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Gisele Mano e Lucianna Schmitt Disciplina Saúde Coletiva 03 Sumário CapítuLo 3 – Disciplina Saúde Coletiva ...................................................................................... 05 3.1 o normal e o patológico .......................................................................................................... 05 3.1.1 Conceitos de saúde ......................................................................................................... 10 3.2 Racionalidade médica ............................................................................................................... 12 3.3 práticas alternativas de Saúde (paS) .................................................................................... 16 3.3.1 política Nacional de práticas Integrativas e Complementares (pNpIC) ............... 17 05 Introdução o que é ser normal? possivelmente, você já tenha se perguntado isso ou se deparado com situações que te fizeram repensar o conceito de normalidade. Pois bem, nesse capítulo veremos os conceitos de normalidade em saúde e como foram formados ao longo do tempo. além disso, veremos também como o conceito de patológico se modificou. 3.1 o normal e o patológico Normal: aquilo que é usual, regular, conforme a norma, exemplar. Patologia: parte da medicina que estuda as doenças. Desvio do que é considerado normal; desvio do ponto de vista fisiológico e anatômico e que constitui ou caracteriza uma doença. Fonte: FERREIRa, aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curiti- ba: Positivo, 2010. 2222 p. ISBN 978-85-385-4198-1. Usualmente, é mais fácil refletirmos sobre o que o conceito de doença representa na nossa sociedade ou para nós. Definir o que é saúde torna-se um pouco mais difícil, pois levamos em consideração diferentes faces da realidade em que estamos inseridos ou em que contexto o que queremos definir como saudável está inserido. Logo, saúde não tem o mesmo significado para todos. para considerar o que é normalidade parte-se da situação mais positiva ou benéfica e mais frequente, ou seja, do que é mais comum. Desde que a humanidade existe, a doença a acompanha. tentamos sempre, incansavelmente, encontrar meios de detê-la. o mundo passou por ondas de epidemias e pandemias que, na verdade, ainda nos atingem. Será que a doença estaria restrita somente a estes casos “contagiosos”? Na literatura, é mais comum encontrar a história do conceito doença do que a do conceito saúde. primeiramente, o conceito doença era entendido como resultado de fatores externos, e a saúde como uma recompensa. Em razão disso, compreendia-se a vontade dos deuses ou Capítulo 3Disciplina Saúde Coletiva 06 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities de seres místicos e das forças sobrenaturais. A leitura que se faz é a da unicausalidade, isto é, uma única causa definiria a saúde ou a doença de uma comunidade inteira. Na ausência de conhecimentos que permitissem elaborar terapias, era a cultura que mais determinaria a percepção de doença. Na Antiguidade Clássica, houve um afastamento da ideia religiosa ou de fé sobre o surgimento das enfermidades. As doenças eram percebidas ainda como resultado do desequilíbrio entre os elementos calor, frio, água, terra e ar; ou eram ainda relacionadas às estações do ano. Surge também neste período a observação entre o trabalho, a posição social e a doença. Observe que, de certa forma, a humanidade percebia a relação entre qualidade da água e do ar com a situação de saúde e, por essa razão, atribui-se a este período o surgimento da ideia de contágio. No entanto, não havia ainda nessa época sequer o conceito de microrganismos para que se pudesse fazer uma relação mais direta. É importante ressaltar que, na Antiguidade Clássica, aparece a consciência sobre a condição social do indivíduo, que já estudamos ser um dos determinantes sociais de saúde. Os gregos tinham como ponto forte a pesquisa, a ciência e o estudo. Por essa razão, buscavam a causalidade dos problemas que acometiam a saúde da população na época. É no ápice da civilização grega que surge o rompimento com a superstição e a magia. A medicina grega cultuava a divindade de asclépius. Suas práticas, no entanto, iam além da ritualística, envolvendo o uso de ervas medicinais e de métodos naturais. Na mitologia grega, asclépius teve duas filhas a quem ensinou a sua arte: Hygeia (de onde deriva ‘higiene’) e Panacea (deusa da cura). Os médicos eram filósofos que procuravam entender a relação da doença do homem com a natureza. Hipócrates foi um médico e filósofo