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Jacques Lacan O seminário Livro 0 O Mito Individual Do Neurotico

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C\ >NSELII< l INSTITII< :H >NA I. 
llil>lioteca Freudiana Brasileira, Sau l~mlo, Jorge h •ri w~, 
Clínica Freudiana, Salvador, Ma. Angélia 'Jhxcira 
Coisa Freudiana, Curitiba, Luiz Inês Wisnicwski 
Letra Freudiana, Rio de Janeiro, Nilza Ericson 
CONSELHO EDITORIAL 
Antonio Quinet de Andrade 
Jairo Gerbase 
Jacques-Alain Miller (consultor) 
SECRETARIADO 
Betch Cleinman (revisão de português) 
Maria Vitória Bittencourt (revisão de tradução) 
Sorria Alberti e Jandiara Menezes (composição) 
(c),para os textos de Lacan: Sucessão Lacan; estes textos 
são publicados com a autorização de J.A. Miller, depositário 
do direito moral de]. Lacan sobre a sua obra. 
(c) para os textos brasileiros: Editora Fator 
Rua Aracaju 62 Barra Salvador 40160 Bahia Brasil. 
(c) para os outros textos: Fondation du Champ Freudien 
31, rue de Navarin 75009 Paris France 
Impresso no Brasil 
julho I 1987 
Editora 
FALO REVISTA BRASILEIRA DO CAMPO FREUDIANO 
EDITORIAL 
5 Orientação lacaniana 
LACAN 
9 O Mito Individual do Neurótico 
21 Apresentação das Memórias de Schreber 
25 Pequeno Discurso na ORTF 
QUESTÕES CLÍNICAS 
29 Antonio Quinct, A Histeria e o Olhar 
35 ]osé Martinho, O Suplício do Obsessivo 
39 Paulo Siqueira, O Carnaval entre o Sonho e a Massa 
45 Jairo Gerbase, Fantasia ou Fantasma 
51 Eduardo Vidal, Ato e Tempo 
59 Françoise Koehler, Construção de uma Fantasia 
63 Rosine e Robert Lefort, O Espelho Paranóico 
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS 
73 Serge Cottet, Sobre o Analista Objeto a 
81 Colettc Soler, O Tempo em Análise 
92 Silvina Perez, Da Efica do Analista: o real 
95 ]oseph Attié, A Questão do Simbólico 
•, I / 11 I ( ll\f:\1 
a que se introduz na dialética do drama edipiano e é dela que se trata na íónnac,::tu do 
neurótico e, talvez, do homem moderno. 
A Apresentação da tradução francesa das Memórias do Presidente Schreber era 
esperada desde o Seminário das Psicoses- 1955/56, em Sainte-Anne. Nela encontramos 
um conceito, diríamos, novo, o de sujeito do gozo que, como o leitor verá, é o que faz 
polaridade com o sujeito representado por um significante para outro significante eis-
to levando Lacan a fornecer-nos uma definição mais precisa da paranóia, definição que 
permite identificar o gozo no lugar do Outro. 
O Pequeno Discurso na O.R.TF é uma entrevista radiofônica transmitida no dia 
2 de dezembro de 1966, por ocasião da publicação dos Escritos. Nele Lacan trata de 
responder a uma pergunta de Charbonnier sobre o seu Discurso ele Roma: sim, fala e 
linguagem estão com esse Discurso no centro dos Escritos que são os ele um psicana-
lista ... observem isto nos próprios textos de Freud -lá os fatos são fatos de linguagem. 
E acrescenta que sua experiência do inconsciente não é distinta da experiência da física 
pois, em ambas disciplinas, a experiência é exterior ao sujeito, o que lhe dá a ocasião 
de relembrar suas fórmulas: o inconsciente é o discurso do Outro; o inconsciente é uma 
linguagem - pleonasmo necessário para que Lacan fosse escutado. 
Uma série de sete artigos estão reunidos sob o título de Questões Clínicas. Eles 
visam dar conta daquilo que o analista sabe fazer com o que o ensino de Lacan e sua 
própria experiência lhes ensina. Os temas clínicos mais fundamentais são encontrados 
aí: a histeria, a obsessão, o sonho, a fantasia, o ato analítico, a construção na análise, o 
estádio do espelho. 
Três importantes artigos compõem a seção de Contribuições Teóricas: o lugar 
do analista como objeto a minúsculo, a estrutura e a função do tempo na análise e a 
questão do simbólico. São questões teóricas fundamentais que visam situar nossa práti-
ca em sua relação com o ensino de Lacan. 
A seção Conexões é uma tentativa de retomar o antigo projeto de Freucl (1913), 
os múltiplos interesses da psicanálise, que Lacan ampliou a outras disciplinas contem-
porâneas no seu projeto ele Universitas Literarum. Neste número estudamos duas inter-
relações ela psicanálise: a lógica e a psiquiatria. "Não se trata apenas de ajudar o analista 
com ciências propagadas ele modo universitário mas que essas ciências encontrem em 
sua experiência a oportunidade de se renovar" (Lacan, Peut-être à Vincennes ... ). 
Pretendemos ainda contribuir com a história do movimento psicanalítico con-
temporâneo. O projeto é o de registrar em cada volume de ràlo, a biografia de um autor-
psicanalista que tenha contribuído para o desenvolvimento de uma questão crucial da 
teoria psicanalítica, de preferência que tenha sido comentado em alguma oportunida-
de por Lacan. 
Enfim, o Boletim pretende noticiar, informar os nossos leitores do que se faz 
ao nível das instituições do Campo Freudiano e da Editora Fator. 
Junho de 1987 
J.G. 
o MITO INDIVIDUAL DO NEURóTICO 
Tradução de Antonio Quinet de Andrade 
Vou-lhes falar de um assunto que devo qu_ali?car d~ novo e que, cr~~~ ~~; ~:~f~ 
A dificuldade desta exposiç~o não lhe ~ tao t~tnn~~~i~~c~~periência analíti-
tratar de algo novo que me fot permlttdo perce der ta~ ~~ino dito seminário de apro-~n~~~~t~e;l~~a~~n~~~~~~~~~~~ ~~ál~s~~~r~~ai~ e~sa par~e original pafa ford dessep~~: 
sino e fora dessa experiência, para que vocês possam sentir todo seu a cance, com 
ta dificuJdades absolutamente esdpeciais. _ 'ndulgência se porventura alguma di-
E por tsso que lhes peço e antemao sua t . : da uilo de 
ficuldade lhes aparecer na apreensão, pelo menos, na pnmetra abordagem q 
que se trata. 
