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Autor: Prof. Mário André Sigoli Colaboradoras: Profa. Vanessa Santhiago Profa. Tânia Sandroni Filosofia e Dimensões Históricas da Educação Física EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Professor conteudista: Mário André Sigoli Mário André Sigoli é mestre em Pedagogia do Movimento Humano pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP), defendeu sua dissertação intitulada Características do Esporte Educacional nas Escolas da Cidade de São Paulo em 2005. Graduado no curso de bacharelado em Esporte da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP), em 2000. Teve atuação profissional na área esportiva da natação, sendo técnico de atletas federados no São Paulo Futebol Clube (1999 a 2002) e depois técnico das categorias de base da natação da Fundesport Araraquara, entre 2013 e 2015. Atua como docente do ensino superior desde fevereiro de 2004 na Universidade Paulista – UNIP e como consultor da Comissão de Qualificação e Avaliação (CQA) da UNIP. Atualmente é coordenador do curso de Educação Física do Campus Araraquara da UNIP. Desenvolve hoje trabalho e pesquisa entre a população idosa e com necessidades especiais, com ênfase em emagrecimento e doenças hipocinéticas, através da metodologia do treinamento cruzado (cross training). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S578f Sigoli, Mário André. Filosofia e Dimensões Históricas da Educação Física. / Mário André Sigoli. – São Paulo: Editora Sol, 2017. 144 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIII, n. 2-025/17, ISSN 1517-9230. 1. Filosofia. 2. Dimensões históricas. 3. Educação Física. I. Título. CDU 796.01 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Rose Castilho Lucas Ricardi Ricardo Duarte EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Sumário Filosofia e Dimensões Históricas da Educação Física APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA .............................................................................................................9 1.1 O que é História? .....................................................................................................................................9 1.2 A Filosofia ................................................................................................................................................ 10 2 A IMPORTÂNCIA DAS HABILIDADES MOTORAS NOS POVOS ANTIGOS .................................... 11 2.1 A atividade física nas primeiras civilizações .............................................................................. 13 2.2 O sedentarismo na sociedade contemporânea ........................................................................ 16 3 OS EXERCÍCIOS NO MUNDO ANTIGO ...................................................................................................... 19 3.1 A civilização egípcia e os exercícios físicos ................................................................................ 19 3.1.1 Os exercícios físicos no Egito Antigo .............................................................................................. 19 3.2 Os exercícios físicos na Grécia Antiga ......................................................................................... 21 3.2.1 Contexto histórico geral ...................................................................................................................... 21 3.2.2 A pólis de Esparta ................................................................................................................................... 22 3.2.3 A pólis de Atenas .................................................................................................................................... 22 3.2.4 Período Clássico (séculos V a.C.-IV a.C.) ......................................................................................... 23 3.2.5 Período Helenístico (séculos IV a.C.-II a.C.) .................................................................................. 26 3.2.6 Filosofia, corpo e exercício na Grécia Antiga .............................................................................. 26 3.2.7 A cultura da Grécia Antiga e o exercício ....................................................................................... 30 3.2.8 Os jogos na Grécia Antiga ................................................................................................................... 32 3.2.9 Milo de Crotona: a história de um herói grego .......................................................................... 37 3.2.10 A mulher na Grécia Antiga ............................................................................................................... 38 3.2.11 A decadência dos jogos gregos ....................................................................................................... 40 3.3 Os exercícios físicos em Roma ........................................................................................................ 42 3.3.1 Monarquia (da fundação de Roma ao século VI a.C.) .............................................................. 42 3.3.2 República (séculos VI a.C.-I a.C.) ....................................................................................................... 43 3.3.3 O Alto Império (séculos I a.C.-III d.C.) ............................................................................................. 45 3.3.4 O Baixo Império (séculos III d.C.-V d.C.) ......................................................................................... 46 3.3.5 Os exercícios físicos em Roma ........................................................................................................... 47 3.4 As disputas atléticas na Idade Média ........................................................................................... 50 3.4.1 Contexto histórico geral ...................................................................................................................... 51 3.4.2 Baixa Idade Média ..................................................................................................................................51 3.4.3 O movimento cruzadista...................................................................................................................... 52 3.4.4 Os exercícios físicos durante a Idade Média ................................................................................ 53 4 O RENASCIMENTO CULTURAL E AS PERSPECTIVAS PARA O CORPO E O MOVIMENTO HUMANO ................................................................................................................................ 55 4.1 Os precursores renascentistas ........................................................................................................ 57 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade II 5 O EXERCÍCIO FÍSICO NAS SOCIEDADES MODERNAS ........................................................................ 64 5.1 As escolas ginásticas: educação, saúde e nacionalismo ....................................................... 64 5.1.1 O movimento ginástico sueco ........................................................................................................... 