grego considerado o pai da medicina. Ele elaborou a teoria miasmática e escreveu sobre as endemias, classificando-as como doenças que ocorrem de maneira regular e contínua entre habitantes de uma comunidade. Depois descreveu as epidemias como o surgimento repentino de um grande número de casos na população. Na época da medicina hipocrática, os médicos eram notórios observadores. Eles registravam meticulosamente as relações com o quadro de doença e, também, realizavam avaliação médica que consistia em: exploração do corpo (ausculta e manipulação sensorial); conversa com o paciente (anamnese); entendimento sobre o problema (raciocínio diagnóstico); e estabelecimento de procedimentos terapêuticos ou ações indicadas para as queixas mencionadas (prognóstico). Teoria miasmática: teoria que entende como causa das doenças as impurezas e odores fétidos contidos no ar, conhecidos como miasmas. 07 Hipócrates postulou a existência de quatro fluidos (humores) principais no corpo: bile amarela, bile negra, fleuma e sangue. Desta forma, a saúde era baseada no equilíbrio desses elementos. Ele via o homem como uma unidade organizada e entendia a doença como uma desorganização desse estado. Teoria miasmática: teoria que entende como causa das doenças as impurezas e odores fétidos contidos no ar, conhecidos como miasmas. Os romanos eram conhecidos por seu excelente planejamento de cidades e organização urbana. Eles construíram notórios aquedutos que abasteciam a cidade e tinham um sistema de esgotamento de dejetos conhecido como cloaca máxima. além disso, uma marca cultural desta civilização eram os banhos públicos, que demonstravam a preocupação com a higiene. Figura 1 - aquedutos romanos fonte de água entrada câmaras de inspeção tanque de sedimentação canal coberto tanque de distribuição cidade apesar dos avanços feitos por gregos e romanos, a Idade Média (500 d.C. – 1500 d.C.) herdou práticas supersticiosas que recomendavam aos doentes utilizar amuletos com a palavra mágica abracadabra e que os reis tocassem as pessoas para que elas fossem curadas. Claro que essa última prática era apenas privilégio da monarquia. O cristianismo pregava que a doença era uma forma de expiação dos pecados, de purificação da alma e, por esse motivo, inicialmente, era considerado a religião dos pobres. Essa forma de interpretação da doença dava sentido ao sofrimento. Certamente, surgiram epidemias nessa época, que eram explicadas como formas de livrar os pecados do mundo. algumas doenças tinham estigma social, como a lepra (a impureza), cujos pacientes ficavam reclusos em lugares distantes das cidades conhecidos como leprosários. antes de serem enviados para esses locais, os doentes eram considerados como mortos e tinham rezada uma missa de corpo presente. Essa forma de “tratamento” dos doentes nos lembra a primeira medida de controle epidemiológico que vimos na unidade 2, usada até hoje: o isolamento. por não dar conta da redução das enfermidades, a Igreja reforça as instituições de caridade que cuidarão dos excluídos, das viúvas e dos indigentes. Muitas instituições de caridade são hoje hospitais do nosso país – a exemplo das Santas Casas de Misericórdia–, legados do período pós-colonial. outras doenças que assolavam este período histórico foram sífilis, varíola, rubéola, sarampo, influenza, erisipela – doenças que existem até os dias de hoje. 08 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities “Cultura pode ser definida como um conjunto de elementos que mediam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e prática.” Fonte: Langdon EJ, Wilk FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-Am. Enfermagem 18(3):[09 telas] mai-jun 2010. Toda essa pestilência serviu para alguns avanços sanitários, como canalização das águas, ampliação das ruas, restrição da circulação de animais perto de rios e fontes de água. É na Idade Média que surge a quarentena como medida de vigilância e a notificação de casos suspeitos às autoridades. Cabe lembrar que, nesse período, as crenças de cura relacionadas a outras religiões eram vistas como bruxaria e sofreriam as consequências da Inquisição. Perto de 1500, surge o Renascimento com suas descobertas acerca de contaminação e formas de contágio. Nessa época, iniciou a expansão comercial, que levou ao descobrimento do Brasil. Nosso país contém muitas crenças sobre doença que são oriundas de índios e escravos, que construíram muito da nossa cultura. No período Colonial, os feiticeiros, pajés e xamãs foram grandes curandeiros que utilizavam benzeduras, rezas, chás e feitiços. Para um grupo de índios que vive na