A psicanálise, devo lembrar em preã~bulo, é uma disciplina que, no co~ju~t~ 
das ciências mostra-se a nós com uma posiçao verdadeiramente partlcul~r. D:~ se re uentemen~e ue ela não é uma ciência propriamente dita, o que parece tmp tear, em ~ontraste que ~la seja tão simplesmente uma arte. Isso é um erro, se ent~nde-se~or ~~~ 
ue ela é apenas uma técnica, um método operacional, u_m conjunto e recet ~na ~ão é um erro se emprega-se esta palavra, uma arte, no sentido em que a er;t~regav . 
Idade Média quando se falava das artes liberais, vocês conhe.cem to?a a sene que ~:.~ da 
astronomia ;i dialética, passando pela aritmética, a geo~etna, ~ mustc~ e s~;~~: ~~t~·s 
É seguramente difícil apreendermos hoJe a funçao e o a cance es , 
l.b · na vida e no pensamento dos mestres medievais. Todavta, certo e que o que 
1 era1s d 1 · saído é 0 fato de manterem em as caracteriza e distingue das ciências que e as tena~ , I , d'da do 
· · de chamar de uma relaçao fundamenta com a me I 
phnmetro Ppolat.ns obeom~u1 ~~i~~nálise é talvez atualmente a única disciplina comparável a 
ornem. · ' ' . 1 - d d'da do homem con-
essas artes liberais, 12oraquilo qfiueheladpreserva de:~a~~~~:~or:v~r c~clica, que o u~o d:i 
sigo mesmo - relaçao mterna, ec a a em SI me , , 
1- · comporta · palavra,l~:vf~~~ ~~~~ustamente que a experiência analítica não é decisivamente' >I 'i'. 
FALO, Revista Brasileira do Campo Freudiano, 1, 1987, p.9-19. 
tivável. Ela implica sempre, no seio de si mesma, a emergência de uma verdade que não 
pode ser dita, pois o que a constitui é a fala, e seria preciso de alguma forma dizer a 
fala propriamente dita, o que é, a bem dizer, o que não pode ser dito como fala. 
Vemos, por outro lado, desprenderem-se da Psicanálise métodos que, esses, ten-
dem a objetivar os meios de agir sobre o homem, o objeto humano. Mas eles não pas-
sam de técnicas derivadas desta arte fundamental que é a Psicanálise, na medida em que 
é constituída por essa relação intersubjetiva que não pode, como lhes disse, ser esgota-
da, já que é ela que faz de nós homens. Eis, contudo, o que somos levados a tentar ex-
primir, mesmo assim, numa fórmula que disto fornece o essencial, e é justamente por 
isso que existe no seio da experiência analítica algo que é, propriamente falando, um mito. 
O mito é o que confere uma fórmula discursiva a alguma coisa que não pode 
ser transmitida na definição da verdade, pois a definição da verdade não podeapoiar-
se senão sobre si mesma, e que é na medida em que a fala progride que ela a constitui. 
A fala não pode apreender-se a si mesma nem apreender o movimento de acesso à ver-
dade como uma verdade objetiva. Ela pode exprimi-la- e isto, de uma maneira mítica. 
É nesse sentido que se pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza are-
lação intersubjetiva, e que é o complexo de Édipo, tem um valor de mito. 
Vou-lhes trazer hoje uma série de fatos de experiência que tentarei exemplificar 
a propósito dessas formações que constatamos na vivência dos sujeitos que temos em 
análise, por exemplo, os sujeitos neuróticos, e que são conhecidos por todos aqueles 
para quem a experiência analítica não é de todo estranha. Essas formações tornam ne-
cessário trazer ao mito, na medida em que ele se encontra no âmago da experiência ana-
lítica, certas modificações de estrutura que são correlativas dos progressos que nós mes-
mos fazemos na compreensão da experiência analítica. É o que nos permite, num se-
gundo nível, apreender que a teoria analítica é inteiramente sustentada pelo conflito fun-
damental que, por intermédio da rivalidade com o pai, liga o sujeito a um valor simbó-
lico essencial - mas isto, como verão, sempre em função de uma certa degradação con-
creta, talvez ligada a circunstâncias sociais especiais, da figura do pai. A própria expe-
riência encontra-se na tensão entre essa imagem do pai, sempre degradada, e uma ima-
gem cujas incidências nossa prática nos permite cada vez mais dimensionar e medir no 
próprio analista, enquanto que ele, sob uma forma seguramente velada e quase renega-
da pela teoria analítica, toma, mesmo assim, a posição, de uma maneira clandestina, na 
relação simbólica com o sujeito, desse personagem muito apagado pelo declínio de nossa 
história, que é aquele do mestre - do mestre moral,do mestre que institui na dimensão 
das relações humanas fundamentais àquele que se encontra na ignorância, e que lhe 
facilita o que se pode chamar de o acesso à consciência, e até mesmo à sabedoria, na 
tomada de posse da condição humana. 
Se nos fiamos na definição do mito como uma certa representação objetiva de 
um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais 
características de um certo modo de ser humano em uma época determinada, se o com-
preendemos como a manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena 
ou esvaziada de seu sentido, desse modo de ser, podemos então certamente reencon-
trar sua função na própria vivência do neurótico. Com efeito, a experiência oferece-nos 
manifestações de todo tipo que são conformes a este esquema e sobre as quais pode-se 
dizer tratar-se, no sentido próprio, de mitos, e vou-lhes mostrar isto com um exemplo, 
que creio ser dos mais familiares à memória de todos aqueles que dentre vocês, se inte-
ressam por essas questões, que tomarei emprestado de um dos grandes casos de Freud. 
Esses casos beneficiam periodicamente de um novo ganho de interesse no en-
sino, o que não impede que um de nossos eminentes colegas manifestasse recentemente 
a seu respeito- ouvi isto de sua própria boca- uma espécie de desprezo. A técnica, dizia 
ele, é aí tão inábjl quanto arcaica. Isto, afinal, pode-se defender quando se pensa nos 
progressos que fizemos ao tomar consciência da relação intersubjetiva, e interpretando 
apenas através das relações que se estabelecem entre o sujeito e nós na atualidade das 
sessões. Mas deveria meu interlocutor levar as coisas até o ponto de dizer que os casos 
rnnn rnrnrrrnrrrr- rr 
d~ l·t,·IHI í"l.IIIJ liLil í'.',t íJlllHhL',/ I', H I' :,, dl/1 I, ,.l'li.IIIWIJI<", íplí ele.', .' •. ltJ ~~~~líl:. 111111\11 
· 1 ·· ·· ·I· p· h<'<>•'d<"llrtiis<· IVh';l~·l<>lll<'.';lll<> Jd<·III.',,<Jll<'lllllii<>.',,',;I<>I>.';I<';IILIL',<'.'•IIII<'IItllllJli<.L,, ll ... ·' . • '.· .. '.' ·l!rcud. 
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1·.11 > , L li'<> s< · <inlllos crc·Liito a Frcud. E é preciso dar-lhe credito. , . 
