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CAPÍTULO I COSMOVISÃO Os homens de nosso século são seres arrebentados, dilacerados, que em seu medo de ver sua unidade de significação se estabelecer numa história da qual eles não são mais os únicos senhores, preferem negar que existe uma unidade de sentido. Pierre Trotignon 1.0. CONCEITUAÇÂO É comum em todo ser humamo o desejo de conhecer a realidade, entendendo-se por esta tudo o que existe, desde o universo, os seres, as coisas, até os fenômenos naturais e sociais. Nossa existência se caracteriza por uma busca permanente de significado para a vida e os acontecimentos. Essa vertiginosa aventura à procura de conhecimento é tipicamente humana. Só o homem se define como animal racional, isto é, como ser capaz de formular conceitos abstratos para aquilo que ouve, sente e observa. Disto resulta uma concepção de realidade, ou melhor, uma cosmovisão, integradora de todos os fenômenos que fornece ao homem um sentido de harmonia ao universo. O homem de hoje, como o de outrora, necessita sentir-se seguro diante da vastidão cósmica. E essa segurança advém do sentimento de posse da realidade, já que sabe explicá-la por meio de palavras. Sem uma cosmovisão, a vida perde o seu sentido. Martin Heidegger (1988) certa vez afirmou que a 2 ausência de ordem e, portanto, de cosmos era o que havia de mais intolerável. Isto significa que a condição humana se define essencialmente por uma busca contínua de ordenação das coisas, uma busca de significado para si mesma e para o mundo. A compreensão da realidade situa o ser no mundo, torna-o senhor de si e de tudo que o rodeia, liberta-o da angústia do desconhecido e do inominado. Com efeito, o modo como o ser humano apreende a realidade, a partir do espaço-tempo em que se insere, é o que denominamos cosmovisão. Vale ressaltar, porém, que essa forma de ver o mundo não é uma criação isolada de um indivíduo, mas a soma dos múltiplos aspectos de uma cultura produzidos pela consciência coletiva num determinado contexto sócio-histórico. A cosmovisão é, assim, uma construção coletiva que expressa uma maneira de interpretar a realidade entre outras possíveis. Essa totalidade significativa é apenas um arranjo provisório que se mantém até onde a coletividade se sente segura. Quando, no entanto, este conjunto de crenças e valores, costumes e tradições, mitos e saberes não é mais capaz de assegurar a tranqüilidade espiritual da coletividade, os elementos que compõem a mundividência começam a se desintegrar e, aos poucos, cedem lugar a novas significações. 2.0. O HOMEM: LINGUAGEM, HISTÓRIA, TRABALHO E CULTURA. Do ponto de vista social e cultural, o homem é um ser inacabado, um ser que está no mundo em permanente desafio. Sua efetivação não está de antemão garantida, mas submetida a situações determinadas, carecendo de vencer os obstáculos que a própria natureza e a cultura se lhe impõem a cada instante. Ele está sempre sob o apelo de criar as condições necessárias para efetivar-se no mundo -- espaço de múltiplas relações -- onde, pelo conhecimento e pela ação tenta articular uma configuração de si mesmo. Livre do peso determinante dos instintos, o homem se encontra na contingência de criar um mundo onde possa viver humanamente. Ser ativo, autodeterminado e determinante, ele se desenvolve e se aperfeiçoa através da participação na obra de sua autoconstrução, junto com os outros homens. Em interação constante com o meio, carecendo de desenvolver suas potencilidadedes, ele é muito mais possibilidade do que efetivação, mais liberdade do que predeterminação, mais subjetividade do que objetivação. Ele sabe que é interpelado a decidir-se não só em relação a si mesmo, mas também em relação a seu mundo. É no exercício da 3 liberdade que ele descobre o seu rumo e constrói o seu “destino’’. Liberdade é relação com a natureza e com o mundo dos homens; é decisão livre a respeito da forma, da configuração específica desse encontro com a alteridade (o outro). Emergindo como ser da liberdade, o homem, mais uma vez, se revela como ser de possibilidade, que só se efetiva quando se transforma em projeto e ação. Ao contrário dos animais, que se repetem e não progridem, o homem, a cada geração, não pode ser o que já é. Seu ser social está em constante evolução. Para Nietzsche (1844-1900), o homem é o animal que jamais se define. Sua essência é mutação. Por mais que construa, conheça e projete ações, nunca chega a exaurir a profundidade misteriosa de si mesmo. Em suma, o homem é sempre esse conhecido desconhecido. 2.1. A LINGUAGEM A natureza é muda. Embora pareça estar expressando algo por meio de suas formas, suas paisagens, suas tempestades ruidosas, suas erupções vulcânicas, sua brisa ligeira, a natureza não responde. Os animais reagem de maneira que tem sentido, mas não falam. Só o homem fala. Só entre os homens existe essa alternância de discurso e resposta continuamente compreendidas. A linguagem possibilita ao homem exprimir sua existência no ser, na qual ouve e vê, sente e se emociona, deseja e espera, raciocina e conhece, se alegra e se entristece, sofre e se angustia. O homem possui uma existência expressiva. De acordo com Paul Ricoeur (1978), É na linguagem que o cosmos, o desejo, o imaginário se elevam até a expressão. Sempre é necessária uma palavra para retomar o mundo e convertê-lo em hierofania (p.15). Na esfera do símbolo, o homem articula o sentido do seu ser, o significado de toda a realidade e de seu agir no mundo. O mundo propriamente humano é o mundo do sentido. É precisamente enquanto ser do sentido, lingüisticamente expresso, que o homem se torna capaz de conhecer sua realidade (teoria) e de agir (prática) na feitura de um mundo humano, isto é, de um mundo “sensato”. O específico do sentido é que ele se exprime na linguagem, pela qual 4 aquele que fala tem já a pretensão de validade do seu discurso, mas que, em princípio, está vulnerável a um questionamento crítico. Isto decorre do próprio processo de entendimento mediatizado pela linguagem, onde se busca um consenso racional radicado em razões que podem ser explicitadas através da mediação da argumentação. Falar é criar o mundo do sentido; este mundo, agora, emerge como o mundo onde sujeitos interagem, criando uma série infinita de imagens que revelam a realidade sob múltiplas formas. O pressuposto deste processo é que os sujeitos se constituem como tal na medida em que, precisamente pela ação lingüística, se põem na esfera da constituição do sentido e, assim, se capacitam a conhecer o real e a agir a partir do sentido captado. Isto significa que cada falante é interpelado a reconhecer seu parceiro (interlocutor) como ser que conhece o significado da realidade e age sobre ela como ser de igual dignidade. 2.2. A HISTÓRIA. Como vimos anteriormente, a vida humana é constante processo de auto-elaboração. Isto significa que o homem tem necessidade de se produzir a si mesmo através da mediação da natureza. Com efeito, ele emerge como um “ser carente”, ou seja, como um ser que tem necessidades naturais a serem satisfeitas. Seu fazer-se é, antes de mais nada, a “luta pela vida”, isto é, pela conquista das condições materias que tornem a vida humana possível. Nesta perspectiva, a ação do homem no mundo se vincula à inexorabilidade do processo histórico, à tessiturados acontecimentos que configura o progresso da humanidade como um todo e a evolução ou involução de uma cultura em particular. Temos aqui o fundamento da liberdade humana: a escolha incondicionada entre diferentes possibilidades. A partir dessa escolha assumida conscientemente, o homem se faz sujeito da história. Seus ideais e suas utopias orientam a sua ação e dão significado à própria vida. O indivíduo que não toma consciência do seu existir histórico sofre a angústia de apenas contemplar o desenrolar dos acontecimentos. 5 A história, portanto, pode ser concebida como a ciência da mudança das condições de existência do homem impulsionadas pela sua ação sobre o meio ambiente. Noutras palavras, a história é o relato da ação de nossos antepassados, que nos trouxeram até o ponto de onde prosseguimos incansavelmente. A história constrói a realidade que é a composição de elementos conjunturais e estruturais. O exame da conjuntura revela sempre as aparências, os aspectos parciais, instantâneos, imediatos, momentos da realidade; já o estudo da estrutura mostra as raízes, os fundamentos, a substância da realidade. Em termos históricos, a realidade se apresenta tecida de uns e outros elementos, mas por motivos óbvios, os conjunturais dominam a visão e compreensão da realidade. É preciso ter claro que a realidade é mais que a nossa visão conjuntural -- esta concepção superficial típica do senso comum dos indivíduos. Compreendemos mais e melhor a ação dos homens na história, tanto mais nos conscientizamos de ser sujeitos ativos no processo histórico. Fora de nossa existência na história, não dispomos de nenhum fio de Ariadne capaz de conduzir-nos à autenticidade. Sem história, vemo-nos privados de linguagem que nos permita indiretamente falar das origens de que brotamos e que nos sustentam . 2.3. O TRABALHO Dissemos que o homem é um ser que busca a satisfação de suas necessidades. Isto é mediado pelo trabalho transformador da natureza, no qual o homem imprime seus fins às coisas. O trabalho está, pois, a serviço da satisfação das necessidades humanas, ou seja, está situado em seu projeto de vida. Por intermédio do trabalho, o homem acrescenta um “mundo novo” (cultura) ao mundo natural já existente. O trabalho é, portanto, elemento essencial da relação dialética entre o homem e a natureza, entre o saber e o fazer, entre a teoria e a prática. Nesse sentido, o trabalho é uma atividade tipicamente humana, porque implica a existência de um projeto mental que determina a ação a ser desenvolvida para alcançar o objetivo almejado. O trabalho permite ao homem desenvolver sua criatividade, realizar suas potencialidades, mudar a si mesmo e transformar a natureza em cultura. Numa palavra, o trabalho é o elemento 6 fundamental do processo de autogênese do homem enquanto ser histórico, enquanto agente de transformação da natureza e de produção da cultura. 2.4. A CULTURA Quando nos colocamos diante da palavra cultura, a primeira concepção que nos ocorre é a de que ela significa a manifestação dos costumes de um povo ou o conhecimento adquirido e acumulado por determinada pessoa. Entretanto, se refletirmos sobre estas concepções, logo veremos que são insuficientes para abranger de forma adequada toda a riqueza que este fenômeno engloba. Não passa pelo senso comum que a cultura é, antes de tudo, um conjunto de atos concretos e simbólicos criados pelo homem para conceder um “sentido” ao mundo e a si mesmo. Ainda que esta conceituação seja de âmbito fenomenológico 1 , ela nos parece mais adequada para caracterizar a cultura como um fenômeno especificamente humano. A cultura nasce da experiência de um povo (e não de um indivíduo ou de algumas pessoas isoladamente) e se manifesta na sua cosmovisão, englobando todas as criações da coletividade nos planos materiais (objetos), comportamentais (modos de agir, costumes) e espirituais (instituições, saberes, ideologias, manifestações religiosas e artísticas). São inúmeros os exemplos que podemos extrair do cotidiano para atestarmos a riqueza dos simbolismos que concedemos aos fenômenos: a multiplicidade de formas de confeccionar os alimentos, a variedade da moda nos vestuários, a diversidade de códigos linguísticos, de gestos, de culto ao sagrado etc. Isto significa que o homem é o único ser que não se repete. Só ele produz culura na medida em que cria símbolos para expressar seus sentimentos, atribui valores às coisas e transforma a natureza para atender às necessidades de sobrevivência e bem-estar. Com efeito, a cultura não é um dom gratuito, mas o resultado de um esforço perseverante do homem no afã de conhecer o universo e a si mesmo, 1 Designação daquilo que é apreendido pela consciência a partir dos elementos manifestados pelo objeto, sem se restringir aos dados concretos, mas sim às idéias que fornecem “sentido” para a existência do mesmo. 7 manifestar sua criatividade e transformar o meio em que vive. Isto ocorre porque o homem é livre com respeito às suas ações e seus projetos. O meio o influencia, mas não o determina, o que dá origem a diferentes formas de organização do espaço físico e social. Os povos se diferenciam uns dos outros pela sua cultura . Há tantas culturas, tantas civilizações, quantas forem as sociedades distintas. Enquanto aquilo que é universal, comum a todos os homens, revela sua natureza, tudo o que aparece relacionado à cultura traz a marca da diversidade e da relatividade. Há, por isso, vários sistemas filosóficos, políticos, econômicos, vários modos de organização social, vários estilos de arte, várias religiões, vários códigos de moralidade etc. Ao mesmo tempo que a cultura é produzida pelo homem, ela também produz um certo tipo de pessoas, pois a cultura na qual nascemos nos condiciona e nos imprime marcas que vão caracterizar o nosso modo de ser. Por isso, para convivermos harmoniosamente com pessoas e grupos tão diversos culturalmente, é necessária a prática da tolerância sem a qual torna-se impossível estabelecer o diálogo entre as culturas. A tarefa educativa propõe e favorece esta tolerância em relação ao outro, enquanto portador de valores próprios e diferentes dos nossos. A capacidade de aceitar, respeitar e comungar a diferença constitui o vigor da personalidade humana ou da identidade pessoal. Isto nos obriga a estar constantemente abertos e receptivos para o diferente e o novo e nos incita a desinstalar-se e a arriscar-se. 3.0. A FORMAÇÃO DOS CONHECIMENTOS Durante milênios, a “memória” da humanidade colheu fatos esporádicos dos eclipses do sol e da lua, das grandes inundações, dos terremotos e maremotos, pretendendo descobrir as origens do mundo e da vida, a causa da morte natural, a estrutura e a organização do corpo humano etc. Contudo, até o século VI a. C., aproximadamente, o homem não era capaz de generalizar e sistematizar esses fatos separadamente. A sua inteligência não estava suficientemente desenvolvida para sintetizar as idéias das coisas e dos fenômenos, sendo incapaz de se abstrair das particularidades. A tendência dominante era no sentido de abordar as abstrações como se fossem coisas reais, 8 devido a incapacidade de separar as formas abstratas das concretas. Como exemplo disso, podemos citar o famoso mito de Pandora no qual o mal toma a forma de um objeto concreto: na casa de Epimeteu havia uma caixa que guardava todos os males. A sua mulher, curiosa eintrigada, abriu-a e os males se espalharam pelo mundo inteiro. Foi assim, segundo o relato mítico, que o mal apareceu entre os homens. A percepção do real por meio de imagens concretas, visíveis, é característica de uma determinada fase do desenvolvimento da humanidade. Para generalizar, é preciso saber distinguir o substancial do acidental, o necessário do contingente, a causa do efeito. Esta capacidade não surgiu imediata e espontaneamente; é produto de uma longa trajetória do homem em seu desejo de explicar a realidade, em seu esforço para compreendê-la e assim tornar a vida melhor. No curso dessa trajetória, o homem foi construindo o conhecimento em suas múltiplas formas, como veremos a seguir. 3.1. O MITO O mito foi a primeira forma de conhecimento adquirido pelo homem em seu esforço para compreender e explicar a realidade. Na sua incapacidade de explicar os fenômenos naturais e de formular conceitos abstratos, o homem recorreu a entidades sobrenaturais, em busca de um sentido para o mundo e para os acontecimentos que envolviam sua própria vida. 3.1.1. Origem e características O mito conhece duas fontes de origem, uma interior e outra exterior. Noutras palavras, o homem é dotado de certas matrizes, arquétipos ou representações simbólicas que assimilam conteúdos vindos da realidade exterior e dão origem aos mitos e símbolos históricos. O mito, portanto, emerge de uma atmosfera de simbiose amorosa do homem com seu meio, sem rupturas nem divisões, fundindo-se aquilo que no horizonte da razão aparece como oposto: sujeito (aquele que conhece) x objeto (a realidade a ser conhecida). As categorias do pensamento mítico são a imaginação, a fantasia e a 9 emoção. Seu objeto é a apresentação de um conjunto de ocorrências fantásticas com que se procura dar sentido ao mundo e à vida. Seus personagens são os entes sobrenaturais e os homens elevados à categoria de heróis. Sua linguagem encerra profundo conteúdo existencial, na medida em que traduz os anseios da natureza humana e, por isso mesmo, a revela a seu modo. Sob múltiplas formas, o mito aparece em todas as culturas desde as mais primitivas até as atuais. Ele se relaciona com a questão das origens cósmicas e humanas, a origem das instituições, a busca da felicidade, os êxitos e os fracassos do homem. Como diz Constança Marcondes Cézar, O mito sintetiza, recorrendo a símbolo, conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede de absoluto e de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude (In: Morais, 1988, p. 37-38). Mircea Eliade (1972), procurando caracterizar o mito, afirma que "é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares" (p.11). Em seguida diz: A definição que me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser (Eliade, 1972, p. 11). 3.1.2. Função do mito O mito aparece e funciona como mediação simbólica entre o sagrado e 10 o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres. Sua função é conferir à natureza uma dimensão humana, ligando o tempo do homem ao tempo da natureza por meio de uma história exemplar. Em sua forma principal, o mito é cosmogônico ou escatológico, tendo o homem como o ponto de interseção entre estado primordial da realidade e sua transformação última, dentro do ciclo permanente nascimento-morte, origem e fim do mundo. O mito não é o elenco de narrativas inventadas e "falsas", como dizia o racionalismo de origem iluminista 2 . Não é algo que se oponha à realidade; ao contrário, ele é a própria realidade, tanto para o membro de uma comunidade primitiva, quanto para o homem de nossa sociedade. Enquanto ligado à experiência religiosa, o mito envolve um tipo de compreensão do real diverso da experiência racional. Impregnado de emoção e simbolismo, o mito contém a reminiscência de uma ordem universal primordial em que se engendrou a tessitura da vida presente, constituindo-a e justificando-a. Assim, trabalho, pobreza, riqueza, violência, existem em razão de atos ancestrais. Por isso, o mito é dado como verdadeiro porque se vê na vida social a confirmação da cosmogonia, passando sempre como história exemplar, um modelo a ser conhecido. A cosmogonia fornece o padrão ideal para os homens cada vez que se realiza qualquer ato, tanto na esfera coletiva quanto na particular. Segundo Malinowski (Myth in primitive psychology, 1926), O mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática (...). Essas histórias constituem para os nativos a expressão de uma realidade primeva [primeira], maior e mais relevante, pela qual são determinados a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade. O conhecimento dessa realidade revela ao homem o sentido dos atos rituais e morais, indicando-lhe o modo como deve executá-los (Citado por Eliade, 1972, p. 23). A realidade apresentada pelo mito de forma simbólica é a realidade transcendental desconhecida que se encontra além da observação e da simples 2 O iluminismo foi um movimento intelectual do século XVIII que estabeleceu a supremacia da razão como fonte de todo o conhecimento, desprezando outras formas de interpretação da realidade. 11 dedução, mas que pode ser reconhecida como existente e operativa. Essa realidade é captada e representada com fatos (e não com abstrações) em forma de história. Esses fatos são o resultado das ações e interações de seres pessoais em escala cósmica, constituindo o modelo e o fundamento dos acontecimentos no mundo dos fenômenos. Não se trata de causalidade como entendem a filosofia e as ciências, mas de uma abordagem da realidade intuitiva, da qual não podemos exigir estrutura lógica. Por conseguinte, o mito não implica em falsidade, mas sim em verdade, na medida em que é apenas uma parte essencial dos modelos de pensamento e de discurso humanos. É, pois, um modo de pensar diferente daquele da racionalidade. É um outro acesso à realidade e, por isso, uma forma própria de totalizar as experiências humanas. O pensamento mítico não trabalha com conceitos. Está mais próximo da realidade concreta tal como ela aparece à nossa percepção. Suas representações são menos abstratas do que aquelas que o conceito produz. 3.1.3. O mito hoje Desde a filosofia grega (século VI a.C.), até a ciência atual, o homem tem usado a razão para afirmar ou negar a existência de algo que transcende a sua percepção sensorial. No desejo de estabelecer relações de causa e efeito entre os fenômenos, o pensamento categorial encarregou-se de negar o valor do mito como forma de acesso à realidade. De posse do logos(razão), o homem arrogou-se ser capaz de explicar o mundo e seus fenômenos a partir de princípios lógicos (filosofia) ou de processos experimentais (ciência). As imagens e as representações míticas passaram a ser concebidas como produtos do misticismo peculiar à “mentalidade primitiva”, ou seja, uma primeira tentativa de estabelecer ordem no caos. Instalou-se o preconceito em relação ao mito. O pensamento verdadeiro não poderia ter outra origem senão ele próprio. No entanto, os esforços realizados por filósofos e cientistas para explicar o universo e “racionalizar” o conhecimento não foram capazes de banir o mito da consciência humana, não só porque a razão é insuficiente para dar conta de toda a realidade, mas também porque o homem traz em si mesmo a capacidade de transcender-se e de expressar sentimentos que o pensamento categorial não tem condições de sintetizar nem tampouco mensurar. O mítico em nós não é apenas uma categoria do nosso passado histórico; é uma categoria do nosso presente psíquico, pois faz parte de nossa 12 arqueologia interior que continua viva e atuante hoje, como atestam os psicanalistas. A realização pessoal e a saúde humana dependem muito do modo como nos relacionamos com esta realidade e como o consciente reage face aos conteúdos do inconsciente, seja acolhendo-os e integrando-os, seja inimizando- se com eles e recalcando-os. É por isso que o mito resiste a toda tentativa de seu banimento. Ele está presente tanto na consciência do homem primitivo quanto na do homem contemporâneo e se manifesta não só sob a forma de magia mas também como ciência, arte, religião, filosofia etc. Ao perceber a impossibilidade de dissociar razão e mito, Mircea Eliade (1972) caracteriza o homem como um ser mitologizante. As festas de aniversário, casamento, formatura, passagem de ano, relembram os ritos de passagem da comunidade primitiva. As liturgias religiosas, as lendas, os contos literários , a procura desenfreada pela literatura de auto-ajuda, o interesse pelas notícias de “discos voadores”, os ídolos do mundo artístico e desportivo, os fanatismos ideológicos, os super-heróis das histórias em quadrinhos, o desejo de possuir objetos “sagrados”e “mágicos”, a consulta aos horóscopos, denotam a sobrevivência dos arquétipos míticos. Ao reconhecer o papel do mito na estruturação do ser-no-mundo, não se quer dizer que todos os mitos são válidos. Há que se admitir que muitos deles são prejudiciais ao homem e, portanto, devem ser rechaçados. Como ensina Gusdorf (1979): O mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não é da sua atribuição autorizar tudo que sugere. Nossa época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça quando seu fascínio se exercia sem controle. A sabedoria é um equilíbrio. O mito propõe, mas cabe à consciência dispor. E foi, talvez, porque um racionalismo estreito demais fazia profissão de desprezar os mitos, que estes deixados sem controle, tornaram-se loucos. De modo algum o reonhecimento dos mitos é a rejeição da razão, a recusa da moral. Muito ao contrário, as grandes épocas da civilização definiram sempre sob a forma de um ideal mítico o seu estilo de vida (...). A mitologia oferece, pois, um inventário das possibilidades humanas, uma escrita cifrada que desenvolve todas as intenções implícitas constituídas do ser no mundo. Cada época da cultura 13 recomeça a obra de exprimir as estruturas do homem nas linguagens do tempo, linguagem da arte, linguagem da política e da filosofia. De idade a idade, as formas de expressão se renovam, mas na tapeçaria de Penélope que é a história, a trama permanece. Esta trama nós a encontramos no testemunho dos mitos, nesta unidade de inspiração que os mantêm atuais, mesmo quando parecem desaparecidos. O mito data e não data porque é contemporâneo da humanidade. Permite que o homem tome consciência, no tempo, de sua vocação para além do tempo (p. 308-309). 