65 5.1.2 O movimento ginástico francês ........................................................................................................ 68 5.1.3 A história do Parkour ............................................................................................................................ 70 5.1.4 O movimento ginástico alemão ........................................................................................................ 71 5.2 A gênese do esporte moderno e o processo civilizatório britânico ................................. 73 5.2.1 O esporte moderno e o contexto social ........................................................................................ 77 5.2.2 Violência, esporte e civilização .......................................................................................................... 79 5.3 O Olimpismo moderno ....................................................................................................................... 81 5.3.1 O ideário olímpico .................................................................................................................................. 83 5.3.2 A força dos Jogos Olímpicos .............................................................................................................. 86 6 O ESPORTE CONTEMPORÂNEO, ASPECTOS POLÍTICOS E MERCANTILISTAS ............................. 87 6.1 A história do uso político do esporte ........................................................................................... 87 6.1.1 O Olimpismo: um nobre ideal corrompido ................................................................................... 88 6.1.2 Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e a propaganda nazista ................................................... 89 6.1.3 O esporte: arma ideológica na Guerra Fria ................................................................................. 93 6.1.4 O esporte e o mundo contemporâneo ........................................................................................... 95 6.2 A organização esportiva versus a lógica capitalista .............................................................. 97 6.2.1 O esporte-espetáculo e os meios de comunicação de massa .............................................. 99 6.3 As perspectivas do esporte educacional ...................................................................................100 6.3.1 A crítica ao esporte no processo educacional ..........................................................................100 6.3.2 A defesa do esporte competitivo como instrumento de educação .................................103 Unidade III 7 O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA E DO ESPORTE NO BRASIL .............................108 7.1 A história do futebol no Brasil ......................................................................................................108 7.2 A história da Educação Física no Brasil .....................................................................................115 7.3 A Educação Física brasileira e os pareceres de Rui Barbosa .............................................116 7.4 Eugenia, higiene e nacionalismo, ideais brasileiros no início do século XX ...............117 7.5 A institucionalização do esporte brasileiro ..............................................................................118 7.6 A quebra do paradigma no esporte feminino brasileiro ....................................................119 7.6.1 A mulher no esporte: gênero e mídia ......................................................................................... 119 7.7 As estruturas esportivas brasileiras contemporâneas .........................................................121 8 EDUCAÇÃO FÍSICA E EPISTEMOLOGIA ..................................................................................................122 8.1 Abordagens filosóficas da Educação Física no Brasil ...........................................................123 8.2 Aspectos pedagógicos da Educação Física contemporânea ............................................125 8.3 Educação Física e aspectos da saúde ........................................................................................127 8.3.1 Educação Física e saúde mundial .................................................................................................. 128 8.3.2 Atividade física e nível socioeconômico..................................................................................... 130 7 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 APRESENTAÇÃO Este material está organizado de forma que cada capítulo desenvolva uma contextualização histórica, geográfica, política, social e cultural de cada povo ou período abordado. Posteriormente, apresenta uma análise focada nos exercícios físicos, jogos e disputas atléticas específicas de cada civilização. Inicialmente serão discutidos temas introdutórios e conceituais a respeito da História, Filosofia e Ciências Sociais que apoiam a metodologia de análise deste livro-texto. Serão abordados, de forma crítica, a evolução da civilização antiga, os contextos históricos e sociais e a ênfase nas questões relacionadas ao exercício no mundo antigo e seu legado para o mundo contemporâneo, englobando a análise do Egito Antigo, Grécia e Roma. Abordaremos ainda o exercício no período medieval e as transformações socioculturais do Renascimento. Depois, apresentaremos uma análise histórico-crítica das sociedades modernas e suas relações com o exercício físico pautado nos processos educativos, produtivos e de entretenimento. Serão relacionadas as escolas ginásticas europeias, os autores que mudaram o paradigma da educação ocidental moderna, resgatando o exercício e os bons hábitos através da ginástica e do esporte, este último desenvolvido sobretudo a partir da Revolução Industrial, no berço da aristocracia burguesa na Inglaterra. Trataremos também do surgimento do Olimpismo e da restauração dos Jogos Olímpicos na Era Moderna, bem como de suas implicações e desdobramentos. As discussões irão se estender à manipulação política do esporte moderno feita pelos governos oportunistas a partir do início do século XX e às relações do esporte contemporâneo com a mídia, as finanças e o capital globalizado desde o final do século passado até os dias atuais. Faremos um contraponto dos níveis de participação esportiva relacionando o esporte educacional, o esporte de participação e o esporte de rendimento. Também abordaremos as origens da Educação Física no Brasil sob a influência da ginástica europeia e as discussões a respeito da Educação Física brasileira no início do século XX.Relataremos a jornada para o desenvolvimento do futebol e dos clubes esportivos brasileiros. Desenvolveremos amplo debate a respeito da institucionalização do esporte durante a Era Vargas, os propósitos higienistas e eugenistas e a segregação da mulher na prática esportiva. Ainda serão apresentadas referências a respeito das abordagens metodológicas na Educação Física, aspectos filosóficos e epistemológicos. Todas as discussões históricas e filosóficas levam o leitor a não mais entender o estudo da história como a coleção de fatos e datas, mas sim como um processo de aprendizagem crítica, que, através da análise filosófica, permite gerar associações, analogias e contestações pertinentes ao desenvolvimento de um saber dialético e abrangente. 