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Universidade de Bras´ılia Departamento de Matema´tica Prof. Celius A. Magalha˜es Ca´lculo III Notas da Aula 14∗ Propriedades da Integral Ja´ foi feita uma revisa˜o da integral simples, e visto como essa integral pode ser usada para calcular as integrais duplas. Agora sera´ feita uma definic¸a˜o mais cuidadosa da integral dupla, e estudado algumas de suas propriedades, propriedades ilustradas com va´rios exemplos. Sera´ visto inclusive um exemplo curioso, de uma func¸a˜o que na˜o e´ integra´vel em seu domı´nio! Primeiras Definic¸o˜es A partir das motivac¸o˜es introduzidas anteriormente, o interesse agora e´ definir e estudar as propriedades da integral dupla de uma func¸a˜o f : D → R definida em um domı´nio retangular D = [a, b] × [c, d]. Para isso, o primeiro passo e´ definir as somas de Riemann correspondentes. b a c d Sejam enta˜o P1 = {a = x0 < x1 < · · · < xm−1 < xm = b} uma partic¸a˜o de [a, b] e P2 = {c = y0 < y1 < · · · < yn−1 < yn = d} uma partic¸a˜o de [c, d], e indique por ∆xi = xi − xi−1 e ∆yj = yj − yj−1 os comprimentos dos respectivos intervalos. As figuras abaixo ilustram algumas dessas partic¸o˜es. a b x0 x0x1 x1 x2x2 x3 c d y3 y3 y2 y2 y1 y1 y0 y0 A partic¸a˜o P = P1 × P2 do domı´nio D corresponde a fazer o produto cartesiano dos intervalos Rij = [xi−1, xi]× [yj−1, yj], obtendo retaˆngulos Rij de a´reas ∆xi ∆yj. Como ja´ foi visto, a norma ‖P1‖ da partic¸a˜o P1 e´ o maior dos comprimentos ∆xi, e analogamente para a partic¸a˜o P2. A partir da´ı, define-se a norma de P como sendo ‖P‖ = √ ‖P1‖2 + ‖P2‖2, de modo que ‖P‖ → 0 se, e somente se, ‖P1‖ → 0 e ‖P2‖ → 0. Escolhe-se agora pontos si ∈ [xi−1, xi] e tj ∈ [yj−1, yj] e forma-se a soma de Riemann SR(f,P) = n∑ j=1 m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ∆yj onde os termos f(si, tj)∆xi ∆yj representam o volume de um paralelep´ıpedo de altura f(si, tj) e a´rea da base ∆xi ∆yj. Veja a figura ao lado. Com essa notac¸a˜o pode-se finalmente definir a integral dupla de f sobre D como a seguir. ∗Texto digitado e diagramado por Deivid Vale a partir de suas anotac¸o˜es de sala Definic¸a˜o 1. A func¸a˜o f : D → R e´ integra´vel em D se existe o limite∫∫ D f(x, y) dxdy = lim ‖P‖→0 SR(f,P) que e´ dito a integral dupla de f sobre D Essa definic¸a˜o pode parecer estranha, pois toda func¸a˜o devia ser integra´vel. Mas o surpreendente e´ que existem func¸o˜es que na˜o sa˜o integra´veis, isto e´, func¸a˜o para as quais o limite acima na˜o existe! Isto sera´ visto em um exemplo logo a seguir. A partir da definic¸a˜o, o pro´ximo passo e´ estudar as propriedades da integral dupla. E´ claro que, como ambas as integrais, simples e duplas, sa˜o definidas por meio do limite das somas de Riemann, espera-se que as integrais duplas tenham as mesmas propriedades que as integrais simples. E´ esse de fato o caso, como pode ser visto com o teorema a seguir. Teorema 1. Suponha f, g : D → R func¸o˜es integra´veis e seja k ∈ R. Enta˜o f + g, kf e |f | sa˜o tambe´m integrais e, ale´m disso, 1) ∫∫ D [f(x, y) + g(x, y)]dxdy = ∫∫ D f(x, y)dxdy + ∫∫ D g(x, y)dxdy 2) ∫∫ D kf(x, y)dxdy = k ∫∫ D f(x, y)dxdy 3) ∫∫ D f(x, y)dxdy ≤ ∫∫ D g(x, y)dxdy se f(x, y) ≤ g(x, y) ∀(x, y) ∈ D 4) ∣∣∣∣∫∫ D f(x, y)dxdy ∣∣∣∣ ≤ ∫∫ D |f(x, y)|dxdy Demonstrac¸a˜o. Essas propriedades sa˜o quase todas imediatas, como indicado a seguir: 1) para cada termo da soma de Riemann de f + g tem-se que [f(si, tj) + g(si, tj)]∆xi∆yj = f(si, tj)∆xi∆yj + g(si, tj)∆xi∆yj de onde segue que SR(f + g,P) = SR(f,P) + SR(g,P). Em seguida, basta usar a propriedade de que o limite de uma soma e´ a soma dos limites; 2) essa propriedade segue de que SR(kf,P) = k SR(f,P) e das propriedades do limite; 3) se f(x, y) ≤ g(x, y), enta˜o SR(f,P) ≤ SR(g,P) para toda partic¸a˜o P, e essa desigualdade e´ mantida passando-se ao limite. 