3.2. A RELIGIÃO Entre as diversas manifestações da cultura, a que mais singulariza o homem no reino animal é, sem dúvida, a religião. Nos mais primitivos registros arqueológicos de todas as culturas, encontram-se referências ao sagrado, seja através da arte rupestre ou por meio dos vestígios de rituais de magia deixados nas aldeias pré-históricas. E não só as culturas primitivas, mas também as atuais têm marcas profundas do sagrado, o que faz da religião um fenômeno co-natural à existência humana. Por isso, podemos afirmar que o homem, além de sapiens, sociales, faber, loquens, ludens, é também religiosus. 3 3. 2. 1. Manifestação do sagrado De um modo geral, reconhece-se como manifestação do sagrado tudo o que o homem faz com o propósito de transcender à ordem natural. Assim, tanto os rituais de magia praticados pelo homem primitivo quanto as formas litúrgicas mais abstratas das religiões atuais são expressões do sagrado que configuram uma outra dimensão existencial humana: a do seu relacionamento com o transcendente. A emergência do sagrado é contemporânea da fase mítica da 3 A antropologia assinala como caracteres que diferenciam o homem dos animais a racionalidade, a sociabilidade, a capacidade técnica, a linguagem articulada, a atividade lúdica e a religiosidade. 14 consciência humana. Muito embora não se possa confundir mito e religião, ambos têm um núcleo comum em suas origens e desenvolvimento: a capacidade humana de criar símbolos, não só para representar as coisas e os seres, mas também para expressar sentimentos e experiências pessoais. Através do símbolo, o homem refaz e rediz a realidade no nível do imaginário. Neste processo, entra em ação a carga arquetípica de nosso inconsciente pessoal e coletivo para exprimir de forma mais densa e abrangente aquilo que outros acessos não conseguem dizer. É neste contexto que emergem das profundezas arqueológicas do inconsciente humano, as evocações e analogias que dão suporte ao discurso religioso, rico de imagens e símbolos. Quem mergulha fundo em realidades cujo significado não deixa o homem indiferente, como o amor, a doença, a morte de um ente querido, a aquisição de um bem fundamental, a realização de um desejo, sabe que o conceito é insuficiente para exprimir o sentimento que brota do interior do ser. Somente através de gestos simbólicos (mito, magia, religião) e de formas criativas de representação (arte) se pode expressar a carga de sentimentos que brotam dessas vivências. No âmbito religioso, as relações do homem com o sagrado são tão significativas que adquirem uma característica de mistério -- algo definitivamente indecifrável. Mesmo assim, o mistério não constitui uma realidade que se opõe ao conhecimento. Paradoxalmente, ele pode ser conhecido, não de modo objetivo, mas subjetivamente. O mistério não é o limite da razão. Por mais que conheçamos uma realidade, jamais se esgota nossa capacidade de conhecê-la mais e melhor. Aquilo a que chamamos realidade apresenta-se incomensuravelmente maior que a nossa razão e a nossa vontade de dominar pelo conhecimento. Não há melhor meio de acesso ao conhecimento do mistério que envolve as relações do homem com o sagrado do que o coração. Com ele podemos dar sentido ao discurso religioso, estabelecer a “lógica” da fé e explicar nossa simpatia por tudo que envolve o sagrado. Albert Einstein, em seu ensaio Como vejo o mundo (1981), escreveu: O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É este sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência.Se alguém não conhece esta sensação ou não pode experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos cegaram. Aureolada de temor é a realidade secreta do mistério que constitui também a religião (p. 12). 15 A capacidade de percepção do mistério é fundamental tanto para o filósofo quanto para o cientista, porque lhes permite ficar sensível àquelas dimensões da realidade impossíveis de serem apreendidas pela razão lógica ou pelas fórmulas científicas que estreitam os limites do nosso conhecer. Freqüentemente, Einstein (1981) repetia: Afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa científica. (...) O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica ( p. 22-23). A ciência e a técnica nos proporcionam grande quantidade de conhecimentos, mas são insuficientes para a exploração de todas as nossas vivências subjetivas. Elas dizem quase nada sobre nós mesmos, deixando-nos com uma sensação de alienação de nossas profundezas espirituais. Isoladas, sem esse complemento espiritual, a ciência e a técnica nos fazem sentir alienados uns dos outros e do mundo. Em decorrência disso, Leonardo Boff (1994) sustenta que: Não podemos absolutizar nosso paradigma moderno científico- experimental e técnico. Este não desnuda todas as dimensões da realidade, apenas aquelas que entram no diálogo experimental com a natureza. Ainda assim, este diálogo nunca termina. Há também outras formas de diálogo, pois as várias culturas e os vários tempos históricos desenvolveram mil formas de conhecimento, seja pelos sonhos, pela intuição, pelos mitos e símbolos, pela reflexão religiosa e filosófica, e outras mais (p. 15). 3.2.2. Função da religião Ao contrário do que se dizia a algum tempo atrás, a religião, longe de alienar o indivíduo, opera da maneira mais radical a sua integração na realidade, e essa é talvez a explicação mais adequada da universalidade antropológico- cultural do fenômeno religioso. Quanto maior é a inserção do homem na realidade, mais ela se torna multifacetada, oferecendo-se à inteligibilidade com múltiplos sentidos. Em outras palavras, se definirmos a realidade como o pólo 16 que faz face às necessidades subjetivas do homem, veremos que a realidade dada ou natural é apenas o suporte da realidade propriamente humana, que é a realidade significada ou cultural. Ora, o sistema das representações religiosas se mostra, desde as origens da cultura, como o horizonte mais amplo e mais profundo de abertura do homem à realidade ou ao universo do sentido. Com efeito, depois do avanço das ciências humanas, particularmente a antropologia, não podemos encarar a religião como uma forma restritiva da compreensão do mundo, mas como um alargamento de nossa inteligibilidade. Quanto à diversidade de símbolos, cosmogonias, ritos, teofanias, aspectos subjetivos e objetivos presentes nas inúmeras religiões, só podem ser compreendidos como expressões de um fenômeno cultural e socialmente complexo que exige de nós compreensão e respeito. É verdade que existem formas de expressão religiosa que amiúdam o homem e o fazem preconceituoso, tímido, mesquinho, bárbaro. . . Mas, em sua essência, não é essa a função da religião. Ela existe para elevar o homem à sua verdadeira dimensão, fazendo-o capaz de transcender-se ao espaço do mundo e do tempo, de libertar-se de tudo que o impede de ser confiante, crítico e criativo. Não importa que no circuito dos interesses humanos se tenha tentado fazer da religião um imenso negócio. Somente os espíritos enfraquecidos se deixam iludir pela retórica do interesse que difunde o medo e impede o homem de conhecer o verdadeiro Deus e de se relacionar profundamente com Ele. 17 3.3. O SENSO COMUM O homem é um ser situado e datado, isto é, um ser marcado pelas circunstâncias geográficas e históricas que se refletem no seu modo de pensar, agir e entender a realidade. Anterior e simultaneamente à nossa existência, estão presentes valores padrões de conduta, costumes, tradições, modos de organização da vida social, de relacionamento do homem com a natureza e com os outros homens, que nos dão uma certa visão de mundo, uma forma peculiar de compreender a realidade. Esses elementos vão chegando até nós de maneira fragmentada, a partir das tradições e das experiências do nosso cotidiano. Aos poucos, formulamos explicações para a vida, para os fenômenos da natureza, para as normas sociais, para as crenças religiosas, para as relações entre marido e mulher, pais e filhos, professores e alunos, chefes e subalternos; enfim, um conjunto de explicações para os acontecimentos de nossa existência. Lentamente, esses elementos explicativos penetram em nossa consciência, em nossa afetividade, em nosso modo de pensar e agir sobre a realidade. Acostumamo-nos, afinal de contas, a todas essas apropriações e, raramente, nos perguntamos se existem outras possibilidades de explicação para tudo que observamos, vivenciamos e participamos. O mundo, os seres, as coisas, nossa forma de pensar e agir, tudo, enfim, se compreende e se organiza a partir desse senso comum da realidade. 3. 3. 1. Origem e características O senso comum nasce exatamente desse processo de “acostumar-se” a uma explicação ou compreensão do real, sem que seja questionada. Mais do que uma interpretação adequada da realidade, o senso comum é uma forma de ver a realidade espontânea, fragmentária, intuitiva, acrítica, subjetiva e assistematicamente. Noutras palavras, o senso comum é uma forma de conhecimento sem o rigor metodológico da ciência e da filosofia. A formação do senso comum tem o seu dinamismo externo e interno. Enquanto nos desenvolvemos, ao longo do tempo, sofremos a interferência de novos elementos que emergem na vida social e crescem junto conosco. Os mais 18 velhos nos transmitem valores e nós os introjetamos e transmitimos às gerações que nos sucedem. Além disso, somos também criadores de novas compreensões da realidade, que podem ter as características do senso comum e as passamos às gerações posteriores. Com efeito, o senso comum se forma tanto pelas tradições da coletividade, quanto pela experiência individual oriunda das sensações. Quem ainda não foi aconselhado a observar as fases da lua antes de cortar os cabelos, de ir à pesca ou de fazer a semeadura? Quantas pessoas acreditam que o número 13 dá azar? Quantos séculos viveu a humanidade acreditando que a terra fosse plana e imóvel? As sensações constituem uma fonte importante dos nossos conhecimentos porque refletem características, qualidades e propriedades das coisas. No entanto, através das sensações, não percebemos diferentes aspectos dos objetos e fenômenos, mas as coisas inteiras. Vemos campos verdes, o céu azul, estrelas resplandecentes e longínquas; ouvimos o ruído produzido pela chuva ou a trovoada; sentimos a frieza do gelo, o calor da lã, o peso do chumbo e a leveza do algodão... As percepções são as impressões sensoriais (imagens) dos objetos que representam a sua forma, grandeza, cor, posição no espaço etc. Mas os órgãos sensoriais, apesar de serem perfeitos, têm as suas limitações e, portanto, não podem revelar-nos todas as propriedades das coisas. Por exemplo, não podemos ver objetos em radiações ultravioleta e infravermelha, nem átomos, nem moléculas, bem como não podemos perceber o ultra-som. Então, perguntamos: qual a causa das limitações, ou melhor, da seletividade dos órgãos sensoriais? Os órgãossensoriais percebem o que é vitalmente importante, o que é imperativamente necessário, para que possamos nos orientar no mundo real. Eles nos dão um conhecimento da realidade imprescindível para a vida e a atividade prática. As sensações são as janelas para espreitar o mundo. Mas será que as nossas impressões sensoriais nos dão sempre um conhecimento exato acerca do mundo e das coisas ou será que nos enganam? O que dissemos sobre a verdade do mito e da religião vale também para o senso comum, na medida em que ambos são formas espontâneas e acríticas de compreensão do mundo, mas que dão uma certa inteligibilidade à vida como um todo. O homem vê, ouve e sente dentro dum determinado diapasão sensorial que, para ele, é suficiente para organizar a realidade, as ações 19 diárias, as relações entre as pessoas. Pertencem ao senso comum um vasto conjunto de concepções a respeito dos mais diferentes aspectos da nossa vida, umas corretas, outras incorretas. O que as caracteriza, é o fato de serem produzidas por conhecimentos fragmentários, superficiais e, por isso, sujeitas a distorções. Como forma de saber, o senso comum é extremamente útil e significativo porque constitui a forma de pensamento genérico de um povo num determinado tempo e lugar. O senso comum não é uma faculdade particular, nem uma espécie de instrumento, nem uma ciência, mas a concordância prática, o acordo espontâneo ou a síntese do que o homem entende, imagina, sente e deseja. É a partir desse “acordo” coletivo que o homem se situa no tempo e no espaço, faz a leitura do mundo, compreende a si mesmo e se relaciona com os outros. Contudo, se a humanidade hoje estivesse limitada somente ao conhecimento do senso comum, o progresso da civilização não teria ultrapassado senão uns poucos inventos técnicos. Presa das aparências e da subjetividade, das crenças e dos preconceitos, o senso comum nos dá apenas uma amostra superficial da realidade a partir da qual são feitas generalizações muitas vezes apressadas e imprecisas. Com efeito, a superação do senso comum é necessária para atingirmos o conhecimento do real. A crítica do senso comum é, pois, um caminho para a obtenção de um conhecimento mais refletido, mais objetivo e, portanto, menos impregnado de deformações produzidas pela nossa subjetividade. 3.3.2. O bom senso O senso comum é uma entre tantas outras formas de interpretação do mundo e de apropriação da realidade. Por ser um conjunto de concepções fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a aceitação mecânica e passiva de valores não-questionados. Mas não devemos acreditar que todo o saber do senso comum é destituído de valor. Há nele um núcleo racional, sadio, que merece ser preservado, desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente. Deve ser elevado ao bom senso, como visão crítica do mundo, como senso comum depurado. Esta elevação do senso comum ao bom senso tem valor epistemológico (crítico), finalidade ideológica (desmistificação) e até mesmo pedagógica, isto é, de aprendizado e participação junto com a experiência. 20 Enquanto o senso comum é o conhecimento espontâneo, tal como vimos acima, no seu caráter acrítico, difuso, fragmentário, tradicional, o bom senso faz que o transformemos em pensamento organizado, coerente e crítico suficientemente capaz de abstrair as falsas impressões e detectar os conteúdos ideológicos que permeiam as diversas instâncias das relações humanas: a família, a escola, a moral, a religião, a política, os meios de comunicação social etc. Isso posto, podemos concluir afirmando que o senso comum não se opõe à filosofia nem à ciência, mas a elas se antecipa e lhes fornece a base sobre a qual se erigem a reflexão filosófica e a constatação científica. 3.4. A FILOSOFIA A mente humana é, por sua natureza, questionadora. O ser humano nunca está absolutamente satisfeito com o que já sabe. Ele está sempre à procura de algo que ainda não conhece, sobretudo quando o conhecimento que já possui se torna frágil e, muitas vezes, contraditório. Face a essa disposição natural do homem para conhecer mais e melhor, é que surgiu a filosofia como um desejo de preencher as lacunas deixadas pelo mito, pela religião ou pelo senso comum. Durante muito tempo, essas formas de conhecimento foram suficientes para responder à consciência indagadora, mas à medida que as fronteiras da cultura se dilatavam, o ser humano não se deu por satisfeito e recorreu às categorias da razão para encontrar uma nova maneira de explicar a realidade. Ao rejeitar a interferência dos agentes divinos na explicação dos fenômenos naturais e na interpretação do seu próprio comportamento, o homem foi levado a refletir sobre a realidade -- o mundo, sua origem, o movimento, os seres, a vida, os acontecimentos, o comportamento humano etc. Dessa reflexão surgiu a filosofia como esforço para explicar as coisas e suas causas mais remotas. O surgimento da filosofia é assim marcado por uma ruptura com um saber cujas estruturas de representação se tornaram questionáveis e, por isso mesmo, insuficientes para prover ao espírito humano o equilíbrio que ele necessita e deseja. O filósofo francês Georges Gusdorf (1980) caracteriza essa mudança de cosmovisão da seguinte maneira: A reflexão consagra o fim da inocência mítica. Para o 21 futuro, o homem já não pode deixar-se levar pelas evidências estabelecidas. Ele se torna o artesão da verdade, isto é, tanto capaz como culpado do erro. A existência funda-se em desgarramento, em uma separação entre homem e mundo, de si para si e de si para Deus; e todo o esforço da sabedoria e do saber humano terá por ambição remediar isso (p. 151). 3.4.1. O processo de evolução do conhecimento filosófico Na Antigüidade, o saber filosófico correspondia à totalidade do conhecimento racional desenvolvido pelo homem. Abrangia, portanto, os mais diversos tipos de conhecimento que se estendiam pela matemática, astronomia, física, biologia, lógica, ética etc. À filosofia interessava conhecer toda a realidade sem dividi-la em objetos específicos de estudo. Esse significado amplo e universalista do saber filosófico manteve-se, de modo geral, no decorrer da Idade Média. Poucas áreas separaram-se da filosofia, como a teologia, por exemplo, que se desenvolveu enquanto estudo específico a respeito de Deus. Durante a Idade Moderna, entretanto, o vasto campo da filosofia entrou num processo de redução, na medida em que a realidade a ser conhecida passou a ser dividida, fragmentada, despertando estudos especializados. Gradativamente, conquistaram autonomia muitas ciências particulares que se desprenderam do tronco comum do abrangente saber filosófico. Hoje, perguntamos: o que resta de característico para a filosofia que esteja fora do alcance das inúmeras ciências particulares? Na verdade, a filosofia continua tratando da mesma realidade abordada pelas ciências, mas enquanto estas se especializam e observam recortes do real, aquela jamais renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão filosófica é uma visão de conjunto. A realidade que fora fragmentada pelo saber especializado de cada ciência particular é resgatada na sua integridade pela filosofia, a única capaz de fazer uma reflexão crítica e global sobre o saber e a prática do homem. Assim, em todos os setores do conhecimento e da ação, a filosofia 22 deve estar presente como reflexão crítica a respeito dos fundamentos desse conhecimento e desse agir humanos. 3.4.2.Natureza da reflexão filosófica Como dissemos acima, a reflexão filosófica apresenta, como objeto próprio, o mundo a conhecer e a ação a efetuar. Isto supõe um certo recuo, um relativo desligamento no que diz respeito à objetividade das coisas, como elas existem, como funcionam, como podemos modificá-las. Disso se ocupa a ciência. A atitude filosófica emerge de nossa admiração diante da realidade que suscita em nós o desejo de conhecer, mais e melhor, porque as coisas existem. Esta atitude revela a capacidade do espírito humano de poder alçar-se acima das determinações concretas da realidade -- os seres -- e perguntar pelo ser simplesmente. A partir do ser (conceito abrangente) podemos conhecer mais profundamente os seres, as coisas, porque a realidade não se dá a conhecer totalmente nem pelo senso comum, nem pela ciência. A reflexão filosófica é radical na medida em que procura alargar as fronteiras do saber. Ela conscientiza o fato de que, no conhecido, há sempre um desconhecido, que no dito, persiste um não-dito e que no sabido, existe um ignorado. Nosso conhecimento é sempre representativo, modelar e aproximativo 4 . Por isso, a consciência filosófica é permanentemente indagadora. Ela sabe não possuir a verdade, mas a disposição permanente de procurá-la. O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja à margem do mundo e da ação dos homens como se fosse um saber puramente abstrato que possa ser dispensável, sem nenhum prejuízo para o indivíduo e a sociedade. A filosofia autêntica, muito longe de ignorar a realidade, reflete sobre tudo o que acontece tanto no mundo físico quanto no mundo da cultura. O cometimento filosófico visa transformar um acontecimento em experiência para compreendê-lo, extrair sua lição, a fim de chegar a uma visão sistemática e unificada do universo. 4 Dizemos que o conhecimento é representativo, modelar e aproximativo porque ele não é a própria realidade, mas apenas sua representação, ou seja, um modelo aproximado daquilo que os nossos sentidos captam das coisas e dos fenômenos. 23 A filosofia pensa a realidade presente. A presença da realidade estimula o pensamento a fazer filosofia. Por esse desejo de estar junto à realidade, a filosofia elucida, por meio de conceitos e idéias bem arquitetadas, a evidência ou transparência do real que experimentamos. Na experiência do dado imediato, sem visualizá-lo num esquema de medidas, o filósofo lê a realidade, elabora juízos de valor e, assim, dá sentido à experiência vivida. 3.4.3. Filosofar é preciso O homem é um ser de necessidades, não somente do ponto de vista biológico mas também do ponto de vista gnosiológico. Ele quer conhecer a natureza para transformá-la através do seu trabalho, e assim extrair dela os meios necessários à sua sobrevivência. Quer também conhecer a si mesmo para poder construir sua vida e dar sentido à sua própria existência. Por isso, o homem filosofa, isto é, questiona e reflete sobre tudo que o envolve direta e indiretamente. É verdade que qualquer um de nós poderá viver sem refletir de forma radical, profunda, mas se isso acontecer a nível da coletividade, o ser humano corre o risco de involuir, de perder a consciência de si mesmo e do mundo a sua volta. É o que, a nível ideológico, designamos por estado de alienação. Se não questionarmos a realidade, se não refletirmos criticamente sobre os valores que constituem nosso modo de vida e orientam nossas ações, outros, em outro lugar e situação, estarão pensando por nós. Nesse caso, estaremos submissos ao pensar crítico de outros que decidem e orientam o nosso viver. Filosofar é preciso. Como especulação, a filosofia procura captar ou apreender a realidade, buscando as causas primeiras das coisas; como prescrição ou norma de conduta, ela recomenda e prescreve valores e ideais; como crítica ou análise, examina os conceitos, julga as idéias e assinala as incoerências do nosso pensamento. 