. N·;o Jy1st·1 ·tpenas dizer como prosseguia aquele que fazia os comentanos que 
' " ' ' ' ' ' d' ·d 1 os esse aspecto encorajador de 11 J<'S rchlci que isso a1 apresenta sem uv1 a, pe o men , .. 
· " ' ' - 'nh d d d m algum canto é sufloente para IIH >.'il rar-nos que um pequeno graozl o e ver a e e . - lhe o õe Não 
<'lll·o·1r a transparecer e a surgir a despeito dos entraves que a expos1çao . P · .. 
.,_.,. ' · d d :- d átJca quot!dla-crcio que isso seja uma visão justa das cmsas. Na ver a e, a arvore a pr . 
na escondia ao meu colega a emergência da floresta que surg1a dos textos!reudla~os: 
Escolhi para vocês "O homem dos ratos", e creio poder nesta ocas1ao JUStl ~ear 
o interesse de Freud por este caso. 
II 
Trata-se de uma neurose obsessiva. Penso que nenhum daqueles que vieram ouvir 
d 'd orno a ra1z e a conferência presente deixou de ter ouvido falar o que _se cons1 era ~ . . , . 
a estrutura dessa neurose, ou seja, a tensão agressiva, a flxaçao ~1stmtual, etc. O pwgres-
50 da teoria analítica forneceu, no início de nossa compreensao da neurose obsess1va, 
uma elaboração genética extremamente complexa, e sem dúvida, tal elemento, tal fas,e 
dos temas fantasiosos ou imaginários que habitualmente se~pre encontram?s n~ ana-
lise de uma neurose obsessiva, são reencontrados ao se ler O homem dos ratos · Mas 
esse aspecto reconfortante - que os pensamentos familiares, vulgarizados, semp.r~ pos-
suem para aqueles que lêem ou aprendem - ma~~ara: talvez, para o le1tor, a ongmahda-
de desse caso e seu caráter especialmente s1gmflcat1vo e convmcente. 
Este caso, como vocês sabem, toma seu título de uma fantasia absolutamente 
fascinante, que tem na psicologia da crise que leva o sujeito ao alcar:ce do ':nahsta, uma 
função evidente de desencadeamento. Trata-se do relato de um suphc1o que sempre b~: 
neficiou de um interesse singular, inclusiVe de uma verdadeira celebndade, e que co 
siste em enfiar um rato excitado por meios artificiais, no reto do supliciado por mter-
médio de um dispositi~o mais ou menos engenhoso. É a prim~ira audição deste relato 
que provoca no sujeito um estado de horror fascinado, que nao desencadeia sua neu-
rose, mas atualiza-lhe os temas e suscita a angústia. Aparece em segmda toda uma ela-
boração, cuja estrutura teremos de examinar. . . . 
Essa fantasia é certamente essencial para a teona do determm1smo de uma_ neu-
rose e ela se encontra em numerosos temas no decurso do caso. Quer dizer que e 1sso 
que lhe confere todo seu interesse? Não só não creio, mas tenho certe?.a de qu~ em qual-
quer leitura atenta se perceberá que o interesse pnnopal do caso vem de sua extrema 
particularidade. . . 
Como Freud sempre ressaltou, cada caso deve ser estudado em sua pan:cular:-
dade exatamente como se ignorássemos tudo da teoria. E o que constitUI a part!culan-
dade' deste caso é o caráter manifesto, visível das relações em jogo. O valor exemplar 
deste caso particular provém de sua simplicidade, da maneira, como se pode d1zer em 
geometria, pela qual um caso particular pode ter uma supenondade, respl.andecente ~a 
evidência em relação à demonstração, cuja verdade, dev1do a seu ca~ater d1scurs1vo, per-
manecerá velada sob as trevas de uma longa seqüência de deduçoes. 
Eis em que consiste a originalidade do caso, e que aparece a todo leitor um P< H I<·< 1 
atento. 'l . . . ·1 · A constelaçào- por que não? no sentido empregado pelos astro ogos- .l' '>lt'" 
!ação original que presidiu ao nascimento do sujeito, ao se~ destino e, c~ <IU;N' <illu, 
à sua pré-história, ou seja, as relações familiares fundamentaiS que cstruttll.ll ·1111 •1 1111 1. 1< > 
de seus pais, tem nas circunstâncias, uma relação muito precisa- c tal v('/. dl'lllllvl'i I)( '1 
Deus é Fiel
Realce
Deus é Fiel
Realce
uma fórmula de transformação- com o que aparece de mais cuoti11)',<'11l<',d,· 111.11:. 1.111 
tasioso, de mais paradoxalmente mórbido em seu caso, ou seja, o último cstad< , 'I<· , I<· 
senvolvimento de sua grande apreensão obsedante, o roteiro imaginário a que chega 
como solução da angústia ligada ao desencadeamento da crise. 
A constelação do sujeito é formada, na tradição familiar, pelo relato de um certo 
número de traços que especificam a união dos pais. 
É preciso saber que o pai foi suboficial no início de sua carreira, tendo perma-
necido muito "suboficial", com a denotação de autoridade, embora um tanto derrisó-
ria, que isto comporta. Uma certa desvalorização na estima de seus contemporâneos 
acompanha-o permanentemente, e uma mistura de bravata e brilho compõem um per-
sonagem convencional que se reencontra através do homem simpático descrito pelo 
sujeito. Esse pai encontrou-se na posição de fazer o que se chama de um bom casamento 
- sua mulher pertence a um meio muito mais elevado na hierarquia burguesa e 
proporcionou-lhe, ao mesmo tempo, os meios de subsistência e a própria situação de 
que desfruta no momento em que vão ter o filho. O prestígio está, portanto, do lado 
cYd mãe. E uma zombaria das mais freqüentes entre essas pessoas que, em princípio, se 
entendem bem e parecem até mesmo ligadas por uma afeição real, é uma espécie de 
jogo que consiste num diálogo conjugal - a mulher faz uma alusão divertida a um forte 
apego de seu marido, justo antes do casamento, por uma moça pobre, porém bonita, 
e o marido protesta e afirma, a cada vez, que isso foi algo tão fugitivo quanto longín-
qüo e esquecido. Mas esse jogo, cuja própria repetição implica que talvez comporte uma 
parte de artifício, certamente impressionou profundamente o jovem sujeito que setor-
nará mais tarde o nosso paciente. 
Um outro elemento do mito familiar não é de pouca importância. O pai teve, 
no decurso de sua carreira militar, o que se poderia chamar, em termos púdicos, de abor-
recimentos. Dilapidou no jogo, nada mais nada menos do que os fundos do regimen-
to, do qual era depositário por inerência de suas funções. 
