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Artigo publicado no Vol. II / 1994 da Revista Cadernos de Debate, uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da UNICAMP, páginas 12-40. Representações Sociais da Comida no Meio Urbano: algumas considerações para o estudo dos aspectos simbólicos da alimentação1 Rosa Wanda Diez Garcia2 Introdução Este trabalho pretende explorar a dimensão da comida no modo de vida urbano, tendo em vista as implicações que este modo de vida tem nos hábitos alimentares, nos valores relacionados à alimentação e nas representações simbólicas envolvidas, e conhecer como é comer no centro da cidade de São Paulo. Nesta exposição inicial estaremos propondo o uso do conceito de representações sociais para entendermos o convívio de aspectos simbólicos presentes nas práticas alimentares. Estas são as principais preocupações com as quais pretendemos nos ocupar. A alimentação está envolta nos mais diversos significados, desde o âmbito cultural até as experiências pessoais. Há momentos mais propícios para o doce, o salgado, a bebida, a fartura ou a restrição alimentar, que são impregnados de significados culturalmente determinados. Nas práticas alimentares, que vão dos procedimentos relacionados à preparação do alimento ao seu consumo propriamente dito, a subjetividade veiculada inclui a identidade cultural, a condição social, a religião, a memória familiar, a época, que perpassam por esta experiência diária. Na literatura, na religião, nas artes culinárias, no cinema, estão presentes histórias, exemplos do simbolismo alimentar. Em torno da mesa, são consagradas as confraternizações, são transmitidos valores culturais, são rememoradas nossas raízes, reforçadas as relações afetivas e de parentesco. De caráter abstrato, este simbolismo é constantemente ressuscitado pela experiência visceral e pelos orgãos dos sentidos, enquanto, no plano concreto, é reinterpretado a cada momento segundo as condições disponíveis constituindo-se 1 Estamos apresentando aqui a introdução, com algumas modificações adaptadas para esta publicação, da dissertação de mestrado: Representações sociais da comida no meio urbano: um estudo no centro da cidade de São Paulo, a qual foi defendida no Departamento de Psicologia Social da USP em março de 1994. 2 Departamento de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo. 1 em instância que veicula e reproduz também a realidade. A comida é "grande fonte de prazer, um mundo complexo de satisfação, tanto fisiológica quanto emocional, que guarda grande parte das lembranças de nossa infância". (ACKERMAN, 1992) Meio de prazer e de desejo, no primeiro caso atende ao corpo e, no segundo, à memória; através da alimentação mergulhamos nos recônditos da subjetividade como ilustra o episódio clássico da literatura, "o episódio das madalenas", do romance Em busca do tempo perdido - No caminho de Swann, de PROUST (1981). Esse episódio descreve como uma experiência do paladar pode ser encharcada pela memória. "Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei porque, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada da concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia, e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida". (pp. 45-46) Outro exemplo impregnado de simbolismo, relatado por ACKERMAN (1992), é o costume no Japão, bastante excêntrico mas sugestivo em seu conteúdo simbólico, de comer baiacu, um peixe com partes extremamente venenosas que é consumido sob forma de sashimis raros pois colocam em risco 2 a vida de seus comensais. Devem ser preparados por cozinheiros especializados que retiram o veneno, e conseguem deixar no prato resquícios desse veneno em quantidade apenas suficiente para que, ao sentirem os lábios adormecidos, sintoma da presença do veneno, seus degustadores entrem em contato com a possibilidade da morte (pp. 208-209). Ambígua, a palavra comer é revestida de duplo sentido, de satisfação de dois instintos: alimentação e sexo, estendendo assim o simbolismo a outras esferas (QUEIROZ, 1988). A comida da lembrança, do trabalho, da sobrevivência, são outros exemplos dos envolvimentos simbólicos da vida social. Através dela são experimentadas e expostas as condições sociais, conforme ilustra a citação de ZALUAR, que diz ser a comida "um dos principais veículos, através do qual os pobres urbanos pensam sua condição" (1985, p. 105). Na intersecção entre a natureza e a cultura, "o comer não satisfaz apenas as necessidades biológicas, mas preenche também funções simbólicas e sociais" ( WOORTMANN, 1978, p. 4). Com relação a essa intersecção entre a natureza e a cultura, traçaremos, no decorrer deste capítulo, algumas observações que permitirão reforçar e esclarecer o motivo pelo qual optamos pelo uso do conceito de representação social neste estudo, bem como apontaremos as possíveis limitações que iremos encontrar. Na definição de LÉVI-STRAUSS (1981, p. 41) "O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social". Sendo assim, responde ou essencialmente pela sua natureza, ou pela sua condição de ser social. No entanto, nessa sobreposição ou justaposição, a natureza e a cultura podem estar de tal forma interligadas que comprometem, na prática, a análise do princípio: onde acaba a natureza e onde começa a cultura. Apesar do fracasso em estabelecer o ponto de passagem entre os fatos da natureza e os fatos da cultura, LÉVI-STRAUSS (1981) indica elementos que permitem chegar aos mecanismos de articulação entre essas duas ordens. Em nosso objeto de estudo: a comida no centro urbano, consideramos como pressuposto encontrarmo-nos diante deste imbricamento, que acreditamos, poderá ser delineado através das representações sociais. O estudo da alimentação perpassa várias áreas de conhecimento que podem delineá-la sob vários aspectos. Os próprios motivos que despertaram nosso interesse para esta pesquisa foram as fronteiras da ciência da nutrição, onde o objeto de estudo, a nutrição humana, detêm-se essencialmente nos 3 aspectos biológicos da alimentação no organismo humano, suas necessidades de nutrientes, seus efeitos no corpo humano e a relação de certos padrões alimentares com doenças. Encontrar a alimentação mais adequada para permitir ao homem maior tempo de sobrevivência com a melhor qualidade possível de vida, isto é, a melhor alimentação para a espéciehumana, é o objetivo dessa área de conhecimento. Nesse enfoque, a natureza humana é a referência central, natureza essa idealizada num padrão normativo tido por ideal. Mas entre as necessidade biológicas e a alimentação há a intermediação do homem que, em condições disponíveis, exerce seu arbítrio na escolha alimentar. Por outro lado, outras áreas de conhecimento abordam a alimentação por prismas diferentes. Justificamos este trabalho por entendermos que a interdisciplinaridade poderá indicar-nos caminhos mais elucidativos para a compreensão do comportamento alimentar. Esta compreensão requer uma melhor análise da relação entre o homem e o alimento. MARX (1983) estabelece a relação entre o homem e a natureza através do trabalho, o qual é definido como: "...atividade deliberada... para adaptação das substâncias naturais aos desejos humanos; é a condição geral necessária para que se efetue um intercâmbio entre o homem e a natureza; é a condição permanente imposta pela natureza à vida humana e, por conseguinte...comum a todas as formas sociais" (p.149-150). Da mesma forma, é necessário buscarmos um melhor entendimento de como se dá a intermediação entre o homem e o alimento. ACKERMAN (1990) diferencia a respiração da alimentação pelo involuntarismo da primeira ação e o