3.5. A IDEOLOGIA O homem nasce e se desenvolve num meio sócio-cultural, num mundo 24 de símbolos e valores que lhe influenciam fortemente no transcurso de toda a sua vida. Como ser racional, ele não se encontra no mesmo plano das coisas e dos animais: é um ser dotado de inteligência e liberdade que podem ser usadas, tanto para reprimir os desejos,quanto para realizá-los. Como ser social, o homem se faz na trama das relações com os outros homens, influenciando e sendo influenciado, atuando sobre o meio ambiente e produzindo não só o mundo dos bens materiais mas também as artes, os saberes, as tecnologias e até o próprio modo de ser do ser humano. Como animal político, ele se organiza em comunidade na qual as relações de sociabilidade são constituídas por relações de poder, reguladas por princípios de mando e obediência, convencionalmente pactuados. O fato de ser animal político, isto é, de viver numa polis (comunidade organizada), significa que tudo entre os homens deve ser decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência. Quanto mais a sociedade humana evolui, maior é a importância do discurso na ação política dos seus membros. Os mais loquazes são, certamente, os que têm maiores chances de governar o corpo político. Aos poucos, os que produzem idéias separam-se dos que produzem bens materiais, formando um grupo à parte. À medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que as idéias estão, em si e por si mesmas, separadas das coisas materiais. Ao conferir autonomia à consciência e às idéias, julgam que estas não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge assim a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade que elas têm de criar a realidade. 3.5.1. Origem Vários fatores podem ensejar o aparecimento de uma ideologia: impulsos irracionais, condicionados por interesses psicossociais; desejo de um grupo ou de uma classse social de manter um sistema de privilégios numa determinada estrutura sócio-política; processo de reação a uma situação dominante que se torna problemática, não sendo mais possível manter a unanimidade de visão vigente. Seja qual for sua origem, é impossível desvincular a ideologia do contexto sócio-político em que emerge e se propaga. Como pensamento situado 25 e datado, a ideologia é uma tomada de consciência da identidade dos membros de um grupo ou de uma classe social em ascensão, que explicita os seus interesses, valores, representações e aspirações comuns. Tal consciência dinamiza, motiva e compromete os indivíduos através de seus ideais, interesses, atitudes e ações. A ideologia sedimenta-se e consolida-se no momento em que se torna “senso comum”, quando todos pensam da mesma maneira, espontaneamente, sem se dar conta dos interesses particulares ocultos. Ao popularizar-se, tranforma-se num conjunto de idéias, valores e representações aceitas por todos os que se opõem à situação vigente e imaginam uma sociedade alternativa. Uma vez vitoriosa, consolidada e interiorizada na consciência, a ideologia que se apresentava como garantia de realização dos ideais de todos, passa a ser manipulada pelos indivíduos que, através do discurso, têm maior poder de persuasão. Ocultando interesses particulares, camuflando a realidade, distorcendo a verdade, o grupo que assume o controle do poder impõe sua “visão do mundo” aos demais. O que de fato são seus valores, seusinteresses, seu modo de pensar e agir, sua maneira de viver, é apresentado como bom para todos os integrantes da sociedade. Para isso, a classe dominante usa todos os mecanismos de persuasão, para inculcar nas outras seus valores e ideais. Desse modo, a família, as escolas, as universidades, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos e, principalmente, a mídia, vinculam-se de tal modo a determinada classe que acabam gerando e divulgando imagens, escritos, atividades, slogans, provérbios, histórias, propagandas, símbolos, costumes e modismos impregnados dos valores dessa classe. 3.5.2. Características Como teoria das idéias, o fenômeno da ideologia foi estudado por diversos autores: Destutt de Tracy (1754-1836), Augusto Comte (1798-1857), Émile Durkheim (1855-1917), Max Weber (1864-1920), Karl Mannheim (1893- 1947), entre outros. Mas foi Karl Marx (1818-1883) e F. Engels (1820-1895) que deram ao termo a conotação que tem hoje: um sistema de pensamento, uma forma de conceber o mundo em seus aspectos naturais, mas sobretudo o mundo social, as relações entre os homens e sua atividade. Essa “visão do mundo” não 26 pode ser compreendida senão como produto e reflexo de uma sociedade e de uma época e, particularmente, de grupos sociais, extratos e classes. São os interesses, a atividade e o papel histórico desses grupos ou classes sociais que a ideologia expressa, enquanto visão do mundo. Não os expressa, porém, como conhecimento verdadeiro, mas como racionalização, isto é, falsa consciência que deforma e obscurece o real. Assim, “na ideologia os homens e as suas relações aparecem em posição invertida como numa câmara escura.” (Marx e Engels, 1991, p. 37). Como podemos observar, o enfoque marxista atribui à ideologia um sentido negativo, quando a interpreta como instrumento de dominação de uma determinada classe que, no afã de afirmar sua hegemonia, propaga suas idéias e valores às demais classes sociais. A teoria marxista da ideologia representa uma ruptura radical com as concepções até então existentes quanto à natureza e função das idéias, imagens e símbolos na vida social e política. Implica nova atitude, cuja radicalidade se expressa como relativização do pensamento, ou seja, implica na afirmação de que todo pensamento tem raízes em situações e interesses sociais e, por conseguinte, sua unidade e coerência não podem ser compreendidas apenas em termos lógico-formais pela análise imanente de seu significado. Com efeito, as ideologias fixam, em um sistema de representação mental relativamente coerente, não somente uma relação real (as condições de existência), mas também uma relação imaginária (inversão das condições de existência). Em outras palavras, as formas de pensamento, idéias, crenças, valores, imagens e símbolos através dos quais os homens compreendem o mundo e nele se orientam nas suas relações sociais, possuem a coerência e a unidade necessárias a que suas relações se mantenham relativamente estáveis. Nesse sentido, é que Marx e Engels (1987) conceituam a ideologia como uma “opacidade” das relações sociais, vale dizer, como uma consciência dessas relações que é verdadeira na medida em que se acha inserida nas atividades práticas sociais, mas, ao mesmo tempo, necessariamente falsa, já que as sociedades existentes (tanto mais quanto maiores são os seus antagonismos internos) não podem revelar completamente seus mecanismos. Desse modo, o conceito de ideologia implica referência a uma “realidade” que somente de maneira imperfeita, parcial e deformada se deixa 27 reconstruir no pensamento. Eis porque Gramsci (1978) afirma que a ideologia é o cimento da estrutura social, o conjunto de idéias e valores que, ao tornar possíveis e regulares as relações sociais tal como elas se estruturam em determinada sociedade e determinada época, ao mesmo tempo tende a cristalizá- los nessa mesma forma, particularmente pela legitimação do poder político e da organização econômica existentes. 3.5.3. Ideologia e conhecimento A ideologia penetra todos os níveis da estrutura social, dando coesão às múltiplas relações sociais que os indivíduos mantêm entre si. Embora contendo elementos de conhecimento, as ideologias (sentido negativo) são representações deformadas da realidade social. Nesse caso, podemos chamar de ideológico todo pensamento, todo discurso que interpretando o mundo, o representa de maneira falsa, distorcida, cujos componentes sociais ocultam suas raízes, suas origens econômicas, políticas, sociais etc. Essa ocultação passa a ser encarada não em função de sua coerência ou incoerência, mas como essencial à sua condição enquanto produto de interesses e situações sociais. Se as lacunas deixadas pelo discurso ideológico fossem preenchidas, haveria o desmascaramento dos seus disfarces. Por isso, a ideologia é ilusória, não no sentido de ser “falsa”ou “errada”, mas porque mascara ou oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Vimos que as ideologias refletem os interesses das classes sociais na medida em que lutam para estabelecer sua hegenomia. A classe cujos fatores históricos e sociais favorecem o domínio sobre as demais, procurará universalizar seu sistema de pensamento em forma de arte, religião, moral, política, filosofia, ciência, tornando-se senso comum da sociedade. Isto acontece não só com os slogans mais comuns, mas também com as formulações mais abstratas e intelectualizadas. O modo pelo qual a classe dominante representa a si mesma e sua relação com os outros homens e com o mundo, tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar. Assim, bem- estar, felicidade, ordem, progresso, bem da nação, são apenas slogans que escondem e mascaram a subjugação a que são submetidas as classes dominadas. A universalização das idéias, dos princípios, das regras de reciprocidade, é resultado de uma abstração na medida em que seus produtores - - os teóricos, os ideólogos, os intelectuais -- apresentam-nas como entidades autônomas, como algo separado e independente das condições materiais. Assim, 28 por exemplo, quando se diz que “todos são iguais perante a lei” ou que “o trabalho dignifica o homem”, estamos diante de ideais abstratos, longe de serem efetivados nas condições reais de existência social dos homens. Althusser (1989) refere-se aos “aparelhos ideológicos do Estado” (famílias, igrejas, sindicatos, instituições jurídicas, partidos políticos, imprensa etc) como reprodutores da ideologia da classe dominante. São eles que ...garantem, em grande parte, a reprodução mesma das relações de produção, sob o “escudo” do aparelho repressivo do Estado . É neles que se desenvolve o papel da ideologia dominante, a da classe dominante, que detém o poder do Estado (p. 74). Assim, enquanto exerce o poder de dominação, ou seja, a capacidade garantida pela força de mandar e fazer-se obedecer, o discurso ideológico exerce não o poder, mas uma hegemonia que é a qualidade de liderança intelectual e moral, capaz de gerar bases de consentimento ou de aceitação generalizada em forma de senso comum. Para os setores dominantes da sociedade, interessa que o senso comum impere em todos os segmentos da vida social e cultural, especialmente naqueles que se destinam às grandes massas, como é o caso da educação e dos meios de comunicação social. Tornado senso comum, o discurso ideológico constitui-se no meio eficaz de manipulação das informações, das condutas e dos atos políticos e sociais dos dirigentes e dos setores dominantes da sociedade. Porisso, o discurso ideológico mostra uma realidade invertida, isto é, toma o determinado pelo determinante, o efeito pela causa e assim sucessivamente. Por exemplo, quando as elites dominantes ocupam os meios de comunicação social para falar das formas de combate à violência na sociedade brasileira, não fazem referência ao modelo econômico excludente e concentrador de riquezas, não mostram a necessidade da reforma agrária, da distribuição da renda, da geração de novos empregos, da democratização da educação, da saúde, da moradia etc, mas exigem das autoridades tão somente a ampliação e modernização do aparelho repressivo do Estado. É típico da ideologia dominante querer legitimar o status quo por meio de um discurso homogêneo, mistificador, subliminarmente preconceituoso e coerente em sua aparência. Nas palavras de Marilena Chauí (1987), 29 ...ela [a ideologia] é coerente não apesar das lacunas mas por causa ou graças às lacunas. Ela é coerente como ciência, como moral, como tecnologia, como filosofia, como religião, como pedagogia, como explicação e como ação apenas porque não diz tudo e não pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por dentro (1987, p. 115). Isto é, daria lugar fatalmente a outra que, na perspectiva do processo dialético de formação das idéias, se apresenta como antítese 5 . Tudo é articulado e apresentado como resultado de uma “ordem natural” ou “ordem lógica” para promover o consenso e justificar as desigualdades sociais, a exploração entre as classes e os privilégios das elites. A visão de mundo, o amor, o sexo, a moda, o progresso, o dinheiro, a família, a religião, a educação, a moral, os preconceitos, a propaganda comercial, o noticiário jornalístico, enfim, tudo está impregnado de conotação ideológica. Por mais que façamos para nos desvencilhar, ela se faz presente em nossa maneira de pensar, sentir, valorizar, fazer, tanto em forma de senso comum quanto na maneira de fazer filosofia, religião, arte ou ciência. De um modo geral, as ideologias são fenômenos vitais de dinamismo envolventes e contagiosos. São dotadas de uma “mística” especial que lhes confere um forte poder de penetração em todas as instâncias de modo muitas vezes irresistível. Seus slogans, seus apelos, suas expressões típicas, seus critérios de avaliação e julgamento, chegam a marcar profundamente, mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais. Muitas pessoas vivem praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem se darem conta da alienação de suas consciências. Isto acontece não só no interior das ideologias que legitimam a exploração de classe, mas também daquelas que pretendem mudá-la. A recusa da alienação exige discernimento e consciência crítica. Discernimento para julgar com clareza e sensatez a natureza dos discursos ideológicos (aqueles que mascaram a realidade) e não-ideológicos (aqueles que des-velam o real). Consciência crítica para decodificar as mensagens, selecioná- las, evitando os irracionalismos de perversas conseqüências. Elevadas à categoria de mitos, as ideologias tornam-se perigosas porque são capazes de arrastar 5 As idéias, como de resto todo o conhecimento, são formadas a partir de um processo dialético que consiste na formulação de uma tese (afirmação), de uma antítese (negação parcial ou total da tese) e de uma síntese (negação da negação ou conciliação de alguns aspectos da tese e da antítese). 30 multidões a holocaustos, voluntária ou forçosamente. A consciência crítica possibilita a interação entre o pensar e o agir do sujeito, isto é, entre teoria e prática. É ela que suscita a problematização da realidade e nos torna capazes de entender e participar do processo de construção do conhecimento expresso em suas diversas modalidades. Ter consciência crítica não significa ser destituído de ideologia, visto que todo discurso é ideológico por natureza. Significa uma disposição constante à busca da verdade, uma atitude firme e segura de autocrítica e revisão das idéias e dos valores em que acreditamos. Comumente, é ressaltado o aspecto negativo da ideologia. Mas precisamos entender que ela pode conter também diversos ingredientes positivos. Além da sua função de dar coesão aos grupos sociais, ela poderá ter uma função didático-pedagógica de suscitar a conscientização dos indivíduos quando chamados a produzir um contra-discurso. Nesse caso, a ideologia poderá ser um instrumento de desalienação do homem que, pelo seu poder de negatividade, tornar-se-ia capaz de se dar conta de sua situação e de pôr à lume as contradições dos agentes ideológicos que lhe oprimem. Como bem acentua Lucien Goldmann (1979), o importante não é deixar de ter ideologia, ser neutro (pois isto é impossível) mas sim dar-se conta dos próprios pressupostos ideológicos. Para concluir, dizemos com Vera Werneck (1992): A ideologia não pode ser apenas considerada o pensamento do “outro”. Não seria possível um espaço totalmente não-ideológico. (p.115). O ideal não é a procura de uma pretensa neutralidade, mas a aquisição de uma postura aberta, se não para a verdade, ao menos para a aceitação do outro com vistas a uma sociedade democrática, onde haja lugar para as divergências que não firam os princípios de respeito e reciprocidade. 3.6. A CIÊNCIA E A TÉCNICA O homem viveu muitos milênios cultivando e transmitindo às novas gerações o conhecimento que o mito e o senso comum lhe sugeriam. Após a 31 descoberta da racionalidade, por volta do século VI a. C., passou a acreditar que um conhecimento mais seguro deveria ser avalisado pela razão lógica em sua versão filosófica do saber. Passaram-se muitos séculos para que o espírito humano percebesse a insuficiência das abstrações filosóficas na explicação de toda a realidade. A filosofia havia cumprido o seu papel no processo de alargamento das fronteiras da cultura, mas tornara-se incapaz de dar conta das particularidades que a inteligência agora fazia questão de explicar. Até então, era o filósofo quem se ocupava de explicar a realidade a partir de intuições e analogias sob o rigor do método lógico-dedutivo 6 . Não havia separação entre filosofia e ciência e, por isso, muitos filósofos, como Aristóteles, Arquimedes, S. Alberto Magno foram também eminentes cientistas. No entanto, as transformações que assinalaram a transição da sociedade agrária feudal para a sociedade comercial burguesa em fins da Idade Média propiciaram mudanças profundas na maneira de ver a realidade, no modo de pensar e agir sobre o mundo, na forma do homem se relacionar com a natureza. O alargamento das fronteiras geográficas suscitou também o alargamento das fronteiras do saber. Já não bastava conhecer empírica e abstratamente o mundo, a natureza, os seres, à maneira do senso comum e da filosofia, mas tornou-se imprescindível a demonstração do conhecimento pela via do método indutivo-experimental. 7 É aqui que a ciência se desgarra da filosofia para se ocupar das particularidades que esta não é capaz de desvendar. Concomitante ao progresso da ciência, a partir do século XVII, dá-se também o avanço da técnica e, desde então, uma se torna subsidiária da outra. 3.6.1. O conceito de ciência A palavra ciência deriva do verbo latino scire que significa conhecer, saber. Se quisermos compreendê-la por meio de uma definição, podemos afirmar 6 O método lógico-dedutivo foi criado por Aristóteles (384-322 a.C.) e consagrado pelos filósofos medievais.Sua formulação é o silogismo, que consiste em partir de uma premissa maior (universal) que se tem por verdadeira (por exemplo: Todo homem é mortal), seguida de uma premissa menor (p. ex.: Sócrates é homem), para se obter uma conclusão particular (p. ex.:Logo, Sócrates é mortal). 7 Esse método é o inverso da dedução lógica. Consiste em partir da observação de fenômenos específicos (o ferro, o cobre, o bronze ... são bons condutores de eletricidade) e de uma constatação (o ferro, o cobre, o bronze... são metais), para se chegar à generalização (logo, o metal é bom condutor de eletricidade). 32 que, em sentido amplo, ciência é um conjunto de conhecimentos sistematicamente organizados relativos a um determinado objeto e, em sentido estrito, ciência é um conhecimento objetivo, obtido através de processos experimentais. A primeira acepção refere-se ao domínio sistemático que podemos possuir dos conhecimentos relativos a determinado ramo do saber sem que haja necessidade de apresentar provas objetivas, por meio de processos experimentais ou formais. É o caso, por exemplo, dos conhecimentos concernentes às ciências hermenêuticas (humanas ou sociais), cujas afirmações incidem num grau de subjetividade muito elevado. Ciência assim entendida, não designa apenas um acervo de conhecimentos sobre um objeto, mas uma estrutura mental na qual o sujeito integra ordenadamente esses conhecimentos e a qual lhe confere um poder criador para avançar e dilatar as fronteiras do saber. A segunda acepção, por sua vez, corresponde àquele conhecimento que qualquer estudioso pode chegar pela aplicação dos mesmos métodos de investigação, não implicando contradição nos resultados. Nesse caso, a compreensão do termo ciência nos lembra laboratório, instrumental de pesquisa, trabalho programado e aplicação do método de indução que, partindo da observação e da experiência controlada, chega a formular leis sobre a regularidade dos fenômenos, para as assumir em teorias científicas caracterizadas por um grau mais ou menos elevado de generalização que nos permite predizer, com certa segurança, eventos futuros. Esse rigor metodológico é típico das ciências naturais ou empírico-formais (física, química, biologia, geologia, astronomia) que, auxiliadas pelas ciências formais (matemáticas e lógica), alcançam um elevado índice de objetividade nos seus resultados. Muito mais que as ciências hermenêuticas, as ciências formais e empírico-formais exprimem o ritmo de autonomia da razão no processamento de dados, porque seu objeto é o vasto campo da materialidade, no qual o sujeito (pesquisador) se mantém a uma certa distância dos fenômenos observados. Contudo, em nenhuma delas é possível obter conhecimentos absolutamente objetivos (Japiassu, 1975), já que o homem vive permanentemente na sensação, ou melhor, na experiência sensível da realidade. A sensação não é um ponto de chegada, mas um caminho para as coisas, ou seja, laboratório de onde partem todos os endereços de investigação e pesquisa. 33 3. 6. 2. O método científico A realidade científica é uma realidade construída. Um fato só tem significado quando transposto de maneira que possa oferecer-nos características objetivas mensuráveis. A construção científica exige uma técnica ou um modo de proceder pelo qual o cientista adquire, de maneira segura, certos tipos de conhecimento. É uma sucessão de passos ou operações que vão, desde a observação, até a incorporação do novo conhecimento no patrimônio científico da humanidade. Segundo concepções tradicionais, esses passos ou operações podem ser escalonados da seguinte maneira: a) Observação rigorosa. Observar é aplicar a atenção a um fenômeno, captá-lo tal como se manifesta. Situa-se a observação particularmente na fase inicial da pesquisa, mas perdura durante todo o processo, alternando-se com a experimentaçxão, pois é necessário observar os resultados das manipulações das variáveis após os exprimentos. A observação pode ser natural e espontânea ou dirigida e intencional. E as etapas posteriores da pesquisa ficarão prejudicadas se não partirem da observação correta e adequada ou, tanto quanto possível, completa na enumeração das circunstâncias antecedentes ou variáveis. b) Formulação de hipóteses. Toda inverstigação nasce de algum problema teórico/prático que se observa. Não basta observar. O pesquisador deve ponderar fatos e relacioná-los; deve refletir à procura de uma explicação provável, isto é, deve formular uma hipótese de solução plausível e verificável. A hipótese é o enunciado da solução estabelecida provisoriamente como explicativa de um problema qualquer. Ela representa a opinião do pesquisador à procura de evidências posteriores que a sustentem e comprovem . Sua função é fixar uma diretriz capaz de impor ordem e finalidade a todo o processo da experimentação. c) Submissão das hipóteses a testes críticos – experimentação. As hipóteses devem ser postas à prova, isto é, submetidas a testes de verificação. Isto é feito por meio de experimentos nos quais se reproduzem os fenômenos sob rigoroso controle das variáveis, com o objetivo de identificar os fatores antecedentes responsáveis por determinado evento subseqüente. 