8 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 INTRODUÇÃO Caro aluno, Este livro-texto visa a apresentá-lo às origens e aos propósitos das manifestações atléticas humanas. Antes de ser um manual de curiosidades históricas, é uma referência para a reflexão a respeito da construção do exercício humano ontem e hoje. O texto pretende levá-lo a fazer analogias com os fatos do passado e as manifestações contemporâneas do movimento corporal humano, de modo que sua formação e atuação acadêmica seja crítica e emancipada, não ficando presa a postulados rigidamente travados pela teoria ou tradição. Visa à construção de uma vida profissional pautada pelo conhecimento, pela racionalidade e pela ética. Munido desses conhecimentos, espera-se que sua formação seja repleta de sentido e referências e que a resolução de seus questionamentos tenha, ao menos, ponto de partida através deste amplo e generalista compêndio sobre os aspectos socioculturais da Educação Física e do esporte. A ampla discussão das manifestações atléticas humanas nos mais diversos períodos da história e nos mais variados contextos sociais é necessária para o entendimento da importância e da finalidade do exercício na sociedade atual. 9 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Unidade I 1 A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA Esta disciplina investiga o surgimento das manifestações da cultura do movimento do corpo humano e o crescimento e desenvolvimento destas manifestações em diferentes períodos da história. Interpreta as influências da atividade física nas diferentes culturas e sociedades. Ao estudar os diferentes períodos históricos e as diferentes sociedades, a história da Educação Física analisa as condições do desenvolvimento socioeconômico e cultural de cada povo ou era, pois essas características estão diretamente relacionadas com a cultura de prática de atividade física. O estudo da história tem importante função no cotidiano profissional do professor de Educação Física. É um referencial dos acontecimentos da área no passado, que ensina com as glórias e vivências dos povos antigos, mas também alerta para os erros cometidos pelos nossos antecessores. 1.1 O que é História? Há milhares de anos os seres humanos se organizavam em pequenos grupos, com pouco contato entre si. Viviam da caça, da pesca e da coleta, deslocavam-se atrás desses recursos naturais e tinham poucos objetos. Todos os grupos eram pouco numerosos, porque seu modo de vida não permitia, pois, se sua população crescesse muito, faltariam recursos e os deslocamentos seriam dificultados (VICENTINO; DORIGO, 2013). Essas primeiras formas de organização social deram espaço para o sedentarismo do homem, ou seja, o processo de fixação em determinada região a partir da criação de rebanhos e da produção agrária. A abundância de alimentos e o fato de os grupos não terem mais que migrar de tempos em tempos resultaram na ampliação do contingente populacional, bem como motivaram a especialização de tarefas e a fabricação de instrumentos mais complexos, de cerâmicas e cerimoniais. Nesse momento, a sensibilidade artística do homem antigo se desenvolveu bastante e ele teve necessidade de confeccionar gravuras e pinturas em paredes de cavernas e rochas. É importante ressaltar que essas práticas não correspondem a todos os povos e não ocorreram simultaneamente em todas as regiões (VICENTINO; DORIGO, 2013). A ideia de que, antes da invenção da escrita, o que existiu foi a Pré-História e não a História está ligada à noção de que a História não pode ser feita sem documentos escritos. Recentemente, os especialistas reconheceram a importância dos registros não escritos como fontes históricas – são eles pinturas, esculturas, relatos orais e objetos. Sabe-se que a escrita não surgiu ao mesmo tempo em todos os lugares e, ainda hoje, povos vivem sem o desenvolvimento da escrita, baseando sua história na oralidade e em seus costumes. 10 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I No entanto, convencionou-se que o termo Pré-História se refere ao período da humanidade, envolvendo milhares de anos, desde o seu surgimento até a consolidação da escrita. Já a denominada História, embasada por documentos escritos, tem cerca de 6 mil anos (VICENTINO; DORIGO, 2013). A história não deve ser apenas um amontoado de fatos, datas e nomes em uma sequência cronológica, mas sim um instrumento para a discussão crítica do passado, comparando e analisando acontecimentos relevantes, que proporcionem soluções para problemas do presente. Os primeiros registros históricos aparecem há cerca de 6 mil anos, quando a civilização humana dá um grande salto em sua organização cultural e social, passando a viver em centros urbanos e organizar as funções complexas da vida na cidade na forma de profissões, papéis sociais bem definidos. Nessas cidades, os proprietários ricos da terra desenvolvem modelos centralizados de governo, nos quais assumem a liderança, concentrando grande riqueza. Os registros contábeis do patrimônio, achados nas tumbas desses líderes das primeiras cidades localizadas na Mesopotâmia, são os primeiros documentos organizados na forma de escrita com símbolos decodificados na forma de linguagem (VICENTINO; DORIGO, 2013). É importante lembrar que a construção da história se dá a partir de documentos encontrados e selecionados, através de relatos, observações e histórias de vida. Cabe ao historiador que organiza os documentos apresentar uma versão dos fatos reais ocorridos. O método histórico precisa de tratamento crítico, pois, de forma geral, a história é escrita sob a ótica de um ponto de vista. Sendo assim, várias fontes, teorias e versões devem ser analisadas antes de se confirmar um fato histórico. Caso contrário, a história pode ser tendenciosa e parcial, como aquela que é escrita pelos vencedores das guerras (THOMAS; NELSON, 2002). 1.2 A Filosofia A Filosofia é um método de aquisição do conhecimento que busca, de forma racional, encontrar a verdade ou se aproximar o mais perto possível dela. A metodologia filosófica usa a discussão, o pensamento e a crítica como elementos para a construção do saber. A aplicação do método filosófico compreende o estabelecimento de um questionamento, de uma dúvida, não aceitando conceitos preestabelecidos sem antes analisá-los e contrapô-los mediante rigorosa argumentação. O pensamento filosófico não busca estabelecer uma verdade absoluta, mas discutir as verdades possíveis a respeito de determinado assunto. A dialética ampara essa dualidade, na qual pensamentos opostos ou complementares podem coexistir em busca de um entendimento amplo de um fato. Dessa forma, o método filosófico será aplicado no contexto deste livro-texto com o intuito de discutir criticamente os fatos históricos, fazendo analogiascom fatos contemporâneos e construindo uma análise abrangente da problemática apresentada. 