voluntarismo da segunda, "exigindo planejamento e energia que nos faz abandonar nosso torpor natural em busca da dieta" (p.163). Neste âmbito, onde a mescla das necessidades biológicas, culturais e sociais está contida, interessa-nos explorar as representações sociais relacionadas com o universo do comer e da comida, particularmente no centro da cidade de São Paulo. Esta temática faz parte do interesse maior que são os aspectos simbólicos relacionados com a alimentação. Em suma, na organização teórica do presente estudo considerou-se relevante os seguintes aspectos: - A interdisciplinaridade que o tema alimentação sugere. Neste sentido, foram levantados trabalhos de várias áreas onde encontramos referências ao tema em abordagens que julgamos pertinentes. Acreditamos que tais pesquisas 4 possam contribuir para elucidação e compreensão psicossocial do objeto de estudo em questão; - Como o nosso objetivo é explorar a dimensão da comida no meio urbano, este estudo foi desenvolvido no centro da cidade de São Paulo. Levamos em conta o modo de vida urbano propriamente dito, ou seja, características e aspectos da vida urbana que nos alertaram para algumas observações que interferem nas práticas alimentares, quer sejam: o ritmo da cidade, as relações com o tempo e o espaço, a associação tempo/espaço com lazer/trabalho, a diversidade incluindo tendências a homogeneidade e heterogeneidade que convivem nos centros urbanos; - A vinculação da alimentação com a saúde difundida em nossa sociedade e, os reflexos desta preocupação atual nos valores relacionados ao corpo e na busca de vida regrada, como tentativa de escapar às doenças tidas como ocidentais, repercutem na relação com a comida3. Esta vinculação faz com que o aspecto nutricional prepondere no âmbito da alimentação, substituindo pela regra um espaço que antes era ocupado pelo prazer. Nos interessa entender melhor, como esses novos valores vão permear o cotidiano e imprimir um novo modelo; - Buscamos o conceito de representação social como referência teórica para análise, por entendermos que ele considera o imbricamento entre natureza e cultura. Utilizamos MOSCOVICI (1978 e 1988), como o autor principal, já que é ele quem resgata o conceito de representação coletiva de DURKHEIM (1970) e constrói a teoria das representações sociais. Outros autores que utilizam este conceito também nos ajudaram a esboçar a fundamentação teórica do estudo pretendido. Interdisciplinaridade 3 HEALTHY ... (1988). 5 Principalmente para situar o estudo da alimentação no âmbito da interdisciplinaridade, defendendo este modelo como a possibilidade explicativa mais coerente para exploração deste objeto de estudo, a título ilustrativo, apresentamos em seguida alguns trabalhos que, direta ou indiretamente, referem- se à alimentação e que contribuem para elucidar a amplitude em que estão mergulhadas as práticas alimentares. ELIAS (1990), em sua obra sobre costumes, estuda as mudanças na estrutura do comportamento e da constituição psíquica, demonstrando o quão doloroso foi e é o processo "civilizador" e que, portanto, os costumes não são expressões puramente da natureza humana. Como ocorreu e quais as causas que motivaram o processo "civilizador" do Ocidente são as principais questões desse estudo. O autor aborda uma série de costumes, entre os quais as mudanças do comportamento à mesa, dos hábitos alimentares e das atitudes em relação às funções corporais, apontando para as modificações do sentimento e do comportamento que ocorreram lentamente após a Idade Média. A leitura dessa obra nos foi muito útil e recorreremos a ela no decorrer deste trabalho, principalmente na discussão dos rituais relacionados à alimentação e das práticas relacionadas ao consumo de carne. A partir da constatação de que a família contemporânea enfrenta hoje um impasse que a coloca numa posição fragilizada de incapacidade para resolver seus problemas, por ter perdido suas funções e valores estando à mercê de todos os tipos de terapias para reabilitação familiar, COSTA (1983) busca a origem dessa mudança de comportamento no movimento higienista. Iniciado no século XIX com a intenção de impor os preceitos sanitários da época, resultou na imposição da educação física, moral, intelectual e sexual. Hoje, sob o invólucro do "cientificismo", perpetuam-se valores e normas em nome da saúde física e mental, mascarando o caráter político e sócioeconômico imposto pela ação da norma educativo- terapêutica, através da normalização de condutas e sentimentos que despolitiza o cotidiano com preocupações que giram em torno do corpo, do sexo e do intimismo psicológico. É dentro dessa perspectiva que o estudo faz referências ao corpo, à doença, à alimentação, entre outras. Envoltas em preceitos higiênicos, nas prescrições alimentares feitas à família colonial, as concepções médicas sobre alimentação tinham a intenção de demonstrar a ignorância dos pais, de impor valores morais, garantindo também a penetração dos costumes europeus no Brasil. Essa imposição colocava os costumes europeus como superiores aos brasileiros. Muitos dos exemplos utilizados pelo autor, encontramos hoje, com um outro verniz de linguagem, mesclados no discurso 6 técnico e difundidos nas representações sociais sobre assuntos relacionados à saúde. Uma das citações utilizadas pelo autor diz ser a alimentação equilibrada capaz de tornar os homens mais "dóceis e saudáveis" (COSTA, 1983, p. 177). Hoje recorremos a outros adjetivos, mas a alimentação equilibrada é tida como requisito de salvação contra as principais doenças ocidentais, como garantia de longevidade e juventude. Guardadas as devidas proporções, aquele que não adere às práticas saudáveis é visto atualmente como um herege o era pela Inquisição. Sob o ângulo da Sociologia e da Antropologia, em seu estudo das transformações na organização social decorrentes dos ajustes aos meios de subsistência na passagem de uma economia de auto-suficiência para uma economia capitalista, numa comunidade de parceiros do interior paulista (Rio Bonito), CANDIDO (1987) detêm-se na alimentação para ilustrar o íntimo vínculo das relações do grupo com o meio. Da necessidade da alimentação emerge a organização social e cultural para obtenção dos recursos alimentares. Nesta direção, o autor combina a estatística para o estudo do nível de vida, o ponto de vista biológico, através da qualidade nutritivada dieta, para analisar a forma de exploração do meio, a economia e os aspectos sócio- culturais neste estudo sociológico que trata da alimentação. Estudos antropológicos sobre alimentação focalizam principalmente aspectos culturais: os hábitos, os tabus alimentares, a organização de sociedades em torno do ciclo de produção alimentar, entre outros. HARRIS (1978), antropólogo americano, estuda a lógica subjacente a estilos de vida aparentemente irracionais e inexplicáveis. Certos hábitos alimentares, aparentemente incompreensíveis, são explorados na procura de uma explicação científica que os justifique. Por que na Índia recusam-se a comer carne de vaca?, ou qual o motivo do tabu judaico contra a carne de porco, são, entre outros, alguns dos aspectos de estilo de vida abordados nesse estudo. Outra publicação mais recente do mesmo autor (1989) e mais específica sobre hábitos alimentares, pretende desmistificar as atuais concepções sobre o consumo de carnes. Aprofundar-nos-emos nos argumentos do autor na análise das representações sociais da carne encontradas nos resultados deste trabalho. Outros estudos antropológicos, com diferentes enfoques, abordam direta ou indiretamente a alimentação. Comendo como gente (VILAÇA, 1992), tese que