34 Na formulação das hipóteses, a reflexão antecipa-se às evidências demonstradas. Na experimentação, falam os fatos e não o gênio do pesquisador. Noutras palavras: na hipótese, as idéias prejulgam os fatos; na experimentação, os fatos é que julgam a adequação ou não das idéias, isto é, das hipóteses. d) Comprovação dos resultados obtidos. Certificar-se de que os resultados obtidos durante a investigação estão corretos é um pré-requisito para a constituição de uma ciência. Isto é feito por meio da investigação das relações causais do fato observado com outros semelhantes ou diferentes. Se for confirmada a regularidade do fenômeno ou evento nas mesmas condições, pode se formular a lei ou teoria e generalizá-la. Este procedimento no encaminhamento da pesquisa, não só permite fazer reajustes e eventuais correções, precisando o grau em que pode, agora, ser confirmado ou não o fenômeno, mas também amplia-o com novas investigações. e) Comunicação dos resultados – passagem da atividade para uma linguagem. A partir do que foi verificado em determinado experimento singular, o pesquisador elabora uma teoria geral sobre o conjunto dos fatos investigados, isto é, formula um conjunto sistemáticos de conceitos que explicam e interpretam as relações de causa e efeito, as relações de dependência e as diferenças entre todos os objetos que constituem o campo investigado. A teoria científica permite que uma multiplicidade de fatos aparentemente diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis e, vice-versa, permite compreender também por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. Contudo, estas etapas não podem ser seguidas à risca por todos os cientistas visto que, dependendo do objetivo da pesquisa, alguns desses procedimentos são inteiramente ineficazes. Para o cientista social, por exemplo, a técnica da entrevista é muito mais valiosa do que para o astrônomo; para o biólogo, a técnica da observação microscópica é eficaz, mas não serve ao psicólogo. Por isso é que o filósofo Karl Popper (1974) e seus discípulos fizeram vigorosas críticas à noção tradicional indutivista do método científico de inspiração baconiana 8 . Segundo Popper, quem observa, observa algumacoisa e 8 Francis Bacon (1561-1626), filósofo Inglês, que embora não tenha realizado nenhum progresso nas ciências naturais, deve-se-lhe o primeiro esboço racional de uma metodologia científica baseada na indução experimen- 35 tem, desde o início, uma idéia em mente, a qual vai ditar o que é e o que não é relevante observar. Com efeito, uma lista de dados observacionais poderá ter pequena utilidade em muitas ocasiões, se faltar um critério para dizer quais são as observações relevantes. Às vezes, uma única observação poderá servir de base para a apresentação de uma lei ou de uma teoria, de modo que não precisa existir um processo indutivo a servir de apoio para a formulação de uma generalização. O método é um meio pelo qual o cientista orienta sua pesquisa a fim de verificar a regularidade na ocorrência de um fenômeno. Baseado nesta regularidade, o cientista formula leis ou teorias que são confiáveis, mas não infalíveis. Em sua essência, a ciência é pública por questões de método. É a idéia da ciência metodologicamente regulada e publicamente controlável que exigem as instituições científicas, como as academias, os institutos de pesquisa etc. Foi com base no método experimental que a ciência conquistou sua autonomia, tornando-se independente da filosofia e da religião. 3.6.3. Objetivo da ciência O discurso cienífico presume o que o discurso mítico jamais presumiu: apossar-se do poder do evento, ou seja, demonstrá-lo por meio de processos experimentais. Isto gerou no homem moderno a convicção de que o discurso da ciência é poderoso e o é porque lutou contra os outros discursos, refutou-os e venceu-os. Essa arrogância da ciência originou o “mito do cientificismo” , segundo o qual todos os problemas podem ser solucionados por meio da pesquisa cientifica! Na sua busca de explicar e compreender o universo, a ciência procura ampliar ao máximo a extensão do conhecimento. Nessa trajetória, ela se desenvolveu investigando setores específicos da realidade, que constituem as diversas áreas especializadas de suas disciplinas. Ao contrário do senso comum, cujos conhecimentos estão freqüentemente marcados pela imprecisão, a ciência propõe-se a obter conhecimentos precisos, coerentes e abrangentes . Ela se caracteriza por tentar alcançar resultados livres das limitações do senso comum. Seu objetivo fundamental é proporcionar ao homem melhor conhecimento da natureza e da experiência humana, contribuindo, desse modo, para modificar radicalmente as tal. 36 condições de nossa existência. Mais do que um progresso na compreensão da realidade, a ciência indica a vontade do homem de ampliar seu poder sobre a natureza e sobre a própria condição humana. Com isso, espera o homem vencer aspectos angustiantes e crê providenciar uma existência mais jubilosa. A ciência representa, assim, um grandioso projeto de autonomia e o sonho de uma vida melhor. Porém, é preciso ter em conta que a ciência é necessária, mas não suficiente. 3.6.4. Relações entre ciência e técnica. Há uma estreita relação entre ciência e técnica. Historicamente, a técnica precedeu à ciência, visto que a prática surgiu antes da teoria. A técnica, como instrumento de controle da natureza, é tão antiga quanto a própria humanidade. A partir do momento em que o hominídeo (homem-macaco) tomou de uma pedra e jogou sobre outra para extrair uma lasca e com ela cortar uma árvore ou matar um animal, teve origem a técnica. Por isso, podemos afirmar que o homem é um animal tecnicus. Daí resulta que a técnica, em si, não é anti- humana, como afirmam alguns críticos, mas um recurso de sobrevivência e desenvolvimento da humanidade. O progresso material que o homem realizou até aqui e a melhoria da qualidade de vida são proporcionais à maior perfeição das técnicas por ele utilizadas. O domínio da técnica se estende hoje a todos os setores da atividade humana, desde a aplicação sistemática e metódica das conclusões da ciência, até as criações artísticas. Se, por um lado, a ciência recebe aplicações práticas fecundas que, às vezes, o próprio cientista está longe de suspeitar, por outro lado, a técnica que passou pelo campo fecundo da ciência, torna-se apta para abordar os problemas práticos de um modo mais racional e muito mais eficaz. O espírito técnico sofre brusca mutação ao tornar-se espírito científico. Ao técnico, deparam-se obstáculos que se opõem à sua atividade prática; o cientista reflete sobre esses obstáculos e os transforma em problemas teóricos. Assim, as exigências do conhecimento técnico podem acionar o conhecimento científico e vice-versa. 37 4.0. A crítica do conhecimento Vimos que a realidade -- natureza, sociedade, fatos, fenômenos -- pode ser interpretada sob diversos modos. Cada saber tem uma forma peculiar de lidar com os fenômenos que observa. Por exemplo, o nascer do sol: o aborígene interpretaria como se os deuses estivessem contentes com o seu comportamento, portanto, ele poderia ir à caça ou à pesca que seria bem sucedido (percepção mítica); o religioso louvaria a Deus pela oportunidade de viver mais um dia (percepção religiosa); o camponês associaria à lua cheia da noite anterior e iria semear grãos na certeza de que teria boa colheita (percepção vulgar ou empírica); a jovem urbana, ao verificar a ausência de nuvens escuras no céu, programaria ir à praia, a fim de bronzear-se para impressionar o rapaz de quem deseja ser namorada (percepção ideológica); o filósofo refletiria sobre o sentido da existência, os ciclos da vida, as mudanças naturais e sociais (percepção filosófica); o astrônomo, auxiliado de um potente telescópio e um computador de última geração, calcularia a distância média do afastamento da terra em relação ao sol no seu movimento de rotação (percepção científica). Depreende-se, portanto, que a realidade é o que é, independentemente do que pensamos dela, mas a nossa compreensão a torna multifacetada. O conhecimento é a expressão do real, mas não sua cópia. Muitas vezes imaginamos que conhecemos a realidade e, no entanto, estamos enganados. É importante ter claro que a realidade não se dá a conhecer imediata e facilmente. Ela tem subterfúgios e manifesta suas aparências, mas não sua essência. Quanto mais nos desvencilhamos de nossas subjetidades (sentimentos, emoções, paixões, opiniões), mais a realidade se revela. O essencial não se dá a conhecer à primeira vista. As aparências ocultam a verdadeira essência da realidade. Por isso, é preciso ser crítico em relação aos dados. Em primeiro lugar, é necessário admitir que não podemos acreditar imediatamente naquilo que se manifesta aos nossos sentidos. Embora a compreensão da realidade comece pelas nossas experiências em contato direto com ela, é forçoso admitir que os sentidos ora nos enganam, ora não são capazes de captar toda a complexidade dos fenômenos. Vejamos um exemplo bem simples. Em muitas situações do dia-a-dia, dizemos que “ a lã é quente”. Será que a lã é quente mesmo? De fato, a lã não é quente; ela é, sim, boa retentora de calor. Quente é o nosso corpo. Se colocarmos uma veste de lã, o nosso corpo fica mais protegido do frio devido a ficar envolvido pelo seu próprio calor, retido 38 pela vestimenta. Na aparência, a lã é quente; na essência, ela é boa retentora de calor. Com efeito, o conhecimento que quer ser verdadeiro deve ultrapassar as aparências e chegar à essência. Umasegunda posição metodológica, por parte de quem deseja conhecer melhor a realidade, refere-se à crítica do senso comum. Ou seja, torna- se fundamental criticar as interpretações cotidianas sobre aquilo que desejamos conhecer. É necessário analisar as opiniões que o presente tem sobre os fatos que ele interpreta. Não bastam os discursos. É importante investigar se esses discursos estão articulados com a objetividade dos fatos, ou se simplesmente expressam interpretações, senão falsas, ao menos parciais, da realidade. Não se pode admitir, pura e simplesmente, a opinião popular como explicativa de alguma coisa. Ela é sempre fragmentária e, na maioria das vezes, está articulada com experiências existenciais dogmáticas e supersticiosas. De acordo com Gramsci (1978), não se deve condenar a visão cotidiana da realidade, mas deve- se, isto sim, tomá-la criticamente nas mãos, para elevá-la a um novo patamar de compreensão que seja coerente, consistente e orgânico. O terceiro fator a ser levado em conta na obtenção de um conhecimento mais consistente é a crítica da autoridade. Por mais famoso e importante que seja, não devemos acreditar incondicionalmente no que diz o especialista em determinado assunto. Ninguém é absolutamente infalível; nenhum ser humano está isento de erro. Além disso, por motivações ideológicas, por engano de interpretação de dados, por deficiência de recursos técnicos, por emprego de métodos inadequados, o pesquisador poderá falsear a realidade. Se confiarmos exageradamente na sua autoridade, perderemos a oportunidade de corrigi-lo. O último elemento metodológico necessário para a constituição de um conhecimento mais objetivo é a crítica das explicações existentes no meio científico. Não podemos desprezar os conhecimentos já estabelecidos, assim como não podemos admiti-los como plenamente verdadeiros. A verdade, sendo aproximativa, deverá ser permanentemente buscada. É preciso verificar, criticamente, a validade de um conhecimento que se constituiu num determinado tempo e lugar e os interesses subjacentes de quem o formulou e da sociedade à qual ele serviu. De repente, nos deparamos com conceitos que já não explicam mais a realidade e, por isso, devem ser descartados. Os conhecimentos científicos existentes representam passos dados pela humanidade no seu esforço permanente de compreender a realidade para transformá-la. 39 A produção do conhecimento, não importa a sua modalidade -- mito, religião, senso comum, filosofia, ideologia, ciência -- é dialética. Sendo uma percepção aproximativa da realidade, todo conhecimento deve ser revisto e atualizado. Há o que deva ser aproveitado criticamente, como há o que deva, também criticamente, ser descartado. O conhecimento construído de forma crítica, com todos os elementos metodológicos acima especificados, tem maior probabilidade de ser verdadeiro. 40 Referências Bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 24. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19981. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1980 . HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 6ed. São Paulo: Hucitec, 1987. MORAIS, Regis (org). As razões do mito. Campinas: Papirus, 1988. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1974. RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 41 WERNECK, Vera Rudge. A ideologia na Educação: um estudo sobre a interferência da ideologia no processo educativo. Petrópolis: Vozes, 1982. 42 CAPÍTULO II EPISTEMOLOGIA A ciência é necessária, mas não suficiente. 1.0 . CONCEITO DE EPISTEMOLOGIA E SUA PROBLEMÁTICA No capítulo anterior, vimos que a produção dos conhecimentos é uma consequência da ação do homem sobre o mundo. No entanto, não podemos ver todos os saberes sob um único prisma, pois estaríamos fornecendo o mesmo estatuto a conteúdos heterogêneos e, de certa forma, antagônicos. Se pensarmos desta maneira, um critério de valor, ou melhor, de validade, deve ser conferido ao conhecimento, para que a razão possa “dar crédito” àquilo que ela mesma produz. Estabelecer um critério que forneça validade ao conhecimento, significa conceber um estatuto sob o qual a produção intelectual possa ser consignada com confiabilidade. Mas, de quem seria esta responsabilidade? Do filósofo? Do cientista? Do homem comum? Se há vários tipos de conhecimento produzidos, é porque há autores diversos, desde o homem simples que se orienta pelo senso comum até o pesquisador, que se empenha firmemente para alcançar o máximo de objetividade. Ora, a validade do conhecimento não pode circunscrever-se aos limites do senso comum, da religião ou da ideologia, pois estes saberes estão impregnados de subjetividade, dogmas e intencionalidades que comprometem a certeza de suas afirmações. 43 Assim, resta-nos apelar para a ciência e para a filosofia. A ciência produz conhecimentos que procuram ser dignos de crédito. Afinal, a força de suas teorias e dos seus conteúdos explicativos pode satisfazer aos espíritos mais exigentes. Contudo, uma questão nos inquieta: pode o cientista, no seu fazer- ciência, ter a visão crítica e o distanciamento necessários para questionar a produção teórica que está construindo? Se, por um lado, acreditamos que o fazer-ciência envolve uma atitude questionadora, por outro lado, verificamos que, limitado ao método e ao objeto de análise, o cientista pode se enganar, deformar ou mesmo “artificializar” sua produção intelectual, sobretudo se ele não tiver um senso crítico aguçado quando da manipulação das técnicas e métodos, ou não obedecer a uma ética capaz de avaliar as consequências do uso irresponsável do saber científico. A ciência e a tecnologia foram bem sucedidas nos diversos campos da pesquisa e nos múltiplos setores da atividade humana, mas também engendraram inúmeros problemas. A história está pontilhada de exemplos de “erros” da ciência, bem como de seu uso inadequado. Como demonstra Hilton Japiassu (1975), não há ciência neutra, e uma filosofia das ciências é necessária para abrir os horizontes do cientista. Neste sentido, a filosofia pode dar uma contribuição valiosa à ciência, suscitando a reflexão do pesquisador ou, até mesmo, apontando caminhos a serem percorridos, sem a arrogância da superioridade, mas com o propósito de estabelecer o diálogo mutuamente enriquecedor, em exercício interdisciplinar. Neste caso, o filósofo não se traveste de cientista nem este se transforma em filósofo; um subsidia o outro numa perspectiva de complementaridade, ao mesmo tempo que se reconhecem incapazes de, isolados, dar conta de toda a realidade. Muitos são os autores que auxiliaram na compreensão desta questão: Jean Piaget, Gaston Bachelard, Karl Popper, G. Canguilhem, entre outros. Face aos avanços da ciência e da tecnologia, esse problema tornou-secada vez mais relevante. Ora, a filosofia não pode se furtar à discussão dessa questão. Ao contrário, o questionamento do modelo científico tornou-se objeto de crítica, a partir da qual originaram-se novas diretrizes para a ciência e para a técnica. A produção crítica em torno da tecnociência chamamos de epistemologia, que se configura como a reflexão do fazer científico, ou seja, como um conhecimento que procura estabelecer as bases e a validade do saber produzido pela ciência de uma maneira geral. 44 Em sua origem etimológica, o termo epistemologia provém de dois vocábulos gregos: episteme (ciência , conhecimento) e logos (teoria, tratado, estudo). Em sentido amplo, podemos dizer que epistemologia é ...o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais (Japiassu, 1979, p.16). Em sentido estrito, entendemos por epistemologia a reflexão crítica sobre os produtos da ciência, isto é, o estudo sistemático sobre tudo o que a ciência faz. No primeiro caso, a epistemologia se confunde com gnosiologia ou teoria do conhecimento cujo raio de ação se estende a todo o saber, seja ele especulativo (filosofia) ou positivo (ciência). Nesse contexto, procura-se inquirir a respeito da natureza ou essência do conhecimento, suas possibilidades, seu valor etc. É a perspectiva inaugurada já pelos pré-socráticos 9 (Heráclito e Parmênides), passando por Platão e Aristóteles, e que adquiriu força a partir do século XVII com o cogito 10 cartesiano. Neste solo, as questões levantadas são do interesse quase exclusivamente dos filósofos. No segundo caso, a epistemologia, fica circunscrita à análise dos princípios , das hipóteses e dos resultados das ciências já constituídas, bem como da linguagem que utilizam, visando determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo das mesmas. Aqui a reflexão não é privilégio somente de filósofos, mas também de cientistas que procuram avaliar os resultados do seu próprio trabalho. 9 Diz-se pré-socráticos, os filósofos que precederam a Sócrates (469-399 a .C.), os quais desenvolveram sua reflexão procurando respostas para os problemas cosmológicos. 10 Esta expressão faz referência ao racionalismo de Descartes, quando concebeu a proposição “eu penso, logo existo”, como a primeira verdade da qual não se pode duvidar . 45 2.0. O PROCESSO DE EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA Desde as origens da humanidade, a civilização foi constituída como uma adaptação do homem ao mundo. Aos poucos, ele descobriu o meio circundante e, pela força de seus braços e a habilidade de suas mãos, começou a transformá-lo. Mais tarde, percebeu que os utensílios que fabricava, aumentavam a sua potência física e ampliavam seu domínio sobre a natureza. Uma longa familiaridade permitiu uma boa convivência entre o homem e o meio, do qual tirava seus recursos de sobrevivência. As experiências bem sucedidas o animavam a procurar novas técnicas de intervenção na natureza. Para isso, era necessário conhecê-la melhor: compreender a origem do universo e das coisas, investigar a regularidade dos fenômenos físicos, detectar as suas propriedades etc. Século após século, a humanidade foi acumulando experiências de modo a permitir um conhecimento mais preciso da natureza, obtido por meio da investigação e de processos experimentais. 2.1. A CIÊNCIA NA ANTIGÜIDADE Fundamentalmente, a ciência, na forma como concebemos hoje, surgiu no início da Idade Moderna. Entretanto, antes de Copérnico e Galileu registrou- se alguns esforços no sentido de compreender os fenômenos naturais e o funcionamento do organismo humano, bem como de matematizar o espaço até então conhecido. Os pioneiros nesse segmento da cultura foram os povos orientais (egípcios, mesopotâmicos, hindus, chineses) que, em busca de solução para problemas de ordem pragmática, deram passos significativos nos campos da astronomia, matemática e medicina. Na Grécia, os filósofos pré-socráticos -- especialmente Tales de Mileto, Heráclito, Anaximandro, Pitágoras e Demócrito -- interessaram-se por algumas áreas da matemática e da física, enquanto que Hipócrates se ocupou da biologia e da medicina. Posteriormente, Aristóteles, Arquimedes e Euclides realizaram estudos de física e matemática e, na época da dominação romana sobre o que restou da civilização helenística 11 , destacaram-se o astrônomo 11 Entende-se por civilização helenística aquela resultante da fusão das culturas grega e oriental por efeito das 46 Ptolomeu e o médico Galeno. Contudo, os interesses desses estudiosos eram principalmente especulativos, teoréticos (contemplativos), não havendo grande devotamento ao domínio do universo físico. A ciência, para eles, valia apenas como introdução à filosofia. 2.2. A CIÊNCIA NA IDADE MÉDIA Herdeira da cultura greco-romana de um lado, e preocupada com a fundamentação teórica do cristianismo de outro, a civilização medieval também não fez progresso significativo no campo das ciências naturais e matemáticas. As preocupações dos intelectuais nesse período eram o conhecimento e o aprofundamento da doutrina cristã, não só para melhor difundi-la mas também para defendê-la daqueles que a atacavam no terreno das idéias. Indiferentes à pesquisa científica, interessavam aos fiéis e aos pregadores da mensagem cristã a fundamentação teórica da doutrina e a exegese da revelação contida nos textos bíblicos. Daí a primazia dos estudos teológicos e filosóficos. Tutelados pela Igreja que orientava o saber e preocupados com a sobrevivência eterna no Reino dos Céus, os pensadores ocidentais concordaram com a subordinação da razão à fé. Por isso, procuraram harmonizar os precários conhecimentos que lhes chegaram da física aristotélica e da astronomia ptolomaica com eventuais trechos bíblicos sem nenhum senso crítico. A aceitação incondicional do princípio da autoridade como critério de avaliação da verdade (autoridade da revelação das Sagradas Escrituras, de Aristóteles, dos padres da Igreja etc) constituiu-se num empecilho para o desenvolvimento das ciências até o final do período em questão. Nem mesmo a filosofia escapou da subordinação à fé, pela qual tornou-se “serva da teologia”. O crer foi posto como condição necessária do entender. Por esse motivo, persistiram, de modo geral, as noções científicas oriundas do helenismo, divulgadas pelos tradutores árabes da Península Ibérica. A estes se deveram também algumas realizações novas nos campos da medicina, da matemática e, sobretudo, da alquimia, da qual se originaria, mais tarde, a química. Não é preciso mencionar mais que os nomes de alguns poucos conquistas de Alexandre Magno, rei da Macedônia (329-323 a .C.). 47 estudiosos que se dedicaram à ciência: Adelardo de Bath (1090-1150), que não só criticou a confiança na autoridade, mas dedicou muitos anos de sua vida à investigação da natureza e à matemática; Alberto Magno (1193-1280) que, baseando-se em Aristóteles, apresentou uma série de observações originais sobre os vegetais, minerais e animais; e Rogério Bacon (1214-1292), que fez pesquisas de física e matemática e valorizou a experiência, “sem a qual nada pode ser conhecido suficientemente” (citado por Reale e Antiseri, 1990, v.1, p. 596). O paradigma medieval entra em crise com ascríticas de Guilherme de Occam (1285-1349) à física Aristotélica, baseada numa concepção de universo de estrutura rígida e fechada, ordenado por um sistema de leis imutáveis e causas necessárias. Sua filosofia assinala o prelúdio da desintegração do pensamento medieval e acena para a filosofia do Renascimento. Nele encontramos os germes não só do cartesianismo (a intuição e a evidência como critério da verdade), mas do empirismo inglês (a observação e a experiência como fonte do conhecimento) e também da ciência moderna, materialmente física e formalmente matemática, como veremos a seguir. 