fronteira entre Brasil e Venezuela, os Sarrumá, nenhuma morte é por causas naturais. Para eles, em casos de morte, basicamente algum feitiço tem que ter sido feito contra a pessoa, mas não necessariamente outra pessoa faz o feitiço, pois ele pode ter sido realizado por algum desentendimento, um espírito maligno ou espírito do animal que a pessoa comeu. Passaram a ser desenvolvidos estudos de anatomia, fisiologia e de individualização da descrição das doenças, fundados na observação clínica e epidemiológica. A experiência acumulada pelos médicos forneceu elementos para a especulação sobre a origem das epidemias e o fenômeno do adoecimento humano. Na Idade Moderna, com a introdução da máquina a vapor intensifica-se o ritmo produtivo, as fábricas passam a demandar mais mão de obra e as cidades crescem nas periferias. Assim, as péssimas condições de trabalho começam a chamar a atenção dos administradores. O corpo, tomado como meio de produção pelo capitalismo emergente, torna-se objeto de políticas, práticas e normas, surgindo as primeiras regulações visando à saúde nas fábricas. No século XIX, há um grande avanço nas descobertas bacteriológicas com Louis Pasteur, com a descoberta de microrganismos, vacinas e soros. A era bacteriológica causou uma grande revolução, pois pela primeira vez em séculos surge uma nova explicação para a causa do adoecimento, o qual tinha agora também prevenção e cura. Concomitantemente a esses progressos surge a epidemiologia e a estatística e o entendimento de que, se a saúde de um indivíduo pode ser mensurada em números de batimentos, de respiração e de temperatura, o mesmo deveria poder acontecer com a dimensão social das pessoas por meio de indicadores. 09 Em 1779, surge na Alemanha a ideia de intervenção estatal na saúde por meio da polícia sanitária. Na França, surge a saúde urbana, entendida como um planejamento da cidade para evitar aglomerados de pessoas, sobretudo próximo às águas, e para controlar a higiene de cemitérios e matadouros. Na Inglaterra, o desenvolvimento do proletariado industrial leva a medicina inglesa a tornar-se social por meio da ‘lei dos pobres’. Caracterizada pela assistência e pelo controle autoritário dos pobres, a implantação de um cordão sanitário que impunha o controle do corpo da classe trabalhadora por meio da vacinação, do registro de doenças e do controle dos lugares insalubres visava tornar a pessoa mais apta ao trabalho e menos perigosa para as classes ricas. Em 1860, surgiram estudos de Louis Pasteur com hipóteses sobre a relação entre doenças e microrganismos, e em 1870 os estudos de Robert Koch estabeleceram as regras de investigação desse tipo de hipótese. No decorrer da segunda metade do século XIX, a teoria microbiana das doenças foi gradualmente aceita pela maioria dos médicos e pelo público. A era bacteriológica conviveu durante algum tempo com a teoria dos miasmas, sendo influenciada por ela. Em meados do século XIX, houve grandes epidemias de cólera na Europa, matando milhões de pessoas. Autoridades médicas, como William Farr, tinham certeza de que sua causa era um miasma. Pasteur fez parte de uma comissão que procurou identificar o modo pelo qual essa doença era transmitida. Provavelmente influenciado pela teoria dos miasmas, tentou encontrar no ar algum microrganismo que fosse responsável pela doença. Nada encontrou. Depois, descobriu-se que o cólera era transmitido principalmente pela água. Na era bacteriológica, os índices de mortalidade por doenças contagiosas reduzem drasticamente e muitas doenças têm sua cura descoberta ou, ao menos, sua forma de prevenção revelada. Por descobrir-se a prevenção, muitas modificações nas condições de vida das pessoas foram indicadas. As explicações de cunho microbiológico estavam tão fortes que começou a surgir crítica sobre a ignorância em relação aos fatores sociais que causam as doenças. Os contagionistas enfatizavam a busca de uma causa verdadeira e específica da doença. Os anticontagionistas, apesar de também estarem tentando precisar a especificidade da doença e sua etiologia, enfatizavam a importância de estudar a predisposição do corpo e do ambiente para o surgimento da doença. a predisposição, noção originalmente relacionada à teoria da constituição epidêmica, 10 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities denotava, no contexto desta teoria, um estado, uma totalidade que não se expressava como um conceito. A partir de 1970, surge o modelo multicausal de doença. A determinação social da saúde/ doença procura articular as diferentes dimensões da vida envolvidas nesse processo. assim, são considerados os aspectos históricos, econômicos, sociais, culturais, biológicos, ambientais e psicológicos que configuram uma determinada realidade sanitária. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (Constituição Federal, 1988) 3.1.1 Conceitos de saúde A saúde como ausência de doença resulta dos pensamentos racionais e objetivos que buscam causa e tratamento – um agente causador e um agente de cura. Esse modelo foi vencido por outros, mas ainda permeia o imaginário das pessoas. após a Segunda Guerra Mundial, a oMS define a saúde como o bem-estar físico, psíquico e social. Esse conceito trouxe muitas polêmicas, porque implica uma definição do que é esse bem-estar e, portanto, do que é normal ou não. Assim, tudo que foge a esse conceito está passível de ser medicalizado. Essa é a realidade que observamos com o ritmo frenético de vida da nossa sociedade, que resulta no surgimento de várias novas doenças do mundo moderno e para as quais há sempre novas medicações. a saúde como direito social é o conceito mais ampliado de saúde. Constitui-se como resultado da garantia de acesso a diferentesoutros direitos como: condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Neste capítulo, vimos como o conceito de saúde mudou ao longo do tempo. Vimos também sobre a representação social da doença que, por vezes, era vista como uma punição, um estigma que excluiu e afastou milhares de doentes ao longo dos anos. NÃo DEIXE DE VER... Artigo: Alma mente e cérebro nas primeiras civilizações humanas. Fabiano dos Santos Castro & J. Landeira-Fernandez. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(1), p. 37-48. Disponível em: http://www.redalyc.org/html/188/18815254017/ . 11 CuRIoSIDaDE o mundo das modelos foi por muitos anos dominado por mulheres brancas, magras e caucasianas. Essa realidade vem mudando para ser inclusiva e representativa do mundo que vivemos. Duas modelos acometidas por uma doença rara, mas bem conhecida, chamada vitiligo, estão quebrando paradigmas e fazendo o mundo questionar o que é ser normal e o que é ser belo. Winnie Harlow é uma modelo canadense que participou do America’s Next Top Model, um programa de televisão que prepara meninas para o mundo da moda. após sua aparição no programa, sua car- reira de fato começou, e ela é hoje uma modelo de sucesso. Winnie Harlow No Brasil, também temos uma modelo que quebra paradigmas e desafia os padrões. Eliane Medeiros é de tocantins e foi escolhida pela rede C&A para estrelar o lançamento de sua campanha. Winnie Harlow Eliane Medeiros Medicina Tradicional Chinesa O Oriente possui milênios de conhecimento sobre saúde, que foram desenvolvidos como no Ocidente. No entanto, não ouvimos falar com tanta frequência desse tipo de visão de saúde-doença. A China concentra a maior parte do conhecimento oriental de medicina produzido. Parte-se do princípio do equilíbrio entre os estados Yin e Yang. O Yin é representado pela parte escura do símbolo e significa luz fraca, e o Yang representa o contrário. O ideal é que haja o perfeito equilíbrio entre essas duas partes. Entre esses dois estados, existem cinco elementos: madeira, terra, metal, água e fogo. A madeira alimenta o fogo; o fogo, por meio da cinza, forma a terra; a terra gera o metal; o metal derrete e vira água; e a água alimenta a madeira. Mas, ao mesmo tempo em que um elemento produz o outro, eles também se anulam: o fogo derrete o metal, que corta a madeira; a madeira invade a terra, que represa a água; a água finalmente apaga o fogo. Dessa forma, uma doença que afeta um órgão está afetando todos os outros porque bloqueia a transformação de energia e seu fluxo. Fogo TerraMadeira MetalÁgua 12 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities 3.2 Racionalidade médica NÃo DEIXE DE VER... Holístico ou holista é um adjetivo que classifica alguma coisa relacionada com o holismo, ou seja, que procura compreender os fenômenos na sua totalidade e globalidade. Paradigma é um modelo ou padrão a seguir. Iatrogenia é um resultado negativo decorrente de um tratamento médico. Médico: pessoa que exerce medicina; o que cura um mal (físico ou moral); Médico espiritual: confessor; relativo à medicina. A partir dos anos 1960 – no movimento a favor do naturismo e de contracultura –, começa a surgir um discurso a favor do fortalecimento da natureza. Nessa época, as características mais marcantes eram os Estados unidos e a Europa voltados para impulsionar a tecnologia, a ciência e a inteligência artificial. No campo da saúde, esse movimento de contracultura gesta a ideia da promoção de saúde e de práticas terapêuticas