trata das formas de canibalismo entre os Wari', descreve e analisa como essa sociedade traz, na experiência alimentar, esquemas conceituais fundamentais 7 à sua organização, consolidando nessa prática uma essência metafísica. As noções de wari' e karawa significam ao mesmo tempo predador e presa, humano e não humano, sujeito e objeto, em posições mutantes, ou seja, o karawa presa, alimento, pode ser um wari' quando passa a ser o predador. Wari' é o que come e karawa o que é comido. O ato da devoração é atravessado pela idéia essencial a essa prática: tornar-se gente. Através da devoração é construído o wari', isto é, come-se para tornar-se gente. Nessa sociedade ameríndia, a predação representa troca e luta, reversíveis e recíprocas, onde valores da humanidade e as relações sociais estão intrinsecamente associados. Para este nosso trabalho, recolhemos como exemplo a profundidade filosófica que atravessa os procedimentos relacionados à alimentação entre os Wari'. Não enfocando propriamente os costumes alimentares, mas através do estudo das modificações que se deram nas classes proletárias inglesas nos últimos quarenta anos, HOGGART (1973) chega a tratar também de aspectos dos hábitos alimentares ligados ao cotidiano, ao lazer, aos valores associados, às relações com a saúde e o corpo. No estudo feito entre lavradores urbanizados de uma sociedade rural de Mato Grosso, BRANDÃO (1981), dentro de uma perspectiva teórica de antropologia cognitiva, focaliza, entre outros aspectos, as condições concretas da relação do agricultor com a natureza e as relações sociais que permitem o acesso, o uso e a definição dos valores dos alimentos, constituindo assim os hábitos alimentares. Propondo uma interpretação histórica, evolucionista, RITCHIE (1988) situa a alimentação como protagonista da história social, percorrendo desde a revolução da caça até o século XX. A preocupação do autor é discutir como os investimentos da humanidade foram organizados também em função da obtenção da comida. Também com enfoque histórico, TOUSSAINT-SAMAT (1991) mostra como, desde os primórdios da civilização, para saciar a fome, desenvolveu-se o conhecimento, foram travadas guerras, criadas comunidades e, no decorrer do tempo, transformações ocorreram nos produtos comestíveis. Todas essas questões são tratadas pelo autor, associadas ao comportamento, aos mitos e símbolos que acompanharam essas transformações. DUARTE (1986) indica a história das mentalidades para estabelecer o cruzamento entre história econômica, história social e história dos sistemas culturais. Reconhece a importância da psicologia na explicação de comportamentos alimentares que a demografia e a economia não conseguem 8 esgotar. Por estar a alimentação ligada a valores, critérios de gosto, símbolos de distinção social, enfim, envolta num sistema complexo de significação, os hábitos alimentares adquirem relativa autonomia em relação aos fatores econômicos e constituem traços essenciais da identidade cultural. Do mesmo modo que as disposições culturais adotadas por uma sociedade são influenciadas pelo ambiente físico (clima, topografia, etc), a configuração do modo pelo qual as pessoas se alimentam no meio urbano conjuga os valores existentes com as condições objetivas encontradas. Alguns estudos sobre o impacto das mudanças sociais no padrão alimentar exemplificam como as condições objetivas impõem novos hábitos alimentares. A renda familiar, a migração rural-urbana, a terceirização e a publicidade são apontadas por TAGLE (1988) como fatores responsáveis pelas mudanças ocorridas na alimentação em estudos realizados na América Latina. FIDANZA e FIDANZA (1983) pesquisaram as alterações ocorridas no padrão alimentar italiano, que acompanharam a passagem de uma sociedade agrícola- familiar para a industrializada. As representações sociais Antes de delinearmos o conceito de representação social adotado como referencial teórico para este trabalho, vale introduzirmos alguns comentários sobre este conceito que trata, em termos amplos, da interpretação da realidade. GEERTZ (1973) situa a cultura como teias de significados e sua análise "não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significados" (p. 15). Buscando um sistema explicativo em sua base social, estaremos interpretando a realidade, construída culturalmente através de um sistema de símbolos peculiar aquela cultura. A realidade é constituída como tal pela significação que lhe é conferida ao ser interpretada. Através da linguagem, a interpretação é, portanto, o instrumento que constrói a realidade a partir da atividade simbólica. Familiar à antropologia e à psicanálise, embora seja também objeto de preocupação de outras áreas do conhecimento, a representação é a forma pela qual é concebido o real, intermediado pela operação de simbolização. Assim, o real existe pela constituição subjetiva e simbólica do sujeito, compartilhada histórica e coletivamente. 9 Ao estudarmos a alimentação na perspectiva simbólica, enfatizamos que além da sua natureza biológica, o corpo é também realidade simbólica, tal como concebe BIRMAN (1991)4 . No estudo das representações sociais ligadas à alimentação, para além da relação do homem com suas necessidades enquanto ser biológico, através das práticas alimentares é estabelecida relação com o universo psíquico e cultural. É preciso esclarecer que um mapeamento delineando esses espaços psíquicos e culturais ultrapassa os limites deste trabalho. Em nosso estudo que trata das representações sociais ligadas à alimentação no meio urbano, procuraremos apontar alguns indícios nesta direção. As questões até aqui apontadas fazem parte da preocupação com os envolvimentos simbólicos que circundam a alimentação e que pretendemos aprofundar na dissertação a partir do conceito de representação social. Por ser este um conceito em discussão, compartilhado, como já foi dito anteriormente, por diversas áreas de conhecimento e, portanto, com interpretações diferenciadas, acreditamos ser relevante explicitar as bases às quais estaremos recorrendo para sua utilização. Trataremos do assunto apoiando-nos principalmente em MOSCOVICI (1978 e 1988), que foi quem teorizou o conceito de representação social, e recorreremos também a outros autores que utilizam este conceito, principalmente JODELET (1988), HERZLICH (1972), KAÉS (1968) e BOURDIEU (1983). Como o objeto social é apreendido, interpretado e reconstituído: eis a questãosobre a qual se debruçam pesquisadores na intenção de desvendar melhor o problema. A partir do enunciado de DURKHEIM (1970) sobre "representações coletivas", MOSCOVICI (1978), apontando a insuficiência desse conceito para explicar a pluralidade dos modos de organização do pensamento, elabora, sob a ótica da psicologia social, o conceito de "representação social". Situado no ponto de intersecção entre o social e o psicológico, este conceito faz parte do universo de preocupação de várias ciências: psicologia social, antropologia, história, sociologia do conhecimento, filosofia, fugindo ao domínio de uma única disciplina, pois trata de uma forma de conhecimento social. 4 "...o corpo simbólico não é delineado apenas por características inerentes ao desenvolvimento neurofuncional da espécie humana, mas principalmente construídos pelas modalidades de relações sociais que instituem os sujeitos como individualidades e pelos códigos culturais que as comunidades sociais constituem como sujeito, na sua história." (p.21). 