2.3. A CIÊNCIA MODERNA A crise moral da Igreja e as transformações ocorridas na Europa a partir do século XIV abalaram os alicerces do saber medieval, fundado no autoritarismo e na preocupação com a busca da salvação eterna. O renascimento do comércio e da vida urbana põe em colapso o sistema feudal e dá origem à formação da burguesia que fez novos empreendimentos comerciais de que resultaram os descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI. Do ponto de vista político, formam-se os Estados nacionais cujo poder, centralizado na pessoa do monarca, é exercido sobre um determinado território, em torno do qual tendem a se congregar as línguas nacionais que, lentamente, irão substituir o latim, a língua culta do período medieval. O fortalecimento do poder real, associado ao nacionalismo emergente, suscita o espírito de contestação ao poder eclesiástico, cuja credibilidade estava gravemente abalada pelos abusos do clero: simonia, nepotismo, imoralidade... Diante disso, não demorou a surgir líderes que levantaram a bandeira da reforma religiosa, encontrando adesões em segmentos da burguesia e da nobreza, bem como entre 48 camponeses explorados pelos senhores, leigos e religiosos. Todos esses acontecimentos e transformações que assinalam a transição da Idade Média à Idade Moderna repercutem profundamente no mundo da cultura, a começar pelo movimento artístico-literário humanista e pela invenção da imprensa por volta de 1450. O teocentrismo da cultura religiosa medieval é substituído pelo antropocentrismo dos artistas e intelectuais não mais vinculados exclusivamente à Igreja. A concepção geocêntrica até então preponderante é substituída pela concepção heliocêntrica, e aquela idéia de cosmos fechado, finito e qualitativamente hierarquizado, oriunda da tradição greco-medieval, é também substituída pela concepção de um universo aberto, indefinido, infinito e governado por leis que podem ser conhecidas pela observação científica. A filosofia se separa da teologia e a ciência se desgarra da filosofia. Em oposição ao saber contemplativo, desenvolve-se o saber ativo, acoplando a técnica à ciência. Ao rejeitarem os pressupostos dogmáticos da cultura medieval fundados na tradição e no autoritarismo da Igreja, os pensadores da Renascença tomam como ponto de partida o naturalismo-antropocentrista greco-romano, do qual advém o desejo de conhecer melhor o homem e a natureza. A revelação divina e a tradição são postas sob suspeita, carecendo agora da constatação da razão em tudo o que se afirma. O elemento detonador desse processo de idéias foi, sem dúvida, a revolução astronômica, cujos representantes mais prestigiosos foram Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e Galileu, e que iria confluir para a “física clássica” de Newton. Durante os cento e cinqüenta anos que decorreram entre Copérnico e Newton caem por terra os pilares da cosmologia aristotélico-ptolomaica: Copérnico coloca o sol no centro do mundo, ao invés da terra; Tycho Brahe elimina as esferas materiais que, na velha cosmologia, arrastavam os planetas com seu movimento e substitui a idéia de Orbe (esfera) material pela moderna idéia de órbita (trajetória); Kepler apresenta uma sistematização matemática do sistema copernicano e realiza a revolucionária passagem do movimento circular para o movimento elíptico dos planetas; Galileu mostra a falsidade da distinção entre física terrestre e física celeste, fazendo ver que a lua é da mesma natureza da terra, e estabelece novos fundamentos com a formulação do princípio da inércia; e Newton, com sua teoria gravitacional, unifica a física de Galileu com a de Kepler. 49 Nesse período, portanto, muda a imagem do mundo e, por via de conseqüência, mudam também as idéias sobre o homem, sobre o conhecimento, sobre o conceito de ciência, sobre o método científico, sobre as relações entre ciência e sociedade, entre ciência e filosofia, entre ciência e fé religiosa. Ousadamente, Galileu explicita com clareza absoluta que não é mais a intuição privilegiada do mago ou astrólogo “iluminado individualmente”, nem o comentário a um filósofo que disse “a” verdade que devem prevalecer, mas sim investigação e discurso sobre o mundo da natureza. Reale e Antiseri (1990) assim caracterizam essa mudança perspectiva: Essa imagem de ciência não surge toda pronta, de uma vez, mas emerge progressivamente de um tumultuado cadinho de concepções e idéias, em que se entrelaçam e entrecruzam misticismos, hermetismo, astrologia, magia e, sobretudo, temáticas da filosofia neoplatônica. Trata-se de um processo verdadeiramente complexo, que encontra seu resultado mais claro na fundamentação galileana do método científico e, portanto, na autonomia da ciência em relação às proposições de fé e às concepções filosóficas. O discurso qualifica- se enquanto tal porque -- como disse Galileu -- procede com base nas “experiências sensatas” e nas “demostrações necessárias”. E a “experiência” de Galileu é o “experimento”. A ciência é ciência experimental. É através do experimento que os cientistas tendem a obter proposições verdadeiras sobre o mundo (v. 2, p. 187). E citando Paulo Rossi, acrescentam os referidos autores: Essa nova imagem da ciência -- feita de teorias sistematicamente controladas através dos experimentos -- “era o registro de nascimento de um tipo de saber entendido como uma construção perfectível, que nasce da colaboração dos gênios, que necessita de uma linguagem específica e rigorosa e que, para sobreviver e crescer sobre si mesma, necessita de instituições específicas próprias (...). Um tipo de saber (...) que crê na capacidade de crescimento do conhecimento, que não se baseia na pura e simples rejeição das teorias anteriores, mas sim em sua substituição por teorias mais „amplas‟, que sejam logicamente mais „fortes‟e tenham maior conteúdo de controlabilidade” (idem ibidem). 50 Como se depreende, a revolução científica introduziu um novo paradigma do saber, isto é, um novo modelo de representação da realidade. Trata-se de uma cosmovisão diferenciada daquela que concebia a ciência como saber de essências feito de teorias e conceitos definitivos. Agora, a ciência se configura como descrição da realidade, obtida através de um método que não esmola garantias fora de si mesmo. Não é mais o que, mas o como; não é mais a substância, mas sim a função, que a ciência deve indagar. 2.4. UNIÃO DA CIÊNCIA COM A TÉCNICA Uma característica fundamental da revolução científica moderna é a formação de um saber que, ao contrário do anterior, reúne teoria e prática, ou seja, ciência e técnica. Ao necessitarem dos instrumentos de medida e de observação para a constatação de suas hipóteses, os cientistas do Renascimento viram-se na contingência de construir instrumentos ou solicitaram que os fizessem às pessoas que trabalhavam nos arsenais e nas oficinas. Aos poucos, ruiu a muralha que, desde a Antiguidade, separava as “artes liberais” (disciplinasteóricas), das “artes mecânicas” (disciplinas práticas). Estabelece-se uma estreita relação entre o astrônomo, o físico, o engenheiro e o artesão. Sabe-se que Galileu ia freqüentemente ao arsenal de Veneza para ter um colóquio com os técnicos. As técnicas, os achados e os processos presentes naquele arsenal ajudaram de tal forma a reflexão teórica do pai da revolução científica que ele afirmou: O colóquio com os artífices do arsenal muitas vezes ajudou- me na investigação da razão de efeito não apenas maravilhosos, mas também recônditos e quase imprevistos, (citado por Reale e Antiseri, 1990, v. 2, p. 193). Desde então, tornou-se praticamente impossível desvincular a atividade científica da atividade técnica; o desejo de conhecer os segredos do universo e as leis que regulam os fenômenos naturais se completa com o desejo de controlá-lo, para tornar a vida melhor. Destarte, os instrumentos não só ajudam e potencializam os sentidos, mas também oferecem ao cientista condições de se libertar dos enganos dos olhos. Noutras palavras, os instrumentos são meios pelos quais o pesquisador alcança o interior dos objetos, garatindo-lhe maior objetividade contra os sentidos e os seus testemunhos. 51 2.5. A CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA Os fundamentos da ciência contemporânea foram lançados, em sua maior parte, nos fins do século XIX e nos começos do século XX. Foi durante esse período que se passou a conceber o átomo não mais como uma partícula sólida e indivisível, como um sistema solar em miniatura. Descobriu-se o fenômeno da radioatividade, desacreditou-se a hipótese do éter como espaço vazio entre a matéria e demonstrou-se a relatividade do tempo e do espaço. Desde então, o desenvolvimento científico adquiriu um impulso extraordinário de que resultaram descobertas inusitadas, que se somaram às inovações tecnológicas, conferindo à tecnociência resultados surpreendentes. No campo da física, merecem destaque as contribuições de Albert Einstein (teoria da relatividade), Max Planck (teoria dos quantas), Erwin Schrödinger, Werner Von Heisenberg e Max Born (mecânica quântica), Otto Hahn e F. Strassmann (física nuclear) e M. Gilmann (descoberta dos quarks). No terreno da biologia, coube a Louis Pasteur (1822-1895) a derrubada da teoria da geração espontânea e a criação da bacteriologia que posteriormente, Robert Koch (1843-1910) lhe conferiu rigor científico . As pesquisas de Lamarck (1744-1829) e de Charles Darwin (1909-1882) resultaram na teoria da evolução natural das espécies, confirmada, mais tarde, por August Weismann (1834-1914) e Hugo de Vries (1845-1935). Gregório Mendel (1822-1884) fundou a genética e Thomas H. Morgan (1866-1945) estabeleceu suas bases experimentais. Aos poucos, os fabulosos progressos da biologia foram aplicados a outras ciências e técnicas, tendo a matemática contribuído com apreciável parcela em muitos campos. A bioquímica e a fisiologia fizeram enormes avanços, esclarecendo problemas fundamentais de metabolismo e de transformação energética nos seres vivos. A imunologia firmou-se como ciência e a biofísica alargou as possibilidades de utilização de recursos físicos no estudo das funções da vida, permitindo delicadíssimas técnicas de investigação de fenômenos elétricos, entre muitos outros. Os trabalhos do fisiologista Sir Charles Scott Sherrington (1857-1952) 52 sobre ação integrativa do sistema nervoso abriram caminhos novos ao estudo das funções cerebrais e dos reflexos, estes últimos também abordados com grande originalidade por Ivan Pavlov (1849-1936) e que inspiraram numerosas pesquisas no campo da psicologia experimental. Os avanços alcançados no estudo dos vírus possibilitaram, juntamente com os conhecimentos de citogenética, investigar aspectos importantes da biologia molecular, fazendo-se combinações e recombinações de material genético. A farmacologia esmiuçou a reação dos sistemas vivos a numerosas substâncias, muitas das quais produzidas pelo próprio organismo, e assim propiciou progressos sem precedentes na terapêutica de várias doenças, atingindo plenamente e até superando muitos dos objetivos sonhados por Paul Ehrlich (1854-1915) ao fundar a quimioterapia. A biologia molecular desvendou o código genético através das pesquisas de S. Ochoa, A. Kornberg, F. Jacob, J. Monod, M. W. Nirenberg, J. N. Matthei, entre outros. Juntamente com a genética, a endocrinologia e a neurofisiologia, a biologia molecular aparece atualmente como um dos campos mais revolucionários, quanto às possibilidades que encerra para a compreensão da vida e de suas manifestações, bem como para a melhoria da existência humana. Com isso, recrudesce o debate em torno da própria natureza da vida e firma-se, entre muitos estudiosos, a convicção de que, em breve , nos laboratórios se conseguirá sintetizá-la. As pesquisas de Francis H. Campton Crick e ames D. Watson resultaram na descoberta da estrutura molecular do DNA (1953), imediatamente reconhecida como uma das conquistas fundamentais do século. Em 1978, pela primeira vez, uma criança, Louise Brown, foi concebida in vitro . Os avanços da genética são tão acelerados que permitiram o nascimento dos primeiros ratinhos por clonagem (1981) e da ovelha Dolly (1996). No campo da medicina, são inúmeras as conquistas: a descoberta dos antibióticos, o uso da radioatividade no tratamento do câncer, os processos técnicos de conservação do sangue e do plasma sanguíneo para transfusão, a descoberta de vacinas imunológicas e de um grande número de novas vitaminas, o desenvolvimento de hormônios sintéticos, bem como da medicina psicossomática, baseada na percepção da importância dos fatores da ansiedade, do medo etc, como causas de úlceras, hipertensão arterial e doenças cardíacas. Um aspecto importante na evolução da ciência contemporânea é o 53 desenvolvimento das disciplinas de fronteira: a físico-química, a astrofísica, a bioquímica, a biofísica, a geofísica e outras. Estas disciplinas, ao invés de contribuírem para maior setorialização do conhecimento, constituem, juntamente com as equipes interdisciplinares, canais através dos quais as disciplinas e os pesquisadores voltam a se comunicar depois de cerca de um século e meio de separação. Isto caracteriza uma nova tendência na direção da unicidade da pesquisa científica. No campo da biotecnologia, são inúmeras as contribuições tanto na agricultura quanto na medicina, com as quais tornou-se possível a invenção de produtos sintéticos a partir de vegetais que auxiliam nos enxertos de pele. O controle da genética animal altera ciclos reprodutivos e promove a seleção de raças para melhorar a qualidade das espécies. Desde 1992, cientistas de vários países, desenvolvem o Projeto Genoma Humano, também conhecido por HUGO (Human Genoma Organization), destinado a fazer o mapeamento dos genes – as moléculas do DNA --, uma espécie de arquivo da programação genética das células do nosso corpo. Acredita-se que em pouco tempo a genética humana terá condições de prevenir as más-formações congênitas, as patologias degenerativas etc. Em virtude dos avanços da biotecnologia, surgiu ultimamente uma nova disciplina, a bioética, que levanta questões relativas à ética da vida, procurando estabelecer limites até onde a ciência pode ir com suas pesquisas. Teme-se que, para além dos benefícios trazidos à melhoria da qualidade de vida, haja uma demasiada interferência na natureza por parte de manipuladores genéticos inescrupulosos e imbuídos de interesses perversos. Os estudos relativos aos efeitos da poluiçãoe da perturbação dos ambientes naturais ensejaram notável desenvolvimento da ecologia, da etologia e de muitas outras ciências correlatas. Quanto às ciências do comportamento humano, a grande novidade foi o aparecimento da psicanálise, fundada por Sigmund Freud (1856-1939), a partir do estudo do inconsciente reprimido. Doravante, praticamente todas as ciências humanas, direta ou indiretamente, sofreram influência da teoria psicanalítica. No que diz respeito ao campo da tecnologia, é fantástica a profusão de inovações que auxiliam na organização do trabalho e na gestão empresarial, 54 facilitando as comunicações e a vida das pessoas de um modo geral. Em 1935, Alan Turing, ao descrever uma máquina de calcular teórica para lógicos matemáticos, forneceu a base da teoria do computador, sobre a qual trabalhariam, alguns anos mais tarde, Claude Shannon (1939) e John von Neumann (1945) para dar origem ao moderno computador. Desde então, o processo de produzir, multiplicar e armazenar informações tornou-se acelerado. Não há como prescindir do uso da máquina. O computador tornou-se o instrumento por excelência da sociedade contemporânea. A robótica e a informática são necessárias tanto à indústria e aos serviços, quanto aos trabalhos domésticos. A ciência do século XX desenvolveu uma imagem bem diferente do mundo. Não há como deixar de reconhecer que estamos no início de uma nova revolução da tecnociência que tende a desvendar fantásticos mistérios do universo, da vida e da mente humana. A racionalidade técnico-científica deu ao homem meios de ação cada vez mais numerosos e eficazes sobre a natureza. 2.6. A REVOLUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA E SUAS IMPLICAÇÕES Vivemos uma época fortemente marcada pela presença da ciência e da tecnologia. Os meios de comunicação social nos mostram diariamente as grandes conquistas da pesquisa científica, suas descobertas nos campos da astronomia, da química, da física, da biologia, da medicina, da genética etc. Mostram também os avanços da tecnologia nos campos da informática e da robótica e suas repercussões em todos os setores da atividade humana. A maneira de viver de todos os povos civilizados está fortemente influenciada pela ação da ciência e da tecnologia que se tornaram elementos de unificação das culturas. A revolução científico-tecnológica tomou forma universal na medida em que ultrapassou todas as fronteiras, seja de países altamente desenvolvidos, seja de países em via de desenvolvimento. 2.6.1. Algumas inovações As descobertas científicas e seus desdobramento tecnológicos interessam de perto a todos nós pelos benefícios e pelas repercussões nos múltiplos setores da sociedade humana. Entre as revoluções vivenciadas pela 55 humanidade, é seguramente a revolução científico-tecnológica a que mais operou transformações num curto espaço de tempo. O progresso científico e tecnológico que se vinha manifestando na segunda metade do século XIX acelerou-se em nosso século, ensejando importantes inovações: * O desenvolvimento crescente das ciências físico-matemáticas e biogenéticas e o avanço considerável das ciências humanas, especialmente a sociologia, a psicologia e a antropologia; * A implantação da pesquisa como novo e vasto campo de trabalho, ensejando a criação de inúmeros institutos de pesquisa pura e aplicada em todo o mundo; * A interdisciplinaridade no trabalho científico não só entre as ciências afins, mas de todos os saberes, devido à enorme complexidade de apreensão do real em toda a sua totalidade; * A necessidade de formação de especialistas em setores cada vez mais específicos das atividades científicas e tecnológicas, originando novas ciências e novas profissões; * A emergência de uma série de problemas causados pelo progresso tecnológico, cujas soluções exigem cooperação entre as nações. O processo de evolução da tecnociência é irreversível. Está se tornando senso comum em Há nisso tudo um enorme agravante: os ganhos por estes avanços todas as culturas que a melhoria da qualidade de vida depende do domínio de tecnologias avançadas. Acoplada à ciência, a tecnologia permite o aumento da produção de alimentos, o tratamento de doenças outrora incuráveis, a diminuição dos esforços do trabalho, a rapidez dos sistemas de transporte e comunicação, a melhoria das condições de lazer, a fabricação de uma infinidade de bens que há bem pouco tempo eram inimagináveis. 2.6.2. Algumas implicações Sem dúvida, os êxitos da tecnociência oferecem novas possibilidades para o homem. A ciência permite o domínio da natureza, o aumento da produção dos alimentos, a prevenção de doenças, a cura de moléstias etc. A tecnologia, por 56 sua vez, poupa o homem de esforços penosos, imprime rapidez e eficiência à produção de bens, diminui as distâncias e possibilita a circularidade das informações. Contudo, não podemos ignorar a infinidade de problemas biofísicos, bioéticos e sociais que elas engendram. Vejamos alguns deles. 2.6.2.1. A agressão à natureza Para atender a demanda da produção resultante do crescente consumo de bens, o homem vem agredindo impiedosamente a natureza, devastando as florestas, explorando os recursos minerais, às vezes de forma irracional. A natureza já não possui um valor em si mesma, independente do uso que o homem faz dela; por muitos, é encarada como fonte de recursos disponíveis à ganância do ser humano que se entende como seu senhor A poluição do ar, das águas e do solo provocada pelo lançamento na atmosfera de toneladas de gases tóxicos, bem como pelos dejetos industriais deixados no solo ou canalizados para as águas, deterioram o ecossistema da biosfera e, em conseqüência, causam o desaparecimento de espécies animais e vegetais e ameaçam a própria sobrevivência do homem. A diminuição progressiva da camada de ozônio e o chamado efeito estufa, causados pela poluição atmosférica, têm provocado a mudança nas condições climáticas, cujas conseqüências são os longos períodos de estiagem e as inundações em regiões mais vulneráveis aos efeitos dessas transformações. 2.6.2.2. A crise causada pela urbanização A formação dos centros industriais atraiu o homem do campo que, à procura de melhores condições de trabalho, deslocou-se para as zonas urbanas, originando metrópoles e megalópoles, nas quais a qualidade de vida está bastante comprometida pela impossibilidade de atendimento a todos os seus habitantes das necessidades básicas e dos anseios de trabalho, consumo, cultura e lazer. Mais de 70% da população mundial habita as áreas urbanas, e nos países altamente industrializados esta cifra se eleva para 95%. Isto acarreta um sem número de problemas para o homem que habita o espaço urbano. Nas grandes metrópoles tornou-se impossível, à maioria da população, uma qualidade de vida ao menos satisfatória, não só pela pequenez do espaço 57 vital mas também pelas dificuldades de trabalho, transporte, condições de educação, saúde, segurança e lazer. Até mesmo a relação de vizinhança se enfraqueceu, à medida que foi destruída a solidariedade natural da proximidade pelo dinamismo do cotidiano. Nas cidades de hoje, os seres humanos se empilham uns sobre os outros, uns ao lado dos outros, mas cada qual se encerra em sua residência para recuperar as energias dispensadas pelo esforço do trabalho estressante, para se proteger da violência ou para fugir dos ruídos, das sujeiras, da violência, das músicas induzidas dos arredores etc. As grandes cidades estão desnaturadas. Por isso, nos finsde semana e nas férias, muitos dos seus habitantes evadem para os subúrbios, os campos, as praias e as montanhas em busca de um refúgio privilegiado, onde possam respirar o ar puro e se pôr em contato com a natureza. 2.6.2.3. A substituição da mão-de-obra humana pela máquina Até pouco tempo atrás, toda a produção e grande parte da cultura estavam baseadas no trabalho humano. O trabalho era considerado por todos e consignado pelos organismos internacionais como um direito fundamental, como um meio pelo qual o ser humano se constrói a si mesmo como criador. O desemprego significava uma disfunção passageira. Hoje, no entanto, os sistemas produtivos informatizados e robotizados produzem mais e melhor, quase sem o concurso do trabalho humano. Os efeitos desta mutação tecnológica são a dispensação continuada e irrecuperável da força de trabalho e a exclusão crescente da participação humana no processo de produção. Como afirmou Jacques Robin: A história da aplicação tecnológica pode ser lida de uma parte como do melhoramento do nível de vida, mas doutra como sucessão de duas formas de pobreza: o pauperismo e o desemprego, a primeira vinda do trabalho, a segunda de sua ausência (in Boff, 1994, p. 15). E Leonardo Boff acrescenta: Há nisso tudo um enorme agravante: os ganhos por esses avanços tecnológicos não são socializados, beneficiando toda a população, mas são reinvestidos em tecnologias mais avançadas para 58 as empresas se fortalecerem na concorrência, permanecerem no mercado e produzirem ainda mais. A lógica desse tipo de desenvolvimento informacional prolonga a perversidade da lógica presente no modelo capitalista de desenvolvimento: o primado do quantitativo sobre o qualitativo, o privilégio do capital e dos meios novos de produção sobre a pessoa humana trabalhadora, a predominância do material sobre o humanístico, sobre o ético e sobre o espiritual (idem ibidem). 