Ele só conseguiu salvar a honra, e inclusive a vida, pelo menos no âmbito de 
sua carreira, e continuar representando o mesmo personagem na sociedade, graças à 
intervenção de um amigo, que lhe emprestou a soma que convinha reembolsar, e que 
ocorre ter sido assim seu salvador. Fala-se ainda desse momento como de um episódio 
verdadeiramente importante e significativo do pa_ssado pa_terno. 
É assim, então, que se apresenta a constelação familiar do sujeito. Seu relato sal, 
pedaço por pedaço, ao longo da análise, sem que o sujeito o vincule de forma alguma 
com o que quer que seja que aconteça de atuaL É preciso toda a intuição de Freud para 
compreender que esses são elementos essenciais do desencadeamento da neurose ob-
sessiva. O conflito mulher rica/mulher pobre reproduziu-se, muito exatamente, na vida 
do sujeito, no momento em que o pai o impelia a esposar uma mulher rica e foi, en-
tão, que a neurose, propriamente dita, desencadeou-se. Ao aduzir este fato, o sujeito diz 
quase ao mesmo tempo: "Estou-lhe dizendo algo que certamente não tem relação al-
guma com tudo o que me aconteceu·: Freud, então, logo percebe a relação. 
O que se vê efetivamente num apanhado panorâmico do caso é a estrita corres-
pondência entre esses elementos iniciais da constelação subjetiva e o desenvolvimento 
final da obsessão fantasiosa. Este desenvolvimento final, qual é? A imagem do suplício 
primeiramente engendrou no sujeito temores de todo tipo, ou seja, que esse suplício 
pudesse um dia ser infligido às pessoas que lhe são mais caras, seja, nomeadamente, 
a esse personagem da mulher pobre idealizada à qual ele dedica um amor cujo estilo 
e o valor próprio veremos mais tarde - é a própria forma de amor de que o sujeito ob-
sessivo é capaz - seja, ainda mais paradoxalmente, a seu pai que, no entanto, nesse mo-
mento, já é falecido, e reduzido a um personagem imaginado no além. O sujeito viu-se, 
por fim, levado a comportamentos que nos mostram que as construções neuróticas do 
obsessivo acabam às vezes confinando com as construções delirantes. 
Ele se encontra na situação de ter de pagar o preço de um objeto, cuja especifi-
i\lrlo' llrollllt/rul I\ 
'.1<.·:10 11:io L: indilerente, um par de óculos que lhe pertence, que de deixou pndn se 
1 H 1 decurso das grandes manobras durante as quais foi-lhe feito o relato do suplíd< 1 em 
'1 11estão, e quando a crise atual desencadeou-se. Ele pede a substituição urgente de seus 
t"1culos a seu oculista de Viena - pois tudo isto acontece no antigo Império Austro-
1 Iúngaro, antes do começo da guerra de 14- e, por correio expresso, este envia-lhe um 
pequeno pacote contendo o objeto. Ora, o mesmo capitão que o instruiu da história 
do suplício, e que muito o impressionou por uma certa ostentação de gostos cruéis, 
informa-o que ele deve o reembolso disto a um tenente A, que se encarrega dos assun-
tos do correio e que é reputado ter desembolsado a soma para ele. É em torno desta 
idéia de reembolso que a crise conhece seu desenvolvimento finaL O sujeito constitui 
para si, com efeito, um dever neurótico de reembolsar a soma, mas sob determinadas 
condições bem precisas. Este dever, ele o impõe a si mesmo sob a forma de um man-
damento interior que surge no psiquismo obsessivo, em contradição com seu primei-
ro movimento que se expressara sob a forma de "não pagar". Ei-lo, pelo contrário, liga-
do a si mesmo por uma espécie de juramento, "pagar a ~·. Ora, ele percebe bem de-
pressa que este imperativo absoluto nada tem de adequado, pois não é A quem se en-
carrega dos assuntos do correio, e sim um tenente B. 
Não é só isso. No momento exato em que todas essas elocubrações se produ-
zem nele, o sujeito sabe perfeitamente, como vai-se descobrir em seguida, que em rea-
lidade ele tampouco deve essa soma ao tenente B, mas pura e simplesmente à senhora 
do correio, que aceitou confiar em B, senhor respeitável, que é oficial, e se encontra 
nas redondezas. Entretanto, até o momento em que vier confiar-se aos cuidados de Freud, 
o sujeito estará num estado de angústia máxima, perseguido por um desses conflitos 
tão característicos da vivência dos obsessivos, e que gira inteiramente em torno do rotei-
ro seguinte - uma vez que jurou para si reembolsar a soma a A, convém, para que as 
catástrofes anunciadas pela obsessão não aconteçam àqueles de quem mais gosta, que 
ele faça o tenente A reembolsar a generosa senhora do correio, que esta reverta diante 
dele a soma em questão ao tenente B e que ele mesmo reembolse então o tenente A, 
cumprindo assim seu juramento ao pé da letra. Eis onde o leva, por essa dedução pró-
pria aos neuróticos, a necessidade interior que o comanda. 
Vocês não podem deixar de reconhecer nesse roteiro, que comporta a passagem 
de uma certa soma de dinheiro do tenente A à generosa senhora do correio que efetuou 
o pagamento, e em seguida da senhora a um outro personagem masculino, um esquema 
que, complementar em certos aspectos, suplementar em outros, paralelo de uma certa for-
ma e inverso de outra, é o equivalente da situação original, dado que ela pesa com um 
peso efetivo sobre o espírito do sujeito e sobre tudo o que faz dele esse personagem, 
com um modo todo especial de relação com os outros, que se chama um neurótico. 
Evidentemente esse roteiro é impossível a ser seguido. O sujeito sabe perfeita-
mente que não deve nada nem a A, nem a B, mas à senhora do correio, e que, se esse 
roteiro fosse realizado, seria ela no fim das contas que arcaria com a despesa. De fato, 
como sempre acontece na vivência dos neuróticos, a realidade imperativa do real passa 
antes de tudo isso que o atormenta infinitamente - que o atormenta até mesmo no trem 
que o leva na direção estritamente oposta àquela que deveria ter tomado para ir cum-
prir junto à senhora do correio a cerimônia expiatória que lhe parece tão necessária.Embora, a cada estação, diga para si mesmo, que ainda pode descer, mudar de trem, 
retornar, é para Viena que ele se dirige onde vai confiar-se a Freud, e contentar-se-á, pu-
ra e simplesmente, uma vez começado o tratamento, em enviar uma ordem de paga-
mento para a senhora do correio. 
Este roteiro fantasioso apresenta-se como um pequeno drama, uma gesta que 
é precisamente a manifestação do que chamo de o mito individual do neurótico. 
