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RESENHA (PSICOLOGIA) (1)

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RESENHA: E O CÉREBRO CRIOU O HOMEM
DIALÉTICA NEURONAL: corpo-cérebro-história-sociedade
Francisco José Ramires[1]
E “Deus criou o homem”[2]. Substitua a palavra Deus por cérebro, na frase anterior, e temos o título do livro do neurocientista António Damásio, recém publicado no Brasil, em edição sob os cuidados da Companhia das Letras. No original em inglês, o título é bem distinto e veremos que isso tem importância para a análise da obra: “Self comes to mind: constructing the conscious brain”.
Trata-se de um livro muito ambicioso, o que é uma virtude no campo da ciência. Bem escrito, às vezes com tom literário, devido às metáforas estéticas empregadas na análise da “sinfonia” do sistema nervoso. Esse estilo é parte do esforço de solucionar a questão do método de escrita, ainda mais se levarmos em conta que ele foi redigido para ser lido por um público que vai além das fronteiras das pessoas diretamente ligadas às ciências. Fator corroborado pelas entrevistas concedidas a jornais de grande circulação (como a Folha de S. Paulo, aqui no Brasil).
A ousadia pode ser notada nas questões propostas pelo autor e nas dificuldades metodológicas delas decorrentes, particularmente os obstáculos de fundamentação empírica que uma pesquisa dessa monta exige (reconhecidos pelo autor, de modo que a obra também merece ser lida com respeito e atenção pela humildade acadêmica de Damásio, semelhante à que encontramos em A origem das espécies, de Darwin). Ao mesmo tempo, chamou nossa atenção certa dialética presente no tratamento do objeto de investigação e no diálogo com as ciências humanas. Diálogo que, às vezes, extrapola o âmbito da produção de conhecimento sobre o ser humano e adentra no terreno da práxis propriamente dita, como no momento em que Damásio defende uma justiça que recorra menos ao senso comum e mais ao saber científico, “para promover a elaboração de leis mais realistas e preparar as futuras gerações para o controle responsável de suas ações”[3]. Na senda aberta, ao menos, desde Francis Bacon, saber é poder.
A que se propôs o autor? Investigar as bases anatômica e fisiológica do surgimento evolucionário de um cérebro capaz de produzir consciência com sentido autobiográfico, no processo de desenvolvimento da vida em geral e dos seres humanos em particular. Nesse movimento, a “história” da mente é apresentada em três estágios (protosself, self central e self autobiográfico).
O destaque recai na conformação estrutural do sistema nervoso e nas diversas maneiras como suas partes constitutivas estão articuladas entre si; no mapeamento dos sinais eletroquímicos típicos das mais variadas emoções corporais; na explicação dos processos de monitoramento e formação de imagens realizados pelo cérebro (que mapeia incessantemente o corpo, a interação deste com o meio em que vive e a si mesmo, em funcionamento). Tudo isso sem esquecer a perspectiva evolucionária (“histórica”) que conforma o problema de pesquisa e a criação cultural humana, essa grande revolução que produziu uma inflexão no desenvolvimento evolutivo da vida, no dizer do autor[4]. Culturas que, por sua vez, retroagem, de modo a influenciar a continuidade da evolução da vida. Nas palavras de Damásio:
Os aspectos do self que nos permitem formular interpretações sobre nossa existência e sobre o mundo ainda estão evoluindo, certamente no nível cultural e, com grande probabilidade, também no biológico. Por exemplo, as camadas superiores do self ainda estão sendo modificadas pelos mais variados tipos de interações sociais e culturais e pela acumulação de conhecimento científico do próprio funcionamento da mente e do cérebro. Um século inteiro de cinema com certeza teve um impacto sobre o self do ser humano, e o mesmo se pode dizer do espetáculo das sociedades globalizadas transmitindo ao vivo pela mídia eletrônica hoje em dia. Quanto ao impacto da revolução digital, estamos apenas começando a avaliá-lo. Em poucas palavras, nossa visão direta da mente depende de uma parte dessa própria mente, um processo do self que não pode, como temos boas razões para supor, permitir uma apreciação abrangente e fidedigna do que está acontecendo[5].