11 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA 2 A IMPORTÂNCIA DAS HABILIDADES MOTORAS NOS POVOS ANTIGOS No decorrer de um extenso período de adaptação e evolução que durou milhões de anos, os hominídeos foram desenvolvendo mais habilidades motoras e maior nível de complexidade do sistema nervoso, aumentando consideravelmente sua capacidade cognitiva. O cérebro, mais complexo, incrementou a capacidade de raciocínio, o que permitiu uma capacidade maior de manipular armas e ferramentas, dando ao homem grande vantagem perante seus predadores. As habilidades de manipulação, associadas à maior cognição, levaram ao desenvolvimento de tecnologias que, de forma crescente, permitiram criar soluções cada vez mais elaboradas para a alimentação e a sobrevivência (VICENTINO; DORIGO, 2013). A divisão dos períodos históricos da humanidade foi feita com base nos elementos que eram manipulados pelo homem em determinado período. Por exemplo: o primeiro período, denominado Paleolítico ou Idade da Pedra Lascada, iniciou-se há aproximadamente 2,7 milhões de anos e se estendeu até 10000 a.C. (VICENTINO; DORIGO, 2013). Os primeiros grupamentos humanos do Paleolítico viviam em pequenos bandos com cerca de trinta indivíduos e gastavam grande parte do seu tempo nas atividades de subsistência (pesca, caça, preparo do alimento, locomoção). Eram nômades e permaneciam em determinado território por cerca de três meses, em função das condições climáticas e em razão das reservas de recursos (caça, pesca e vegetais). As tarefas passaram a ser divididas conforme a idade, o sexo e as condições físicas dos membros do bando. Os homens fabricavam ferramentas, construíam moradias (tendas), caçavam, pescavam e protegiam o território. As mulheres faziam a coleta de grãos, folhas, frutos, raízes, ovos, mel e insetos e também confeccionavam cestos e potes para armazenar e servir alimentos (VICENTINO; DORIGO, 2013). As pinturas encontradas nas cavernas relatam muito sobre os hábitos, costumes e história dos grupamentos humanos do período Paleolítico. Elas são denominadas pinturas rupestres. Atualmente, esses achados são considerados importantes evidências históricas para determinar os hábitos e a cultura de populações antigas. Cenas de caça, pesca, rituais, danças e brincadeiras são exemplo de relatos visuais de como esses povos viviam milhares de anos atrás. Através desses relatos, podemos perceber a importância da motricidade humana em seus primórdios (VICENTINO; DORIGO, 2013). Evidências mostram como o Homo sapiens sapiens se expressava através de símbolos há cerca de 40 mil anos. Foram descobertos vestígios de vasos de argila com inscrições simbólicas datadas de cerca de 70 mil anos. Dessa forma, pode-se afirmar que a capacidade de abstração e construção de cultura simbólica através de artefatos e desenhos é bastante anterior ao Homo sapiens; cerca de 30 mil anos antes de sua chegada à Europa, já havia símbolos de inteligência e abstração semelhantes aos parâmetros do homem moderno (VICENTINO; DORIGO, 2013). 12 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Figura 1 Atualmente, todos os homens pertencem à subespécie Homo sapiens sapiens. As variações físicas constatadas ocorreram devido a adaptações às exigências do meio, nas diferentes regiões do planeta onde o homem se instalou há milhares de anos. Dessa forma constata-se uma pigmentação da pele mais intensa nos habitantes de regiões com maior irradiação solar, assim como habitantes das frias regiões polares possuem mais gordura corporal, que serve como reserva energética e proteção térmica contra as baixas temperaturas. Durante toda sua jornada evolutiva, o homem teve como atividades de subsistência a caça e a coleta de raízes, ramos e frutos. Em função dessas atividades, o homem teve que desenvolver habilidades físicas específicas, como corrida, saltos, natação, escalada, mergulho e o uso e lançamento de implementos como machado, lança e arco e flecha (SANTOS, 1994). Cerca de 10 mil anos atrás o homem passou por um período de grande mudança em seu comportamento. A Revolução Agrícola foi a descoberta do plantio como recurso para a obtenção de alimentos. Este recurso fixou mais o homem em um mesmo local, pois antes a vida era nômade e, quando a caça ficava escassa, o grupo migrava para outra região. O plantio gerou um excedente de produção, que alavancou um grande aumento da população humana (SANTOS, 1994). No entanto, a fixação em um só lugar e o acúmulo de recursos trouxe problemas para o homem. A condição de fartura atraía a cobiça de outros grupos, que passaram a saquear as comunidades agrícolas. A necessidade de proteger seu grupo, sua lavoura e seus animais levou o homem a intensificar sua preparação guerreira. A destreza humana para manipular armas, que a princípio eram usadas na caça, passou a ser aperfeiçoada com o objetivo de defender os territórios de inimigos. Surge então o treinamento do físico para a guerra, lançamentos, arco e flecha, marchas e lutas (SANTOS, 1994). Saiba mais O filme a seguir, que foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, ilustra algumas questões apresentadas: A GUERRA do fogo. Dir. Jean Jacques Annaud. Canadá; França: International Cinema Corporation, 1981. 100 minutos. 13 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA 2.1 A atividade física nas primeiras civilizações A civilização é o resultado do trabalho humano para transformar a natureza. Refere-se às organizações feitas pelo homem para estruturar a sociedade, a distribuição de papéis, as relações políticas e a simbologia de um povo. Nesse sentido, o termo civilização não se refere a uma escala evolutiva tecnológica, pois toda sociedade humana possui seu tipo de civilização. É bastante equivocada a concepção de que existam povos primitivos e povos civilizados (VICENTINO; DORIGO, 2013). O conceito de civilização nasce junto com a fundação das primeiras cidades na Mesopotâmia e no Egito, cerca de 5 mil anos a.C. Os homens se agruparam em grandes comunidades devido à necessidade de realizar grandes empreendimentos (diques, barragens, muralhas) para controlar a produção agrícola. A civilização seria então um tipo de sociedade resultante de um processo marcado por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e intelectual. No Ocidente, esse processo ocorreu com diferenciação social, divisão do trabalho, urbanização e concentração do poder político e econômico. Atualmente, a civilização corresponde a um elevado desenvolvimento tecnológico, que faz com que as forças produtivas sejam predominantemente automatizadas, não exigindo do homem grande esforço físico para sua sobrevivência. Nas primeiras civilizações dos povos antigos, a prática de atividade física humana representava quase toda a energia gasta para sobrevivência, produção de alimentos e atividade sociais. De forma geral, o homem usava o físico com as seguintes funções e objetivos: Subsistência Atividades voltadas para a caça, a pesca, a fuga, a defesa e o trabalho braçal agrícola ou urbano. Cerimônias sagradas Nos primórdios da civilização, o homem ainda não dominava o pensamento racional e abstrato. Assim, delegava a feitos divinos todos aqueles fenômenos que não podia explicar, principalmente aqueles relacionados com as forças da natureza. As danças e os jogos eram componentes essenciais dos rituais sagrados, eram pontes que ligavamos homens