluidoterapia agressiva, suplementação de oxigênio, anti-histamínicos e adrenalina (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). O aumento de mais de 1 °C na temperatura corpórea durante a transfusão ou em até quatro horas após o procedimento é definido como reação adversa (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). A pirexia pode ter como causas a contaminação bacteriana do sangue ou uma reação aguda contra as plaquetas, leucócitos ou proteínas plasmáticas. Os anticorpos envolvidos nessas reações não podem ser detectados por meio de reações cruzadas. Deve-se, inicialmente, descartar hemólise. Em seguida, investiga-se a bolsa de transfusão quanto à contaminação bacteriana (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). Se a causa da pirexia for 21 21 contaminação bacteriana, é necessário iniciar imediatamente tratamento contra choque séptico. Se as suspeitas de hemólise ou sepse forem descartadas, a transfusão pode prosseguir lentamente (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Se a temperatura se elevar muito, pode-se utilizar antipiréticos, bem como o resfriamento do paciente (KOHN; WEINGART, 2006). O vômito ocorre comumente durante ou após a transfusão, sendo observado quando o paciente é alimentado imediatamente antes, durante ou logo após o procedimento (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Uma vez observado vômito, a transfusão é suspensa por no mínimo quinze minutos, devendo-se excluir outras causas de reações transfusionais. Geralmente é possível continuar a transfusão de forma mais lenta (GRIOT-WENK; GIGER, 1995, KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). O tratamento com antieméticos é também uma possibilidade (KOHN; WEINGART, 2006). A hipocalcemia é raramente relatada. Sua causa é correlacionada à utilização de excesso de citrato, por ele ser quelante de cálcio. Como o citrato é rapidamente metabolizado pelo fígado, a toxicidade desta substância só é problemática em pacientes com hepatopatias, como, por exemplo, a lipidose hepática. Também pode ocorrer em transfusões muito rápidas ou volumosas ou se a proporção do anticoagulante for inapropriada para a quantidade de sangue colhido. Suspeita-se de hipocalcemia ao se observar tremores, taquicardia ou convulsões. O tratamento é a administração de gluconato de cálcio lentamente, por via IV, com monitoramento contínuo por meio de eletrocardiograma (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). Hipercalemia e hipomagnesemia também podem ser observadas (KOHN; WEINGART, 2006). É possível ocorrer sobrecarga circulatória resultando em edema pulmonar secundário associado à presença de distrição respiratória. Os principais candidatos a sofrerem este problema são os gatos cardiopatas, pacientes portadores de anemia crônica ou aqueles submetidos à fluidoterapia prévia ou simultânea à transfusão. Uma opção para se evitar a sobrecarga circulatória em pacientes nessas condições é a transfusão de concentrado de hemácias, caso somente eritrócitos sejam requeridos. O tratamento da sobrecarga circulatória inclui a interrupção da transfusão, administração de furosemida e oxigenioterapia (GRIOT-WENK; GIGER, 1995). A velocidade de administração do sangue deve ser adequada à condição do paciente (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). 22 22 A urticária e outras manifestações clínicas da hipersensibilidade do tipo I ocorrem devido a alérgenos não relacionados ao tipo sanguíneo, que interagem com IgEs e ativam mastócitos. Estas são reações raras em gatos. Contudo, diante à sua ocorrência deve-se imediatamente suspender a transfusão (GRIOT-WENK; GIGER, 1995) e administrar fármacos anti-histamínicos, como a difenidramina na dose 2 mg/kg via IV, glicocorticóides como o succinato de metilprednisolona 20 mg/kg via IV (KOHN; WEINGART, 2006, PEREIRA; REICHMANN, 2008). Na correção dos sinais clínicos a transfusão pode ser continuada, mas em menor velocidade. Agentes infecciosos, como os retrovírus (FIV e FeLV), o vírus da PIF e hemoplasmas podem ter sua transmissão evitada testando-se os doadores. No entanto, esse risco não será completamente eliminado (KNOTTENBELT; BLACKWOOD, 2006). No caso do FeLV, gatos sadios que foram expostos ao contato com gatos positivos para esse agente viral devem ser testados após doze semanas. Alguns gatos apresentam resultados discordantes quando realizados testes de ELISA e isolamento viral. Igualmente ao FeLV, os testes para diagnóstico da FIV nos gatos doadores não devem ser realizados antes de doze semanas posteriores à mordedura por outro gato suspeito ou sabidamente positivo para FIV. Pode haver resultados falso-positivos ou falso-negativos devido a erros técnicos com a utilização de sangue total, mais comumente que nos testes realizados com soro sanguíneo. Até 10 % dos gatos infectados pelo FIV podem não apresentar anticorpos detectáveis devido à infecção inferior a doze semanas, carência relativa ou absoluta de anticorpos ou falha do teste em detectar os anticorpos (RAMSEY et al., 2010). 