10 A representação social é a construção mental da realidade, que possibilita a compreensão e organização do mundo, bem como orienta o comportamento. Os elementos da realidade, os conceitos, as teorias e as práticas são submetidos a uma reconstituição a partir das informações colhidas e da bagagem histórica (social e pessoal) do sujeito, permitindo, dessa forma, que se tornem compreensíveis e úteis. Nesse processo, as representações sociais tornam um objeto significante, introduzindo-o num espaço comum, digerindo-o de forma a permitir sua compreensão e sua incorporação como recurso peculiar ao sujeito. O objeto, quer seja humano, social, material ou uma idéia, será apreendido através da comunicação, a partir de uma lente impregnada de valores e conceitos significantes já existentes; ou seja, ele é triado e integrado numa rede que traduz algo significante para o sujeito. A aproximação da realidade externa, de modo a torná-la próxima e perceptível, é uma facilidade proporcionada pelas representações, trazendo o mundo externo para um convívio próximo. Segundo MOSCOVICI, a representação "não é uma instância intermediária, mas sim um processo que torna o conceito e a percepção intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente." (1978, p. 57) Assim, um conceito, uma abstração passam a ter uma existência real para o sujeito através da apropriação destes pelas representações sociais. As representações sociais são uma forma de conhecimento do senso comum, elaborado e compartilhado socialmente. Na construção das representações sociais estão presentes o conteúdo (informações, imagens, opiniões, atitudes), o objeto (um trabalho, um acontecimento, uma pessoa) e o sujeito (o indivíduo, a família e o grupo social). O constante movimento pelo qual um objeto torna-se representação supõe a reprodução estilizada do conteúdo representado, através de uma "digestão" que possibilita a experiência sobre o objeto e sua reconstituição a partir da atividade simbólica do sujeito. Para MOSCOVICI (1978), "o sujeito e o objeto não são congenitamente distintos", há um movimento constante entre o sujeito e o objeto, promovendo uma interação onde ambos se modificam mutuamente. Quando recorremos ao conceito de representações sociais formulado por MOSCOVICI (1978), em seu estudo sobre representações sociais da psicanálise, prevíamos algumas dificuldades. Nesse estudo, o sujeito incorpora ao senso comum conceitos psicanalíticos com recursos significantes próprios e, na prática, tais conceitos, que foram constituídos enquanto representações sociais, são utilizados para 11 interpretar a realidade. No caso do presente estudo, as representações sociais da alimentação não são conformadas apenas pela informação científica, incorporada às práticas através da transformação em senso comum. Adensam tais representações também a propaganda de produtos alimentícios, as condições concretas disponíveis, os costumes alimentares, a origem cultural, os aspectos subjetivos veiculados através da alimentação e a experiência orgânica propriamente dita, que irão compor a teia de significantes impressa nas representações sociais sobre alimentação. Lembrando que a experiência física vivida através do paladar e os demais envolvimentos simbólicos incluídos nessa prática são um forte componente de tais representações. A dificuldade de percebermos as fronteiras entre o imaginário e a experiência física acarreta a oscilação, que observaremos no desenvolvimento deste trabalho, entre representações ligadas à construção mais simbólica e as representações dos hábitos alimentares. Na própria definição de ideologia alimentar feita por WOORTMANN (1978), encontramos uma estreita relação entre aspectos simbólicos e a experiência orgânica.5 A utilização das representações sociais para o estudo dos aspectos simbólicos ligados à alimentação partiu da própria caracterização do conceito: como uma idéia ou modelo abstrato passa a fazer parte da experiência direta, por ser a representação um modo de pensamento sempre ligado à ação. Podemos dizer que não existe nitidez nas fronteiras entre o simbólico e as práticas, mas um engendramento dialético de ambas construindo significantes que passam a fazer parte da gênese das práticas, bem como tais práticas orientam os significantes. É essencialmente através das práticas que pretendemos observar o convívio com os aspectos simbólicos. Talvez, comparando com o ponto de partida do estudo de MOSCOVICI (1978), que toma como objeto a psicanálise, abstrações que através das representações sociais tornam-se, utilizando as próprias palavras do autor, "entidades quase tangíveis" (MOSCOVICI, 1978, p. 41), podemos destacar que nosso ponto de partida são mais as práticas, não observadas, mais retratadas pelo discurso, onde é impossível discernir com clareza as representações sociais da comida no meio urbano, sem considerar o imbricamento da mesma com a experiência da população estudada. Acreditamos ser portanto este conjunto de substratos, formado por práticas construídas simbolicamente, a amálgama que 5 "...define-se por ideologias alimentares um sistema cognitivo simbólico que define qualidades e propriedades dos alimentos e dos que se alimentam, qualidades e propriedades estas que tornam um alimento indicado ou contra- indiciado em situações específicas, que definem seu valor como alimento, em função de um modelo pelo qual se conceptualiza a relação entre o alimento e o organismo que o consome e que define simbolicamente a posição social do indivíduo". (WOORTMANN, 1978, p. 4). 12 intermedia a relação do homem com a alimentação. Ora um, ora outro componente irá ter mais ou menos determinação sobre as representações sociais da comida, mas, indubitavelmente, a alimentação é uma prática organicamente experimentada e, nessa experiência orgânica, o convívio imbricado das questões culturais e psicológicas tem ressonâncias no comportamento alimentar que merecem ser aprofundadas. As características fundamentais das representações sociais são: - Sempre são a representação de um objeto, a partir da construção simbólica e com alguns recursos informativos; reproduzem criativamente com propriedades estilizadas, têm portanto caráter simbólico e significante. - Têm um caráter de imagem, isto é , recorrem à imagem para mediar entre o conceito e a percepção, tornando intercambiáveis a percepção e a idéia . - Têm um caráter construtivo, autônomo e criativo, pois reconstróem a partir da interpretação, com recursos individuais e/ou coletivos, recorrendo a um repertório disponível, através de várias combinações e deslocamentos que permitirão integraruma nova representação numa rede de significados. Se, por um lado, as representações sociais contribuem para orientação e formação de condutas e comunicações sociais, por outro, expressam a interpretação da realidade social. São, ao mesmo tempo, instrumento e produto dessa comunicação, ou seja, geram e simultaneamente são geradas. BOURDIEU (1983), ao definir habitus de classe, considera esse movimento dialético de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade, pois, para ele, o habitus é: "um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações..." (p. 61). As representações sociais garantem coesão, controle e a continuidade do grupo social. São utilizadas como meio de identificação do grupo, na medida em que, através delas, o grupo encontra-se "sinalizado", recorrendo às representações sociais para reconhecer e ser reconhecido. MOSCOVICI (1988) ressalta que a representação social não pode ser confundida com uma superestrutura ideológica que atravessa o sujeito, pois, neste caso, pressupõe-se um receptor passivo. KAÉS (1968), em seu estudo sobre imagens da cultura de operários franceses, afirma serem as representações operárias 13 resultantes das representações