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Uma questão de memória... Em junho de 2007, cinco jovens de classe média-alta espancaram a empregada doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto, em um ponto de ônibus no Rio de Janeiro. Eles justificaram a agressão alegando que haviam confundido Sirlei com uma prostituta. O pai de um dos agressores e uma estudante de classe média-alta do Rio de Janeiro fizeram as seguintes declarações: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2606200710.htm http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0107200706.htm Os enunciados de Ludovico e Viviane se filiam aos discursos que defendem que jovens de classe média-alta, que cometem crimes e infrações, não devem ser presos como os infratores de outros grupos sociais. Para isso, eles usaram paráfrases, ou seja, formas diferentes para dizer a mesma coisa. Isto explica o fato de que todo enunciado, dependendo das condições em que é produzido (quem fala, para quem, quando, como e onde) coloca em circulação algumas formulações anteriormente enunciadas e deixa de colocar outras. Ludovico e Viviane falam de uma mesma posição social, fazem declarações sobre o mesmo acontecimento, na mesma semana, no mesmo jornal, num mesmo momento histórico. Seus enunciados produzem significados semelhantes, através de formulações diferentes (paráfrases). Veja, embora Ludovico afirme que os jovens não são bandidos, ele questiona a validade de se prender os jovens com outros bandidos. Viviane faz algo muito semelhante, ela questiona a validade de se colocar os jovens com outros criminosos. Assim, para ambos, os jovens são bandidos e criminosos de outro tipo. Eles estudam, têm caráter e, embora não esteja dito, eles têm dinheiro. São bandidos “estudados, com dinheiro e caráter”, por isso não podem ficar presos. Ocorre também, que um mesmo enunciado pode ter significados diferentes dependendo também das condições em que ele for produzido. Por exemplo, o enunciado a justiça é cega remete ao símbolo da justiça que é uma deusa grega de olhos vendados. Esta imagem representa que a justiça deve ser “cega”, ou seja, imparcial no tratamento que dispensa a todos os réus: homens ou mulheres, humildes ou poderosos, ricos ou pobres, brancos ou negros. Entretanto, veja o que a autora de um blog escreveu em 2008 quando comentava o caso de Daniel Dantas, banqueiro brasileiro acusado pelo Ministério Público Federal por corrupção e lavagem de dinheiro. A mídia brasileira fez circular que o banqueiro estava sendo, supostamente, beneficiado pelo STF. http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com/2008/07/justia-cega-mas-l-em-braile.html Neste caso, o sentido do enunciado a justiça é cega, é atualizado pelas condições em que ele é produzido. Para a autora, a justiça não é imparcial quando o réu é rico e poderoso. No blog, a imagem da justiça também é atualizada, uma vez que a deusa aparece com os olhos vendados com dinheiro. Assim, todo enunciado, que pode ter a dimensão de uma palavra, frase ou parágrafo, e que pode tanto ser expresso através da linguagem verbal, como da não-verbal (imagens, gestos e sons), é filiado a uma rede de memória. Ao ser repetido, dependendo das suas condições de produção, isto é de quem enuncia, para quem, quando e onde, vai produzir um efeito de memória que atualiza, transforma, nega, silencia ou rompe com enunciados já ditos. Há, portanto, uma memória discursiva que é construída ao longo da história, coletivamente. (3.377 caracteres) Referências COURTINE, J.-J. Metamorfoses do DISCURSO POLÍTICO; Derivas da fala pública. São Carlos, Editora Claraluz, 2006. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Editora Universitária, 2002. PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso (AAD-69).In: Por uma Análise Automática do Discurso: Uma introdução à Obra de Michel Pêcheux, Campinas, Editora da Unicamp, 2001. PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1990. ATIVIDADES Falando nisso... 