Efetivamente ele reflete - de uma maneira sem dúvida fechada ao sujeito, mas não 
absolutamente, longe disso -a relação inaugural entre o pai, a mãe c o personagem, mais 
ou menos apagado no passado, do amigo. Essa relação não é elucidada de forma evidente 
Deus é Fiel
Realce
pela maneira puramente fatual que lhes expus, já que ela só adquin.: seu v~ilor l'lll ,. 11111 
ele da apreensão subjetiva que dela teve o sujeito. 
O que confere a esse pequeno roteiro fantasioso seu caráter mítico? Não é sim-
plesmente o fato de ele encenar uma cerimônia que reproduz, mais ou menos exata-
mente, a relação inaugural que aí se encontra como que escondida - ele a modifica no 
sentido de uma certa tendência. Por um lado, temos no início uma dívida do pai para 
com o 3migo -pois omiti de dizer-lhes que ele nunca reencontrou o amigo, é justamente 
isso o que permanece misterioso na história original, e nunca pôde reembolsar sua 
dívida. Por outro lado, existe na história do pai substituição, substituição da mulher pobre 
pela mulher rica. Ora, no interior da fantasia desenvolvida pelo sujeito observamos al-
go como uma troca dos termos terminais de cada uma dessas relações fundamentais. 
O aprofundamento dos fatos fundamentais em questão na crise obsessiva mostra, com 
efeito, que o objeto do desejo tantalizante que faz o sujeito retornar ao lugar onde se 
encontra a senhora do correio, não é de jeito algum esta mesma senhora, mas um per-
sonagem que, na história recente do sujeito encarna a mulher pobre, uma criada de es-
talagem que encontrou no decurso das manobras, na atmosfera de calor heróico que 
caracteriza a fraternidade militar, e com a qual entregou-se a algumas dessas operações 
de forrobodó onde esses sentimentos generosos de bom grado se extravasam. Para ex-
tinguir a dívida, é preciso de alguma forma restituí-la, não ao amigo, mas à mulher po-
bre e desta forma à mulher rica, que a substitui no roteiro imaginado. 
IL!do se passa como se os impasses próprios à situação original se deslocassem 
para um outro ponto da rede mítica, como se o que não foi resolvido aqui se reprodu-
zisse sempre lá. Para se compreender bem, é preciso reparar que na situação original, 
tal como lhes descrevi, há uma dívida dupla. Por um lado, há a frustração, ou até mes-
mo, uma espécie de castração do pai. Por outro lado, há a dívida social nunca resolvida 
que está implicada na relação com o personagem, em segundo plano, do amigo. Isto 
é algo muito diferente da relação triangular considerada como típica na origem do de-
senvolvimento neuroti7..ante. A situação apresenta uma espécie de ambigüidade, de di-
plopia- o elemento da dívida é colocado em dois planos ao mesmo tempo, e é precisa-
mente na impossibilidade de fazer esses dois planos se reencontrarem que se desenro-
la todo o drama do neurótico. Ao tentar fazer com que eles se sobreponham um ao ou-
tro, ele faz uma operação giratória, nunca satisfatória, que não chega a fechar seu ciclo. 
É o que se produz, efetivamente, em seguida. O que acontece quando o homem 
dos ratos se confia a Freud? Num primeiro tempo Freud substitui, bem diretamente, 
em suas relações afetivas, um amigo que exercia papel ele guia, de conselheiro, de 
protetor, de tutor tr:mqüilizador e que, depois de receber a confidência de suas 
obsessões e de suas angústias, dizia-lhe regularmente: "Você nunca fez o mal que 
pensa ter feito, você não é culpado, não ligue para isso". Freud é, portanto, coloca-
do no lugar do amigo. E muito rapidamente desencadeiam-se fantasias agressivas. Elas 
não esL'io unicamente ligadas, longe disso, à substituição do pai por Freud, como a in-
terpretação do próprio Freud tende incessantemente a assinalar, mas antes, t3l como na 
fantasia, à substituição do amigo pelo personagem dito da mulher rica. Com efeito, muito 
rapidamente, nessa espécie de curto delírio que constitui, pelo menos nos sujeitos pro-
fundamente neuróticos, uma verdadeira fase passional no interior mesmo da experiên-
cia analítica, o sujeito põe-se a imaginar que Freud deseja nada menos do que lhe dar 
a própria filha, de quem ele faz fantasticamente um personagem contendo todos os bens 
da Terra, e que ele representa para si sob a forma bastante singular de um personagem 
provido de óculos de excremento por cima dos olhos. Trata-se, pois, da substituição 
ele Freud por um personagem ambígüo, ao mesmo tempo protetor e maléfico, cujos 
óculos, que ridiculamente o disfarçam, marcam suficientemente, por outro lado, a rela-
ção narcísica com o sujeito. Aqui o mito e a fantasia confluem e a experiência passional 
ligada à vivência atual da relação com o analist3 é o trampolim por intermédio das iden-
tificações que ela comporta, para a resolução de um certo número de prohlemas. 
,.,/1/1' {Jiilllti!U.t! J·, 
·1; 1111<'1 11111 cxclllJllo l>clll particular. Mas gostaria de insistir sobre o que é uma 
'' .liid.,, I c, l111ic:1, qu,· pode servir de orientação na experiência analítica- há no neuró .. 
''' '> 11111:1 :.itu:1~·~1o de quanclo que se renova incessantemente, mas que não existe ape-
11.1:. lllllll u11ico plano. 
I\1U csqucmatií' .. ar, diremos que, tratando-se de um sujeito do sexo masculino, 
.,, ·11 '·quilíhrio moral e psíquico exige a assunção ele sua própria função- de fazer-se re-
' '1111 wcn como tal em sua função viril e em seu traba:ho, de assumir os frutos disso 
:.c111 conllilo, sem ter a impressão de que é algum outro e não ele que os merece, ou 
< (llc de mesmo só os tem por um golpe de sorte, sem que se produza essa divisão inte-
ri< 1r que laz do sujeito a testemunha alienada dos atos de seu próprio eu. Esta é a pri-
llwira exigência. A Outra é a seguinte um gozo, que se pode qualificar de plácido e 
<.k' unívoco, do objeto sexual, uma vez que ele é escolhido, ajustado à vida do sujeito. 
Pois bem, cada vez que o neurótico consegue, ou tende a conseguir assumir seu 
1 H'(Jprio papel, cada vez que ele se torna, de alguma maneira, idêntico a si mesmo, e 
se assegura de que sua própria manifestação em seu contexto social determinado é bem 
fundada, o objeto, o parceiro sexual, se desdobra - aqui sob a forma mulher rica ou mu-
lher pobre. O que é muito surpreendente na psicologia do neurótico - bast3 entrar, não 
mais na fantasia, mas na vida real do sujeito, para percebê-lo - é a aura de anulação que 
envolve, da maneira mais familiar, o parceiro sexual que tem para ele mais realidade, que 
lhe é mais próximo, com o qual ele tem geralmente os laços mais legítimos, tratando-se 
seja de um caso, seja de um casamento. Por outro lado, aparece um personagem que 
repete o primeiro, e que é o objeto de uma paixão mais ou menos idealizada, que pros-
segue de maneira mais ou menos fantasiosa, com um estilo análogo ao do amor-paixão 
e que impele, aliás, a uma identificação de ordem mortal. 