aos deuses da natureza. De forma geral, essas atividades eram seguidas de sacrifícios, muitas vezes humanos, para homenagear ou aclamar os deuses. Esse é o caso do Tlachtli, também chamado Teotlachtli, o Jogo de Bola Mesoamericano. Era disputado como cerimônia religiosa em grandes estádios com capacidade para até 15 mil espectadores, possuía regras semelhantes entre diversos povos mesoamericanos, olmecas, maias e astecas (povos pré-colombianos do México), e foi disputado até o século XVI (FIGUEIREDO, 2002). Nesse jogo, sete jogadores de cada time tentavam fazer com que uma pesada bola de resina passasse por um aro de pedra fixado na parede usando cotovelos, joelhos e quadris. O jogo exigia grande habilidade devido ao peso da bola (entre 3 e 5 kg) e à altura do arco de pedra. Por esse motivo as partidas 14 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I duravam até seis horas. De acordo com a localidade, prosseguia-se uma ritualística diferente após o jogo (FIGUEIREDO, 2002). Em Monte Albán (cidade principal da cultura zapoteca, próximo à atual cidade de Oaxaca), somente os principais nobres e sacerdotes estavam aptos a presenciar as disputas (esse povo não tinha o hábito de sacrifícios humanos). No entanto, em Tenochtitlán (a capital asteca), no final das partidas, o time perdedor inteiro era sacrificado, enquanto que o autor do “gol” ficava sozinho dentro do campo e era homenageado pelos espectadores, que lhe arremessavam suas joias, ouro e plumas, consideradas tão valiosas quanto joias (FIGUEIREDO, 2002). Em Chichén Itzá (cidade do final do período maia, na península do Yucatán), um dos times jogava utilizando roupas feitas de pele de jaguar e o outro com roupas feitas com penas de águia. Nesta cidade os times tinham um capitão. Este era o único habilitado a fazer o ponto, o que tornava as partidas mais demoradas ainda. No final da disputa os times se posicionavam em fila atrás de seus capitães e estes se posicionavam um de frente para o outro; então, o capitão do time perdedor decapitava o capitão do time vencedor. Para o povo de Chichén Itzá essa era uma morte honrosa e desejável, pois era um sacrifício honroso e quem morria se tornava imortal segundo a crença daquele povo (FIGUEIREDO, 2002). Figura 2 Preparação guerreira Os povos antigos passaram a ter maior envolvimento em conflitos bélicos após a sua fixação no solo com o advento da Revolução Agrícola. Os povos vizinhos ou nômades passaram a cobiçar suas terras e riquezas, atacando vilarejos e comunidades. O treinamento fez-se necessário para aperfeiçoar as destrezas dos guerreiros, que a princípio usavam suas habilidades motoras e 15 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA capacidade física apenas para caçar (corrida, lançamentos e saltos). Na guerra, aquele que fosse mais eficiente sobrevivia. A oportunidade de errar não era mais oferecida; qualquer erro na pontaria poderia significar sua própria morte. Jogos, brincadeiras e educação A componente lúdica sempre esteve associada à vida do homem. Por meio de jogos e brincadeiras, crianças e jovens imitavam e aprendiam as atividades da vida cotidiana adulta. Os adultos também brincaram sempre. Os jogos adultos serviam como dramatizações de episódios importantes para a vida do seu povo: eram guerras, representações do trabalho etc. Dessa forma, os jogos e brincadeiras adquiriam um grande potencial pedagógico para os povos antigos, estando envolvidos também com ritos de passagem para a vida adulta. Muitos povos indígenas do Brasil disputam lutas e corridas de toras como rituais ou mesmo como diversão, como preparação para a vida adulta. Os xavante, índios radicados no Mato Grosso do Sul, apreciam as lutas corporais wa’i e as corridas de revezamento com toras de buriti, chamadas uiwede. Elas incitam rivalidades amistosas entre os jovens, cultivando qualidades muito importantes para o tradicional estilo de vida xavante: a força e a resistência físicas. As lutas wa’i ocorrem antes da condução dos garotos à casa dos solteiros, momento em que se tornam oficialmente membros de uma das oito classes de idade xavante. Nas lutas, meninos da mesma idade, assim como meninas, reagem às provocações de um homem adulto. Em pé, ambas as partes se engalfinham vigorosamente, e os combates terminam quando uma delas, em geral o adulto, consegue derrubar a criança (GRAHAM, 2008). Figura 3 16 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Quando ocorre de meninas serem convocadas ao ringue para lutar o wa´i, é muito frequente que se juntem para arremeter coletivamente contra um único homem adulto, a quem perseguem numa divertida batalha, em que os espectadores se divertem incentivando o combate com gritos e risos (GRAHAM, 2008). Nas corridas de revezamento, cada participante esforça-se ao máximo ao longo de trechos curtos, portando sobre os ombros uma enorme e pesada tora de buriti (aproximadamente 80 quilos para os homens e 60 para as mulheres). Em seguida, trata de transferir a tora aos ombros de algum outro membro de sua equipe, da mesma classe de idade. Essas toras extremamente pesadas são transportadas pelos corredores ao longo de trajetos de extensão aproximada entre seis e oito quilômetros, que terminam no centro da aldeia (GRAHAM, 2008). Embora apenas adultos possam transportar as toras, essas corridas são acompanhadas por todos os membros fisicamente aptos da comunidade, o que faz delas eventos muito animados. O correr com toras é, sem dúvida, uma das atividades esportivas favoritas dos xavante (GRAHAM, 2008). Lembrete Povos antigos foram dominados pelos europeus não por serem menos evoluídos, mas por terem menos recursos militares. Alguns povos tinham sistemas sociais mais organizados do que os europeus. 2.2 O sedentarismo na sociedade contemporânea Nas civilizações contemporâneas, a atividade física humana não é mais uma ferramenta essencial à sobrevivência, pois os meios produtivos apresentam-se automatizados, eletrônicos, com fontes de energia fóssil (petróleo) elétrica, quando não atômica. O homem não precisa mais de seu corpo para se locomover – automóveis, motocicletas e elevadores cumprem melhor o papel. A comida não tem mais que ser caçada – está pronta para o consumo, enlatada, ensacada, industrializada. Devido ao grande desenvolvimento tecnológico, científico e filosófico, o homem conseguiu resolver grande parte das questões que conturbavam sua vida. Atualmente, existe uma explicação racional para quase tudo, o homem perde cada vez mais o contato com o sagrado. As religiões contemporâneas não usam mais o movimento do corpo como meio de comunicação com Deus. A prática de atividade física foi racionalizada, passa por grande análise científica e filosófica. A preparação guerreira ainda usa o treinamento do corpo como instrumento de combate, apesar de a tecnologia bélica reduzir cada vez mais a presença do homem no local de combate (mísseis inteligentes, veículos blindados, aviões etc.). Outra questão importante é o fato de apenas uma pequena parcela da população participar do contingente militar atualmente. A guerra não é mais uma constante para todos os países como nos tempos antigos. Atualmente, acordos diplomáticos e alianças estratégicas (econômicas e políticas) reduziram as guerras. 