A dialética neuronal aludida no título é definida por esse esforço de articulação entre transformações culturais e biológicas, fundamentada em dados empíricos, mas também modulada por certo tom intuitivo. Afinal de contas, o evolucionismo, pautado por um discurso interpretativo que une vestígios e eventos em uma lógica temporal inteligível (um código[6]), requer o distanciamento no tempo (medido em milhões de anos) e o próprio tempo, como pressuposto subjacente a essa visão de mundo. Logo, ao nos aproximarmos do presente, resta concluir, temporariamente, que a lógica de transformação da vida continua, o que explica a mudança de tom de Damásio ao passar do âmbito das ciências humanas (a certeza das alterações culturais) para o da biologia (a grande probabilidade[7] da ação da seleção natural[8]).
Não se trata de equívoco do autor, mas sim da feição esquiva do objeto escolhido: o surgimento da mente, associada a um self autobiográfico, situado em um terreno fronteiriço entre os escopos metodológicos, epistemológicos e ideológicos do saber, distinguindo e articulando ciências humanas e ciências da natureza. Tarefa nada fácil, porém excitante, e que faz pensar nos limites de nossa capacidade de saber em função da maneira como está configurado todo o campo científico nos dias de hoje e das informações de que dispomos, sobretudo aquelas que seriam as mais problemáticas, referentes ao passado. Quanto mais longínquo o escopo, mais problemático obter respostas minimamente consistentes.
Toda dialética que se preze pauta-se por um olhar da vida e do ser humano em processo. Essa sutileza aparece aqui e acolá, ao longo do texto de Damásio. Vale destacar o seguinte trecho: 
A construção de uma mente capaz de abranger o passado que já vivemos e o futuro que antevemos, com a vida de outros indivíduos adicionada a essa urdidura e, ainda por cima, dotada de capacidade de reflexão, é algo que lembra a execução de uma sinfonia de proporções mahlerianas. Mas a maravilha, a que aludi há pouco, é que a partitura e o maestro só se tornam realidade à medida que a vida acontece[9].
Cremos ser mérito do autor abrir mão de qualquer marco parecido com um “elo perdido” neuronal, genético e / ou cultural. Trata-se de uma dinâmica evolutiva, que também faz jus à dinâmica das ligações neuronais, que se rearticulam no decorrer da existência de qualquer um de nós. Afinal, a plasticidade cerebral acompanha o indivíduo no decorrer de toda sua vida[10].
Não obstante, chega um momento em que a dialética topa com uma parede e emperra. Ou seja, não é levada às últimas consequências. E o que seria isso? Trazer para o campo das ciências da natureza algumas discussões levadas a cabo na seara das humanidades. Se o autor tem a intenção de “conciliar o humanismo tradicional com a ciência moderna”, para que a dignidade humana seja mantida e reafirmada[11], então é preciso ir além e evitar o que parece ser uma grande narrativa fincada no biológico, fazendo deste a determinação última dos fenômenos histórico-sociais. Como se tudo na vida fosse redutível aos aspectos naturais[12].
Essa grande interpretação da vida e da história não chega a ser um ponto defendido com força, do começo ao fim, mas desponta em algumas passagens, como nos trechos abaixo apresentados:
A mente consciente dos humanos, munida com esses tipos complexos de self e apoiada por capacidades ainda maiores de memória, raciocínio e linguagem, engendra os instrumentos da cultura e abre caminho para novos modos de homeostase nas esferas da sociedade e da cultura. Em um salto extraordinário, a homeostase adquire uma extensão no espaço sociocultural. Os sistemas judiciais, as organizações econômicas e políticas, a arte, a medicina e a tecnologia são exemplos dos novos mecanismos de regulação[13].
Os valores que os humanos atribuem a objetos e atividades teriam, assim, alguma relação,
não importa o quanto ela seja indireta ou remota, com estas duas condições: primeiro, a manutenção geral do tecido vivo dentro da faixa homeostática apropriada ao seu contexto corrente; segundo, a regulação específica requerida para que esse processo funcione dentro do setor da faixa homeostática associado ao bem-estar, levando-se em conta o contexto corrente[14].