1) Observe as duas fotos da escultura que fica na frente do Palácio da Justiça, em Brasília e explique de que maneira a segunda foto atualiza o significado de que “a justiça é cega”. http://olhares.aeiou.pt/justica_cega/foto11898.html 2) Fizemos a seguinte pergunta para pessoas de algumas cidades do nosso país: Quem fica preso no Brasil? Observe algumas das respostas dos entrevistados: a) A memória discursiva é a memória dos “dizeres que já foram ditos” no decorrer da história. É a partir da repetição destes dizeres que os sentidos vão se fixando e se estabilizando nos diversos discursos. Que idéia se repete e que sentidos aparecem estabilizados nas respostas destes entrevistados? b) Os entrevistados utilizaram diversas paráfrases para expressar uma mesma idéia. Escreva o slogan a seguir de diferentes formas, de modo que o sentido não se altere. http://acertodecontas.blog.br/atualidades/mppe-lanca-campanha-pelo-combate-a-impunidade-no-estado/ c) Nossa equipe entrevistou a delegada Nadine, titular da Delegacia da Mulher em Porto Alegre. Ela nos contou o caso de uma prostitua que foi agredida naquela região. De que maneira o relato da delegada atualiza a memória discursiva que aparece nas respostas dos entrevistados? 3) Analise as cores, a imagem e os dizeres do cartaz abaixo e explique que efeitos de memória ele produz. Eu vou contar pra vocês... Eu fui delegada plantonista, na região metropolitana e estava de plantão, às quatro horas da manhã, quando um policial me chamou. Ele disse: “Delegada, vem ver o que eu estou vendo e que eu não estou acreditando”. Era uma moça, de 33 anos, prostituta da região metropolitana. Ela não tinha mais os dentes da frente. Estava com os dois olhos, que ela não conseguia abrir, devido a agressividade. Estava completamente machucada e nua, enrolada em um lençol. Pé no chão ela bateu à porta da delegacia. Ela nos contou que tinha ido para a casa de um cliente, no entanto esse cliente passou a beber e exigir que fossem feitas algumas outras coisas e mediante o uso de uma arma de fogo, começou a agredi-la. Ela conseguiu fugir a pé. O agressor foi autuado e preso em flagrante, certo? Eu tive que responder até a imprensa, que me questionou “Mas delegada, ela não era prostituta?” Alguns órgãos me questionavam “Mas ela não foi lá por que ela quis?”. Eu senti um certo machismo por parte de alguns, né? O porquê que eu estava autuando uma pessoa de classe média alta, que era casado, que tinha filhos e que tinha feito um programa com uma mulher. No entanto a gente comprovou, prendeu ele em flagrante, ele estava, efetivamente, armado, ele tinha agredido esta mulher. A gente estava com todas as provas e eu tenho certeza de que ele foi condenado. Hora do Debate 1) Leia os versos da música “Capítulo 4, Versículo 3”, dos Racionais MCs e discuta com seus colegas que relação eles mantém com as respostas dadas por nossos entrevistados a respeito de quem fica preso no Brasil. Que sentidos são repetidos e que novos sentidos aparecem? 2) Nós vimos que dependendo das condições em que um enunciado é produzido, este pode ter significados diferentes. Considerando que quem enuncia nesta canção é um rapper, negro, da periferiae que a música é dirigida também a um público da periferia – que sentidos produz o último verso: “aqui quem fala é primo preto mais um sobrevivente...”? 60% dos jovens de periferia Sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial A cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras Nas universidades brasileiras Apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é o primo preto, mais um sobreviventes... 3) O discurso é formado a partir de um ou mais enunciados, assim, o enunciado é a unidade mínima do discurso. Ele pode ser uma palavra, uma frase, uma imagem, e vai ter sentidos diferentes a cada vez que for usado, dependendo de quem o pronuncie, para quem, quando e como. Veja os versos da música “A carne”, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wílson Capellete e compare com a imagem da parada gay de São Paulo de 2007. a) O enunciado a carne mais barata do mercado é a carne negra aparece nos dois discursos, em ambos, com o sentido de que as pessoas negras são as mais discriminadas em nossa sociedade. Que novos sentidos são produzidos quando este enunciado aparece em uma placa que dois travestis negros seguram em uma parada gay? [Digite o conteúdo da b rra lateral. Trata-se de um suplemento independente do documento principal. Em geral fica alinhado do lado esquerdo ou direito da página, ou