Se, por outro lado, numa outra face de sua vida, o sujeito faz um esforço para 
reencontrar a unidade de sua sensibilidade, é então na outra extremidade da cadeia, na 
assunção de sua própria função social e de sua própria virilidade - já que escolhi o caso 
de um homem - que ele vê aparecer a seu lado um personagem com o qual ele também 
tem uma relação narcísica enquanto relação mortal. É a este que ele delega o encargo 
de representá-lo no mundo e de viver em seu lugar. Não é verdadeiramente ele- ele se 
sente excluído, fora de sua própria vivência, não pode assumir as particularidades e as 
contingências dela, ele se sente desajustado à sua existência,e o impasse reproduz-se. 
É nesta forma muito especial do desdobramento narcísico que reside o drama do 
neurótico, em relação ao qual as diferentes formações míticas adquirem todo seu valor, e 
das quais lhes dei, há pouco, o exemplo sob a forma de fantasias, mas que se podem 
também reencontrar sob outras formas, por exemplo, nos sonhos. Tenho numerosos 
exemplos disto nos relatos de meus pacientes. É aí que as particularidades originais de 
seu caso podem verdadeiramente ser mostradas ao sujeito, de uma maneira muito mais 
rigorosa e viva para ele do que conforme os esquemas tradicionais saídos da tematiza-
ção triangular do complexo de Édipo. 
Gostaria de citar-lhes um outro exemplo e mostrar-lhes sua coerência com o pri-
meiro. Para este fim, tomarei um caso que é muito próximo do caso de "O homem dos 
ratos", mas que aborda um assunto de outra ordem - a poesia, ou a ficção literária. Trata-se 
de um episódio da juventude ele Goethe, que este nos narra em "Poesia e Verdade". Não 
lhes apresento isto arbitrariamente - trata-se, com efeito, de um dos temas mais valori?.a-
dos nas confidências do homem dos ratos. 
III 
Goethe está com vinte e dois anos, vive em Estrasburgo, e é nessa época que ocor-
re o célebre episódio de sua paixão por Frederica Brion, do qual a saudade manteve-se 
/ 1 , /lt t '/·'/·',I \t \N 
acesa até uma época avançada de sua vida. Ela permitiu-lhe superar a maldiqo que lllt' 
fora lançada por um de seus amores precedentes, a chamada Lucinda, relativa a qual-
quer aproximaçao amorosa com uma mulher, e muito especialmente ao beijo na boca. 
A cena merece ser contada. Essa Lucinda tem uma irma, personagem um tanto 
flno demais para ser honesto, que se empenba em persuadir Goethe dos estragos que es-
ta causando na pobre moça. Ela roga-lhe, ao mesmo tempo, que se afaste e que dê a ela 
a finória, a prenda do último beijo. É nesse momento que Lucinda os surpreende e diz; 
-Malditos sejam esses lábios para sempre. Que a desgraça recaia sobre a primeira que 
deles receber a homenagem. Evidentemente, nao sem razão, Goethe, entao em plena in-
fatuaçao da adolescência conquistadora, acolhe essa maldiçao como uma interdição que 
doravante vai barrar-lhe o caminho em todas suas empresas amorosas. Conta-nos, en-
tao, como, exaltado pela descoberta dessa moça encantadora que é Frederica Brion, ele 
consegue pela primeira vez superar a interdição, e sente o inebriamento do triunfo, após 
essa apreensão ele algo mais forte do que suas próprias interdições interiores assumidas. 
Trata-se ele um dos episódios mais enigmáticos da vicia de Goethe, c não menos 
extraordinário é o abandono de Frcclerica por ele. Os Gocthesforschcr também -assim 
como os stcnciahlianos, os bossuctistas, são dessas pessoas muito particulares que se 
dedicam a um dos autores cujas palavras deram forma a nossos sentimentos, e que pas-
sam ?eu tempo vasculhando os papéis nos armários para analisar o que o gênio pôs em 
evtdenua - os Goethcsforscher debruçaram-se sobre este fato. Deram-nos razões ele to-
do tipo, cuja lista eu não tenho vontade de fazer aqui. Certo é que todas elas exalam 
essa espécie de filistinismo que é correlativo de tais pesquisas quando são prossegui das 
no plano comum. Também não está excluído que haja sempre, com efeito, alguma obs-
cura dissimulação de Hlistinisrno nas manifestações da neurose, pois trata-se justamen-
te de tal manifestação no caso de Gocthe, corno lhes mostrarão as considerações que 
agora vou expor. 
Há inúmeros traços enigmáticos na maneira corno Goethe aborda esta aventu-
ra e, eu quase diria, que é em seus antecedentes imediatos que se encontra a chave do 
problema. 
. ED? poucas palavras, Goethe, que vive então em Estrasburgo com um ele seus 
ami,gos, ha multo tempo sabe da existência, num pequeno vilarejo, da família aberta, 
;u:uvcl, acolh<::dorado Pastor Bnon. Mas quando para lá se dirige, cerca-se de precau-
çoes, CUJO cm·ater dtvert!do ele nos conta em sua biografia- na verdade, ao observar-
mos os detalhes, não podemos deixar de nos espantar com a estrutura verdadeira com-
plicada que eles revelam. 
A:redit~, primeiramente, ter ele ir para lá disfarçado. Goethe, filho de um gran-
de burgues de Frankfurt, c que se dtstmgue entre seus camaradas pela desenvoltura das 
maneiras, pelo prestígio que sua maneira ele vestir lhe confere, um estilo de superiori-
dade SOCial, dtsfarça-sc de estudante de teologia, com urna batina especialmente surra-
?a e descosida. Parte com um amigo e fazem todo o trajeto às gargalhadas. Mas, fica, 
e claro, multo aborreCido a partir do momento em que a realidade da sedução eviden-
te, esplendorosa da moça, surgida sobre o fundo dessa atmosfera familiar, faz-lhe per-
ceber que se qmser mostr~r-se no que tem de melhor e mais bonito, ele precisa mu-
dar,.? mats depressa posstvel, o espantoso traje, que não é o que favorece mais sua 
aparenc1a. 