dominantes da cultura, das tradições operárias ou de outras classes sociais. As representações são produto ativo com influência da cultura dominante. O grupo, a classe social e a cultura permeiam indiscutivelmente as representações sociais: história pessoal e situação econômica e social são fundamentais enquanto contexto das mesmas. Partindo-se da premissa de que a bagagem que subsidia a construção da representação social leva em conta a classe social, o grupo, a cultura e os padrões cognitivos, estéticos e éticos, a representação, enquanto produto resultante de um processo criativo e autônomo, reproduz metaforicamente padrões onde estão contemplados as condições de classe social. Essa reprodução metafórica das condições de classe em instâncias da vida social foram levadas em conta por ARANTES (1985) na definição de cultura popular. Os modos como o social transforma um conhecimento em representação e como uma representação transforma o social, compreendem dois processos, o da objetivação e o da ancoragem. A objetivação é o processo que transforma abstrações em imagens, idéias em coisas palpáveis, ou seja, é um maneira de proximidade com o objeto em questão, materializando o que metaforicamente poderíamos designar como volátil. Nesse processo de objetivação, temos uma seleção e uma descontextualização que permitem deslocar as informações de sua origem trazendo-as para um repertório familiar. Essa passagem da informação para um contexto familiar é acompanhada por uma essência figurativa, que torna o abstrato concreto, tornando palpável uma estrutura conceitual, de modo a permitir que tal informação faça parte dos recursos disponíveis, tornando-se então uma representação, que é o senso comum. A familiarização dessa reconstituição de um conceito ou abstração é chamada de naturalização. A objetivação é, portanto, a seleção de informações e sua estilização para tornar-se instrumento próprio de categorização de pessoas, comportamentos, enfim da realidade externa. O segundo processo é o da ancoragem, que é o enraizamento da representação, isto é, a integração cognitiva do objeto representado dentro do sistema de pensamento pré-existente, onde há transformações na representação derivadas deste sistema, bem como modificações que ocorrem no sistema pré- existente pela representação social. É um processo de continuidade da objetivação e ao mesmo tempo ocorre simultaneamente a ela. Já está formada a 14 rede de significação que orienta a conduta e presta-se a organizar novas informações e, com essas representações, estabelecer relações sociais. Está constituído aqui um sistema de interpretações que permite ao sujeito transitar num universo externo, antes desconhecido, tendo-o agora para si, tornando assim os objetos "entidades quase tangíveis" (MOSCOVICI, 1978, p.41). A função da ancoragem é de integração da novidade num esquema significante, que permite interpretar a realidade e orientar as condutas e relações sociais. As representações sociais não são estanques. O tempo e o grupo social, entre outros, vão orientar as mudanças nas representações, incluindo nelas marcos anteriores de pensamento, classificação, explicação, etc. A classificação não é neutra, poderá ser positiva ou negativa, pressupondo inclusive uma sinalização compartilhada coletivamente. A causalidade é um outro aspecto importante da representação social. A causalidade pode ser por atribuição, quando há uma relação de causa e efeito. A causalidade por imputação ocorre quando um ato não concorda com a representação do observador. Este último busca a causa nas intenções que podem estar por trás dos atos, buscando uma ancoragem que defenderá sua representação (JODELET, 1988). O meio urbano Acreditamos que certas práticas são delineadas pela própria dinâmica da vida urbana, tal qual encontramos no centro da cidade de São Paulo. Ao pensar sobre representações sociais no meio urbano, levou-se em conta as noções de tempo/espaço e a diversidade contida nos centros urbanos. Muito embora não haja uma única diretriz teórica entre os diversos autores aqui citados, alguns concordam com o caráter urbano como categoria explicativa básica, e destes retiramos algumas noções expositivas sobre o modo de vida urbano e metropolitano. Outros entendem a dinâmica dos adensamentos urbanos como conseqüentes a uma ordem política, econômica e social e, através deles, apontamos para alguns indicativos causais das práticas sociais no meio urbano. Merece maior detalhamento a escolha deste recorte no centro da cidade de São Paulo, para representar o meio urbano metropolitano. Não basta justificá-lo pela localização: alguns quarteirões que ficam próximos à praça do 15 Patriarca. Num contexto mais amplo, a cidade constitui-se como um "conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si", "espaço fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, é a própria sociedade em uma de suas dimensões, materializada em formas espaciais." Sendo o centro da cidade "local de concentração de atividades comerciais, de serviços e de gestão" (CORRÊA,1989, pp. 7-10). Por tudo o quanto distingue a cidade de São Paulo, adotamos a seguinte definição: "Metrópoles são essas hipertrofiadas aglomerações urbanas. E serão metrópoles também em seu sentido etimológico -cidade mãe-, embora do caráter maternal retenham menos a ternura que a posse, pois é a partir delas que o mercado internacional é controlado, as ingerências política nos territórios articuladas, e o comércio de bens e valores determinado. A centralização, efetuada a partir das metrópoles, do processo de internacionalização da economia, da política e da cultura, fá-las cidades, por excelência, cosmopolitas" (AZEVEDO, 1993, p. 20) Caracterizamos o recorte do meio urbano através de imagens de cidades, recolhidas de alguns autores que ilustram e captam o espírito urbano, integrante de sua significação: "...a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição" (PARK, 1987, p.26) Há várias maneiras de se reconhecer o centro de um meio urbano, discernido pelo próprio tamanho da cidade, pelo contingente de pessoas que nele circulam, pelas fronteiras territoriais que delimitam onde é o centro da cidade, por suas características econômicas, sociais e culturais. Por tais características,seria diferente estudarmos o meio urbano de uma cidade como São Paulo e de qualquer outra cidade do interior do Estado de São Paulo ou ainda de outra capital do Brasil. FERRARA (1990) propõe o uso da imagem enquanto representação e linguagem para o estudo das cidades. Para a autora, as imagens traduzem valores, hábitos e costumes que fazem parte do cotidiano do homem. Buscamos imagens de cidades reproduzidas por diferentes autores e de diferentes 16 escolas, sem nos determos nelas, com o exclusivo interesse de retratar, através destas imagens, o que se define como meio urbano. A cidade, por suas imagens, é definida por FERRARA (1990, p.3) como uma "robusta realização humana, uma forma distinta de civilização", "um cenário cultural caracterizado pelo movimento, pelos adensamentos humanos, barulho, tráfego, verticalização das construções, vida fervilhante que assinalam um certo modo de vida e certo tipo de relações sociais." A imagem utilizada por RABAN (citado por HARVEY) é a de uma "enciclopédia" ou "empório de estilos", tornando-se a cidade um "livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhuma relação entre si, nenhum esquema determinante, racional ou econômico." (HARVEY, 1993, p.16) "O segredo de uma metrópole é que a soma de problemas é relativamente proporcional à soma de soluções". Assim, para LIMA (1990, p.41), as cidades não se deterioram