naturistas, ao contrário da prevenção de doenças ou de tratamentos com remédios. Nos anos 1970, a crítica à farmacologia foi impulsionada pelas publicações de autores como Foucault e Illich. um dos destaques desses discursos eram a iatrogenia médica e farmacêutica, a medicalização social como forma de controle dos cidadãos, os deslocamentos da saúde para a lógica de produção de mercado. acontecia ainda no campo saúde a redução da saúde ao seu aspecto biológico, usando, por meio da lógica farmacêutica, uma maneira de reduzir os sofrimentos, como se eles fossem de origem biológica apenas. Em 1972, a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano destaca como condição de nossa sobrevivência a preservação do meio ambiente, nele compreendida a nossa fonte de bem-estar biológico e social. Em 1978, a Conferência de Alma- Ata, realizada na antiga União Soviética, aponta que os cuidados primários em saúde são o mínimo para que as nações alcancem um nível de saúde aceitável. o próprio diretor da oMS na época declarou que a medicina tecnológica era insuficiente para resolver os problemas de saúde da população mundial, os quais acometiam dois terços da população. Em 1986, a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada em Ottawa, Canadá, afirmou que não apenas os fatores biológicos, mas também os políticos, econômicos, sociais, culturais, de meio ambiente e de conduta podem intervir a favor ou contra a saúde. Entre outros aspectos, a Carta de ottawa defendeu que os serviços de saúde adotem “uma postura abrangente, que perceba e respeite as peculiaridades culturais” e incentivem “a participação e a colaboração de outros setores, outras disciplinas e, mais importante, da própria comunidade”. Esse entendimento de saúde aparece traduzido no texto da Constituição Federal que menciona “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas”, entendendo-se que pela integralidade seriam proporcionados todos os níveis de saúde à população. os anos 1970 e 1980 são marcados por um resgate popular de práticas orientais de saúde, como a medicina ayurvédica, a medicina tradicional chinesa, e as práticas religiosas vinculadas ao xamanismo e a religiões afro-indígenas. Foram denominadas práticas alternativas as terapias 13 que utilizavam como métodos o que fosse holístico, energético, natural, ou que, frequentemente, derivavam de conhecimentos anciãos de curandeiros, xamãs, rezadores, parteiras, pajés, etc. O que se percebeu foi a necessidade de poder estabelecer uma relação entre a medicina biomédica e as demais que existiram e existem em paralelo. Assim, observou-se que existe uma lógica comum a esses raciocínios médicos, ao que se deu o nome de racionalidade médica. ATENÇÃO PARA OS CONCEITOS A SEGUIR! Morfologia humana: define a estrutura e a forma de organização do corpo. Dinâmica vital humana: define o movimento da vitalidade, seu equilíbrio ou desequilíbrio no corpo, suas origens ou causas. Doutrina médica: define, em cada sistema, o que é o processo saúde-doença, o que é a doença ou adoecimento, em suas origens ou causas, o que é passível de tratar ou curar. Sistema de diagnose: determina se há ou não um processo mórbido, sua natureza, fase e evolução provável, origem ou causa. Sistema terapêutico: determinam-se as formas de intervenção adequadas a cada processo mórbido (ou doença) identificado pela diagnose. Cosmologia: são os sentidos, símbolos, metáforas que sustentam o imaginário das demais dimensões das racionalidades médicas. NÃo DEIXE DE VER... Racionalidade médica é um sistema médico estruturado com as cinco dimensões de forma siste- matizada em maior ou menor grau. Isso não é uma comparação entre melhor ou pior entre as racionalidades. Existe o paradigma entre o biomédico e o vitalista. Biomédico é aquele que enfatiza questões materiais, mecânicas, centradas na doença e no controle do corpo biológico e social, tendo, dessa forma, controle também sobre a natureza. Essa visão deriva do período renascentista e do discurso racional posterior à idade média. A natureza passa a ser objeto dominado pelo ser humano,que pensa poder controlá-la pela tecnologia. Entende-se, assim, que as doenças podem ser do nosso controle. Muitas críticas surgem ao fato de esta racionalidade reduzir o processo saúde-doença a critérios biológicos ou catalogados, que excluem a subjetividade da pessoa atendida e enfraquecem – desmancham – o vínculo entre profissional e paciente, sendo, assim, pouco integral. Já a visão vitalista busca a harmonia entre meio ambiente social, natural 14 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities e a