As justificativas que fornece desse disfarce são muito estranhas. Ele evoca nada 
menos do que o disfarce que os deuses utilizavam para descer no meio elos mortais 
-o que lhe parece, ele mesmo assinala, marcar seguramente, no estilo da adolescência 
em que e~ tão se encontrava, mais do que enfatuação - algo que confina com a megalo-
mama dehrante. Se ob~ervarmos as coisas em detalhe, o texto de Goethe mostra-nos 
o que ele pensa disto. E que, por esse modo de se disfarçar, os deuses procuravam so-
bretudo evitar aborrecimentos, e, em suma, era para eles uma forma ele não ter ele sen-
tir como uma ofensa a familiaridade dos mortais. O que os deuses mais arriscam per 
M/f(tlt!tfn·t(lu.tl I 
'I< T, < [tl;lllllo descem ao nível dos mortais, é sua imortalidade, c a única maneira ele es-
' .q >;tr ;1 isto é precisamente colocando-se no nível deles. 
Com efeito, trata-se justamente de algo desse tipo. O que vem em seguida 
d<'lllonstra-o ainda melhor, quando Goethe volta para Estrasburgo, para retomar seus 
l wlos adornos, não sem ter sentido, um pouco tardiamente, como foi indelicado ter-se 
;q>resentado sob uma forma que não é a sua, e ter assim enganado a confiança dessa 
gente que o acolheu com uma hospitalidade encantadora- a notação mesma do gemü-
llich encontra-se verdadeiramente no relato. 
Ele volta, então, para Estrasburgo. Porém, longe de por em execução seu desejo 
de voltar pomposamente engalanado ao vilarejo, ele não encontra nada melhor do que 
substituir seu primeiro disfarce por um segundo, que pede emprestado a um moço de 
urna estalagem. Ele aparecerá desta vez disfarçado ele uma maneira ainda mais estranha, 
mais discordante do que da primeira vez e, ainda por cima, com o rosto pintado. Ele 
coloca isso, sem dúvida, no plano da brincadeira, mas esta brincadeira se torna cada 
vez mais significativa - na verdade ele já nem sequer se situa no nível do estudante de 
teologia, mas, ligeiramente abaixo. Ele se faz de palhaço. E tudo isso é voluntariamente 
entremeado por uma série de detalhes que fazem com que, em suma, todos aqueles 
que colaboram nesta farsa sentem muito bem que o que está aí em questão encontra-se 
estreitamente ligado ao jogo sexual, ao cortejamento. 
Há até mesmo alguns detalhes cujo valor consiste, se assim se pode dizer, em sua 
inexatidão. Como o título "Dichtung und Wahrheit" indica, Goethe teve consciência de 
que tinba o direito de organizar e de harmonizar suas recordações com ficções que pre-
enchem as lacunas, e que, sem dúvida, ele não tinha o poder de preencher de outra ma-
neira. O ardor daqueles de quem há pouco lhes disse que seguiam o rastro dos grandes 
homens, dem<;mstrou a inexatidão de certos detalhes, que são por isso ainda mais revela-
dores do que o que se pode chamar de intenções reais ela cena inteira. Assim que Goe-
the se apresentou, pintado, com as vestes do moço de estalagem, divertindo-se inten-
samente com o quiproquó resultante, ele era, diz ele, portador de um bolo de batizado 
que pedira igualmenteemprestado. Ora, os Goethesforscher demonstraram que seis me-
ses antes e seis meses depois do episódio de Frederica, não tinha havido nenhum bati-
zado na região. O bolo de batizado, homenagem tradicional ao pastor, não poder ser 
outra coisa do que urna fantasia de Goethe, e ela adquire, assim, aos nosso olhos, todo 
seu valor significativo. Ela implica a função paterna, porém, precisamente na medida 
em que Goethe se especifica corno não sendo o pai, mas apenas aquele que traz algu-
ma coisa, e só tem uma relação externa com a cerimônia - ele se constitui como o subo-
ficiante, não como o herói principal. De modo que toda a cerimônia de sua escapulida 
aparece, na verdade, não apenas como uma brincadeira porém, muito mais profunda-
mente, como uma precaução, e alinha-se no registro do que eu chamava há pouco de 
desdobramento da função pessoal do sujeito nas manifestações míticas do neurótico. 
Por que Goethe age dessa maneira? É porque, claramente, está com medo - o 
que será manifesto em seguida, pois essa ligação só vai declinar daí por diante. Em vez 
de o desencantamento, o desenfeitiçamento da maldição ter-se produzido depois de Goe-
the ter ousado transpor sua barreira, percebe-se, pelo contrário, por todo tipo de for-
mas substitutivas - a noção de substituição é indicada no texto de Goethe - que seus 
temores quanto à realização desse amor foram se tornando cada vez maiores. Todas as 
razões que se pôde dar- desejo de não se vincular, de preservar o destino sagrado de 
poeta, até mesmo a diferença de nível social - não passam de formas racionalizadas, rou-
pagem, superfície ela corrente infinitivarnente mais profunda que é a da fuga diante do 
objeto desejado. Diante de sua meta, vemos produzir-se novamente um desdobramen-
to elo sujeito, sua alienação em relação a si próprio, as manobras por meio das quais 
ele fornece para si um substituto sobre o qual elevem incidir as ameaças mortais. Assim 
que ele reintegra esse substituto em si mesmo, impossível atingir a meta. 
Só posso, hoje, dar-lhe a tcrnatização geral desta aventura, mas saibam que exisle 
/li )ACQUES LACAN 
aí uma irmã, o duplo de Frederica, que vem completar a estrutura mítica cb ~.lltu• ·'', 
Se retomarem o texto de Goethe, verão que o que pode parecer-lhe como uma n ;,~.., 
trução, numa rápida exposição, é confirmado por outros detalhes diversos e espanto-
sos, m~1us1ve a analogia, te1ta por Goethe, com a história bem conhecida do vigário de 
Wakefleld, transposição literária, fantasiosa de sua aventura. 
IV 
O sistema quaternário, tão fundamental nos impasses, nas insolubilidades da si-
tuação vital d<? n.eurótico é de uma estrutura bastante diferente da que é tradicionalmente 
dada - o des~JO m~estuo.so da mãe, a interdição do pai, seus efeitos de barragem e, em 
torno, a prohferaçao ma1s ou menos luxuriante de sintomas. Acredito que esta diferen-
ça deva conduzir-nos a discutir a antropologia geral que se depreende da doutrina ana-
lítica~ como~ ensinada até a presente data. Em suma, todo o esquema do Édipo deve 
se~ cntlcado. Na~ posso comprometer-me a fazer isto hoje, mas, no entanto, não posso 
de1xar de tentar mtroduz1r aqw o quarto elemento em questão. 