2.6.2.4. A abusiva concentração da riqueza Desde que começou a revolução industrial no século XVIII, intensificou-se o processo de acumulação de capitais, originando a formação de aglomerados industriais que neste século passaram a atuar em diversos países. Essas multinacionais ou transnacionais, como passaram a ser denominadas, geraram um fluxo de capitais para os países de origem e estes, por sua vez, passaram a gerenciar a economia mundial, por meio dos financiamentos bancários concedidos àqueles que necessitam de capitais e tecnologia para implementar o seu desenvolvimento. Há atualmente uma crescente interdependência de todas as economias e uma integração de todos os mercados segundo um modelo que beneficia preferencialmente os países centrais (altamente industrializados). Exportando produtos cuja fabricação exige uma mão-de-obra altamente qualificada e uma tecnologia sofisticada e importando matérias primas, gêneros agrícolas e alguns manufaturados, esses países acumularam grandes somas de capitais e passaram a conceder empréstimos financeiros a juros elevados aos países periféricos. O resultado desse sistema de economia mundializada são a concentração abusiva da riqueza nos países centrais e a dependência tecnológica, financeira e ideológica dos países periféricos, pois as relações não são simétricas nem eqüitativas. A predominância deste tipo de economia está tornando mais pobres as populações dos países insuficientemente industrializados, uma vez que seus esforços do trabalho servem apenas para pagar os juros da dívida contraída junto aos governos e banqueiros dos países centrais. 2.6.2.5. A intoxicação humana pela imagem e pelo som 59 A civilização científico-tecnológica está produzindo transformações não só no modo como o homem se relaciona com o mundo mas também como ele se relaciona com os outros homens. Até o século XIX, o homem estava presente no mundo por intermédio de seus olhos e ouvidos que se harmonizavam sem esforço com os ritmos da vida cotidiana. A comunicação à distância era impossível. Hoje, graças ao avanço da tecnologia, a distância é apenas uma variável arbitrária. É difícil avaliar a repercussão mental deste alargamento indefinido do campo perceptivo causado pelo desenvolvimento de um segundo sistema nervoso estimulado por imagens e sons. Os aparelhos audiovisuais invadiram a vida quotidiana, originando novas formas de relação social. Já não é importante a presença física das pessoas, mas a posse dos meios que põem em contato virtual umas com as outras, não importa a distância. Os meios eletrônicos não são apêndices inofensivos acrescidos à realidade humana. Sua intervenção tem reflexo profundo no modo de ser das pessoas. Se, por um lado, facilitam o acesso às informações e propiciam formas alternativas de divertimento e lazer, por outro lado, causam a dispersão entre os indivíduos e afetam o seu desenvolvimento intelectual. A vida em família, a existência em comum de pais e filhos, acha-se hoje reduzida a quase nada pelas dificuldades materiais da existência que dispersam uns e outros nos quatro cantos da cidade. Mas o pouco que ainda resta é, na maior parte, absorvido pela audição de aparelhos de som ou pela contemplação do receptor de TV, continuada até durante as refeições ou no quarto conjugal. As trocas de palavras são reduzidas ao essencial e faz-se calar o intruso que pretenda ter algo a dizer. É cada vez maior o número de pessoas que se abandonam sem defesa ao fluxo das imagens. Essas pessoas renunciam à direção do seu próprio pensamento e aceitam uma direção da consciência por intervenções estranhas. De fato, não é fácil defender-se contra o poder sugestivo das imagens, cuja retórica convence o espectador com apelo às forças obscuras da personalidade, às atrações do sexo, às paixões hostis, à violência. Certezas passionais nos são assim impostas por uma verdadeira agressão contra a personalidade. Ao analisar essa questão, Geoges Gusdorf (1978) assim se manifesta: Se a educação é uma obra de razão, a civilização da 60 imagem deve ser considerada como uma contra-educação, cujos efeitos sobre uma personalidade fraca ou ainda não formada podem ser temerosos. Se se pensa que um único e mesmo programa de televisão pode ser visto simultaneamente por milhões, dezenas de milhões de espectadores, mede-se perfeitamente o imenso poder de que dispõem, freqüentemente, sem suspeitarmos, os animadores de tais atividades. A publicidade e as propagandas de toda natureza adquiriram consciência deste poder; ora, se se pensa na aterradora mediocridade da publicidade televisionada na França, no Brasil, nos Estados Unidos, temos que admitir que tais programas, cuja eficácia foi atestada por pesquisas, ilustram as novidades da televisão e os perigos da repressão que ela está em condições de operar. A antropologia do consumidor de imagens é caracterizada pelo rebaixamento das exigências intelectuais, a simplificação abusiva da afetividade, o perigo de uma adesão passiva a determinismos passionais impostos de fora. Tudo o que se pode dizer em favor dos efeitos benéficos da televisão cultural não poderia compensar o fato que, para a maioria dos telespectadores, o recurso às imagens é um meio fácil de evasão, um recurso barato ao sonho em detrimento das exigências do pensamento (p. 145-146). A TV não é como um livro, ou sequer como uma revista ou um jornal impresso, cuja leitura podemos interromper, refazer, submeter a reflexões demoradas. A dinâmica da imagem solicita respostas imediatas de quem a ela está submetido. As reações são reflexas, rápidas.A velocidade é um componente fundamental desse mundo de sonhos e fantasia. A esse respeito, comenta Boff (1994): É pelas imagens que os cidadãos se contemplam e projetam sua identidade. E a identidade de uma pessoa é mais e mais a imagem que se projeta dela para os outros e menos o que ela é em si mesma em sua profundidade, em sua dialogação consigo e com seu universo interior e exterior. Ou se participa efetivamente deste tipo de sociedade-espetáculo, sendo um ator real ou se participa pelo imaginário e pela imagem. (p. 17). E citando José Comblin, conclui Leonardo Boff : 61 As massas não praticam esporte, mas o vêem pela TV; não produzem músicas, mas escutam-na; não fazem histórias, mas comentam-na. Pela imagem se sentem também participantes e não excluídos da história (idem ibidem). 2.6.2.6. O processo de homogeneização da cultura. Desde o início do século XX, a cultura vem sofrendo um processo de homogeneização, levado a efeito pelo aprimoramento dos meios tecnológicos de produção em série e de reprodução das obras literárias e artísticas. Esse processo se intensificou mais ainda, a partir dos anos 50, com o advento da televisão e sua posterior planetarização por meio de satélites. Desde então, os regionalismos culturais sofrem um processo de desintegração, face a pressão avassaladora das imagens televisivas que invadem o cotidiano e lhes dão poucas chances de resistência. Não só a TV, mas também os demais veículos da comunicação de massa influenciam comportamentos, hábitos de consumo, formação da escala de valores, bem como a maneira de pensar e agir dos indivíduos. De Montreal à Buenos Aires, de Nova Iorque à Tóquio, de Moscou à Cidade do Cabo, de Paris ao Rio de Janeiro, os bens culturais (cinema, música, shows, teatro, programas de TV, moda, turismo, esporte, artes, diversão, decoração, design) e os bens de consumo (automóveis, aparelhos eletro- eletrônicos etc.) sofrem poucas variações. Até mesmo as construções arquitetônicas dos aeroportos das principais cidades do mundo, os shoppings, os conjuntos residenciais e os centros industriais são também muito parecidos. Ora, sem o referencial de sua cultura, o homem sente-se desenraizado do seu meio ambiente e, consequentemente, perde o equilíbrio psicológico e social. Desfeita a sua ancoragem e condenado a assimilar valores que não fazem parte das tradições locais, o homem, aos poucos, relativiza todas as suas crenças e todos os valores que davam sentido à sua existência. Consciente ou inconsciente daquilo que foi perdido e que nostalgicamente tenta reencontrar, ele aprisiona-se numa espécie de existência segunda, agora julgada irreal. Todavia, o que ela faz advir com a destruição dos grandes símbolos e da cosmovisão que lhe conferiam sentido à existência primeira, é a desilusão, a insegurança e a incerteza do futuro. 62 3.0. PRINCIPAIS CORRENTES EPISTEMOLÓGICAS Para melhor compreensão dos problemas relacionados à construção do conhecimento científico, apresentaremos, de maneira resumida, as principais correntes epistemológicas que, em nosso século, auxiliaram a ciência a compreender seu processo de produção de conhecimento. 3.1. A EPISTEMOLOGIA POSITIVISTA DE AUGUSTO COMTE. Os dois últimos séculos conheceram profundas transformações no pensamento humano. Ocorreram as grandes invenções da Revolução Industrial como produto da teoria aplicada à prática. Desde então, firmou-se a crença de que o conhecimento científico não somente é necessário mas é aquele que poderia solucionar todos os problemas humanos. Na esteira deste pensamento, desenvolveu-se a filosofia de Augusto Comte e, consequentemente, o amadurecimento de uma epistemologia positivista. Augusto Comte (1798-1857) propôs uma leitura da história onde o conhecimento objetivo (positivo) passou a ser o “saber por excelência” e todo o conhecimento que não contivesse essa positividade deveria ser relegado a um plano secundário. Em seu Curso de filosofia positiva, propõe a “lei dos três estados”, segundo a qual a humanidade passou por três estágios em seu processo de evolução: o estágio religioso ou teológico, o estágio metafísico ou reflexivo e o estágio positivo ou científico. No primeiro, o homem explica a realidade por meio de elementos retirados de sua fantasia; a ignorância o leva a inventar e aceitar tudo o que sugere a imaginação. Segundo Comte, este estágio corresponde à “infância da humanidade”. No segundo, à imaginação fabuladora, junta-se o raciocínio lógico e o homem passa a explicar o mundo por meio de conceitos abstratos (ser, essência, transcendência etc.), sem vínculos com a realidade objetiva. Este estágio corresponde à “adolescência da humanidade”. No terceiro, o homem toma uma outra direção na busca do conhecimento e procura conhecer e explicar a natureza por meio da observação e experimentação controladas, buscando inferir as leis invariáveis que regem os fenômenos. É a fase “adulta” da humanidade. Com efeito, o homem deve abandonar todo o conhecimento do qual não pode estabelecer relação de causa e efeito, nem demonstrar, a partir de observações controladas. “Saber para prever, a fim de 63 prover”, eis o seu lema. Em última análise, o conhecimento das leis naturais permite a manipulação e o domínio da natureza. Assim, a ciência passa a ser o instrumento mais adequado à obtenção de um conhecimento válido, bem como sua aplicação na atividade prática por meio da técnica. Todas as áreas do conhecimento necessitam validar suas proposições pela positividade, isto é, pela lógica que caracteriza a fase adulta da humanidade. Esta mentalidade passa a ser a essência das ciências, que encontram no estatuto positivista sua razão de ser. A sociologia, a psicologia, a economia, enfim, as ciências que possuem objetos com elevado grau de complexidade, passam a ter um método de análise assemelhado à física, à química, etc, ao método das ciências exatas. 3.2. A EPISTEMOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE EDMUND HUSSERL. A fenomenologia se constituiu como uma epistemologia crítica do positivismo. A partir do século XIX, até meados do século XX, a fenomenologia ergueu seu escopo teórico partindo da crítica ao objetivismo -- fundamento do método positivista --, concebendo um novo método. Na realidade, Edmund Husserl (1859-1938), pai da fenomenologia, preencheu um vazio que a filosofia deixou. Transformado na única via de explicação da realidade, o positivismo ocupou o lugar de destaque na filosofia do século XIX, paralelo à crença na ciência como autoridade absoluta para explicar os fenômenos naturais. Com isso, a produção de um pensamento crítico sobre o positivismo e o “poder” do conhecimento científico se faz necessária. No dizer de Dartigues (1992), ...a partir de 1880, a bela segurança do pensamento positivista começa a ser abalada, pois cada vez mais os fundamentos e o alcance da ciência tornam-se objeto de interrogação: terão as leis que ela descobre uma validez universal? Qual é o sentido de sua objetividade? Não serão elas somente convenções e não dependerão do psiquismo, cujas leis a psicologia por sua vez descobre? (p. 9). A partir destes questionamentos, a proposta da fenomenologia é um “retorno às coisas mesmas”, isto é, à possibilidade de se fazer uma ciência que não caia no discurso especulativo da metafísica (como faziam os medievais) e, tampouco, fique restrita ao raciocínio das ciências positivas. O caminho original proposto por Husserl, parte do princípiode que, 64 ...se é verdade que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sentidos, eles se dão sempre como dotados de um sentido ou de uma “essência”. Eis porque, para além dos dados dos sentidos, a intuição será uma intuição da essência ou do sentido (Ibidem, p.14). A concepção de essência deve ser compreendida como aquela que permite identificar o fenômeno, isto é, aquilo que fornece ao mesmo uma identidade. O fenômeno não pode ser reduzido ao fato, à realidade em que se manifesta, mas sim à sua possibilidade. Se todo fenômeno tem uma essência, o que se traduzirá pela possibilidade de designá-lo, nomeá-lo, isso significa que não se pode reduzi-lo à sua única dimensão de fato, ao simples fato em que ele tenha se produzido. Através de um fato é sempre visado um sentido. Husserl gosta de evocar a esse respeito o exemplo da “IX sinfonia”. Esta pode se traduzir pelas impressões que experimento ao escutar este ou aquele concerto, pela escritura desta ou daquela partitura, pela atividade do regente de orquestra ou dos músicos etc. Em cada caso poderei dizer que se trata da “IX sinfonia” e, contudo, esta não se reduz a nenhum desses casos, se bem que ela possa cada vez se dar neles inteiramente. A essência da “IX sinfonia” persistiria mesmo se as partituras, orquestras e ouvintes viessem a desaparecer para sempre (Ibidem, p.15). A partir deste princípio, podemos afirmar que a fenomenologia pretende ser ciência de essências e não de dados de fato, por privilegiar a vivência sem enclausurá-la no domínio conceitual do positivismo. A psicologia, cujo método originariamente baseava-se na busca de leis naturais que orientam o comportamento humano, recebeu, por parte da fenomenologia, uma crítica fundamental, pois o humano é essencialmente vivência, e este dado não era considerado pelo positivismo. Esta postura crítica fez com que o método científico da psicologia fosse questionado. Disso resultou o nascimento de outros métodos psicoterapêuticos, bem como da psicanálise, que tomou por base o conceito de inconsciente como matéria prima da vivência humana. 3.3. A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA DE JEAN PIAGET 65 Segundo Japiassu (1979), “a epistemologia genética é a extensão a todo corpo das ciências humanas da metodologia que possibilitou a Piaget a realização de excelentes trabalhos sobre o desenvolvimento da criança: a formação do número, o desenvolvimento da inteligência, a aquisição da linguagem, a formação do juízo moral etc.” (p. 43). Para Piaget (1896-1980), só há ciência quando a elaboração de fatos, a formalização lógico-matemática, e o controle experimental estiverem reunidos. Ele procurou observar o processo de produção do conhecimento científico e seu desenvolvimento histórico no interior das sociedades, estabelecendo uma relação entre a “sociogênese” e a “psicogênese”. A sociogênese é o processo de produção de conhecimento científico que se constitui pela intervenção dos fatores histórico-culturais. Isto não ocorre dissociado do desenvolvimento cognitivo do ser humano, ou seja, da psicogênese. Esta, diz respeito aos estágios de desenvolvimento da cognição. Segundo Piaget, ambas estão entrelaçadas de forma que: A hipótese fundamental da epistemologia genética é a de que existe paralelismo entre o progresso completo e a organização racional e lógica do conhecimento e os correspondentes processos psicológicos formativos (citado por Reale e Antiseri, 1991, v. 3, p.879-880). Esta analogia é vista por Piaget como a expressão de que a história das ciências assemelha-se à produção do conhecimento e o amadurecimento do mesmo no ser humano. Ora, o desenvolvimento mental propõe que o conhecimento ascenda em uma espiral que se inicia a partir dos dados mais simples a outros mais complexos e superiores. Assim compreendida, a epistemologia piagetiana demonstra que a produição do conhecimento científico não deve admitir a intervenção a priori da filosofia, pois esta se torna uma variável interveniente no processo de elaboração científica, além do que a ciência deve elaborar por si mesma os critérios que lhe permitam o devido desenvolvimento. Isto significa que a temática do desenvolvimento é a preocupação maior de Piaget. Faz-se ciência quando o conhecimento é capaz de superar um nível mais simples de compreensão da realidade e passa a outro mais complexo. Ao analisar as fases do desenvolvimento mental, Piaget observou que, 66 da infância à adolescência, o ser humano consegue ultrapassar a fase de operações concretas e passa à fase de operações formais. Nosso interesse reside nesta última, pois o pensamento formal “hipotético-dedutivo”12 é capaz de tirar conclusões a partir de hipóteses e não somente de observações concretas. Em entrevista concedida em 1973, Piaget afirmou: O conteúdo de cada hipótese já é uma forma de operação concreta; propor hipóteses e conclusões em relação é operação nova. As operações sobre operações abrem então um campo bem mais vasto de possibilidades (Reale e Antiseri, 1991, v. 3, p. 883). A contribuição de Piaget é importante para a crítica de uma ciência que, tem seus pressupostos no racionalismo cartesiano 13 e no positivismo comteano, que por vezes, tornou-se reducionista à diretriz filosófica desses sistemas. 3.4. A EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA DE GASTON BACHELARD Ainda numa postura crítica diante das ingerências feitas pela filosofia em relação ao conhecimento científico, Bachelard (1884-1962) contrapõe-se ao neopositivismo 14 de sua época, demonstrando que a filosofia era incapaz de dar conta dos problemas da ciência. Para ele, a filosofia está sempre atrasada em relação às mudanças do saber científico. Buscando opor a “filosofia dos filósofos” à “filosofia produzida pela ciência”, afirma que o que caracteriza aquela são atributos como a unidade, o fechamento e a imobilidade, ao passo que os traços marcantes desta são a falta de unidade ou centro, a abertura e a historicidade. Com isso, Bachelard se opõe à pretensão de universalização do método instaurado pela filosofia no que se refere à orientação das pesquisas científicas. 12 Designa-se por pensamento formal hipotético-dedutivo o raciocínio que formula idéias abstratas partindo do genérico para o específico. 13 Corrente de pensamento que privilegiou a razão como fonte de todo o conhecimento, em detrimento da experiência sensível e dos dogmas da fé. 14 Movimento filosófico marcado pelo caráter cientificista expressamente anti-metafísico, que associa a tradição empirista ao formalismo lógico-matemático. 67 Ora, o que Bachelard propõe é a instauração de um princípio que não tenha a rigidez do princípio de verificação dos neopositivistas, considerando como base e modelo para a cientificidade do saber a história das ciências. Para ele, a história está acima da reflexão filosófica que se faz sobre a mesma, pois no desenvoilvimento do conhecimento científico muitas ciências avançaram e trouxeram luz nova sobre a realidade, demonstrando que a razão (fundamentada universalmente pela filosofia) deve se subordinar às diretrizes das descobertas e às atualizações que a ciência traz, e não o contrário. Neste sentido, o emblema que Bachelard atribui à ciência é, de certa forma, peculiar, pois a ciência é uma contínua retificação do saber instituído e ampliação dos esquemas de conhecimento. Destarte, a ciência se constituinum risco constante, colocando em xeque sua própria organização. O conhecimento científico avança por meio de rupturas sucessivas. É desse modo que ele se aproxima da verdade: Não encontramos nenhuma solução possível para o problema da verdade senão a de ir descartando erros cada vez mais sutis (citado por Reale e Antiseri, 1991, v. 3, p. ). Bachelard nos conscientiza ainda da necessidade de reconhecer que há ciências coexistindo com ideologias. Daí a importância da reflexão para denunciar e neutralizar os discursos ideológicos supostamente científicos e, assim, impedir os obstáculos epistemológicos, isto é, a resistência ou inércia do pensamento ao próprio pensamento. Faz-se ciência superando obstáculos epistemológicas sucessivos. É desse modo que nos aproximamos da verdade. Estes obstáculos impedem a visão dos erros cometidos no processo de produção do conhecimento científico. A propósito, comenta Reale e Antiseri (1991): O obstáculo epistemológico é uma idéia que impede e bloqueia outras idéias: hábitos intelectuais cristalizados, a inércia que faz estagnar as culturas, teorias científicas ensinadas como dogmas, os dogmas ideológicos que dominam as diversas ciências -- eis algunas obstáculos epistemológicos (v. 3, p. 1015). 68 Por fim, Bachelard nos adverte que a ciência não é criação danecessidade, mas do desejo. Ela é intervencionista. Por isso, deve ser feita numa comunidade de pesquisas e de críticas, para não se tornar totalitária. “Um homem só, diz ele, é uma péssima companhia”. 3.5. A EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA-CRÍTICA DE KARL POPPER Karl Popper (1902-1996) contribuiu de forma sistemática para uma nova leitura da ciência, partindo da crítica ao positivismo ortodoxo que tinha na indução e na verificação seus sustentáculos. Em substituição a estes critérios, Popper propõe o método dedutivo da prova e o critério de verificação pela falseabilidade . Segundo ele, a indução não existe, sendo óbvio que todo conhecimento advindo dela deve ser questionado, o que constitui a evidência de que o mesmo pode estar incorreto. Se a indução não existe, ela não pode conduzir à certezas no campo das teorias, pois o simples fato do raciocínio indutivo partir de elementos particulares que são observados, não permite garantir que a generalização das propriedades observadas se estendam à toda classe de elementos. Portanto, um critério de certeza no campo da ciência não deve levar em consideração a inferência indutiva. Ainda enunciando problemas tratados pela epistemologia popperiana, podemos assinalar o problema do valor das teorias científicas. Segundo Japiassu (1979), isto se dá devido ao grau de confiança que lhes atribuimos em função das informações de que dispomos, uma vez que o valor de uma teoria científica, ou melhor, o grau de confiança nela depositado, é um problema que a transforma em dogma. Assim, ...todas as leis e teorias científicas são, em sua essência, hipotéticas e conjecturais. Exemplo: nunca houve uma teoria tão bem estabelecida ou confirmada quanto a de Newton. No entanto, a teoria de Einstein veio mostrar que a teoria newtoniana não passa de uma hipótese ou conjectura (p. 95). 