17 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Os jogos e brincadeiras continuamassumindo o papel educacional na vida contemporânea. Atividades físicas resistem ao tempo passando de geração para geração como importante ferramenta de socialização entre os homens, muitas vezes tornando-se as principais manifestações corporais do mundo atual. No entanto, mesmo as brincadeiras e jogos lúdicos envolvendo o movimento do corpo humano encontram-se ameaçados pelos avanços tecnológicos do mundo contemporâneo. Brinquedos eletrônicos reduzem drasticamente a execução de atividade física – são videogames, computadores, simuladores de modalidades esportivas, nos quais os dedos são as únicas partes do corpo que se movimentam. No entanto, as necessidades fisiológicas e metabólicas do ser humano continuam bastante parecidas com as de nossos antepassados caçadores e lavradores, que usavam, de forma árdua, o esforço físico para garantir a sobrevivência. O organismo humano possui metabolismo bastante econômico e delicado. O consumo de calorias em quantidade superior ao gasto energético diário, associado à perda de massa magra gerada pelo sedentarismo, tem levado a humanidade a uma condição generalizada de sobrepeso e obesidade. De acordo com pesquisa do IBGE, Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (Vigitel) de 2014, 52,5% dos brasileiros estão em sobrepeso (índice de massa corporal – IMC acima de 25 kg/m²) e 17,9% estão em nível de obesidade (IMC maior que 30). A pesquisa ainda revela que 49% dos entrevistados fazem atividades físicas de forma insuficiente (menos que 150 minutos por semana, segundo recomendação da Organização Mundial da Saúde – OMS), sendo que 15% são inativos (BRASIL, 2015) A obesidade associada ao consumo alimentar inadequado é responsável pelo desenvolvimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), que são hoje as maiores responsáveis pelas causas de morte no mundo. A partir da obesidade e do quadro de sedentarismo, aumenta a incidência de doenças como diabetes mellitus II, hipertensão arterial, dislipidemias (colesterol e triglicérides), aterosclerose, câncer de mama, câncer de colo do útero e os casos de morte por mal súbito, infarto agudo do miocárdio. A prática de exercícios físicos em locais voltados para a saúde, como academias, clínicas e estúdios, tem aumentado bastante. O homem contemporâneo, assolado por doenças degenerativas causadas pelo sedentarismo, pelo estresse e pela alimentação industrializada, passou a procurar locais para praticar atividades físicas, bem como a buscar opções mais saudáveis de alimentação. A cultura mundial do fitness é alavancada por dois fatores principais: as questões da saúde, de forma preventiva ou remediada, e a estética ditada por padrões inatingíveis de corpos construídos e amplamente divulgados pela mídia. Contudo, em sua busca desenfreada por conforto, tecnologia e eficiência, o homem baniu a atividade física de sua vida e agora tem de resgatá-la atendendo ao chamado do seu corpo e de sua herança genética. 18 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Exemplo de aplicação Reflita: o que podemos aprender com os homens antigos que habitavam o mundo antes do processo de civilização, antes do alto desenvolvimento tecnológico? Podemos olhar para seus hábitos, suas necessidades e questionar as capacidades de movimento do corpo humano. O homem antigo precisava correr, saltar, escalar, levantar e carregar pesos, nadar, arremessar, entre outras habilidades vigorosas. Todas essas ações eram necessárias para a sobrevivência diária. Havia a necessidade de muito esforço físico e muito gasto de energia para sobrevivência em um mundo hostil onde havia escassez de alimento. Essas condições geraram adaptações físicas e metabólicas no corpo humano, deixando um registro genético. Os hábitos motores e alimentares do mundo cotidiano são incompatíveis com a programação genética metabólica que herdamos. O alimento nos dá prazer e saciedade; estes registros sensoriais são importantes para a sobrevivência. No entanto, essas percepções foram desenvolvidas em um período de escassez e hoje vivemos em uma época de abundância de alimento e de sedução para o consumo e para o prazer. Induzidos pela propaganda da mídia, buscamos alimentos prazerosos antes de pensarmos em alimentos nutritivos, pois queremos ter prazer. Ingerimos mais alimentos do que precisamos, pois queremos estender nossa sensação de prazer pelo maior tempo possível. Substituímos a alegria de correr, nadar, dançar e brincar, usando plenamente nossos corpos, por lazeres virtuais que geram sensações simulando experiências reais, no videogame, celulares, internet, televisão e filmes. Como resultado, estamos cada vez mais parados e cada vez mais alimentados, confinados como animais na engorda; somos mantidos conectados em aparelhos do mundo virtual e induzidos a consumir guloseimas cada vez mais deliciosas. Estamos ficando doentes; somos uma geração de obesos, diabéticos e hipertensos precoces. Deterioramos nossos corpos com toxinas, resíduos e conservantes, antibióticos e hormônios. Pesquisas não faltam para apontar para o risco do consumo de açúcar, gorduras saturadas, agrotóxicos e conservantes. Opções crescem a cada dia para consumirmos alimentos naturais, orgânicos e com baixo índice glicêmico. Fazer exercícios também é uma opção. Não faltam academias, clubes, parques, programas, aplicativos, para todos os gostos e faixas de poder aquisitivo. A grande desculpa é a falta de tempo, pois trabalhamos muito, perdemos muito tempo indo de um trabalho para o outro para podermos aumentar desesperadamente nossa renda e honrarmos nossas contas motivadas pela sedução fugaz da mídia em nossa sociedade de consumo. 19 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA 3 OS EXERCÍCIOS NO MUNDO ANTIGO 3.1 A civilização egípcia e os exercícios físicos A civilização egípcia cresceu às margens do Rio Nilo, no nordeste africano, beneficiando-se do regime de cheias deste que é um dos maiores rios do mundo em extensão e volume de águas. Durante a cheia, as margens do Rio Nilo são submersas e fertilizadas, permitindo a agricultura no período de seca (VICENTINO; DORIGO, 2013). Há cerca de cinco mil anos, um grande aumento populacional impulsionou o Egito em seu desenvolvimento civilizatório, e a construção de barragens e canais se fez necessária para expandir a produção agrária. A evolução política acompanhou o rápido aumento populacional. O Egito passou de um conjunto de comunidades a uma dinastia. A concentração de poder nas mãos de um faraó, considerado um deus vivo, fez com que essa forma de poder perdurasse por milhares de anos (VICENTINO; DORIGO, 2013). A sociedade egípcia era formada em sua base por uma grande população de camponeses e artesãos, que pagavam tributos e prestavam serviços compulsórios ao faraó nas plantações, obras e construções públicas. Os escravos também faziam parte dessa base de trabalho e eram constituídos por povos capturados em guerras. A história do Egito pode ser dividida em três grandes períodos: o Antigo Império (c. 3200 a.C.-2300 a.C.), o Médio Império (c. 2000 a.C.-1580 a.C.) e o Novo Império (c. 1580 a.C.