4) a demonstrac¸a˜o de que |f | e´ integra´vel e´ longa e na˜o sera´ feita aqui. Assumindo esse fato, da definic¸a˜o das somas de Riemann tem-se que |SR(f,P)| = ∣∣∣∣∣ n∑ j=1 m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ∆yj ∣∣∣∣∣ ≤ n∑ j=1 m∑ i=1 |f(si, tj)|∆xi ∆yj = SR(|f |,P) e basta novamente usar as propriedades do limite. � Como no caso das integrais simples, essas propriedades facilitam muito a manipulac¸a˜o com as integrais duplas, e e´ curioso notar que elas seguem quase que imediatamente da definic¸a˜o. No fundo, as propriedades sa˜o das pro´prias somas de Riemann. Ca´lculo III Notas da Aula 14 2/6 Integrais Iteradas As somas de Riemann sa˜o fundamentais para se definir a integral dupla, e da´ı obter as propriedades listadas acima. Sa˜o tambe´m fundamentais para se obter a relac¸a˜o da integral dupla com as integrais iteradas, que e´ a maneira efetiva de se calcular as integrais duplas. De fato, suponha que f seja integra´vel. Organizando as somas de Riemann de uma maneira especial obte´m-se que SR(f,P) = n∑ j=1 m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ∆yj = n∑ j=1 ( m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ) ∆yj ∆yj em que o nu´mero ( ∑m i=1 f(si, tj)∆xi)∆yj corresponde ao volume do so´lido ilustrado na figura acima. Ora! Para j fixo, ∑m i=1 f(si, tj)∆xi e´ uma soma de Riemann da func¸a˜o de uma varia´vel g(x) = f(x, tj), soma correspondente a` partic¸a˜o P1 = {a = x0 < x1 < · · · < xm−1 < xm = b}. ∆yj Passando ao limite com ‖P1‖ → 0 segue que lim ‖P1‖→0 ( m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ) ∆yj = (∫ b a f(x, tj) dx ) ∆yj = A(tj)∆yj onde foi usada a notac¸a˜o A(y) = ∫ b a f(x, y) dx para indicar a integral da func¸a˜o g(x) = f(x, y), integral que corresponde a` a´rea da sec¸a˜o transversal pelo ponto (a, y). A figura acima ilustra o so´lido de volume A(tj)∆yj . Somando esses volumes obte´m- se que ∑n j=1A(tj)∆yj e´ uma soma de Riemann da func¸a˜o A(y) correspondente a` partic¸a˜o P2 = {c = y0 < y1 < · · · < yn−1 < xn = d}. Finalmente, lembrando que a partic¸a˜o P = P1 ×P2 e´ tal que ‖P‖ → 0 se, e somente se, ‖P1‖ → 0 e ‖P2‖ → 0, obte´m-se que ∫∫ D f(x, y) dxdy = lim ‖P‖→0 SR(f,P) = lim ‖P2‖→0 n∑ j=1 ( lim ‖P1‖→0 m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ) ∆yj = lim ‖P2‖→0 n∑ j=1 A(tj)∆yj = ∫ d c A(y) dy = ∫ d c (∫ b a f(x, y) dx ) dy Esta e´ a relac¸a˜o entre as integrais duplas e as integrais iteradas. Integra-se primeiro em uma varia´vel e, em seguida, integra-se o resultado na outra varia´vel. E´ claro que as somas de Riemann podem tambe´m ser organizadas na forma SR(f,P) = n∑ j=1 m∑ i=1 f(si, tj)∆xi ∆yj = m∑ i=1 ( n∑ j=1 f(si, tj)∆yj ) ∆xi onde, para i fixo, ∑n j=1 f(si, tj)∆yj e´ uma soma de Riemann da func¸a˜o h(y) = f(si, y). Logo, repetindo o mesmo argumento, e´ claro que pode-se primeiro integrar na varia´vel y e, sem seguida, na varia´vel x. Esses argumentos justificam o Teorema 2. Suponha D = [a, b] × [c, d] e f : D → R uma func¸a˜o cont´ınua. Enta˜o f e´ integra´vel em D e, ale´m disso,∫∫ D f(x, y) dxdy = ∫ d c (∫ b a f(x, y) dx ) dy = ∫ b a (∫ d c f(x, y) dy ) dx Ca´lculo III Notas da Aula 14 3/6 Exemplo 1. Calcule a integral da func¸a˜o f(x, y) = 2− x− y no domı´nio D = [0, 1]× [0, 1]. Soluc¸a˜o. Como a integral corresponde ao volume abaixo do gra´fico da func¸a˜o, ilustrado ao lado, da figura percebe-se que a integral deve ser igual a 1. Isso porque, se retirar o que esta´ acima do plano z = 1 e colocar abaixo desse plano, obte´m-se um cubo de aresta 1. E, de fato, a integral∫ 1 0 f(x, y) dx = ∫ 1 0 (2− x− y)dx = ( 2x− x2 2 − yx )∣∣∣1 0 = 3 2 − y 1 1 1 2 calcula a a´rea da sec¸a˜o transversal pelo ponto (0, y). Por exemplo, da figura e´ claro que, para y = 0, a a´rea da sec¸a˜o transversal e´ 1 + 1/2 = 3/2 (a´rea de um quadrado de lado 1 mais a a´rea de um triaˆngulo retaˆngulo de catetos iguais a 1).Usando o teorema acima segue que a integral dupla da func¸a˜o f e´ igual a∫∫ D f(x, y) dxdy = ∫ 1 0 (∫ 1 0 f(x, y) dx ) dy = ∫ 1 0 ( 3 2 − y ) dy = ( 3 2 y − y2 2 ) ∣∣∣1 0 = 1 que e´ o resultado esperado. � Exemplo 2. Calcule a integral da func¸a˜o f(x, y) = x− y no domı´nio D = [0, 1]× [0, 1]. 1 1 1/2 Soluc¸a˜o. O exemplo e´ semelhante ao anterior. A diferenc¸a e´ que, agora, a func¸a˜o assume valores negativos, conforme ilustra a figura, e vale interpretar a integral nesse caso. A ideia e´ muito simples: nas somas de Riemann, o termo f(si, tj)∆xi∆yj corresponde ao volume de um paralelep´ıpedo nos casos em que f(si, tj) e´ positivo; ja´ nos casos em que f(si, tj) e´ negativo, o temos f(si, tj)∆xi∆yj corresponde a um volume com o sinal trocado! Como a soma considera todos esses termos, inclusive com o sinal, um valor pode cancelar com o outro. O resultado e´ enta˜o um “volume liquido”, isto e´, o volume que esta´ acima do plano z = 0 menos o volume que esta´ abaixo desse plano. A partir desta interpretac¸a˜o, e consultando a figura acima, percebe-se que a func¸a˜o e´ positiva na regia˜o em que x > y, e negativa na regia˜o em que y > x. De fato, f e´ anti- sime´trica em relac¸a˜o a` reta y = x, isto e´, f(y, x) = −f(x, y). Assim, espera-se que a integral seja zero, pois os volumes acima e abaixo do plano z = 0 sa˜o iguais. E, com efeito, a integral∫ 1 0 f(x, y) dx = ∫ 1 0 (x− y)dx = ( x2 2 − yx )∣∣∣1 0 = 1 2 − y calcula a “a´rea liquida” da sec¸a˜o transversal pelo ponto (0, y). Por exemplo, como ilustrado na figura, essa integral se anula para y = 1/2 uma vez que, nesse ponto, a a´rea acima do plano z = 0 e´ igual a` a´rea abaixo desse plano. Usando novamente o Teorema 2 segue-se que a integral dupla da func¸a˜o f e´ igual a∫∫ D f(x, y) dxdy = ∫ 1 0 (∫ 1 0 f(x, y) dx ) dy = ∫ 1 0 ( 1 2 − y ) dy = ( 1 2 y − y2 2 ) ∣∣∣1 0 = 0 que e´ o resultado esperado. � No Teorema 2 foi inclu´ıda a condic¸a˜o da func¸a˜o ser cont´ınua. Sem essa condic¸a˜o as coisas podem ficar bem complicadas, como ilustra o exemplo a seguir. Ca´lculo III Notas da Aula 14 4/6 Exemplo 3. Verifique se a func¸a˜o f : D → R e´ integra´vel, onde D = [0, 1]× [0, 1] e f(x, y) = 0 , se (x, y) = (0, 0) x− y (x+ y)3 , se (x, y) 6= (0, 0) Soluc¸a˜o. O domı´nio e´ o mesmo do exemplo anterior, e a func¸a˜o e´ tambe´m anti-sime´trica em relac¸a˜o a` reta y = x, uma vez que f(y, x) = −f(x, y). Assim, a expectativa e´ de que a integral seja zero. No entanto, ao contra´rio do exemplo anterior, agora a func¸a˜o na˜o e´ cont´ınua! Veja o gra´fico da func¸a˜o ilustrado ao lado. De la´ percebe-se que a func¸a˜o possui uma forte descontinuidade na origem. 