Na mesma direção dos problemas construídos e enfrentados pelas ciências humanas, precisamos levar em consideração outro traço distintivo do livro, relacionado ao arranjo textual construído pelo autor. Tal distinção tem a ver com a maneira como é sugerida, em suas linhas, uma inflexão histórica: se no século XIX era típico das ciências humanas (sociologia e antropologia, por exemplo) apropriar-se de conceitos oriundos do âmbito da biologia e rearticulá-los, semântica e praticamente, em meio ao processo de constituição e legitimação desses novos saberes a respeito do ser humano (pensamos aqui nas comparações feitas por Spencer entre o corpo humano e a sociedade; nos conceitos de função, usados por Durkheim, Malinowski e Radcliff-Brown e tantos outros; no conceito de metabolismo social empregado, atualmente, por Mészáros)[15], a obra de Damásio demonstra uma inversão, tendo em vista a frequência com que ele faz uso de termos típicos da administração e da comunicação para dar conta do funcionamento do cérebro.
A comunicação corpo-cérebro é de mão dupla, do corpo para o cérebro e vice-versa. No entanto, essas duas vias de comunicação não são simétricas. Os sinais do corpo ao cérebro, neurais e químicos, permitem ao cérebro criar e manter um documentário multimídia sobre o corpo e permitem ao corpo alertar o cérebro sobre mudanças importantes que estão ocorrendo em sua estrutura e em seu estado[16].
A economia de um organismo multicelular tem muitos setores, e as células dentro desses setores cooperam. Se isso lembra algo, faz pensar em sociedades humanas, é porque deve. As semelhanças são impressionantes[17].
Por muito tempo ao longo da evolução, os cérebros funcionaram com base em disposições, e alguns dos organismos assim equipados saíram-se perfeitamente bem em ambientes adequados. A rede dispositiva realizava muita coisa e foi se tornando cada vez mais complexa e abrangente em suas realizações. Mas quando surgiu a possibilidade do mapeamento, os organismos puderam ir além de respostas formularizadas e reagir com base nas informações mais ricas agora disponíveis em mapas. A qualidade da gestão melhorou. As respostas tornaram-se adequadas aos objetos e situações em vez de ser genéricas, e por fim também passaram a ser mais precisas. Posteriormente, as redes dispositivas não-produtoras de mapas juntariam forças com as redes mapeadoras, e com isso ganhariam ainda mais flexibilidade na gestão da vida[18].
O último excerto é digno de destaque. Afinal, não fossem as referências explícitas à “economia celular”, não seria nenhum absurdo dizer que essas palavras poderiam muito bem ter sido pronunciadas por um dos gurus da administração contemporânea, empenhados em caracterizar as novas exigências do mercado global e as qualidades que o novo trabalhador precisa adquirir para ter espaço nas corporações (e na vida econômica em geral), dentre elas, a flexibilidade, o domínio de múltiplas informações e a capacidade de gerenciá-las de forma rápida e precisa. Nesse tom, o discurso biológico funciona como espécie de legitimação, a posteriori, de estruturas e dinâmicas históricas relativamente recentes.
A preocupação procede na medida em que podemos (e devemos) discutir a forma como Damásio faz o discurso aderir ao objeto[19], a ponto de correr o risco de naturalizar realidades processuais e, portanto, históricas. Nesse caso, naturalização tomada no sentido literal e previsível, pois está ligada à formação do autor e à sua posição no espaço das ciências naturais. Contudo, o livro e seu objeto servem para pensarmos se não fica aberta aqui a possibilidade de rever aspectos epistemológicos e metodológicos para que seja possível o trabalho investigativo conjunto entre, digamos, neurociência, psicologia, sociologia, antropologia, enfim. Isso para tomar o ser humano como totalidade, o que talvez exija um movimento de superação dos limites erigidos por e / ou sobre a divisão do trabalho científico que hoje impera.
A leitura do livro de Damásio nos oferece a chance de apresentarmos o seguinte problema: sempre que o autor extravasa o âmbito específico por ele ocupado, na divisão do trabalho científico, o objeto se mostra escorregadio e a argumentação derrapa em problemas para os quais seu esquema teórico não funciona; não obstante, a obra é prenhe de questionamentos e dados que servem como parâmetros a ser incorporados pelas humanidades, imaginando uma possível combinação entre essas duas frentes do saber.