-525 a.C.). Nesses períodos, o Egito foi governado por faraós de 26 dinastias. O declínio dessa imponente civilização se deu com a invasão dos persas, em 525 a.C. Em sua história mais recente, o Egito foi dominado por vários povos, tornando-se província do Império Persa, território ocupado por macedônios, romanos, árabes, turcos e ingleses (VICENTINO; DORIGO, 2013). Saiba mais Obra do aclamado escritor premiado com o Prêmio Pulitzer Norman Mailer, o romance indicado a seguirilustra o cotidiano da corte dos faraós do Egito: MAILER, N. Noites antigas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 3.1.1 Os exercícios físicos no Egito Antigo As práticas de exercícios, jogos e disputas atléticas no Egito se mostram bastante diversas, e existe uma grande quantidade de pinturas e registros destas práticas em ruínas e sítios arqueológicos estudados na era contemporânea. São encontrados afrescos com a representação de exercícios de ginástica, lutas e exercícios individuais. No Egito Antigo não se tem registro de jogos coletivos ou disputas de torneios grandiosos; as práticas visavam à preparação guerreira, apresentações individuais e entretenimento (RAMOS, 1982). 20 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Em muitas pinturas antigas egípcias são observados jogos recreativos infantis, lutas, jogos com bola, jogos com arcos, disputas diversas que apresentam características lúdicas das crianças e jovens egípcios. Os egípcios também se dedicavam bastante à ginástica. Inúmeras ilustrações antigas sugerem uma metodologia bastante elaborada para a prática de suspensões, pontes, posturas acrobáticas em duplas, trios ou mais participantes (RAMOS, 1982). Figura 4 – Exercícios ginásticos no Antigo Egito Em exercícios individuais, são registradas imagens de arremesso, corridas, levantamento de pesos e natação. Muitos faraós eram adeptos da corrida e registraram isso em suas tumbas, entre eles Seti I e Ramsés II. Os egípcios também apreciavam apresentações de lutas – entre elas, existem registros de luta livre, boxe e esgrima. No túmulo de Ptah-Hotep há uma cena com várias ilustrações de jovens lutando com vitalidade (RAMOS, 1982). Figura 5 21 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Com apoio nos desenhos, pinturas, estátuas, baixos-relevos e inscrições achados em monumentos e sarcófagos, estima-se que os egípcios praticavam variadas formas de exercício há mais de 40 séculos a.C. Os exercícios físicos buscavam a aquisição de saúde e vigor, para o trabalho, para a preparação guerreira ou simplesmente como prática lúdica. Os jovens egípcios buscavam seguir o exemplo de seus reis e faraós e, em particular, procuravam imitar suas façanhas desportivas (RAMOS, 1982). O faraó, por ocasião de festividades populares e celebrações, costumava mostrar suas habilidades e destrezas físicas. Essas demonstrações de vigor e maestria aumentavam seu prestígio e exaltavam seu poder real. Amenófis II foi um atleta de grande porte físico, sendo admirável na prática do remo, equitação, corrida e arco e flecha. Registros afirmam que era impressionante sua pontaria com o arco quando estava em seu carro em movimento. Exemplo de aplicação A sociedade egípcia era duramente estratificada, usava mão de obra escrava, apoiava-se em um regime de governo centralizado na figura do faraó, que tinha seu poder justificado por sua linhagem divina. Esse governo, apoiado na mística figura do governante, tinha em seu alto escalão sacerdotes e conselheiros próximos ao faraó. A população tinha pouca possibilidade de ascensão social diante da aristocracia instalada. A participação política era nula. Diante dessa condição, o cidadão egípcio não era estimulado a participar de forma criativa dos processos produtivos do reino. A falta de autonomia e participação também é expressa na prática do exercício, na qual se estimulavam jogos, lutas, equitação, arco, entre outros, como forma de preparação utilitária militar. No entanto, não havia uma participação atlética voluntária e livre para todos. As apresentações de destrezas físicas visavam, no Egito Antigo, a entreter o povo e os membros da corte e reforçar a distinção social entre o faraó e seus súditos, exaltando em seus gestos atléticos sua condição divina distinta. A história egípcia nos mostra que quanto maior a discrepância social e maior a centralização do poder, menos participativo e criativo é o povo. Faça uma analogia com as formas de poder presentes no mundo contemporâneo e reflita sobre como os exercícios físicos e o esporte são dirigidos em função da concentração de poder. 3.2 Os exercícios físicos na Grécia Antiga 3.2.1 Contexto histórico geral A população grega foi formada pela miscigenação entre cretenses, aqueus, dórios, jônios e eólios, povos que se envolveram em conflitos, migrações e invasões e se difundiram pelas ilhas e pelo continente que hoje conhecemos como Grécia. Muitas colônias foram formadas na costa ocidental da Ásia, tal como Mileto, e outras se fixaram na Península Itálica, tal como Siracusa. Esses povos eram dedicados à navegação, às relações comerciais e ao combate. Vieram a desenvolver um povo responsável pela estruturação da cultura ocidental. 22 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Devido ao grande aumento populacional e à escassez de terras férteis na Grécia, a população iniciou um processo de expansão no Mediterrâneo, fundando inúmeras cidades na Itália, na Sicília. Na Península Balcânica e na orla do Mediterrâneo surgiram mais de cem cidades gregas, sendo as duas mais expressivas Atenas e Esparta (VICENTINO; DORIGO, 2013). 3.2.2 A pólis de Esparta Esparta ficava na região da Lacônia, na Península do Peloponeso, e foi fundada pelos dórios. Esparta constituiu-se como cidade guerreira, com política monárquica autocrática, tendo sido líder de cidades vizinhas no Peloponeso, com quem fez alianças comerciais e militares. A sociedade espartana era formada pela elite militar espartana de origem dórica, que concentrava o poder político e religioso. Havia ainda os periecos, pequenos proprietários, artesãos e comerciantes; e os hilotas, servos de propriedade do Estado que eram explorados pelos senhores espartanos. Em Esparta, o monopólio político e religioso estava nas mãos da elite espartana, formada por cidadãos guerreiros. A organização monárquica de Esparta evoluiu para uma condição oligárquica. A cidade tinha dois reis, um com funções militares e outro com direcionamento político e administrativo. Ambos se submetiam a dois conselhos, a Apela, assembleia de guerreiros, e a Gerúsia, conselho de anciãos (VICENTINO; DORIGO, 2013). Esparta manteve-se estável em suas tradições e regime oligárquico. Não sofreu grande expansão populacional, o que lhe conferiu controle econômico, mas também ocasionou ruína em períodos de grandes guerras, quando a baixa de homens adultos era grande em combate. A sociedade espartana, menos dinâmica que as demais, permaneceria, assim, oligárquica e aristocrática, não sofrendo influência política democrática, sendo mais estável do ponto de vista político e menos dinâmica do ponto de vista social, característica proporcionada pela falta de mobilidade social, pois os hilotas (servos) e periecos artesãos eram visto como castas inferiores e não se misturavam aos espartanos (VICENTINO; DORIGO, 2013). Os espartanos, altamente militarizados, mantiveram o poder pela força. Apesar de serem numericamente inferiores, eles possuíam as melhores terras e mais riquezas. Os filhos dos espartanos eram educados pela pátria a partir dos 7 anos de idade, quando passavam a pertencer à cidade e não mais à sua família. A rigorosa educação militar se desenvolvia arduamente até os 18 anos de idade, quando se iniciava o período de serviço militar. Ao completar 30 anos, o espartano era levado à cidade para se casar e ter filhos, mas continuava a servir a pátria com suas habilidades militares até completar 60 anos, quando era admitido na Gerúsia, conselho de anciãos, e dispensadodo serviço militar. Poucos chegavam a ter esta honra (VICENTINO; DORIGO, 2013). 