Estabelecemos que a situação mais normativante da vivência original do sujeito 
moderno, em sua forma reduzida que é a família conjugal, está ligada ao fato de o pai 
enco?trar-s~ como C: repres.entante, .a encarnação de uma função simbólica que con-
ce;n~a em SI o que ha ~e m~1s essenCial em outras estruturas culturais, ou seja, os gozos 
plaCJdos, ou melhor, s1mbohcos, culturalmente determinados e fundados do amor da 
mãe, isto é, do pólo ao qual o sujeito está ligado por um laço, este, incont~stavelmente 
natur~l: A assunç.ã? da função do pai supõe uma relação simbólica simples, em que o 
s1mbo!1co recobnna plenamente o real. Seria preciso que o pai não fosse apenas o nome-
do-pal, mas representasse, em toda sua plenitude, o valor simbólico cristalizado na sua 
função. Ora, é claro que esse recobrimento do simbólico e do real é absolutamente ina-
preensível. Pelo ~e~os numa estrutura ~oc,ial tal com_o a nossa~ o pai é sempre, por al-
gum lado, um p~1 discordante em _relaçao a sua funçao, um pa1 carente, um pai humi-
lhado, como dma o Sr. Claudel. Ha sempre uma discordância extremamente nítida en-
tre o que é percebido pelo sujeito no plano do real e a função simbólica. É nessa mar-
gem que reside o que faz com que o complexo de Édipo tenha o seu valor - de modo 
algum normativante, porém mais freqüentemente patogênico. 
Di~er isto nã~ nos adianta muito. O passo seguinte, que nos faz compreender 
o que está em q~esta.?. na e~trutura quaternaria é o que o constitui a segunda g_rande 
descoberta da ps1canáhse, nao menos Importante do que a função simbólica do Edipo 
- a relação narcísica. ' 
A relação narcísica com o semelhante é a experiência fundamental do desen-
volvimento imagi?~rio do s~r.humano. E_nquanto e~periência do eu, sua função é de-
CI~Iva na consutwçao do SUJeitO. O que e o eu, sena9 algo que o sujeito experimenta 
pnme1ro como estranho a si mesmo em seu interior? E primeiramente num outro mais ad~a~tado, mais perfeito do que ele, que o sujeito se vê. Em particular, ele vê su; pró-
pna 1magem no espelho numa época em que é capaz de percebê-la como um todo en-
quanto ele mesmo não se concebe como tal, mas vive no desarvoramento origin~l de 
todas as. ~nções motoras e afetivas que é o dos seis primeiros meses após o nascimen-
to. C? ~uJeltO tem sempre, assim, uma relação antecipada com sua própria realização, que 
o reJeita, ele mesmo, para o plano de uma profunda insuficiência, e que nele testemu-
nha de uma fenda, de um djlaceramento original, de uma derrelição, para retomarmos 
esse ter~ o h~ideggeriano: ,E p.or isso que em tod::_s ~ suas relações imaginárias, o que 
se mamfesta e uma expenenCJa de morte. ExpenenCJa sem dúvida constitutiva de to-
das as manifestações da condição humana, mas que aparece muito especialmente na 
vivência do neurótico. 
Se o pai imaginário e o pai simbólico são, mais freqüentemente, fundamental 
1\lfl•• ltt•ltlloliul /'' 
IIWIIIt' disliulos, 1üo é apenas pela razão estrutural que lhes estou indicando, 111~1s 1~1111 
I ><'111 pela forma histórica, contingente, particular a cada sujeito. No caso dos neur<'>li-
' '>s é muito freqüente o personagem do pai, por algum incidente da vida real, ser des-
' '' >ilrado. Seja porque o pai tenha morri do prematuramente sendo substituído por um 
padastro, com quem o sujeito se encontra facilmente numa relação mais fraternizada 
1 JUe será estabelecida naturalmente no plano dessa virilidade ciumenta que constitui a 
dimensão agressiva da relação narcísica. Seja porque tenha sido a mãe quem desapare-
ceu e as circunstâncias da vida tenham dado acesso, no grupo familiar, a uma outra mãe 
que já não é a verdadeira. Seja porque o personagem fraterno introduza a relação mor-
tal de maneira simbólica e, ao mesmo tempo, a encarne de uma maneira real. Muito fre-
qüentemente, como lhes indiquei, trata-se de um amigo, como em "o homem dos ra-
tos", esse amigo desconhecido e jamais reencontrado, que desempenha um papel tão 
essencial na lenda familiar. Tudo isto desemboca no quarteto mítico. Ele é reintegrável 
na história do sujeito, e, não reconhecê-lo é não reconhecer o elemento dinâmico mais 
importante na própria cura. Estamos aqui apenas valorizando-o. 
O quarto elemento, qual é? Pois bem, vou designá-lo, hoje, dizendo-lhe que é 
a morte. 
A morte é perfeitamente concebível como um elemento mediador. Antes que 
a teoria freudiana tivesse acentuado, com a existência do pai, uma função que é, ao mes-
mo tempo, função da fala e função do amor, a metaffsica hegeliana não hesitou em cons-
truir toda a fenomenologia das relações humanas em torno da mediação mortal, tercei-
ro essencial à progressão pela qual o homem se humaniza na relação com o seu seme-
lhante. Epode-se dizer que a teoria do narcisismo, tal como lhes expus há pouco, dá 
conta de certos fatos que permanecem enigmáticos em Hegel. E que, afinal de contas, 
para que a dialética da luta até a morte, da luta de puro prestígio, possa apenas ter iní-
cio, é preciso que a morte não se realize, pois o movimentç> dialético cessaria por falta 
de combatentes, é preciso justamente que seja imaginada. E, com efeito, da morte ima-
ginada, imaginária, que se trata na relação narcísica. É igualmente a morte imaginária 
e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, e é dela que se trata na for-
mação do neurótico - e talvez, até certo ponto, em algo que ultrapassa muito a forma-
ção do neurótico, ou seja, a atitude existencial característica do homem moderno. 
Não seria preciso muito para me induzir, para me levar a dizer que o que faz me-
diação na experiência analítica real, é algo que é da ordem da fala e do símbolo e que 
chamamos, numa outra linguagem, de um ato de fé. Mas, seguramente, não é nem o 
que a análise exige, nem tampouco o que ela implica. Trata-se, antes, do registro da pa-
lavra derradeira pronunciada por esse Goethe o qual, não é a troco de nada, acreditem, 
que eu o citei, hoje, a título de exemplo. 
De Goethe pode-se dizer que, por sua inspiração, sua presença vivida, ele im-
pregnou, animou extraordinariamente todo o pensamento freudiano. Freud confessou 
que foi a leitura dos poemas de Goethe que o lançou em seus estudos médicos e, da 
mesma feita, decidiu seu desti?o, mas isso é pouco diante da influência do pensamen-
to de Goethe sobre sua obra. E, pois, com uma frase de Goethe, a derradeira, que direi 
o móvel da experiência analítica, com essas palavras bem conhecidas que ele pronun-
ciou antes de se afundar, de olhos abertos, no buraco negro - "Mehr Licht" (mais luz).

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