Primeiro: há de se ter em conta que o método dialético talvez deva incorporar a natureza biológica naquilo que ela tem de processual, “histórico”, como fator constitutivo do ser humano e, portanto, do qual não podemos prescindir sem, ao mesmo tempo, introduzir um “erro” no trabalho do saber e no saber como trabalho. Lendo A ideologia alemã, de Marx e Engels, esse aspecto parece ser claramente reconhecido, ainda que seus autores não tenham realizado os desdobramentos necessários. Eis o trecho ao qual nos referimos:
A primeira condição de toda a história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza. Não podemos, naturalmente, fazer aqui um estudo mais profundo da própria constituição física do homem, nem das condições naturais, que os homens encontraram já prontas, condições geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras. Toda a historiografia deve partir dessas bases naturais e de sua transformação pela ação dos homens, no curso da história[20].
Ao não incorporarmos certos dados produzidos no campo das ciências da natureza (particularmente da neurociência), temos de enfrentar o inconveniente de levar em conta a configuração natural dos seres humanos somente nos momentos excepcionais, quando eles são acometidos por doenças ou sofrem acidentes que inviabilizam, parcial ou totalmente, sua participação na vida social (ocupando posições, estabelecendo relacionamentos, partilhando ideias e valores, enfim,  re-criando a vida). Assim, tais fatos alteram suas posições nas sociedades e tornam imperiosas rearticulações quanto às possibilidades futuras, sendo estas articuladas às posições e disposições dos seres humanos sob determinadas condições históricas.
Na esteira do pensamento marxista, da fenomenologia (ao menos de alguns autores, como Merleau-Ponty e Sartre[21]) e da própria neurociência, o corpo deve ser levado em conta em sua concretude, para que a mente não fique restrita às abordagens metafísicas. Nesse aspecto, há confluência entre Damásio e Merleau-Ponty, guardadas as devidas proporções e enfoques. Para o autor do livro aqui estudado, o corpo é fundamental para o estudo da mente e das emoções, chegando ao limite de uma simbiose visceral entre ele e a mente: “O mapeamento que o cérebro faz do estado corporal e o efetivo estado do corpo nunca estão muito distantes. Sua fronteira é indistinta. Eles se tornam praticamente fundidos”[22]. Corpo-cérebro, corpo como “chão da mente”[23]. Decorre daí, ao menos em parte, a importância do tronco cerebral, como região privilegiada nessa interligação e, segundo o argumento de Damásio, a estrutura evolucionariamente mais antiga do sistema nervoso.
Em “O olho e o espírito”, Merleau-Ponty afirma:
(...) é o lugar do corpo a que a alma chama “seu”, é um lugar que ela habita. O corpo que a anima não é para ela um objeto entre os objetos, e ela não subtrai dele todo o resto do espaço a título de premissa implicada. A alma pensa segundo o corpo, e não segundo ela própria; e, no pacto natural que a une a ele, são estipulados também
o espaço, a distância exterior. Se, para tal grau de acomodação e de convergência do olho, a alma enxerga tal distância, o pensamento que tira da primeira a segunda relação é como um pensamento imemorial inscrito na nossa fábrica interna (...) O corpo é para a alma o seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente[24].
Um exemplo de como os conhecimentos auferidos pela neurociência permitem repensar concepções produzidas no campo das ciências humanas: a noção de estrutura, tão cara à etnologia. Como ferramenta analítica, particularmente na obra de Lévi-Strauss, esse conceito permitiu dar conta de aspectos invariantes e históricos decisivos (conscientes e inconscientes) para a elucidação da lógica do pensamento humano, para além das distâncias originadas pela diversidade cultural.
Em “A noção de estrutura em etnologia”, Lévi-Strauss constrói uma argumentação que contempla problemas importantes, se pensarmos numa possível integração produtiva e inovadora entre os campos das ciências da natureza e das humanidades. O autor afirma que faz parte de suas preocupações investigar as possíveis causas de crenças e usos culturais; apreender e analisar categorias inconscientes do pensamento, a partir do estudo dos fenômenos sociais e mentais. Lévi-Strauss, na confluência entre etnologia e ciências da comunicação, pensa que a cultura consiste “também – e talvez sobretudo – em regras aplicáveis a todas as espécies de ‘jogos de comunicação’, desenrolem-se estes no plano da natureza ou da cultura”. Ainda nesse âmbito das expectativas quanto a novas possibilidades de estudo, ele alimenta a esperança de equiparar os estudos das estruturas sociais ao mesmo plano de análise de outros tipos de estrutura (mental, linguística)[25].