pessoa. Nessa harmonia, é entendida a saúde. Existe a valorização da subjetividade das pessoas, a prevenção e promoção da saúde e a integralidade do cuidado. Dessa forma, a sustentabilidade é uma das premissas deste ponto de vista, que cresce a partir dos anos 1960 como resultado da contracultura. Em todas as racionalidades médicas estudadas, foi observada a coexistência de duas formas de interpretação das situações de saúde-doença: uma baseada na teoria e regida pela razão, outra baseada no empirismo, ou seja, na sensibilidade do profissional ou terapeuta. Práticas Integrativas Complementares (PIC) O campo das práticas integrativas e complementares contempla sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos, os quais são também denominados, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), medicina tradicional e complementar/alternativa (MT/MCA). Tais sistemas e recursos envolvem abordagens que buscam estimular os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde por meio de tecnologias eficazes e seguras, com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade. Outros pontos compartilhados pelas diversas abordagens abrangidas nesse campo são a visão ampliada do processo saúde-doença e a promoção global do cuidado humano, especialmente do autocuidado. as pICs foram entendidas como parte de uma racionalidade médica, um instrumento ou um método que, com certa frequência, é utilizado isoladamente. Você já deve ter ouvido falar de várias PICs, como acupuntura, reiki, iridologia, florais e fitoterapia. A visão mais convencional é a biológica, que necessita se fazer comprovada, executada, testada. Dessa forma, houve uma resistência no mundo ocidental para que as outras racionalidades médicas se inserissem e fossem aceitas. Cada vez mais se encontram profissionais de saúde que utilizam PICs e outras racionalidades médicas como forma de ofertar um atendimento mais amplo, mais holístico. o mundo esquece que as terapias ditas “alternativas” são milenares e ancestrais ao modelo biomédico. De acordo com Luz (1997): “[...] a racionalidade médica esqueceu-se de que era mais do que um saber científico, isto é, de que era também a arte de curar sujeitos doentes, distanciando-se da sua dimensão terapêutica, na busca de investigar, classificar, e explicar antigas e novas, sobretudo novas, patologias através de métodos diagnósticos crescentes e sofisticados”. Essa maneira unilateral e caolha de ver a saúde reflete-se no meio acadêmico pela epidemia de estudos e pesquisas sem relevância e aplicabilidade social; pesquisas que existem para comprovar o que não é necessário. No campo da integralidade, o paciente é um ser biopsíquico e social, que é singular, devendo ser ele o objetivo final e não o seu tratamento. Essa visão está presente nas racionalidades médicas orientais e ditas alternativas. A formação do profissional de saúde voltado para o paciente ao invés de para a doença é o que fará a demanda pela integralidade crescer. 15 O profissional com visão biomédica excludente gera pacientes que demandam tratamento, medicação, exames e cura sem se preocupar em primeiro lugar com o diagnóstico. Da mesma forma, um diagnóstico centrado na doença não poderia encontrar outros recursos de tratamento senão os medicamentosos e químicos, posto que não se conhece o paciente, sua vida, seu meio social e suas crenças. Doutor, tô com muita dor nas costas. Vou pedir uma ressonância pra descobrir o que é. Na medida em que se dispõe de altas tecnologias diagnósticas acompanhadas da sedução tecnicista da precisão do acerto, a relação terapeuta-paciente fragiliza-se. O diagnóstico médico envolvia como parte importante do exame o toque físico do paciente, lógica que está ameaçada pela visão fragmentada da saúde. Nas medicinas alternativas, o aspecto psicológico do paciente é elemento importante de cura. Isso expõe a questão da eficácia e da resolutividade do tratamento convencional: a satisfação do paciente com relação ao tratamento faz parte do sucesso. O crescimento das práticas alternativas resulta de outra vantagem: o baixo custo tecnológico que apresentam, sobretudo em países que enfrentam dificuldades financeiras para organização e funcionamento dos seus serviços de saúde. Essas práticas envolvem o paciente/cidadão no processo de cura, o tornam participativo, autônomo e ator do seu processo de saúde. Essa lógica aproxima-se mais da visão da atenção primária à saúde, que tem como um de seus atributos a participação social. Certamente, é vantajoso que as racionalidades médicas não sejam excludentes, mas sim complementares entre si. O eixo biológico é fundamental, como vimos na história do conceito saúde, mas ele passa a ser essencial se integrado às práticas holísticas que vão otimizar a integralidade do cuidado e a resolutividade do atendimento à saúde. 