pela falta de esgoto, de asfalto, de arborização. Deterioram-se quando deixam de responder ao desejo. Partindo da idéia de que toda nação tem uma cidade que representa o desejo nacional, São Paulo é, para o século XX, o que o Rio de Janeiro foi para o fim do século XIX e início do século XX. LÉVI-STRAUSS (1981, p. 92) em Tristes Trópicos, retrata a cidade de São Paulo e o que ele define como o "famoso Triângulo", "tão vaidoso quanto Chicago de seu Loop", a zona de comércio situada entre as ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, como "vias congestionadas de placas em que se espremia uma multidão de comerciantes e de empregados proclamando, nas suas roupas escuras, a fidelidade aos valores europeus ou norte- americanos, ao mesmo tempo em que seu orgulho dos 800 metros de altitude que os libertava dos langores do trópico." Outra descrição do espírito da cidade é apresentada por Edgar BRASIL citado por KRUCHIN (1989, p. 42): "Frenética seqüência de cenas num jorro de closes e sinais. Música. Ruídos. Buzinas. Arranha-céus. Arranha-céus. Arranha-céus. Pare. Siga. Placas. Multidão. Um acionar tenso de buzinas. Mãos. O braço estendido de César, o monumento. Triunfo e poder. Vapor. Multidão. Edifício. Edifícios. Edifícios. " 17 Entre o tilintar das caixas registradoras nos restaurantes, os camelôs que dividem o espaço de percurso do pedestre, o amontoado de gente circulando nos diversos sentidos e o agrupamento em torno de um sanfoneiro ou de um cortador de legumes fazendo demonstrações exóticas, buscamos concentração para observar o proposto por esta dissertação. Depois da terceira ou quarta vez freqüentando os mesmos locais, engana-se quem pensar ser mais um para engordar a multidão. Aos poucos, o jornaleiro é familiar, o garçom já o reconhece e o porteiro do Edifício Martinelli oferece-lhe um bom-dia. Antes das oito, o cenário da cidade está sendo armado e há familiaridade entre os integrantes do centro da cidade. Ao meio-dia, auge do burburinho, são todos menos íntimos e diluem-se os conhecidos entre desconhecidos. O concreto imóvel das edificações imponentes daquela região aparentemente acompanha o movimento, atenuando sua imobilidade. O panorama citadino ilustra o recorte deste trabalho e buscamos as categorias teóricas referentes ao meio urbano, entre os diversos autores que direta ou indiretamente tratam da cidade. Ao desenvolvermos o aspecto relativo ao meio urbano, recorreremos a alguns autores da Escola de Chicago, principalmente WIRTH (1987), não para tratar do tema utilizando como diretriz teórica a Ecologia Humana, mas essencialmente porque esses autores estudaram a cidade em si como um fenômeno capaz de gerar um modo de vida específico, o que permitirá recorrer a algumas de suas categorias sobre o modo de vida urbano. Em seu ensaio sobre A metrópole e a vida mental dentro desta mesma perspectiva de estudar o fenômeno urbano em si, SIMMEL (1987) definiu o modelo pelo qual o homem poderia responder psicológica e intelectualmente à diversidade e acúmulo de estímulos peculiares ao meio urbano como uma atitude blasé, que vem a ser a redução da sensibilidade pelo excesso de estímulo, levando a uma falsa individualidade que se apresenta no cultivo de sinais de moda ou de excentricidade. A gramática espacial e temporal apresentada por DaMATTA (1985) possibilitará reconhecer nas dimensões do comer e da comida a oposição dos espaços da casa e da rua. Recorremos a SIMMEL (1987) e DaMATTA (1985) para contrapor dois tempos: um como organizador externo da vida metropolitana e o outro como tempo subjetivo organizado pela significação interna. Ambos configurando os reflexos do ritmo da cidade no modo pelo qual as pessoas se relacionam com a comida. 18 HARVEY (1993), ao indicar as modificações sociológicas subjacentes à passagem da modernidade à pós-modernidade, recorre à experiência do espaço e do tempo enquanto categorias básicas da existência humana mas não como concepções naturalizadas. As práticas humanas modificam a qualidade objetiva e os significantes de tempo e espaço. Esse autor nos indica caminhos para pensarmos as práticas alimentares no meio urbano, pois, como expõe, no capitalismo as práticas e processos materiais de reprodução social encontram-se em permanente mudança, acompanhadas pelo significado de tempo e espaço. O avanço do conhecimento científico, administrativo, burocrático e racional, vital para o progresso da produção e do consumo capitalista, traz conseqüências materiais para a vida diária decorrentes das mudanças conceituais, incluindo as representações de tempo e espaço. Almoçar em casa é uma prática hoje impensável para quem vive e trabalha numa cidade das dimensões de São Paulo, ao contrário do que ocorria com as gerações passadas, quando tal prática era comumente restrita ao lar. Essa passagem da alimentação marcadamente concentrada no reduto familiar ao espaço público traz implicações na relação do sujeito com a alimentação. O curto período de tempo que as pessoas têm para comer transforma a pressa num dos traços visíveis da caracterização do modo de comer no centro urbano, com o abreviamento do ritual alimentar em suas diferentes fases, da preparação ao consumo. Nos fins de semana a alimentação representa ainda uma ligação mais próxima com o ritual alimentar de uma refeição do passado. A comemoração, a confraternização, a hospitalidade, a reunião familiar, o lazer e a visita dos amigos marcam as refeições dos fins de semana. HARVEY (1993) recomenda aprendermos com a teoria estética sobre o modo como diferentes formas de espacialização inibem ou facilitam os processos de mudança social e relacioná-lo com os modos pelos quais, segundo a teoria social, as mudanças político-econômicas contribuem para as práticas culturais. São exemplos de mudança das práticas, no caso da alimentação, a organização do espaço e o estilo imprimido por restaurantes e lanchonetes de grandes redes, normalmente franquias que importam a concepção de sua marca. Sutilmente montadas para o cliente tardar o menor tempo possível, essas lanchonetes são arrojadas na construção, na mobília e no lay out interno e externo, numa ambientação combinando em proximidade o nostálgico e o moderno, como é o caso da rede de lanchonetes Mc Donald's, que tem se dedicado a recuperar antigas mansões e tenta manter o estilo original apenas 19 atualizando-o.Não com a mesma eficiência, as réplicas de restaurantes e lanchonetes que tentam atualizar seu visual elegem apenas o que interpretam esteticamente como "moderno", caracterizado por azulejos, cadeiras e mesas de plástico e utensílios do mesmo material com preferência pelas cores berrantes. Além do serviço, tudo colabora para que o comer tarde o menor tempo possível: as cadeiras são desconfortáveis, as mesas ou balcões apertados, tudo feito na medida para o freguês comer rápido: exigência de quem come e vantagem para o proprietário. É característica de quem trabalha no centro da cidade dispor de um tempo certo para comer. Os próprios deslocamentos, do escritório ao restaurante, mesmo sendo percursos métricos pequenos, o enfrentamento de aglomerados de pessoas, de vitrines e camelôs, ocupam o percurso e o tempo. A tônica no tempo, para quem come na cidade, é emergente e os proprietários de restaurantes e lanchonetes têm como preocupação a rapidez do serviço, meta para a manutenção da clientela de todo estabelecimento comercial que queira sobreviver naquele local. Não é adequado restringir a definição de fast food apenas às grandes redes de lanchonetes, pois observamos que a variação de tempo nos serviços prestados por estes estabelecimentos é relativa. A