Com base no que dissemos acima, precisamos expor dois aspectos:
1)        A lógica subjacente ao conceito de estrutura, que permitiu a Lévi-Strauss afirmar que “a verdade do homem reside no sistema de suas diferenças e de suas propriedades comuns”[26], foi estudada a partir de meticuloso e intenso trabalho etnográfico em sociedades muito diversas (espacial e culturalmente falando), mas evolucionariamente contemporâneas, em termos da escala com que trabalha a biologia;
2)        Um dos enfoques de Damásio tem seu lastro na ideia de que o cérebro contemporâneo é resultado de milhões de anos de transformações infinitesimais, em termos do surgimento de novas e cada vez mais complexas estruturas orgânicas, e também de novas conexões neurais (com destaque para o desenvolvimento do neurônio como célula qualitativamente distinta em relação às demais).
Confrontando os itens 1 e 2, na escala temporal com que o pensamento evolucionista trabalha, e tendo em vista as possibilidades de conexão mente-culturas-sociedades, não seria interessante mergulhar tais preocupações no processo dialético (que incluiria a evolução), de modo a fazer com que a noção de estrutura seja rearticulada para dar conta das novas informações sobre o funcionamento e desenvolvimento da mente humana?
Pensando agora no sentido contrário (ou seja, nas contribuições das ciências humanas que poderiam ser levadas em conta por biólogos, médicos, neurocientistas)[27], Damásio, como já dissemos, parece pisar em ovos ao extrapolar as fronteiras de seu campo de saber, a ponto de incorrer em impropriedades para cujos problemas seu esquema analítico não oferece respostas satisfatórias (nem mesmo como hipóteses). Exemplo desses escorregões[28] aparece logo na tradução do livro para o português, muito distinta do original em inglês. Não há como não pensar no humano como objeto do cérebro, incomodamente subsumido às suas determinações biológicas, espécie de metonímia em que a parte vale mais que o todo. Ideia que ecoa no subtítulo em inglês, excluído da edição em português: “construindo o cérebro consciente”. Ainda que o verbo, vindo no gerúndio, soe bem ajustado à ideia (dialética) de processo, que não se estagnou, visto que é um perpétuo vir a ser. Mas, afinal de contas, quem é consciente: o cérebro ou a pessoa?
Aqui, devemos recorrer mais uma vez a Merleau-Ponty, que chega a ser citado pelo próprio Damásio em seu livro. Dessa vez, queremos destacar um excerto do texto “Marxismo e Filosofia”:
No movimento da história, o homem, que se alienara em proveito de seus fetiches, esvaziando-se de sua substância própria, toma posse de si mesmo e do mundo. Entre os animais não há vida econômica, mercadoria, fetiche da mercadoria e revolta contra o fetichismo. Tais fenômenos são possíveis somente porque o homem não é uma coisa e nem mesmo um animal – tem o privilégio de relacionar-se com outra coisa diferente dele próprio, porque não “é” simplesmente, mas “existe”[29].
As palavras empregadas funcionam como espécie de termômetro do problema: a recusa em definir o ser humano numa das categorias em questão: coisa e animal. Não sendo nem um nem outro, o que é o humano? Não nos parece meramente uma dessas questões arbitrárias, para as quais as pessoas podem oferecer um sem-número de respostas, de acordo com suas intuições, gostos, ideologias etc. Na verdade, tal pergunta é recolocada como exigência de uma reconfiguração estrutural dos campos do saber, a fim de que seja possível interrogar o ser humano (inovando-o como tema de estudo e também como estudioso) a partir de novos métodos de obtenção e análise de informações.
Fica a sensação de que as questões aventadas por Damásio, à luz de suas pretensões interdisciplinares, talvez sejam mais promissoras com o olhar voltado para o futuro[30], ou seja, para a constituição de um vasto banco de dados obtidos pelos mais diversos recursos tecnológicos de mapeamento do cérebro em funcionamento, a fim de que o presente, com o tempo, seja transformado em passado, com uma diferença: passado prenhe de informações das quais não dispomos quando nos referimos às fases da evolução às quais o livro faz referência. Como bem disse Lévi-Strauss, a diversidade humana é bem maior do que aquilo que podemos chegar a conhecer, levando-se em conta as inúmeras sociedades já desaparecidas, sem deixar vestígio algum[31].