situa-se na parte superior ou inferior. Use a guia Ferramentas de Caixa de Texto para alterar a formatação da caixa de texto da barra lateral. Digite o conteúdo da barra lateral. Trata-se de um suplemento independente do documento principal. Em geral fica alinhado do lado esquerdo ou direito da página, ou situa-se na parte superior ou inferior. Use a guia Ferramentas de Caixa de Texto para alterar a formatação da caixa de texto da barra lateral.] b) Observe o detalhe da obra de Michelangelo, “Criação de Adão”, pintada na Capela Sistina, no Século XVI. Nesta pintura, Deus aparece tocando as mãos de Adão para lhe dar o dom da vida. Compare o detalhe da pintura com esta foto de campanha contra o racismo. A foto remete à memória da pintura e produz novos significados. Que significados são esses? Palavreando Fabiano é o personagem principal do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Ele é um retirante nordestino, simples, bruto e de poucas palavras. Junto com sua esposa, seus dois filhos e sua cachorra Baleia, Fabiano sai pelo sertão para fugir da fome, da seca e da miséria. Certo dia vai à feira de uma cidade e é convidado a jogar cartas com um soldado amarelo. Eles perdem o jogo e o soldado começa a fazer provocações a Fabiano, que suporta os insultos até quando é possível, mas por fim, acaba xingando a mãe do soldado. Fabiano é humilhado publicamente e vai para a cadeia. - Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente. O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá. - Toca pra frente, berrou o cabo. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. - Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano. Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando: - Hum! Hum! Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava- se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir. (Graciliano Ramos – Vidas Secas – Capítulo Cadeia) 1) Observe as imagens a seguir e estabeleça uma relação entre elas e o trecho do livro “Vidas Secas”. A que memória discursiva as imagens e o texto remetem? Por quê? 2) Faça uma narrativa em que a personagem principal seja vítima de violência por discriminação de classe social, de raça, gênero ou religião. Descreva o ambiente em que a história acontece, os motivos que desencadeiam a violência e as dificuldades sofridas pela personagem. Reflexão, diversão e arte Como sugestão leia o livro de Graciliano Ramos, “Vidas Secas”. Você vai se emocionar com a história de Fabiano e sua família. Atividade para o site Programa: Violência Contra a Mulher e Conflitos de Classes Tema: Memória Discursiva e Condições de Produção Direitos autorais: Música: A carne Intérprete: Elza Soares Compositores: Seu Jorge, Marcelo Yuka, Wílson Capellete Álbum: Do Cóccix até o Pescoço Gravadora: Maianga Discos Ano: 2002 Música: Capítulo 4, Versículo 3 Interprete: Racionais MCs Compositores: Mano Brown, KL Jay Álbum: Sobrevivendo no Inferno Gravadora: Voice Musica Ano: 1998 Livro: Vidas Secas Autor: Graciliano Ramos Editora: Record Ano: 2007 Internet Foto Campanha contra racismo http://www.flickr.com/photos/14161173@N06/1797954963/ Detalhe de pintura “Criação de Adão”, de Michelangelo, na Capela Sistina, século XVI. http://souzacampus.wordpress.com/2007/11/05/semana-academica-puc-sp/ Folha de São Paulo http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2606200710.htm http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0107200706.htm Blog Acerto de Contas http://acertodecontas.blog.br/atualidades/mppe-lanca-campanha-pelo-combate-a-impunidade-no-estado/ Blog Amigos do Presidente http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com/2008/07/justia-cega-mas-l-em-braile.html Site Olhares – Fotografia Online http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://img.olhares.com/data/big/25/259674.jpg&imgrefurl=http://olhares.aeiou.pt/a_just ica_e_mesmo_cega/foto259674.html&usg=__eZm9qww9Ft2N47KsYXvTna_gmNQ=&h=500&w=377&sz=47&hl=pt- BR&start=21&um=1&tbnid=7RPOUP4dksROmM:&tbnh=130&tbnw=98&prev=/images%3Fq%3Da%2Bjusti%25C3%25A7a%2 B%25C3%25A9%2Bcega%26start%3D18%26ndsp%3D18%26um%3D1%26hl%3Dpt- BR%26rlz%3D1T4SUNA_enBR244BR247%26sa%3DN http://olhares.aeiou.pt/justica_cega/foto11898.html
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