dinâmica da cidade, seu ritmo e sua ordenação estão diretamente relacionados com o tempo. A pontualidade, a calculabilidade e a exatidão fazem parte da complexidade e extensão da vida metropolitana (SIMMEL , 1987). DaMATTA (1985) associa a unidade de tempo a alguma atividade social bem marcada. O tempo, bem como o espaço, ordena o conjunto de vivências provadas socialmente e lembradas como parte (ou parcela) do patrimônio cultural. Mesmo com um sistema homogêneo e hegemônico, ordenado por uma unidade oficial e universal, o tempo diferencia-se pela experiência a ele associada. O tempo do relógio, o tempo mecânico, externo põe ordem na vida urbana; o tempo percebido, sentido, que pode dar maior ou menor extensão a um acontecimento é estabelecido por uma ordem subjetiva. Provavelmente esses dois tempos acompanham os diferentes ritmos da comida dos dias da semana e dos finais de semana. Citado por DaMATTA (1985), o trabalho de HOLANDA aborda a predominância de um tempo sobre o outro. Esses dois tempos, o interno e o externo, são experimentados diversamente durante a semana e nos fins de semana, sendo o tempo externo, essencialmente regulador dos dias de trabalho. 20 A comida do dia-a-dia e a comida do lazer, dos finais de semana, transcorrem em espaços distintos e marcam diferenças simbólicas importantes. Como afirma ZALUAR (1985) em sua pesquisa realizada entre os moradores do conjunto habitacional Cidade de Deus, na cidade do Rio de Janeiro, "a comida 'variada' passa a marcar, assim, o tempo de lazer, o tempo do 'não trabalho' que é para eles o domingo . E esse também é o dia da reunião de família, quando todos comem juntos e o pai deveria estar presente" (p.110). A comida da rua nunca poderá substituir a comida de casa e os envolvimentos que nela transcorrem. Na "gramática dos espaços", apresentada por DaMATTA (1985), traduzem-se as implicações que os diversos espaços têm na forma de pensar e de comportar-se das pessoas. Aos diversos espaços pertencem esferas de significação que delineiam uma visão de mundo e éticas particulares que constituem a própria realidade e que, portanto, normalizam e moralizam o comportamento a partir de perspectiva própria. O espaço se confunde com a própria ordem social, de modo que, sem entender a sociedade com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como o espaço é concebido. A sociedade tem seus espaços organizados com valores e códigos que permitem o discernimento entre a rua e a casa, enquanto espaços ocupados e vividos de maneiras distintas, de modo que atitudes, papéis sociais, comportamentos e gestos são adequados a esses espaços. Dessa forma, um mesmo evento pode ser interpretado através do código da casa e da família, pelo código da rua e pelo código do "outro mundo", que pertence "à renúncia ritualizada deste mundo", utilizando as palavras do autor. Ou seja, neste "outro mundo", cabem os sofrimentos, as ilusões, as contradições, falsidades e injustiças. De algum modo o "outro mundo" sintetiza os outros dois mundos. Esses códigos são diferenciados, mas nenhum deles é exclusivo ou hegemônico, embora, na prática, um impere sobre o outro, de acordo com o segmento ou categoria social a que pertence a pessoa. A hegemonia de um código sobre o outro está atrelada à espacialidade, na medida em que esta contém um ponto de vista ligado à sua rede de significação. A casa/rua é apontada pelo autor como oposição, tanto quanto como complementação. A rua pode ser um prolongamento da casa, quando, por exemplo, as cadeiras são colocadas na calçada no fim da tarde, reunindo vizinhos como numa sala de estar. A casa também pode ter seus espaços fazendo ponte com o exterior, como é o caso de janelas, varandas, etc., que põem a casa em contato próximo com a rua. Este sentido de complementação entre casa e rua é mais característico na vida dos bairros e nas cidades do interior. No centro 21 urbano, tal como se apresenta no centro de São Paulo, a oposição entre a casa e a rua é marcadamente mais nítida. Na casa cabem as relações harmoniosas, a familiaridade e a hospitalidade. A rua é o local da individualização, da luta, onde convivem as contradições. No espaço público está o perigo, o negativo, o autoritário, onde a regra é a lei a que todos estão subordinados. A aproximação física dos homens nos centros urbanos traduz mais o isolamento social do que propriamente maiores e melhores condições para trocas (CHOMBART DE LOUWE, 1987). Nos espaços destinados à alimentação, os aglomerados expressam mais um somatório de pessoas isoladas. Por exemplo, a alimentação tem seu caráter de intimidade garantido quando as refeições são feitas em casa. Já no período de trabalho, considerando que quem trabalha no centro alimenta-se na rua ou no próprio local de trabalho, essa intimidade deve ter outros meios para ser resguardada. É grande o número de estabelecimentos comerciais que possuem balcões para as refeições e, mesmo naqueles em que há as duas opções, ou seja, mesas e balcões, os espaços destinados às mesas é menor. Em conversas com pessoas que trabalham há muitos anos em restaurantes no centro da cidade, foram comentadas as mudanças ocorridas nesse sentido. Muitos restaurantes reduziram o espaço das mesas e aumentaram os serviços em balcões. Podemos supor que essa organização espacial dos restaurantes comporta mais sujeitos isolados do que grupos. Provavelmente nas mesas gasta-se mais tempo para comer. Nesse sentido, a relação entre comida de casa e comida da rua certamente traduzirá contrastes. Para WIRTH (1987), o modo de vida urbano comporta a heterogeneidade, decorrente do convívio das várias raças, povos e culturas num mesmo espaço, e a homogeneidade, enquanto "tendência niveladora", necessária para proporcionar facilidades, considerando primordialmente a necessidade média das pessoas. Podemos observar a tendência a homogeneidade na expansão de cadeias de restaurantes e lanchonetes, tais como Mc Donald's, Grupo Sérgio, Pizza Hut, Almanara, Galeto's, etc. Se, por um lado, observamos aqui a homogeneidade, por outro lado a heterogeneidade é apresentada pelas diferentes culinárias que essas redes apresentam: comida árabe, americana, italiana. Conseqüente à expansão capitalista, a multiplicação desse tipo de comércio nos últimos anos, estabeleceu mudanças importantes nos hábitos alimentares e nos padrões de consumo (TAGLE, 1988). A diversidade cultural pode ser notada pelo tipo de padronização de cardápios, comum nos restaurantes do centro da cidade,que funciona como uma 22 convenção social. Em observação realizada no centro da cidade de São Paulo, encontramos, de um lado, as várias opções de cardápio, que não fogem a um padrão denominado "cabeçário", que é o nome dado ao principal prato do dia. Todos os restaurantes que servem essa modalidade seguem esse padrão, que exemplificamos com o cardápio do Bar e Restaurante Guanabara, situado na rua São Bento: 2a. feira - Virado à Paulista 3a. feira - Dobradinha 4a. feira - Feijoada 5a. feira - Nhoque 6a. feira - Bacalhau Sábado - Feijoada As possíveis variações do "cabeçário" limitam-se, por exemplo, ao tipo de massa ou a outra preparação à base de peixe, mas nunca alterando essa ordem nos dias da semana. Desta maneira, é possível escolher entre o previsível e o imprevisível. Este último consiste em pratos opcionais, formados por várias outras preparações, que variam segundo o restaurante, o cozinheiro, etc. Assim, temos a homogeneidade de um cardápio padrão espalhado pela cidade e, em termos mais amplos, um padrão alimentar mais ou menos constante e a heterogeneidade explicitada nos cardápios especializados para as diversas culinárias: brasileira, indígena, italiana, portuguesa, etc. O mesmo encontramos nas variações de sanduíches. Praticamente todos os lugares servem os sanduíches, que aqui denominaremos de "convencionais", que são: o hambúrguer e suas variações, o misto quente, cachorro-quente, bauru, entre outros. No entanto, alguns locais servem sanduíches à base de frios, que permitem ao freguês escolher um sanduíche existente no cardápio ou criá-lo na hora, fazendo mistura de frios com outros acompanhamentos. Essa opção de sanduíche é mais cara, sendo seu preço médio equivalente ao de uma refeição completa. Ilustrando a receptividade da cidade de São Paulo ao peregrino, LIMA (1990) apresenta, entre outros exemplos, como as culturas japonesa e italiana marcaram sua presença, sendo incorporadas no dia-a-dia do paulistano através da culinária. Assim, "o sushi se transformou no kibe das elites", como exemplifica o autor. Também é fartamente observável o apetite pela macarronada de domingo. 