Ao mesmo tempo, para que o diálogo e o trabalho interdisciplinar de investigação não fique reduzido a mera conversa entre profissionais especializados em abordagens distintas, em simples jogo de deixar falar todas as vozes, como se faz em diversos programas televisivos, há de se conferir força analítica às ideias de processo e de articulações funcionais a fim de construir, conjuntamente, novos objetos e novas alternativas metodológicas, sem deixar de lado as naturezas distintas dos fenômenos históricos e naturais, que gozam de certa independência[32].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCK, Ned. What Was I Thinking? Disponível em: http://www.nytimes.com/2010/11/28/books/review/Block-t.html?pagewanted=all. Acesso em: 19, jan., 2012.
DAMÁSIO, António R. E o cérebro criou o homem. São Paulo, Cia. das Letras, 2011.
______ Em busca de Espinoza: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.
DARWIN, Charles. The origin of species by means of natural selection. New York, Barnes & Noble Classics, 2004.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2002.
LEHRER, Jonah. Self comes to mind. Disponível em: http://www.wired.com/wiredscience/2010/11/self-comes-to-mind. Acesso em: 19, jan., 2012.
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris, Pocket, 2006.
______ Antropologia estrutural. Vol. 1. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1993a.
______ Antropologia estrutural. Vol. 2. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1993b.
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. “Textos escolhidos”. In: Os Pensadores. Vol. XLI, São Paulo, Abril Cultural, 1975.
ROSE, Steven. Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain by Antonio Damasio – review. In: The Guardian. 12, fev., 2011. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/books/2011/feb/12/self-comes-mind-damasio-review.
Acesso em: 19, jan., 2012.
SARTRE, Jean Paul. “O existencialismo é um humanismo”; “A imaginação”; “Questão de método”. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.
[1] Francisco José Ramires é professor de sociologia na Universidade Paulista (UNIP), em São José dos Campos/SP.
[2] Gênesis, 1, 27.
[3] DAMÁSIO, 2011, p. 345.
[4] Ibid., p.54.
[5] Ibid., p. 26-27.
[6] “Les événements qui sont significatifs pour un code ne le restent pas pour un autre. Codés dans le système de la préhistoire , les épisodes les plus fameux de l’histoire moderne et contemporaine cessent d’être pertinents; sauf peut-être (et encore, nous n’en savons rien) certains aspects massifs de l’évolution démographique envisagée à l’échelle du globe, l’invention de la machine à vapeur, celle de l’électricité et celle de l’énergie nucléaire (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 310). Uma possível tradução: “Os eventos que são significativos para um código não o são para outro. Codificados segundo o sistema da pré-história, os episódios mais famosos da história moderna e contemporânea deixam ser pertinentes, salvo, talvez (e ainda não sabemos nada sobre isso), certos aspectos massivos da evolução demográfica vista em escala global: a invenção da máquina a vapor, a eletricidade e a energia nuclear”.
[7] Todos os grifos são nossos.
[8] Essa dificuldade já havia sido percebida e enfrentada por Darwin: “We see nothing of these slow changes in progress, until the hand of time has marked the long lapse of ages, and then so imperfect is our view into long past geological ages, that we only see that the forms of life are now different from what they formerly were” (Cf. DARWIN, 2004, p. 74-114). Em português: “Não vemos nenhuma dessas lentas mudanças em progresso, até que a mão do tempo assinale o longo lapso das eras, pois tão imperfeita é nossa visão das eras geológicas do passado, que vemos apenas que as formas de vida, agora, são muito distintas do que foram inicialmente”.
[9] DAMÁSIO, op. cit., p. 40.
[10] Ibid., p. 364. Sobre isso, um trecho de Merleau-Ponty merece destaque aqui: “Os animais domésticos, diz Marx, estão misturados com a vida humana, mas são apenas seus produtos e não participam dela. O homem, pelo contrário, produz modos de trabalho e de vida sempre novos. Portanto, não há uma explicação do homem a partir do animal e, muito menos, a partir da matéria. Não há origem do homem” (Cf. MERLEAU-PONTY, 1975, p. 265-266).
[11]DAMÁSIO, op. cit., p. 47.