69 Como podemos demonstrar que uma teoria, até então, dogmática pode entrar em contradição? A esta questão, basta-nos lembrar sobre a recusa de Popper ao raciocínio indutivo, pois uma teoria se fundamenta em um número limitado de observações que, no entanto, criam uma lei geral, isto é, um princípio universal. Ao contrário da indução, a dedução deve partir da lei geral, para que os fenômenos particulares, delimitados pelo círculo teórico, possam ser validados. Entretanto, a plicando-se o princípio de falseabilidade, podemos verificar os limites de uma teoria, ou mesmo sua inconsistência. Tomando por base este raciocínio, afirma Japiassu (1979): A proposição universal “todos os cisnes são brancos”não é verificável, mas falsificável, em contrapartida, a proposição existencial “há corvos brancos”não é falsificável, mas verificável. (...) nossa preferência por uma delas pode justificar-se por razões empíricas, porque nossos enunciados observacionais podem refutar algumas delas, mas não todas. E quando várias teorias rivais se apresentam, devemos preferir aquelas cuja falsidade ainda não está estabelecida (p. 94-95). Em que consiste, pois, a confirmação de uma teoria empírica? Consiste no fato de ter essa teoria resistido a todas as tentativas de falseamento. Se dizemos que uma teoria foi empiricamente bem confirmada, isto quer dizer que fracassaram todas as nossas tentativas de refutá-la através da experiência. Se, porém, uma teoria contradiz sentenças básicas reconhecidas, então ela foi falseada e deve ser substituída por outra. Para Popper, o objetivo da ciência é alcançar teorias sempre mais verossímeis, sempre mais próximas da verdade. A verdade não deve ser confundida com irrefutabilidade, que talvez apenas se manifeste nos enunciados analíticos da lógica e da matemática. A teoria científica é refutável, em princípio, exatamente por não ser compatível com todos os dados experimentais. Irrefutável é apenas o mito, que se mostra passível de acomodação e ajuste, relativamente a quaisquer dados observados, ainda que conflitantes. *** 70 Não se esgota aqui a problemática da ciência. Muitos outros pensadores refletiram sobre a gênese, a constituição e o desenvolvimento do saber científico. Contudo, um tratamento mais sistemático ultrapassaria o objetivo desta obra. Nossa intenção é sinalizar para a necessidade de refletir e questionar o pensamento sobre o qual se assenta uma parte considerável das conquistas da humanidade. Hoje, mais do que nunca, quando os avanços técnico-científicos alcançaram um estágio surpreendente, faz-se necessário tanto aos filósofos, quanto aos cientistas ocuparem-se das questões epistemológicas. 71 Referências bibliográficas 1. DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia? 3. ed. São Paulo: Moraes, 1992. 2. BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária; desafios à sociedade e ao cristianismo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. 3. GUSDORF, Georges. A agonia da nossa civilização. São Paulo: Convívio, 1978. 4. REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990, 3.vols. 5. JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. 6. _______________. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 72 CAPÍTULO III EDUCAÇÃO Educar não é transmitir aos outros a forma de ser homem. É, ao contrário, o esforço de cada um para fazer-se homem. * Estamos vivendo uma época de grandes transformações: emergência de um novo paradigma científico, globalização das economias e das comunicações, universalização da microinformática, nova concepção de homem, de sociedade e de mundo... Essas mudanças demandam também uma reorientação da educação. 1.0. EDUCAÇÃO E TEMPO PRESENTE Expressões como “desaprender a lição” e “recomeçar a aprender” estão muito de acordo com o momento atual, em que se postula o projeto de uma nova sociedade e, conseqüentemente, o projeto de uma nova educação. Sabemos que a finalidade da educação não é apenas transmitirum saber acumulado mas sim, possibilitar ao educando apropriar-se de sua realidade e adquirir uma consciência crítica da mesma. Para isso, é preciso que a educação suscite o interesse pelo conhecimento, desenvolva a capacidade de análise e de síntese, abra as portas à criatividade e possibilite uma leitura do mundo, partindo da realidade imediata, das indagações oriundas da própria pessoa, entendida como ser-de-relação. * Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral sobre educação, 1984. 73 1.1. A EDUCAÇÃO ONTEM E HOJE Na comunidade primitiva, o que caracterizou a educação foi a sua forma espontânea, natural e assistemática. Educava-se pela imitação direta e inconsciente das atividades dos adultos por parte da criança. Esta “pedagogia” chamava-se iniciação e consistia na transmissão, às novas gerações, das regras, costumes, tradições, tabus, mitos e técnicas rudimentares da sociedade adulta. Numa fase mais avançada, a educação foi marcada pelo aparecimento da linguagem escrita e, posteriormente, da literatura, dando à sociedade uma consciência do passado, bem como uma norma de conduta devidamente estabelecida. Na medida em que aumentava a complexidade da vida social, surgiam as primeiras escolas elementares para complementar a educação familiar. Segundo as necessidades de cada sociedade, a educação foi adquirindo características peculiares, tornando-se um meio eficaz de transmissão das tradições e do conhecimento e, ao mesmo tempo, um processo de adaptação das novas gerações às mudanças sócio-culturais. Aos poucos, foram se diferenciando os níveis de escolaridade e se diversificando os métodos e as técnicas pedagógicas. Hoje, como produto da evolução histórica, a educação apresenta uma riqueza de métodos pedagógicos que, se de um lado é benéfica, de outro evidencia que ainda não se atingiu uma posição ideal. Com as experiências e descobertas realizadas no campo da pedagogia e da psicologia, com a grande variedade de recursos técnicos disponíveis, com a quantidade de publicações ao nosso alcance e com a rapidez das informações, o educador não pode se limitar à reprodução de conteúdos sistematizados, mas ser um produtor de conhecimentos que tenham significação para os educandos e os tornem capazes de distinguir o que é fragmento do que é totalidade, o que é contingente do que é necessário. Todas as definições básicas do homem – animal racional, animal social, homo faber 15 , animal simbólico – supõem a existência da educação. Sem ela, não subsistiriam nem o pensamento lógico, nem a sociabilidade, nem o trabalho e a técnica, nem a linguagem, a arte e os demais códigos de 15 Expressão que designa a capacidade humana de fazer as coisas, de ser artífice no reino da natureza. 74 comunicação humana. Com efeito, a educação, como a entendemos hoje, é um processo vital, para o qual concorrem fatores naturais (biológicos) e espirituais (sócio-culturais), conjugados pela ação consciente e planejada do educador (hetero-educação) e pela vontade livre do educando (auto-educação). Portanto, o processo educativo não pode ser confundido com o simples desenvolvimento do equipamento instintual, nem com a mera adaptação do indivíduo ao meio. É atividade criadora e planejada, que visa levar o ser humano a realizar as suas potencialidades físicas, intelectuais, morais e espirituais. Não se reduz à preparação para fins exclusivamente utilitários, como o exercício de uma profissão, nem para o desenvolvimento de características parciais da personalidade, como o dom artístico, mas abrange o homem integral, em todos os aspectos de seu corpo e de seu espírito e em todas as dimensões de sua vida individual, social, intelectual, moral etc. É um processo contínuo, que começa no nascimento e se estende até a morte. O conceito de educação como processo implica levar em conta dois aspectos fundamentais: a individualidade e a sociabilidade do educando. Se, por um lado, a educação visa personalizar o indivíduo, desabrochar suas potencialidades, fazê-lo ativo, criador e capaz de enfrentar os desafios que a vida lhe suscita, por outro lado, visa também prepará-lo para o convívio social dentro de um contexto determinado. É o que poderíamos chamar de “educação do mundo”. Trata-se de situá-lo no quadro referencial do tempo presente e prepará- lo para as transformações que diariamente ocorrem. À educação formal, sistemática, compete não somente suscitar o desenvolvimento das forças fundamentais da pessoa humana, habilitando-a ao exercício de funções específicas, mas dar uma visão ampla a respeito da natureza, do homem, da sociedade e do mundo em processo contínuo de transformação. Estas considerações nos colocam diante de interrogações básicas. Temos uma visão da totalidade à altura dos desafios do tempo presente? A educação como é ministrada responde à crise da civilização que vivemos hoje? Temos um projeto alternativo para o quadro referencial vigente? 1.2. O IMPERATIVO ÉTICO DE UMA MUDANÇA DE PARADIGMA Como dissemos anteriormente, vivemos num mundo complexo. 75 Estamos num tempo cheio de situações novas e de mudanças aceleradas. Novos desafios se oferecem constantemente à educação. Novas perguntas esperam respostas novas. Por isso, a educação tem que ser vista no quadro geral das transformações em que se insere. Não tem cabimento pensá-la fora do contexto sócio-histórico no qual vivem os educandos e os educadores. Ambos são seres conscientes e livres, porém condicionados pelos múltiplos fatores que interagem na totalidade do real. A educação é, precisamente, o processo por meio do qual o indivíduo toma consciência desta totalidade como condição de possibilidade de sua auto-realização como homem. É exatamente porque a consciência se faz na vivência, na existência, na qual todas as dimensões da realidade – natureza, cultura, sociedade, história – estão entrelaçadas, que se pode perguntar: Que tipo de educação necessitamos hoje ? Que paradigma gerou,em nossa epocalidade, o consenso que produz a vida em comum? Que conteúdos programáticos são mais significativos? Devemos priorizar a formação do especialista ou do generalista? Quais são os métodos mais adequados para se alcançar os objetivos educacionais? Estamos no limiar do Terceiro Milênio. A clara separação do processo histórico da humanidade em períodos de dez, cem e mil anos pode atender à necessidade que tem o historiador de determinar ciclos, a fim de dividir as ações humanas e as atividades institucionais em padrões bem definidos. No entanto, à beira de um marco cronológico, alternadamente examinando o passado e olhando para o futuro, não fica claro o modelo de educação que devemos adotar, mas é perfeitamente compreensível a emergência de um novo paradigma articulado ao acelerado desenvolvimento tecnológico dos nossos dias, às novas descobertas da ciência, às interdependências das economias e às mutações sócio-culturais decorrentes da planetarização das comunicações. A nossa cultura deriva da revolução filosófica e científica do século XVII, ou seja, do cultivo da dúvida cartesiana 16 e do nascimento da física newtoniana ou clássica. Ambas mudaram radicalmente o modo como vemos a nós mesmos e nossa relação com o mundo. O racionalismo de Descartes, arrancou os seres humanos do contexto religioso, social e familiar e lançou-os de ponta-cabeça na “cultura centrada no eu”, uma cultura dominada pelo 16 Expressão relativa ao método proposto por René Descartes(1596-1650) que consiste em duvidar de todo conhecimento já estabelecido para encontrar uma verdade indubitável a partir da qual se reconstruirá todo o saber. 76 egocentrismo, por uma ênfase exagerada do “eu” e do “meu” (cf. Zohar, 1990, p.16). Por sua vez, a física de Newton, assentada nas teorias astronômicas de Copérnico, Kepler e Galileu, arrancou-nos da própria substância do Universo e deu-nos a concepção de que os astros não passam de pedaços de matéria inerte em movimento na imensidão de um espaço sem limite, obrigados a seguir as leis do cálculo matemático. Danah Zohar (1990), assim caracteriza a mudança do paradigma greco-medieval para o paradigma moderno: Um silêncio glacial invadiu os céus antes pululantes de vida. Os seres humanos e suas lutas, toda a consciência e a própria vida tornaram-se irrelevantes ao funcionamento da vasta máquina universal (p. 16). A destruição da antiga imagem do mundo acarretou, entre outras conseqüências, uma mudança na concepção de espaço e tempo. Doravante, o espaço e o tempo perdem o valor e a significação que sempre tiveram e cessam de aparecer como asilos de segurança em que a consciência humana encontrava abrigo e proteção contra as incertezas da história. A modernidade que emergiu do racionalismo cartesiano trouxe em seu bojo, a dissociação entre o homem e o universo, o distanciamento cada vez maior entre natureza e cultura. A realidade do mundo humano distanciou-se das fantasmagorias corpusculares, objetos das pesquisas de cientistas muito especializados. Dispondo de um amplo poder sobre a natureza e de um enorme aparato tecnológico, o homem imaginou poder explicar até mesmo os fenômenos da consciência, do mesmo modo como explica os fenômenos da natureza. A firme crença na certeza científica passou a todos os campos do saber, incluindo as ciências do comportamento. Essa concepção de ciência prevaleceu até o nosso século, quando a nova física -- a física das partículas subatômicas -- veio nos mostrar que não existe verdade absoluta em ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados. A crença cartesiana na verdade científica é, ainda hoje, muito difundida e reflete-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. Muitas pessoas em nossa sociedade, tanto cientistas como não- 77 cientistas, estão convencidas de que o método científico é o único meio válido de compreensão da realidade. A fé exagerada na sua eficácia levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência, segundo o qual todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes. A fragmentação, característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas, tem sua raiz no método analítico de raciocínio estabelecido por Descartes. Esse método, que consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em sua ordem lógica, tornou-se uma característica essencial do moderno pensamento científico e provou ser extremamente útil no desenvolvimento de teorias científicas e na concretização de complexos projetos tecnológicos. Porém, é preciso reconhecer as limitações de sua aplicabilidade. As variedades da experiência humana – sentimentos, paixões, preferências, desejos, interesses, amores, ódios, esperanças, utopias – não podem ser rudutíveis a equações matemáticas nem cifradas segundo o modelo estabelecido pela biologia molecular. Como bem explica Zohar (1990), A ciência mecânica nos deu grande quantidade de conhecimento, mas nenhum contexto que nos permitisse interpretá-lo ou relacioná-lo a nós ou às nossas preocupações e interesses. Da mesma forma, a tecnologia nos deu um padrão de vida muito mais elevado, mas nenhuma noção do que é a vida – nenhuma melhora na “qualidade de vida”. A tecnologia, como a pura ciência mecânica é despojada de valores; está ali para todo e qualquer uso (...). Mas esse tipo de ciência e de tecnologia não nos diz nada sobre nós mesmos, deixando- nos com uma sensação de alienação de nosso ambiente material. Isoladas, sem nenhum complemento espiritual, essa ciência e tecnologia nos fazem sentir alienados uns dos outros e do mundo (p. 270-271). O paradigma cartesiano-newtoniano se esgotou porque priorizou a parte em lugar do todo, não levou em conta a interdependência de todos os seres e de todas as coisas. A cosmovisão mecanicista encorajou a exploração desordenada dos recursos naturais, causando sérios prejuízos à biosfera. A crise ecológica de nossos dias foi motivada por uma destruição incontrolável do meio ambiente, efetivando a posse, o domínio e mesmo a violência do homem sobre a natureza. Do ponto de vista social, essa maneira de ver o mundo induziu a 78 formação de um modelo de sociedade violenta, baseada na exploração do homem, na sua exclusão e na concentração da riqueza. A mesma lógica de dominação e exploração da natureza foi aplicada à sociedade humana. Com a mesma força, agride-se tanto a natureza quanto os homens, para que produzam em benefício de um determinado segmento da sociedade. A injustiça social engendra a injustiça ecológica e vice-versa. Nas palavras de Boff (l993), Esse modelo social apresenta-se profundamente dualista. Divide pessoa/natureza, homem/mulher, masculino/feminino, Deus/mundo, corpo/espírito, sexo/ternura. E esta divisão sempre beneficia um dos pólos, originando hierarquias e subordinações no outro (...) . Ora, essa visão é fragmentada, míope e também falsa. Ela não percebe as diferenças dentro de uma grande unidade nem a interdependência que vigora entre a sociedade e o meio ambiente. O ser humano provém de um longo processo cósmico e biológico; sem os elementos da natureza, as bactérias, os vírus, os microorganisnos, o código genético, os elementos químicos primordiais, ele não existe. Continuamente ele está numa dialogação com o meio (p. 31). A gravidade da crise porque passa a civilização provém de seu caráter estrutural e intrínseco: resulta de uma postura a-ética do homem face à natureza e aos outros homens. O déficit da terra não é fortuito, senão a conseqüência de uma agressão, pilhagem e matança acelerada da natureza em benefício da geração presente. A degradação dos ecossistemas, a contaminação da biosfera, a exploração incontrolável dos recursos naturais afetaram indiretamente o ser humano, vinculado a todas essas realidades. Tudo isto aponta para o esgotamento do modelo atual e das formas de reprodução das condições materiais de vida, bem como para o questionamento dos objetivos propostos por uma civilização que fez da acumulação de bens o fim supremo da existência. É imperativo reconhecer que as nossas vidas estão inseparavelmente entrelaçadas ao mundo natural e que este é um todo unificado, constituído por uma complexa rede de relações em todas as direções e em todas as formas. 79 1.3. O NOVO PARADIGMA O paradigma epistemológico que emerge e ganha força atualmente é oriundo das descobertas realizadas pela física quântica 17 e pela biologia molecular. A combinação entre ambas enriqueceu nossa compreensão acerca do caráter de sistemas dos organismos vivos e do próprio cosmos. Na conceituação de Capra (1982): Os sistemas são totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às de unidades menores. Em vez de se concentrar nos elementos ou substâncias básicas, a abordagem sistêmica enfatiza princípios básicos de organização (p. 260). Segundo esse novo modelo, cada sistema compõe-se de subsistemas,e todos são parte de um sistema ainda maior. A relação integrativa dinâmica entre seus diversos sistemas se processa de modo tal que cada um participa ativamente na regulação do outro, constituindo um todo homeostático. Aquela visão da realidade fragmentada, constituída por corpos celestes submetidos à simples relação de causa-efeito foi substituída pela concepção de natureza orgânica, sistêmica, ecológica, holística. A nível profundo, o que existe é uma teia simultânea de relações globais e interação mútua. O universo é um todo dinâmico e indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico. Ainda segundo Capra (1982), A nova visão da realidade baseia-se na consciência do estado de inter- relação e interdependência essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Essa visão transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais e será explorada no âmbito de novas instituições. Não existe, no presente momento, uma estrutura bem estabelecida, conceitual ou institucional, que acomode a formulação do novo paradigma, mas as linhas mestras de tal estrutura já estão sendo formuladas por muitos indivíduos, comunidades e organizações que estão desenvolvendo novas formas de pensamento e que se estabelecem de acordo com novos princípios 17 A física quântica, surgida nas primeiras décadas do século XX, é o carro-chefe do novo modelo de ciência que se delineia atualmente. 80 (p.259) . A centralidade da nova percepção reside em dar-se conta da complexidade da realidade. Tudo implica tudo, nada existe fora da relação existente entre todos os seres e todas as coisas. A unidade está na pluralidade e vice-versa. Daí o fortalecimento da cosmovisão holística, segundo a qual todos os seres se relacionam entre si e com o meio ambiente, numa perspectiva do infinitamente pequeno das partículas elementares (quarks), do infinitamente grande dos espaços cósmicos, do infinitamente complexo dos sistemas da vida, do infinitamente profundo do coração humano e do infinitamente misterioso do oceano ilimitado de energia primordial (vácuo quântico, imagem de Deus) do qual tudo promana (cf. Boff, 1993, p. 19). Desta leitura, resulta claro que o ser humano individual e social é parte da natureza. Ele pertence à natureza bem como a natureza lhe pertence como cuidado e relação. Como veremos a seguir, ele possui sua diferença específica na medida em que somente ele é um ser ético, capaz de cuidar da natureza, potenciar sua dinâmica interna para recuperá-la, preservá-la ou acentuar os mecanismos de destruição. Urge formar consciência de que somos todos responsáveis pelos mecanismos que provocam ameaça de doença e morte à vida natural e à vida social. Uma das instâncias que favorece essa tomada de consciência é a educação. Através dela, podemos refazer o tecido social a partir das múltiplas potencialidades do ser humano e da própria sociedade. Uma educação que gere um consenso de base para a configuração de nossa vida societária e também planetária exige uma fundamentação ética que não seja utilitarista e antropocêntrica como a atual, mas sim ecocêntrica, capaz de refazer a aliança destruída entre a natureza e o ser humano e entre os homens em si mesmos, na pluralidade das culturas. As condições do nosso tempo exigem novas atitudes. Quanto mais os atos humanos repercutem sobre a convivência e o meio ambiente, exercendo um peso determinante sobre o nosso planeta, tanto mais devemos discernir entre o que convém fazer ou não fazer. A exigência ética básica implica no reconhecimento universal da necessidade de articulação de um novo sistema de categorias, de um novo paradigma enquanto consenso de base, que não só seja capaz de confrontar-se com a crise de civilização que experimentamos mas, 81 sobretudo, abra alternativas para a construção de novas epocalidades. No âmbito da natureza, tanto o cientista como o técnico podem encaminhar projetos que permitam uma intervenção eficaz do homem no mundo, recuperando os ecossistemas e favorecendo o reencontro do homem com o seu meio. Ciência e técnica podem contribuir grandemente para o verdadeiro progresso humano, se não se limitarem à busca da utilidade instrumental de suas conquistas, sem medir-lhes as conseqüências éticas em todas as suas dimensões. O grande desafio histórico que se anuncia com a mudança de paradigma, consiste em reconstruir a sociabilidade a partir de um “novo fim- fundamento”: o do reconhecimento universal da igual dignidade de todo ser humano e, conseqüentemente, a co-responsabilidade solidária de todas as pessoas. Como enfatiza Manfredo Araújo de Oliveira (1995), ... o homem se faz homem na medida em que se eleva de sua arbitrariedade solipsista para o reconhecimento universal da dignidade inviolável de todo ser humano (p. 115). A exigência ética básica do reconhecimento universal aponta para a construção de novas configurações das relações sociais, de tal modo que elas tornem possível uma solidariedade de princípio com os excluídos de nossa formação social no sentido da dignificação de suas vidas, uma vez que gozam do privilégio ético de ser pessoa humana. A lógica da exclusão, que dominou a racionalidade moderna, gerou fome e miséria, conflitos e guerras, desespero e morte. De modo contrário, a racionalidade pós-moderna 18 elegeu como princípio ético a inclusão de todos e de cada um, fundado no reconhecimento das diferenças, pois não existe uma razão que seja abrangente de todas as razões. Diferenciados pelas culturas, pelas subjetividades e pelas experiências, os seres humanos podem con-viver harmônica e respeitosamente uns com os outros e com os demais seres da natureza, favorecendo o equilíbrio e impondo limites a seus próprios desejos. A partir do momento em que o homem assume conscientemente seu papel de administrador responsável, de anjo da guarda e de zelador da criação, ele vive em plenitude a dimensão ética inscrita em seu próprio ser. E só quando renuncia estar sobre os outros para estar com os outros, quando se faz capaz de entender as exigências do equilíbrio ecológico e social, 18 O conceito de pós-moderno deve ser entendido aqui como a recusa de um sujeito universal como centro único de sentido, sem levar em conta os interesses subjetivos de cada indivíduo. 