1.7.Alternativas para a impossibilidade de transfusão sanguínea A autotransfusão consiste em reinfundir em um paciente seu próprio sangue. Suas vantagens são a disponibilidade imediata de sangue, a compatibilidade do sangue a ser infundido com o sangue do paciente e, assim sendo, evita-se reações transfusionais. A temperatura do sangue infundido é a mesma do paciente, elimina-se o risco de doenças infectocontagiosas, redução de riscos de sobrecarga circulatória, hipocalcemia, hipercalemia, acidose metabólica, altos níveis de 2,3-difosfoglicerato e baixo custo. Para se realizar o procedimento de autotransfusão, deve-se filtrar o sangue a ser reinfundido a fim de se evitar microembolia. A sucção do sangue é então realizada a uma pressão menor que 60 mmHg para colheita do sangue da cavidade peritoneal, torácica ou de ambas, devendo ser realizada com aparelhos e sistemas estéreis. A utilização de anticoagulante é aindaquestionável, uma vez 23 23 que quando o sangue entra em contato com a pleura ou o peritônio por períodos superiores a uma hora, não coagula mais, pois se apresenta desfibrinado. Complicações podem ocorrer durante ou após a realização da autotransfusão, e são classificadas como hematológicas ou não hematológicas. As principais complicações hematológicas são a hemólise, as coagulopatias, sepse, disseminação de tumores malignos, microembolia e embolia gasosa (PURVIS, 1995). Anti-anêmicos podem ser utilizados para o tratamento da anemia crônica, visando estimular a eritropoiese (PEREIRA; REICHMANN, 2008). A eritropoietina é um fator de crescimento hematopoiético que estimula a eritrogênese em resposta a uma anemia, sendo responsável por estimular diretamente a maturação dos eritrócitos na medula óssea por ligação aos receptores de fatores de crescimento nos precursores dos eritrócitos (LANGSTON, 2011). A eritropoietina recombinante humana tem sido utilizada com sucesso no tratamento de anemias intensas em associação à doença renal crônica em gatos (PEREIRA; REICHMANN, 2008). A eritropoietina recombinante felina ainda não está disponível comercialmente (RANDOLPH et al., 2004). As indicações para o uso da eritropoietina são as anemias decorrentes de doença renal crônica, quimioterapia antineoplásica, doenças mielodisplásicas, doenças imunossupressoras virais e autotransfusões pré-operatórias. O tratamento é realizado com inicialmente 100 U/kg três vezes por semana, reduzindo posteriormente para 50 a 100 U/kg uma a duas vezes por semana, sempre por via subcutânea (SC). Possíveis complicações do uso da eritropoietina recombinante humana incluem anemia, hipertensão sistêmica por vasoconstrição periférica devido à hipercalcemia, convulsões, vômito, deficiência de ferro, desconforto à aplicação, reações cutâneas, celulite, febre, artralgia, policitemia e aplasia pura de células vermelhas (LANGSTON, 2011). O decanoato de nandrolona é um andrógeno sintético anabolizante utilizado na regeneração sanguínea. É indicado como estimulador inespecífico da hematopoiese, sendo utilizado como coadjuvante na correção de anemia por tratamento agressivo com quimioterápicos antineoplásicos. A dose para gatos é 1 a 1,5 mg/kg, por via intramuscular (IM), uma vez por semana. Outros estimulantes da medula óssea, dentre eles a oximetolona e a timomodulina têm sua eficácia em animais domésticos pouco estudada. Uma complicação do uso indiscriminado de anabolizantes são as hepatopatias, pois são medicamentos hepatotóxicos (PEREIRA; REICHMANN, 2008). 24 24 Uma alternativa para a transfusão de concentrado de hemácias é a utilização de um carreador de oxigênio baseado em hemoglobina (HBOC). Trata-se de hemoglobina polimerizada ultrapurificada de origem bovina. No entanto, esta alternativa ainda não está disponível para pacientes da espécie felina (KOHN; WEINGART, 2006). 25 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS A terapia transfusional tem mais de quatrocentos anos de história e, hoje, é uma ferramenta fundamental para a Medicina Veterinária. Dos princípios básicos da tipagem sanguínea, passando pela escolha de doadores, escolha das técnicas de doação que ofereçam maior conforto para os animais selecionados como doadores, a decisão sobre a necessidade ou não de transfusão, a escolha do componente a ser transfundido, a tipagem sanguínea e a compatibilidade entre doador e receptor, a ciência das possíveis reações transfusionais e o conhecimento de toda a prática da medicina transfusional, é importante para a prática da clínica médica de felinos. Gatos possuem particularidades que devem ser sempre parte integrante do processo de cura, independente de qual seja ele. Portanto, há necessidade de reconhecer as peculiaridades da espécie felina para otimizar tanto o procedimento transfusional quanto a resposta do paciente. O conhecimento completo da técnica, dos riscos inerentes ao processo, da necessidade de estabilização do animal e definição da causa primária da anemia também são fundamentais. 26 26 REFERÊNCIAS ABRAMS-OGG, A. Practical blood transfusion. In: DAY M. J.; MACKIN A.; LITTLEWOOD J. D. Manual of Canine and Feline Haematology and Transfusion Medicine. Gloucester (UK): British Small Animal Veterinary Association; p. 268-75, 2000. ARIKAN, S.; DURU, S. Y.; GURKAN, M.; AGAOGLU, Z. T.; GIGER, U. Blood type A and B in Turkish Van and Angora cats in Turkey. Journal of Veterinary Medicine, v. 50, ed. 6, p. 303-306, 2003. BARFIELD, D.; ADAMANTOS, S. Feline blood transfusions. A pinker shade of pale. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 13, p. 11-23, 2011. BIGHIGNOLI, B; OWENS, S.D.; FROENICKE, L; LYONS, L.A. 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