[12] Essa crítica já veio à tona no jornal britânico The Guardian, em 12 de fevereiro de 2011: “This is why the weakest part of the book is the concluding chapters, where he extends his central principle of homeostasis to embrace human history, society and culture. But it is possible to be a non-reductionist materialist. The language of mind and consciousness relates to the language of brains and synapses as English does to Italian; one may translate into the other, though always with some loss of cultural resonance. But we do not have to assign primacy to either. Long may pluralism reign, and we conscious beings continue to employ our minds and brains to enhance our understanding of both” (ROSE, 2011). Em português: “Por isso a parte mais fraca do livro são os capítulos conclusivos, em que ele estende seu princípio geral de homeostase de modo a envolver história humana, sociedade e cultura. Mas é possível ser um materialista não-reducionista. A linguagem da mente e da consciência está ligada à linguagem do cérebro e às sinapses assim como o inglês ao italiano; pode-se fazer a tradução de um a outro, ainda que sempre com alguma perda de ressonância cultural. Mas não temos de destacar a primazia de um em relação ao outro. Há muito reina o pluralismo, e nós, seres conscientes, continuamos a empregar nossas mentes e cérebros para acentuar nossa compreensão de ambos”.
[13] DAMÁSIO, op. cit., p. 43.
[14] DAMÁSIO, op. cit., p. 69.
[15] Cf. FOUCAULT, 2002, p. 480.
[16] DAMÁSIO, op. cit., p. 124.
[17] Ibid., p. 52.
[18] Ibid., p. 171-172.
[19]  “Desde nosso nascimento, nosso meio faz penetrar em nós, através de mil processos conscientes e inconscientes, um sistema complexo de referências, consistindo em juízos de valor, motivações, centros de interesse, compreendendo aí a visão reflexiva que a educação nos impõe do devir histórico de nossa civilização, sem a qual esta pareceria impensável ou apareceria em contradição com as condutas reais” (cf. LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 345). Esse trecho ajuda a construir um consenso em torno da possibilidade de enriquecimento das pesquisas e da formação pessoal do pesquisador, caso este se abra à complexidade contida num problema que talvez nem na aparência seja simples: a articulação entre o “real” e suas representações. No caso em questão, queremos dizer que todo estudioso, seja lá de que área for, pode ganhar muito em qualidade se prestar mais atenção na circulação e nos usos feitos de determinados termos, na sociedade como um todo e nos corredores acadêmicos.
[20] Cf. MARX e ENGELS, 2007, p. 10. Em O pensamento selvagem, Lévi-Strauss afirma: On opposera sans dute ce continu analytique et abstrait à celui de la praxis telle que la vivent des individus concrets. Mais ce second continu apparaît dérivé comme l’autre, puisqu’il n’est que le mode d’appréhension consciente de processus psychologiques et physiologiques qui sont eux-mêmes discontinus. Nous ne contestons pas que la raison se développe et se transforme dans le champ pratique: la façon dont l’homme pense traduit ses rapport au monde et aux hommes. Mais, pour que la práxis puísse se vivre comme pensée, Il faut d’abord (dans um sens logique et non historique) que la pensée existe: c’est-à- dire que ses conditions initiales soient données, sous la forme d’une structure objective du psychisme et du cerveau à défaut de laquelle Il n’y arrait ni práxis, ni pensée (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 314). Em português: “Opor-se-á, sem dúvida, esse contínuo analítico e abstrato àquele da práxis tal como vivem os indivíduos concretos. Mas esse segundo contínuo parece derivado como o outro, pois é apenas o modo de apreensão de processos psicológicos e fisiológicos que são, eles mesmos, descontínuos. Não contestamos que a razão se desenvolve e se transforma no campo da prática: a forma como o homem pensa traduz suas relações com o mundo e com os homens. Mas, para que a práxis possa ser vivida como pensamento, é preciso, de início (num sentido lógico e não histórico), que o pensamento exista, isto é, que suas condições iniciais sejam dadas, sob a forma de uma estrutura objetiva do psiquismo e do cérebro, na ausência da qual não haveria nem práxis nem pensamento”.
[21] Na esteia do marxismo, Sartre reafirma o existencialismo em sua necessidade de levar em conta o homem concreto, “que se define simultaneamente pelas suas necessidades, pelas condições materiais de sua existência e pela natureza de seu trabalho, isto é, de sua luta contra as coisas e contra os homens” (SARTRE, 1978, p. 117).
