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CÁRIE DENTÁRIA: ASPECTOS MICROBIOLÓGICOS E IMUNOLÓGICOS A cárie dentária pode ser definida como uma perda localizada dos tecidos calcificados dos dentes, decorrentes da fermentação de carboidratos da dieta por micro- organismos do biofilme dentário. As lesões de cárie caracterizam-se pela destruição localizada de tecidos dentários mineralizados. Para que a cárie ocorra é necessária a presença dos fatores predisponentes, interagindo em condições críticas, por determinado período de tempo: o hospedeiro com dentes suscetíveis, colonizados por micro-organismos cariogênicos e dieta rica em carboidratos. A cárie não é produzida por todos os componentes da microbiota residente, mas micro-organismos específicos são necessários para que ocorra cárie. Desta forma, apenas a presença de biofilme dentário (placa bacteriana inespecífica) não é suficiente para provocar lesões de cárie, sendo, portanto, necessária a presença de biofilme específico, contendo micro-organismos virulentos (cariogênicos) para que ocorra a doença. DEFINIÇÕES IMPORTANTES ATIVIDADE DA CÁRIE É a velocidade com que a dentição é destruída pela cárie. PREVALÊNCIA DE CÁRIE Representa o número total de dentes ou superfícies cariadas em uma população, independente de terem ou não recebido tratamento. Prevalência corresponde ao número de lesões de cárie encontrada no momento do exame. INCIDÊNCIA DE CÁRIE Representa o aumento no número de lesões de cárie em um indivíduo ou população, em um determinado período de tempo. RISCO REAL DE CÁRIE Descreve até que ponto um indivíduo, em determinada época, corre o risco de desenvolver lesões de cárie. Em geral, é considerado alto ou baixo. A avaliação está baseada na anamnese, exame clínico (estado atual dos dentes), testes microbiológicos e bioquímicos da saliva. PREVALÊNCIA DA CÁRIE A prevalência e gravidade das lesões de cárie, segundo relatos arqueológicos no homem pré-histórico, eram insignificantes em relação ao que se observa na atualidade. ESTUDO EXPERIMENTAL INICIAL SOBRE A CÁRIE - EXPERIMENTOS SOBRE A CÁRIE A obtenção de animais assépticos ou germ-free possibilitou grande impulso no estudo da etiologia da cárie. Esses animais são nascidos por procedimentos assépticos (cesariana) e mantidos em condições especiais de isolamento do meio ambiente que os mantêm isentos de micro-organismos. Os resultados dos estudos experimentais com roedores (ratos, hamsters e camundongos) e primatas convencionais podem ser resumidos da seguinte maneira: a) a microbiota residente dos animais convencionais dificulta a fixação de micro-organismos que não pertençam a ela; b) os micro-organismos que provocam cárie em animais convencionais são estreptococos do grupo mutans. Esses micro-organismos são acidogênicos e capazes de competir com êxito com os membros da microbiota indígena, estabelecendo-se nos dentes; c) a propriedade de induzir cárie é variável. As amostras de estreptococos do grupo mutans são quase sempre cariogênicas, outros micro- organismos são muito variáveis em sua cariogenicidade; d) antibióticos administrados aos animais levam à redução da incidência e severidade das lesões de cárie. - DINÂMICA DA FORMAÇÃO DA CÁRIE Atualmente, considera-se a cárie dentária como consequência do desequilíbrio entre os fatores de desmineralização e remineralização, sendo função direta das condições que mantenham o pH bucal abaixo do valor crítico. Enquanto for mantido um pH superior a 5,5, a composição da saliva em cálcio e fosfato é supersaturante em relação à solubilidade da hidroxiapatita. O pH abaixo de 5,5 é chamado “crítico”. Quando carboidratos fermentáveis são ingeridos, absorvidos pelo biofilme dentário e os micro-organismos bucais presentes no biofilme produzem ácido a partir desses carboidratos levando à diminuição do pH que pode atingir valores abaixo de 5,5. Em função de uma série de fatores e após decorrido certo tempo, o pH retorna ao normal. Quando são novamente restabelecidas condições físicas supersaturantes, a tendência do esmalte é ganhar cálcio e fosfato do meio bucal, tentando repor o perdido pelo processo de desmineralização. Esse fenômeno é chamado de remineralização. CARIOGENICIDADE DOS MICRO-ORGANISMOS BUCAIS Virulência é definida como a capacidade de um micro- organismo de superar os mecanismos de defesa do hospedeiro e causar danos aos seus tecidos. A virulência pode ser diretamente relacionada à produção de toxinas específicas; ao contrário, os micro- organismos bucais devem apresentar uma série de características para serem potencialmente cariogênicos. São considerados fatores intrínsecos da cariogenicidade (virulência) dos micro-organismos bucais: a) mecanismos de aderência à cavidade bucal; b) capacidade de produzir ácido (acidogenicidade); c) capacidade de sobreviver em meio ácido (potencial acidúrico); d) formação e utilização de polissacarídeos intra e extracelulares. Os agentes etiológicos primários da cárie dentária su-pragengival são