1 1 Outra forma de verificar a descontinuidade e´ observar que f(x, 0) = 1/x2 → ∞ com x → 0, enquanto que f(0, y) = −1/y2 → −∞ com y → 0. Logo, pela regra dos dois caminhos, na˜o existe o limite lim(x,y)→(0,0) f(x, y), e a func¸a˜o na˜o e´ cont´ınua na origem. Apesar disso, as integrais iteradas podem ser calculadas, como indicado a seguir. Usando a substituic¸a˜o u = x+ y, tem-se que x− y = u− 2y, e portanto x− y (x+ y)3 = u− 2y u3 = u−2 − 2yu−3. Logo, como du = dx, tem-se que∫ 1 0 f(x, y) dx = ∫ 1+y y (u−2 − 2yu−3)du = (−u−1 + yu−2) ∣∣∣1+y y = −1 (1 + y)2 Integrando esse resultado na varia´vel y obte´m-se∫ 1 0 (∫ 1 0 f(x, y) dx ) dy = ∫ 1 0 −(1 + y)−2 dy = (1 + y)−1 ∣∣∣1 0 = − 1 2 (1) Bem, essa na˜o e´ uma boa not´ıcia, pois a expectativa era de que a integral fosse zero. Pior ainda, se for invertida a ordem de integrac¸a˜o, um argumento ana´logo ao anterior mostra que∫ 1 0 (∫ 1 0 f(x, y) dy ) dx = ∫ 1 0 (1 + x)−2 dx = −(1 + x)−1 ∣∣∣1 0 = 1 2 (2) A diferenc¸a entre as integrais iteradas em (1) e (2) enfatiza a suspeita de que a func¸a˜o na˜o deve ser integra´vel em seu domı´nio! Se fosse, essas integrais iteradas deveriam ser iguais. Para mostrar que, de fato, a func¸a˜o na˜o e´ integral deve-se verificar que na˜o existe o limite das somas de Riemann. Para isso, suponha que o intervalo [0, 1] ao longo do eixo Ox seja dividido em m partes iguais pelos pontos xi, e que se escolha si como sendo o ponto me´dio do intervalo [xi−1, xi]. Analogamente, suponha que o intervalo [0, 1] ao longo do eixo Oy seja dividido em n partes iguais pelos pontos yj e que se escolha tj como sendo o ponto me´dio do intervalo [yj−1, yj]. Com essa notac¸a˜o, e com o auxilio de um computador, as somas de Riemann SR(f,P) = n∑ j=1 m∑ i=1 f(si, yj)∆xi∆yj podem ser calculadas para va´rios valores de m e n. Por exemplo, fixado n = 10 e escolhendo- se sucessivamente m = 10, m = 20, m = 30 e m = 40, obte´m-se os resultados inclu´ıdos na tabela abaixo: Ca´lculo III Notas da Aula 14 5/6 m = 10 m = 20 m = 30 m = 40 n = 10 0, 00 −0, 27 −0, 38 −0, 42 Esses valores explicam o resultado da integral iterada em (1). Integrar primeiro na varia´vel x corresponde a escolher uma quantidade maior de pontos no eixo Ox do que no eixo Oy, e procedendo dessa forma as somas tendem ao valor em (1), que e´ de −0, 50. Invertendo a ordem, fixando por exemplo m = 10 e escolhendo-se sucessivamente n = 10, n = 20, n = 30 e n = 40, obte´m-se os resultados inclu´ıdos na tabela abaixo: n = 10 n = 20 n = 30 n = 40 m = 10 0, 00 0, 27 0, 38 0, 42 Esses u´ltimos valores explicam o resultado da integral iterada em (2). Integrar primeiro na varia´vel y corresponde a escolher uma quantidade maior de pontos no eixo Oy do que no eixo Ox, e procedendo dessa forma as somas tendem ao valor em (2), que e´ de 0, 50. Pode-se agora usar a “regra dos dois caminhos”: escolhendo-se partic¸o˜es com mais pontos no eixo Ox as somas de Riemann se aproximam de −0, 5; escolhendo-se partic¸o˜es com mais pontos no eixo Oy as somas de Riemann se aproximam de 0, 5. Como esses valores sa˜o distintos, na˜o existe o limite lim‖P‖→0 SR(f,P), isto e´, a func¸a˜o na˜o e´ integra´vel. � Ca´lculo III Notas da Aula 14 6/6
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