82 ele vive eticamente. Como nos diz Boff (1993), O bem supremo reside na integridade da comunidade terrestre e cósmica. Ela não se resume ao bem comum humano. Ela inclui o bem da natureza. E como a natureza está envolvida numa teia universal de relações (energias universais da micro e da macro realidade), o bem comum será também cósmico. Não estamos apenas diante de uma só terra. Mas de um só cosmos, com todos os seus corpos, partículas e energias, constituindo uma única comunidade interdependente (p.35). E mais adiante, acrescenta o referido autor: Como se depreende, pelo caminho de uma ética ecológica, fundada no respeito à alteridade, na acolhida das diferenças, na solidariedade e na potenciação da singularidade, deixa-se para trás o paradigma utilitário dominante que tantas ameaças traz à vida e à paz entre os seres da natureza. Esse caminho nos conduz a uma etapa mais alta da reflexão e do compromisso (Boff, 1993, p. 36). Somente uma educação comprometida com a exigência ética básica da vida humana será capaz de fomentar a mudança de paradigma que nosso momento histórico está aexigir. 2.0. O ENFOQUE INTERDISCIPLINAR NA EDUCAÇÃO Chegamos ao final do século reconhecendo que nos defrontamos com um universo cultural extremamente rico e complexo, e que somos incapazes de compreendê-lo na sua totalidade. Essa situação é resultado da ação-reflexão do homem ao longo dos tempos e nas mais variadas condições culturais, caracterizadas por diferentes enfoques, pontos de vista e paradigmas. Isso retrata o modo como o homem vem resolvendo a sua problemática existencial, enfrentando os desafios e buscando novas soluções. Para fazer face aos desafios da nova situação civilizacional, ganha força a idéia de uma abordagem interdisciplinar nos sistemas formais da educação, visto que o paradigma teórico-metodológico oriundo do cartesianismo perdeu a sua eficácia, já que não é capaz de resgatar a unidade do saber. 83 Como vimos anteriormente, a mecânica newtoniana reduziu o universo a um vasto conjunto de corpúsculos materiais, cujas ações e reações obedecem a leis precisas e rigorosas, cabendo ao sábio elucidá-las por procedimentos minuciosamente controlados. Para dar conta desse universo partido, fragmentarizado, surgiu gradativamente uma multiplicidade de disciplinas especializadas que, ao invés de nos proporcionar uma visão ampla da realidade, contribuiu para estreitar a nossa percepção do todo e das outras partes. O número crescente de especializações e a rapidez do desenvolvimento de cada uma delas engendraram uma postura reducionista, que consiste em reduzir o sistema inteiro à lógica de um dos seus componentes. A esse respeito comenta Hilton Japiassu (1992): Chegamos a um ponto em que o especialista se reduz àquele que, à custa de saber cada vez mais sobre cada vez menos, termina por saber tudo sobre o nada. Torna-se uma ilha do saber, cercada por um oceano de ignorâncias (p. 83) . 2.1. A PASSAGEM OBRIGATÓRIA A necessidade de superação desse reducionismo cresce em importância para a sociedade e para educação. Entende-se hoje que o mundo não consiste de “fatos” e “coisas” isoladas e sim de interações. A realidade, física ou social, é composta de uma multiplicidade de fatores que não são mutuamente excludentes, e sim explicados e justificados uns em relação aos outros. O reconhecimento da realidade como complexidade organizada implica a admissão da possibilidade do paradoxo, da ambigüidade e do antagonismo de concepções. Alarga-se, cada vez mais, a aceitação do princípio da “complementaridade” proposto por Niels Bohr (1885-1962), segundo o qual, a única maneira de avaliar a realidade é comunicá-la de modos diferentes, permitindo-nos juntar todos os modelos para complementarem-se uns aos outros, numa exaustiva sobreposição de diferentes descrições que incorporam idéias aparentemente contraditórias. À semelhança do conceito metafísico de “relatividade” proposto por Einstein (1879-1955), a “complementaridade” de Bohr não se destina a fazer crer que todas as teorias sejam válidas, mas que saibamos compreender que existem diferentes modos de perceber a mesma realidade, às vezes não comparáveis ou mesmo contraditórios. Isto implica numa 84 mudança de atitude epistemológica voltada para a superação dos reducionismos, que nos impedem de apreender a realidade em sua totalidade. Como bem assinala René Passet (1992): A interdependência passa a substituir a divisão separadora: interdependência entre os diferentes níveis de organização que se engendram sucessivamente e se regulam mutuamente; interdependência entre o todo e as partes que não se podem manter ou se reproduzir separadamente; interdependência entre um objeto e seu ambiente fora do qual seu desenvolvimento não pode ser compreendido; interdependência entre um sistema econômico e seus ambientes sócio-culturais ou naturais, cuja lógica impregna o funcionamento e cuja perenidade comanda sua reprodução no tempo. A apreensão da diversidade, da contradição e do conflito substitui o recuo reducionista sobre uma lógica parcial. Cada sistema ou nível de organização possui uma especificidade e uma lógica irredutíveis àquelas de um nível superior ou inferior: a passagem do nível molecular ao nível celular é também a passagem do inanimado ao vivo (...). A abordagem dos sistemas complexos, com a separação entre objeto observado e sujeito que observa, substitui a relação que se estabelece entre eles pela observação (...), de maneira que, uma vez que cada acontecimento age sobre seu meio ambiente, o mesmo acontecimento (ainda que seja perfeitamente idêntico) não pode se produzir duas vezes no mesmo sistema. A visão dos sistemas complexos substitui a imagem estática da máquina, construída de uma vez por todas em seu estado acabado, pela perspectiva dinâmica de um mundo em contínua criação: um sistema complexo não pára de se construir, de se degradar, de se reconstruir e de co-evoluir em interdependência com os sistemas que o cercam (p. 30-31). Com efeito, o modo de produzir e tratar conhecimento pela fragmentação sucessiva e pelo princípio de fixidez esgotou sua possibilidade de continuar contribuindo para o avanço da cultura e melhoria da qualidade de vida, correndo-se o risco de, pela sua permanência, promover a destruição das 85 condições que possibilitaram o desenvolvimento cultural do homem e o avanço técnico-científico alcançado pela civilização. 2.2 . NATUREZA DA INTERDISCIPLINARIDADE A Revolução Científica do século XVII suscitou a criação e a proliferação de inúmeras disciplinas para abordar os diversos aspectos da realidade. Desde então, o acúmulo do saber humano é tão vasto e o seu ritmo é tão acelerado que não há como negar a imprescindibilidade da especialização. Podemos mesmo afirmar que, em certo sentido, a especialização contribuiu para o alargamento do horizonte epistemológico, mas ao longo do tempo tornou-se “patológica” (Japiassu, 1976), à medida que esfacelou o saber científico e o seu ensino pelas compartimentações disciplinares. A disciplina (ciência), entendida como um conjunto específico de conhecimento de características próprias, obtido por meio de método analítico, linear e atomizador da realidade, produz um conhecimento ordenado e profundo, porém parcelar e dissociado do todo de que faz parte. Do ponto de vista pedagógico, o ensino por disciplina é suscetível de falsear a realidade, visto que a sua abordagem é por demais cientificista e, até mesmo, tecnocrática. Em nossos dias, ganha relevância a idéia de que a ciência é importante, mas não suficiente para a apreensão da realidade. Nem sempre as dimensões do real são redutíveis à mensuração e à observação experimentadora da ciência. Em sua infinita complexidade, a realidade escapa ao controle da ciência e da técnica, para se oferecer a outras formas de compreensão que o saber especializado não pode captar. Daí a necessidade do tratamento interdisciplinar, tanto na pesquisa quanto no ensino. Praticar essa idéia não é tarefa simples: requer reflexão e determinação. Há uma série de obstáculos a serem transpostos tanto a nível intelectual quanto institucional. A nível intelectual, a principal barreira é a comodidade buscada pelo dogmatismo do pensamento. A esse respeito, comenta Faure (p. 62): Do mesmo modo que o deslocamento em território 86 conhecido se faz com segurança, o trabalho no interior de uma disciplina bem delimitada e estritamente balizada evita que o pesquisador se exponha a uma dose de incerteza mais elevada. Barreiras intelectuais e segurança psicológica se amparammutuamente (p. 62). A nível institucional, além do reflexo defensivo existencial próprio a cada disciplina, existem meios legais de defesa da territorialidade (o direito, a medicina, a arquitetura, a engenharia etc.) que acarretam “sanções penais” ao desviante. Nesse aspecto, concordamos com Faure (1992) quando afirma: A divisão em territórios prejudica consideravelmente a emergência de novas concepções. Por uma perversão do espírito, a legitimidade de uma disciplina não é negociada no terreno intelectual, mas sim em torno de recursos tais como financiamentos, administração, ou de atividades anexas dentre as quais a gestão da imagem nos meios de comunicação (p. 62). Como vemos, trabalhar sob a perspectiva da interdisciplinaridade é hoje um desafio a ser enfrentado por pesquisadores e professores. O enfoque interdisciplinar, no contexto da educação, manifesta-se como uma contribuição para a reflexão e o encaminhamento de solução às dificuldades relacionadas à pesquisa e ao ensino e que dizem respeito à maneira como o conhecimento é tratado em ambas as funções da educação. Segundo Lück (1995), evidencia-se, na pesquisa, que o conhecimento vem sendo produzido de modo fragmentado, dissociando-se cada fragmento do contexto de onde emerge. Desse modo, produz-se um saber limitado, ao mesmo tempo que se cria um mosaico de informações paralelas, desarticuladas e, até mesmo, antagônicas, todas tidas como legítimas representações da realidade. No ensino, a falta de contato do conhecimento com a realidade parece ser uma característica muito acentuada. Muitos professores, no esforço de levar seus alunos a aprender, o fazem de maneira a dar maior ênfase ao conteúdo e não à suainterligação com o contexto do qual emerge. Estudioso do assunto, Japiassu (1992) comenta este fato do seguinte modo: 87 O trabalho interdisciplinar propriamente dito supõe uma interação das disciplinas, indo desde a interação dos conceitos (contatos interdisciplinares) até a interação metodológica (pesquisa interdisciplinar). Assim, temos a seguinte gradação: * Disciplina: conjunto específico de conhecimentos que têm suas características próprias no plano do ensino, da formação, dos mecanismos, dos métodos e dos materiais; trata-se do monodisciplinar; * Multidisciplinar: justaposição de duas ou mais disciplinas, com objetivos múltiplos, sem relações entre elas e nenhuma coordenação; * Pluridisciplinar: conjunto de duas ou mais disciplinas, com objetivos múltiplos, com certa relação entre si, com certa cooperação, mas sem coordenação dessas relações; * Interdisciplinar: Interação entre duas ou mais disciplinas, podendo ir da simples comunicação de idéias até a integração mútua dos conceitos, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização da pesquisa. É imprescindível a complementaridade dos métodos, dos conceitos, das estruturas e dos axiomas sobre os quais se fundam as diversas práticas científicas. Diríamos que o objetivo utópico do interdisciplinar é a unidade do saber. Unidade problemática, sem dúvida, mas que parece constituir a meta ideal de todo saber que pretenda corresponder às exigências fundamentais do progresso humano” (p. 88). Portanto, a interdisciplinaridade não consiste na desvalorização das disciplinas e do conhecimento produzido por elas, mas numa prática interativa, sombreada pela compreensão de que a verdade de um conhecimento é tão mais aproximativa quanto maior a circularidade de informações entre os sujeitos que o produziram. O conhecimento é, ao mesmo tempo, um fenômeno multidimensional e inacabado, sendo impossível sua completude e abrangência total, uma vez que, a cada etapa da visão globalizadora, surgem novas questões e novos desdobramentos. Isto nos coloca diante do fato de que a interdisciplinaridade se constitui em um processo contínuo e interminável de 88 elaboração do conhecimento, orientado por uma atitude crítica e aberta à realidade, com o objetivo de apreendê-la e apreender-se nela, visando muito menos a possibilidade de descrevê-la e muito mais a necessidade de vivê-la plenamente.Nesse caso, procura-se utilizar um método que permita estabelecer o diálogo entre conhecimentos dispersos, fazendo-os desembocar numa compreensão da realidade o mais globalizadora possível. 2.3. A CIRCULARIDADE DAS ABORDAGENS No estado atual do conhecimento, parece que o método da circularidade é o menos mutilante, visto que permite passar de um conhecimento a outro, fazendo com que ambos se modifiquem gradativamente, deixando o sujeito cognoscente menos vulnerável à subjetividade de que é suscetível. A circularidade derruba as barreiras entre as áreas de conhecimento e, a partir de uma área, estabelece o diálogo com outra, buscando nela elementos necessários para o alargamento explicativo do objeto ou da realidade, “de modo a superar as concepções redutoras e disjuntoras das disciplinas isoladas” ( Luck , 1995, p. 69). Esse diálogo é caracterizado por atividades mentais como refletir, reconhecer, situar, problematizar, verificar, refutar, especular, relacionar, relativizar, historicisar. Ele ocorre na interface entre uma e outra, e entre elas e o quadro referencial do indivíduo cognoscente, de modo que, por essa rotatividade, constrói um saber consciente e globalizador da realidade (Ibidem, p .69). Resgata-se dessa forma, a compreensão de que o conhecimento não pode ser dissociado da vida humana e da relação social, restabelecendo-se a circularidade entre homens, natureza, sociedade, cultura, história, linguagem, conhecimento, em que cada um desses elementos se articulam e se explicam reciprocamente. Com efeito, a prática da interdisciplinaridade está inseparavelmente ligada ao método da circularidade, pelo qual os sujeitos da pesquisa e do ensino, setorizados por áreas ou disciplinas, abandonam suas arenas, rompem com suas visões tradicionais, cruzam informações, abrindo brechas para a produção de novos conhecimentos. Para ser operacional, a interdisciplinaridade deve exercitar a 89 transversalidade entre ciência, tecnologia, ecologia, filosofia, antropologia, sociologia, ética, estética, economia e política, oportunizando relações de todos os tipos. Não é preciso dizer que essa prática irriga não apenas os domínios vizinhos de cada área ou disciplina mas que, freqüentemente, atinge também domínios mais distantes. A interdisciplinaridade, como movimento interno de transformação das ciências, aberta para o social, o político, o estético e o ético, implica na vivência do espírito de parceria, de integração entre teoria e prática, conteúdo e realidade, objetividade e subjetividade, meio e fim, dentre muitos outros fatores interagentes do processo de produção do conhecimento. Enfim, o objetivo da interdisciplinaridade é promover a superação da visão restrita de mundo e a compreensão da complexidade da realidade, resgatando a centralidade do homem em suas múltiplas expressões de vida que sempre dizem respeito a todas as áreas de conhecimento. Assim, a interdisciplinaridade se constitui em uma forma de ver o mundo que encontra paralelo na Ecologia, no Holismo, no movimento de Qualidade Total, na Teoria de Sistemas, que estabelecem, a partir do mesmo ponto de vista, novas abordagens, novos horizontes, novas analogias e novas estruturas conceituais e metodológicas, possibilitando a melhoria de qualidade da pesquisa e do ensino. Concluindo, a educação não é a resposta para todos os desafios que o homem é levadoa enfrentar, mas é parte dela. Como salientou H.G.Wells em 1920, “... a história do homem torna-se cada vez mais uma disputa entre a educação e a catástrofe” (citado por Gates, 1995, p. 316). A educação é o grande nivelador da sociedade, e toda melhoria na educação é uma grande contribuição para equalizar as oportunidades. 90 Referências bibliográficas BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualidade: a emergência de um novo paradigma. São Paulo: Ática, 1993. CAPRA, Fritjof. 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Cosmogonia: parte da astronomia que trata da origem e evolução do Universo. Cosmos: do grego kósmos, ornamento, universo visível, dotado de ordem e harmonia. Ecocêntrica: diz-se de uma ética que respeita a natureza como um todo e cada ser em particular. Ente: coisa, objeto, matéria, substância, ser. Aquilo que supomos existir, independentemente de tornar-se objeto de reflexão. A expressão Entes 93 sobrenaturais refere-se às divindades mitológicas. Escatologia: crença ou doutrina sobre a consumação do tempo, isto é, o fim do mundo ou da humanidade. Essência: aquilo que constitui a natureza das coisas, de um ser , independentemente de sua existência de fato. Exegese: análise minuciosa de um texto ou de uma palavra. Comentário ou dissertação para esclarecimento de um texto. Fantasmagoria: algo imaginário, fantasma, falsa aparência. Filosofia neoplatônica: corrente doutrinária surgida no século II, baseada nos ensinamentos de Platão. Caracterizava-se pelas teses da absoluta transcendência do ser divino, da emanação e do retorno do mundo a Deus pela interiorização progressiva do homem. Fio de Ariadne: expressão oriunda da mitologia grega, relacionada à filha do rei de Creta que, apaixonando-se por Teseu, deu-lhe o fio condutor, com o qual o herói pôde sair do labirinto, depois de haver liquidado o Minotauro, monstro que se nutria de carne humana. Gnosiologia: derivado do termo grego gnose, que significa conhecimento, sabedoria. Disciplina filosófica que faz uma reflexão crítica a respeito da origem, da natureza e do valor do conhecimento. Hermetismo: diz-se de uma doutrina muito fechada ou de um conhecimento de compreensão muito difícil. Hierofania: ato de manisfestação do sagrado. Termo usado por Mircea Éliade (1972), referindo-se a algo sagrado que é mostrado ao homem. 94 Holística: do grego holos, que designa totalidade. Tendência, que se supõe seja própria do Universo, a sintetizar unidades em totalidades organizadas. Aqui significa uma visão não fragmentada do real. Homeostático: diz-se do estado de equilíbrio existente entre o todo e suas parte, entre um ser e todos os outros seres, entre um organismo vivo e suas várias funções. Imanente: diz-se daquilo que existe em um dado objeto ou conceito, independentemente de ação exterior ou de algo que ultrapasse a nossa capacidade de conhecer. Opõe-se a transcendente. Inominado: aquilo que o homem ainda não atribuiu um nome, uma designação. Inteligibilidade: relativo à inteligência. Diz-se daquilo que só pode ser conhecido pelo pensamento, e não pelos sentidos. Liturgia: ritual, forma de prestar culto ao sagrado. Magia: arte com que se pretende produzir, por meio de certos atos e palavras e por interferência de seres sobrenaturais, efeitos e fenômenos extraordinários, contrários às leis da natureza. Metafísica: parte da filosofia que trata dos princípios e fundamentos últimos da realidade, isto é, daquilo que transcende o físico ou natural. Misticismo: disposição para crer no sobrenatural. Tendência que orienta o pensamento para a busca de um Absoluto, com o qual pretende a pessoa se unir moralmente por meios simbólicos. 95 Paradigma: modelo, exemplar, padrão. Segundo Thomas Khun (1991), paradigma é “toda uma constelação de opiniões, valores e métodos etc. participados pelos membros de uma determinada sociedade”, por meio dos quais se orientam e organizam o conjunto de suas relações. Pensamento categorial: expressão que designa a fase do entendimento humano a partir do nascimento da filosofia, no século VI a.C. Poder: capacidade de fazer valer, pela persuasão ou pela força, interesses particulares de um grupo ou uma classe social. Reminiscência: lembrança, recordação. Aquilo que se conserva na memória. Rito: regras de cerimônias que se devem observar na prática de uma religião. Sagrado: concernente às coisas divinas, à religião, aos ritos ou ao culto. Aquilo que o homem considera puro, santo e, portanto, digno de ser cultuado. Simonia: comércio de coisas sagradas ou espirituais, tais como sacramentos, relíquias, dignidades, benefícios eclesiásticos etc. Solipsista: atitude de quem considera o eu individual como a única realidade no mundo. Tapeçaria de Penélope: expressão metafórica que, baseada na personagem da obra de Homero (Odisséia), designa o desenrolar do processo histórico. Tempo primordial: o tempo em que certo acontecimento ocorreu pela primeira vez. Para o homem primitivo, todos os acontecimentos se repetem segundo um modelo original. 96 Teofania: manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa, nas características e nas atribuições que revelam sua divindade e seu poder. Tessitura: harmonia, contexto. Conjunto de acontecimentos que dá sentido de ordem. Transcendência: aquilo que ultrapassa a experiência possível, que se eleva além da capacidade humana de conhecer. Antônimo deimanência. 97 BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia.. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993. ARENDT, Hannah. A condição humana.. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. BETO, Frei. A obra do artista: uma visão holística do universo. São Paulo: Ática, 1997. BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualização. São Paulo: Ática, 1993. ________.Nova era: a civilização planetária; desafios à sociedade e ao cristianismo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. ________.Principio-terra: a volta à terra como pátria comum. São Paulo: Ática, 1995. CAPRA, Fritjof . O ponto de muitação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. 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