os estreptococos do grupo mutans (Streptococcus mutans e S. sobrinus) e os lactobacilos, enquanto para cárie radicular Actinomyces spp. são envolvidos. A cárie dentária é o resultado da seleção de uma microbiota cariogênica, em decorrência da ingestão frequente de açúcar (principalmente sacarose) pelo hospedeiro. Os micro-organismos não mutans apresentam atividades fisiológicas muito diversificadas, sugerindo que os mesmos são generalistas, versáteis o suficiente para se adaptar às variadas condições do biofilme supragengival, o que explica sua dominância no biofilme. Por outro lado os estreptococos do grupo mutans são mais especializados no metabolismo dos açúcares (principalmente sacarose) e produção de ácidos, o que os torna menos competitivos para sobreviver no meio ambiente do biofilme supragengival. - ESTREPTOCOCOS BUCAIS Estreptococos do grupo mutans podem induzir cárie quando implantados em modelos animais experimentais (macacos, ratos e hamsters). Observou-se, entretanto, que lesões de cárie obtidas com a participação de Streptococcus mutans e da microbiota normal da boca são mais extensas e frequentes do que só com Streptococcus mutans. As principais propriedades que podem ser relacionadas à capacidade dos estreptococos mutans de produzir lesões cariosas são: a) sintetizar polissacarídeos insolúveis no metabolismo da sacarose; b) formar ácido lático por meio da fermentação de carboidratos (acidogenicidade); c) colonizar superfícies dentárias; d) apresentar maior potencial acidúrico em relação aos outros estreptococos. - LACTOBACILOS E CÁRIES Os lactobacilos estão diretamente correlacionados com a alta e frequente ingestão de carboidratos. Assim, a contagem de lactobacilos pode ser usada tanto para avaliação do risco de cárie quanto para avaliar o efeito das alterações dietéticas. a) raramente estão ausentes de bocas de adultos portadores de dentes; b) aumentam em número nas superfícies do esmalte e nas placas, antes do aparecimento da cárie; c) o aumento do número de lactobacilos da saliva precede de 3-6 meses o aparecimento de lesões de cárie; d) aumentam na saliva, quando há aumento na predisposição à cárie; e) a ingestão de quantidades maiores de carboidratos refinados aumenta a população de lactobacilos na saliva e a atividade de cárie. Lactobacilos são bastonetes Gram-positivos, não esporulados, que em geral crescem melhor sobre condições de microaerofilia. As espécies de Actinomyces fermentam glicose, produzindo em sua maioria ácido láctico. Actinomyces são bons formadores de biofilme, apresentando firmes depósitos sobre as superfícies dentárias em animais infectados.É o grupo de micro-organismos mais isolado da microbiota subgengival e da placa em indivíduos com cárie de superfície de raiz. ASPECTOS IMUNOLÓGICOS DA CÁRIE DENTÁRIA Os mecanismos de defesa inatos presentes na saliva não apresentam especificidade aos antígenos e não desenvolvem memória imunológica. Entretanto, os componentes desse tipo de resposta podem interagir com as imunoglobulinas salivares (da resposta adaptativa), resultando em aumento de suas atividades. Os componentes imunes específicos são representados principalmente pelas imunoglobulinas. A secretoras (IgA-S), embora quantidades menores de IgG, IgM, IgD e IgE e fa-tores do complemento possam estar presentes, oriundos do sulco gengival como constituintes do fluido gengival. Quando o carboidrato externo torna-se escasso, o micro-organismo metaboliza amilopectina intracelular produzindo ácido lático. MECANISMOS INESPECÍFICOS DE DEFESA PRESENTES NA CAVIDADE BUCAL A saliva atua como defesa primária contra cárie. De fato, a diminuição do fluxo salivar pode levar ao aumento do aparecimento de cáries rampantes. Alguns componentes imunológicos inespecíficos também atuam na defesa da cavidade bucal e geralmente são provenientes do fluido gengival. MECANISMOS ESPECÍFICOS DE DEFESA PRESENTES NA CAVIDADE BUCAL Como outras secreções de glândulas exócrinas a saliva pos-sui anticorpos, predominantemente IgA secretória (IgAs). Os anticorpos são importantes componentes da resposta imune específica e fazem parte de um grupo de proteínas solúveis chamadas coletivamente de imunoglobulinas. Como todo anticorpo, a IgA é produzida em respos-ta a seu antígeno específico. RESPOSTA IMUNE A STREPTOCOCCUS MUTANS A reposta imune do hospedeiro a Streptococcus mutans é iniciada antes mesmo do nascimento. Anticorpos séricos IgG anti-Streptococcus mutans são transferidos passivamente da mãe para o feto pela placenta e também podem desempenhar papel importante no processo de imunização ativa anti-Streptococcus mutans na criança. IMUNIZAÇÃO COM STREPTOCOCCUS MUTANS Duas diferentes hipóteses foram propostas para o mecanismo de controle imunológico contra cárie. A primeira hipótese afirma que as imunoglobulinas séricas são as principais responsáveis pelo efeito protetor, enquanto a segunda hipótese sugere que as IgA-S na saliva inibem a aderência de Streptococcus mutans à superfície dos dentes.