23 As modalidades das preparações culinárias registram em parte a história da colonização e as diferentes influências culturais. WEFFORT (1984), em seu artigo sobre a construção de uma cultura nacional e popular a partir do estudo dos nordestinos em São Paulo, refere-se à permanência de hábitos, e particularmente os alimentares, como marca visível da presença cultural do nordestino na cidade, tal como os italianos deixaram suas marcas em outra época. À medida que a construção de características nacionais se faz no plano social e cultural, pelo processo migratório do nordestino para São Paulo, no plano econômico ocorre a tendência à desnacionalização. Como símbolo dessa configuração econômica, o autor aponta a Avenida Paulista como representante, no passado, das oligarquias locais e, hoje, das multinacionais. Literalmente, no concreto vemos representado nesse exemplo o poder econômico. Arriscamos extrapolar para o plano alimentar essas contradições: a própria internacionalização do capital reflete a tendência de um plano alimentar desnacionalizado, que vemos nos lanches e em refeições do tipo fast-food de uma maneira geral, e convive no dia-a-dia com preparações mais tradicionais, típicas da nossa alimentação. Essa imposição de um modelo alimentar internacionalizado, que vem sendo introduzido no Brasil pelas grandes redes principalmente de lanchonetes, é acompanhada por medidas de grande impacto devido ao marketing associado a esses produtos. Como afirma LIMA (1990, p.41) "tudo o que se canoniza na metrópole torna-se moda e modelo" e, assim, sentimos os efeitos dessa outra forma sutil de colonização, a dos costumes. A atuação dos meios de comunicação de massa, justifica, segundo TAGLE (1988) a redução da influência dos hábitos alimentares familiares em crianças e adolescentes. Calcula-se que durante o período que vai da idade de 6 a 18 anos, eles assistam aproximadamente 20.000 horas entre TV, cinema, discos e rádio. Surpreendeu-nos encontrar nesta localidade do centro da cidade de São Paulo, conhecida pela diversidade gastronômica, um padrão alimentar de certa forma limitado, que vai dos já comentados pratos do dia e opcionais, do serviço à la carte aos sanduíches e salgadinhos. A variedade culinária parece estar organizada de modo a comportar, por um lado, uma certa homogeneização do paladar, associada principalmente à comida do dia a dia e, por outro, a diversidade gastronômica influenciada pelas diferentes colônias de imigrantes. PARK (1987), ao referir-se à organização física da cidade, apresenta áreas ocupadas por diferentes colônias de imigrantes e por segregação racial. 24 A disposição geográfica dos restaurantes desta cidade é caracterizada pela existência de restaurantes típicos situados geralmente em bairros, segundo a predominância de nacionalidades de imigrantes que se fixaram no local. Estes restaurantes estão mais voltados para o lazer. Os restaurante que servem a chamada "cozinha internacional", situam-se no centro e espalhados pela cidade para atender a população que utiliza restaurantes nos dias de trabalho. Mas, apesar das variações do cardápio, a primeira seleção é estabelecida pelo que se pode gastar, ou seja, o leque de opções fica ainda mais restrito, pois a maioria da população esbarra nos limites financeiros. "Aquela vontade" terá que adequar-se às condições objetivas. "Fome psíquica" é o termo usado por CANDIDO (1987), em seu estudo entre os caipiras paulistas, para designar o constante desejo frustrado dos alimentos mais prezados: a carne, o pão , o leite, escassos naquele meio. Ao estudarmos as representações sociais da alimentação estaremos abordando também o que as pessoas comem no centro da cidade de São Paulo. Mais precisamente, interessa-nos conhecer qual o padrão alimentar idealizado em suas representações e quais os recursos explicativos utilizados para defini-lo. Investigar quais são essas representações e como vem sendo, de fato, a alimentação do comensal que trabalha no centro da cidade de São Paulo, permitirá esclarecer o padrão alimentar eleito dentro de um leque de opções por um lado restrito a uma faixa de possibilidade financeira e, por outro, envolto em valores simbólicos. Os apelos do consumo despertam desejos que deverão ser driblados e substituídos por aqueles pratos que ficam ao alcance do salário ou atendidos por réplicas baratas de preparações desejadas, que eventualmente podem ser de qualidade questionável. Em pesquisa realizada entre estudantes universitários americanos sobre crenças a respeito dos fast-food restaurants, foram enfatizados como vantagens, o aspecto econômico e o tempo (AXELSON, 1983). Quando nos referimos a mudanças nos hábitos alimentares é difícil não referir a estreita relação entre a adesão aos lanches e as vantagens econômicas que representam. A cidade comporta uma complexidade de ritmos, valores e práticas refletidos em todas as modalidades e instâncias da vida metropolitana. A tradução dessa diversidade no modo de comer e na comida é um tema vasto para compreendermos melhor o modo de vida citadino. 25 Por outro lado, as categorias expostas de análise do meio urbano contribuíram para explorarmos as representações sociais da comida. Tais categorias, destacadas por seus autores, nortearam a análise e discussão das representações sociais das práticas alimentares urbanas encontradas que oscila entre representações de hábitos e representação simbólica. Retomaremos essas abordagens ao examinarmos o conteúdo das entrevistas nas quais, de forma difusa ou referindo-se especificamente à cidade, a populaçãoestudada traz representações sociais do meio urbano propriamente dito e da alimentação nesse espaço. A continuidade deste trabalho encontra-se em três outros capítulos (Repercussões do meio urbano na alimentação, O padrão alimentar e A alimentação sob a égide da saúde) e consiste na análise das entrevistas de funcionários da Secretaria da Habitação do Município de São Paulo, que trabalham e fazem alguma refeição no centro da cidade. A proposta de apresentarmos este capítulo introdutório é discutirmos esta outra possibilidade de análise da alimentação, considerando seus aspectos simbólicos que agregam a dimensão cultural e afetiva . Referências Bibliográficas6 ACKERMAN, Diane. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992, p. 161-212. ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 78. AXELSON, Marta L., BRINBERG, David, DURAND, Judith H. Eating at a fast-food restaurant: a social psychological analysis. Journal of Nutrition Education, v.15, p. 94-98, 1983. AZEVEDO, Ricardo Marques de. Metrópole e abstração. 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