16 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities NÃo DEIXE DE VER... Lembre que falar de racionalidades médicas nada tem de exclusivo aos profissionais que se formaram em medicina. Os profissionais que restringem sua visão de atendimento a uma questão biomédica estão também utilizando a racionalidade que tem este nome. Considerar as dimensões culturais, afetivas, psíquicas do que as pessoas comem, sentem, dor- mem, vivem, enfim, de como a vida delas transcorre é ter uma visão ampliada de saúde.. Holismo x Individualismo Individualismo é aquela ideologia que valoriza indivíduos e negligencia o social, ou subordina este social ao homem. A visão holística é aquela que considera o todo, a sociedade e seu meio. Na sociedade atual, vivenciamos a ideologia individualista que ignora o coletivo e fica centrada no indivíduo. 3.3 práticas alternativas de Saúde (paS) Várias racionalidades médicas insistem que o cuidado com a saúde é um meio para o objetivo final de realização enquanto ser humano (discurso também da promoção da saúde), concebendo um processo de transformação e realização pessoal como trajetória individual, ainda que seja para religar e re-harmonizar a pessoa com o cosmo, o mundo, os outros. Esse é o objetivo do caminho das práticas tradicionais do yoga ou do tai chi chuan, inseridas nas racionalidades médicas tradicionais da índia e da China. “É usual que essas racionalidades ofereçam práticas, valores e técnicas de promoção de saúde que se realizam também coletivamente em pequenos grupos e valorizam e fomentam a solidariedade, a troca entre os praticantes, o empoderamento comunitário. as meditações, as massagens e automassagens, os exercícios psicofísicos ou energéticos, se bem que voltados para o indivíduo, mostram repercussões positivas na sociabilidade, na construção de redes de apoio social, na discussão da participação social e política. Não é por acaso que profissionais do SUS envolvidos com atividades coletivas de tipos variados, inclusive usando técnicas complementares, não raro testemunham que os grupos costumam fomentar cidadãos mais atuantes e mesmo conselheiros locais de saúde. portanto, é no polo individual e grupal, numa perspectiva relacional microssocial, que as práticas complementares podem contribuir para a promoção da saúde.” (tesser, C.D. práticas complementares, racionalidadesmédicas e promoção da saúde: contribuições poucos exploradas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25(8):1732-1742, ago, 2009) Existem racionalidades médicas (ayurveda, medicina tradicional chinesa, homeopatia, etc.) e existem as práticas (yoga, tai chi chuan, cupuntura, meditação, reiki, acupuntura, biodança, automassagem, homeopatia). 17 A utilização das PAS tem mostrado resultados que vão para além do indivíduo. Estudos apontam que a criação de grupos que exercem estas práticas promove a autonomia individual, a participação social e a vinculação entre os participantes dos grupos. além disso, gera uma percepção positiva de saúde, em que o indivíduo deixa de se perceber como portador de uma doença para se enxergar como próprio instrumento de cura. Essas racionalidades e práticas carecem de pesquisas científicas, especialmente por terem muito ligadas a si os conhecimentos populares, empíricos e nem sempre verdadeiros. as políticas de fomento a estas práticas já existem no SUS (veremos a seguir), mas cabe aos profissionais, e sobretudo aos cidadãos, demandar que elas sejam ofertadas por meio da participação nos conselhos locais de saúde. 3.3.1 política Nacional de práticas Integrativas e Complementares (pNpIC) Em virtude da crescente demanda da população brasileira, por meio das conferências nacionais de saúde e das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) aos Estados- Membros para formulação de políticas visando à integração de sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos (também chamados de Medicina Tradicional e Complementar/Alternativa (MT/MCA) ou Práticas Integrativas e Complementares (PIC)). Aos sistemas oficiais de saúde, além da necessidade de normatização das experiências existentes no SUS, o Ministério da Saúde aprovou a política Nacional de práticas Integrativas e Complementares (pNpIC) no SuS, contemplando as áreas de homeopatia, plantas medicinais e fitoterapia, medicina tradicional chinesa/acupuntura, medicina antroposófica e termalismo social – crenoterapia. No texto da PNPIC, o Ministério da Saúde coloca sobre cada prática integrativa a sua história e como ela funciona. NÃo DEIXE DE VER... acesse aqui a pNpIC: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/pnpic 18 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities Síntese • A política nacional de práticas integrativas e complementares (pnpic) tem como objetivos: • Incorporar e implementar as práticas integrativas e complementares no sus, na perspectiva da prevenção de agravos e da promoção e recuperação da saúde, com ênfase na atenção básica, voltada ao cuidado continuado, humanizado e integral em saúde. • Contribuir para o aumento da resolubilidade do sistema e ampliação do acesso à pnpic, garantindo qualidade, eficácia, eficiência e segurança no uso. • Promover a racionalização das ações de saúde, estimulando alternativas inovadoras e socialmente contributivas ao desenvolvimento sustentável de comunidades. • Estimular as ações referentes ao controle/participação social, promovendo o envolvimento responsável e continuado dos usuários, gestores e trabalhadores nas diferentes instâncias de efetivação das políticas de saúde. • Entre suas diretrizes, destacam-se: • Estruturação e fortalecimento da atenção em pic no sus. • Desenvolvimento de estratégias de qualificação em pic para profissionais do sus, em conformidade com os princípios e diretrizes estabelecidos para educação permanente. • Divulgação e informação dos conhecimentos básicos da pic para profissionais de saúde, gestores e usuários do sus, considerando as metodologias participativas e o saber popular e tradicional. • Estímulo às ações intersetoriais, buscando parcerias que propiciem o desenvolvimento integral das ações. • Fortalecimento da participação social. • Provimento do acesso a medicamentos homeopáticos e fitoterápicos na perspectiva da ampliação da produção pública, assegurando as especificidades da assistência farmacêutica nestes âmbitos na regulamentação sanitária. • Garantia do acesso aos demais insumos estratégicos da pnpic, com qualidade e segurança das ações. • Incentivo à pesquisa em pic com vistas ao aprimoramento da atenção à saúde, avaliando eficiência, eficácia, efetividade e segurança dos cuidados prestados. • Desenvolvimento de ações de acompanhamento e avaliação da pic para instrumentalização de processos de gestão. • promoção de cooperação nacional e internacional das experiências da pic nos campos da atenção, da educação permanente e da pesquisa em saúde. 19 • Garantia do monitoramento da qualidade dos fitoterápicos pelo sistema nacional de vigilância sanitária. VAMOS VER COMO FUNCIONA! Aqui estão vídeos e notícias sobre as PICs no SUS. Na sua cidade, você já viu alguma dessas práticas? Programa desenvolvido pelo grupo Estratégia Saúde da Família no bairro Jardim Sofia https://www.youtube.com/watch?v=4LhdUUSDiFg arteterapia no SuS http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=_&cod=2353 o SuS das práticas Integrativas: Naturopatia http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=_&cod=2361 o SuS das práticas Integrativas: Medicina tradicional Chinesa http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=_&cod=2375 o SuS das práticas Integrativas: Fitoterapia http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=_&cod=2372 o SuS das práticas Integrativas: Meditação http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=_&cod=2356 20 Disciplina Saúde Coletiva Laureate International Universities aLVES, pC. e MINaYo, MCS., orgs. Saúde e doença: um olhar antropológico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. 174 p. ISBN 85-85676-07-8. Backes, MtS; Rosa, LM; Fernandes, GCM; Becker, SG; Meirelles, BHS; Santos, SMa. Conceitos de saúde e doença ao longo da história sob o olhar epidemiológico e antropológico. Rev. Enfermagem UERJ [Online]. 2009; 17(1) 111-117. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. Departamento de atenção Bási- ca. Política nacional de práticas integrativas e complementares no SUS: atitude de am- pliação de acesso/Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. 96 p.: ISBN 978-85-334-2146-2. Batistella, C. Saúde, Doença e Cuidado: complexidade teórica e necessidade histórica. In: o território e o processo saúde-doença. Fiocruz. 2007 Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz. br/pdtsp/index.php?id=1&prioridade=1 Cabral do Nascimento, Marilene, Filice de Barros, Nelson, Nogueira, Maria Inês, Therezinha Luz, Madel. A categoria racionalidade médica e uma nova epistemologia em saúde. 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