[22] Cf. DAMÁSIO, op. cit., p. 129. Em entrevista para Jonah Lehrer, ele afirma o seguinte: That is where having an evolutionary perspective comes in handy. Why do we have a brain in the first place? Not to write books, articles, or plays; not to do science or play music. Brains develop because they are an expedient way of managing life in a body. And why do we, by now, have brains that make minds with selves — conscious minds? Because minds and selves increase the management power of brains; because they permit a better adaptation of a complex organism to complex environments. In other words, organisms equipped with brains, minds and self were selected by evolution because such organisms had better chances of survival, and, eventually, chances of survival with well-being  (LEHRER, 2010). Traduzindo:
[23] Cf. DAMÁSIO, 2004, p. 203.
[24] Cf. MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 289.
[25] Cf. LÉVI-STRAUSS, 1993a., p. 336; 342.
[26] Cf. LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 297.
[27] Pour qu’une théorie de l’information pût être elaborée,
il etait sans doute indispensable que l’on découvrît que l’univers de l’information était une partie, ou um aspect, du monde naturel. Mais la validité du passage de lois de la nature à celles de l’information une fois démontrée, elle implique la validité du passage inverse: celui qui, depuis des millénaires, permet aux hommes de s’approcher des lois des la nature par les voies de l’information (LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 320). Em português: “Para que uma teoria da informação pudesse ser elaborada, seria indispensável, sem dúvida, que se descobrisse que o universo da informação fosse uma parte, ou um aspecto, do mundo natural. Mas a validade da passagem das leis da natureza para aquelas da informação, uma vez demonstrada, implica a validade da passagem inversa: aquela que, após milênios, permite aos homens se aproximar das leis da natureza pelas leis da informação”.
[28] Ao menos em parte, as escorregadelas do autor têm a ver com o problema posto por Foucault em seu livro As palavras e as coisas. Discussão negligenciada por Damásio, o que não deveria ocorrer em função das possibilidades aventadas pelo autor. Do referido livro, achamos conveniente destacar o seguinte trecho: “(...) a busca das ligações intracorticais entre os diferentes centros de integração da linguagem (auditivos, visuais, motores) não é da alçada das ciências humanas; mas estas encontrarão seu espaço de desempenho, desde que se interrogue esse espaço de palavras, essa presença ou esse esquecimento de seu sentido, essa distância entre o que se quer dizer e a articulação em que essa intenção é investida, coisas de que o sujeito talvez não tenha consciência, mas que não teriam nenhum modo de ser assinalável se esse mesmo sujeito não tivesse representações (cf. FOUCAULT, op. cit., p. 486-487). Esse é um dos pontos que levamos em conta quando mencionamos as possíveis contribuições que a apreciação dos problemas de representação (irredutíveis ao substrato natural do ser humano) pode dar aos campos do saber que não os das humanidades.
[29] Cf. MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 264.
[30] Pensamos particularmente que há potencial em uma pesquisa pautada pela investigação de possíveis correlações entre doenças neurológicas (que acometem os indivíduos no decorrer da vida) e informações a respeito da trajetória de vida dos pacientes, suas posições na sociedade. Isso tudo com o objetivo de elucidar, com clareza, os condicionantes sociais que eventualmente estejam por traz dessas patologias (como um dos fatores explicativos), em uma sociedade em que as pressões ligadas à sobrevivência pesam, de forma intensa, sobre os indivíduos, repercutindo em seus corpos. Nesse sentido, médicos e neurocientistas, em conjunto com cientistas sociais, teriam a chance de acumular novos subsídios para a compreensão da saúde e da doença como fenômenos que, certamente, têm uma dimensão social que não pode ser negligenciada. Isso sem falar que tal possibilidade vai ao encontro de uma tendência da medicina de tentar recuperar a relação médico – paciente, contra a regra do distanciamento e de uma visão parcial sobre o doente e suas necessidades.
[31] Cf. LÉVI-STRAUSS, 1993b, p. 331.
[32] “A noção de evolução biológica corresponde a uma hipótese dotada de um dos mais altos coeficientes de probabilidade que se podem encontrar no domínio das ciências naturais; ao passo que a noção de evolução social ou cultural só traz, no máximo, um procedimento sedutor, mas perigosamente cômodo, de apresentação dos fatos” (Ibid., p. 336).

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