3.2.3 A pólis de Atenas Atenas foi formada a partir da junção de aqueus, eólios e jônios. A cidade era bastante atrativa por seu porto de Pireu e se tornou grande centro comercial, político e militar. A cidade-estado de Atenas cresceu em influência e poder, tornando-se, assim como Esparta, líder em relações comerciais e militares, conquistando vasta área de influência perante as cidades aliadas. Situada na região continental da Grécia (Ática), possuía posição estratégica em função de seu porto e de uma extensa muralha construída para proteger e ligar a cidade ao porto (VICENTINO; DORIGO, 2013). 23 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Após a destituição do último basileu, Atenas abandonou o regime monárquico tirânico e desenvolveu um regime político oligárquico, no qual um arconte era designado para administrar a cidade por um ano sob a fiscalização de um conselho aristocrático formado pelos eupátridas. Por volta do século VIII a.C., os atenienses colonizaram comunidades e povoamentos espalhados pelo Mediterrâneo a fim de suprir a cidade, cada vez mais populosa. As cidades colonizadas na Península Itálica e no Mar Negro forneciam trigo, metais e madeira. Em troca, Atenas vendia-lhes vinho, azeite e artesanatos (VICENTINO; DORIGO, 2013). A expansão para o Mediterrâneo gerou grande enriquecimento dos comerciantes e acentuou diferenças e conflitos. Os produtores de trigo locais não podiam concorrer com o produto mais barato e abundante das colônias e acabaram perdendo suas terras e sendo escravizados. Os ricos proprietários de terra e comerciantes atenienses ricos começaram a questionar o conselho de eupátridas, aumentando ainda mais as tensões sociais originárias do crescente poder gerado pela ascensão econômica (VICENTINO; DORIGO, 2013). O crescente quadro de instabilidade levou vários legisladores atenienses a fazerem propostas para superar os conflitos e atenuar as tensões sociais. Os mais importantes foram Drácon, que organizou e tornou público um registro escrito das leis, e Sólon, que eliminou a escravidão por dívidas, retroagindo a anistia aos devedores, dividiu a sociedade de acordo com a renda de cada indivíduo, possibilitando a ascensão social, e criou a Bulé, conselho formado por quatrocentos membros do povo com funções administrativas e legislativas. As leis criadas pela Bulé eram levadas ao veredito da Eclésia, assembleia popular. Sólon foi responsável pela estruturação do regime democrático (demo: povo; cratos: poder). No entanto, as reformas propostas por Sólon desagradaram a elite eupátrida e intensificaram as lutas sociais, que levaram a um período de líderes autocráticos tiranos (MANFREDI, 2008). Em meados de 500 a.C., Atenas sofre novo processo de reordenação democrática pelas mãos do estadista Clístenes (c. 570 a.C.-508 a.C.), que destituiu a tirania e fez reformas políticas democráticas e pacificadoras. O governante dividiu os atenienses em dez tribos, formadas de acordo com o território em que residiam. A Bulé passou a ter cinquenta representantes por tribo, sendo a presidência assumida de forma alternada por membros de todas as tribos, por períodos iguais. A Eclésia passou a ter maiores poderes legisladores. Clístenes criou ainda o ostracismo, um mecanismo que condenava ao exílio de dez anos todo cidadão rico e poderoso o suficiente para colocar em risco a democracia. A regência de Clístenes marca o Período Clássico da Grécia (MANFREDI, 2008). 3.2.4 Período Clássico (séculos V a.C.-IV a.C.) O Período Clássico foi marcado por grandes guerras contra os persas e entre as cidades gregas. Também foi um período de grande florescência cultural, com grande desenvolvimento da filosofia, das ciências e das artes. Grandes pensadores, como Sócrates, Platão e Aristóteles, viveram nesse período, que é considerado o apogeu da civilização grega antiga, deixando um imenso legado para a constituição da cultura ocidental contemporânea. A primeira investida dos persas sobre a Grécia ocorreu no episódio que ficou conhecido como Guerras Médicas (em referências aos medos, povo persa). Entre 490 a.C. e 479 a.C., liderados por 24 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Dario I, os persas desembarcaram na Grécia, mas foram derrotados pelo Exército ateniense na Planície de Maratona. Após essa guerra, os atenienses reforçaram sua frota naval. A segunda ofensiva persa iniciou-se em 480 a.C., quando o imperador Xerxes comandou aproximadamente 100 mil contra a Grécia. Os gregos, em menor número, uniram-se contra os invasores, mas só conseguiram retardar o avanço persa no Desfiladeiro de Termópilas. Os persas conseguiram invadir e saquear Atenas (MANFREDI, 2008). Um fato interessante aconteceu durante os desdobramentos da batalha de Maratona. O confronto com os persas ocorreu em Maratona, cerca de 40 quilômetros distante de Atenas. A esquadra persa, acampada na praia, foi surpreendida pelas tropas atenienses, repletas de hóplitas (soldados com armamento pesado). O Exército persa, em maior número (cerca de 100 mil soldados), contava com milhares de arqueiros que impossibilitavam o avanço a média distância. Os soldados atenienses e de Plateia somavam apenas 12 mil homens, muito bem treinados e fortemente armados com escudos pesados de bronze, lanças e elmos. No entanto, ainda de madrugada, o Exército grego levantou-se silenciosamente e avançou sem ser percebido até uma distância de 200 metros das tropas persas. Nessa distância, os bem condicionados hóplitas gregos avançaram em velocidade e furor contra as tropas persas de Dátis. Os persas foram pegos de surpresa e não conseguiram acionar seus arqueiros. O violento embate corpo a corpo com os gregos, liderados por Milcíades, gerou pesadas perdas aos persas, que bateram em retirada (MANFREDI, 2008). Pelo mar, Dátis ordenou que a frota persa rumasse para Atenas, que estava pouco protegida, pois a maior parte das tropas gregas estava em Maratona. A ideia era fazer o regimento ateniense pensar que seu Exército havia sido esmagado pelos persas, obrigando a abertura dos portões e a rendição da cidade. No entanto, Milcíades chamou o mensageiro Filípides, que havia lutado a manhã toda ao lado de seus companheiros, e ordenou que levasse a mensagem da vitória grega até Atenas, evitando que se rendessem aos persas (MANFREDI, 2008). Filípides livrou-se de seu armamento pesado e de suas vestes e correu imediatamente para avisar os atenienses. Ele percorreu, em poucas horas, a distância de cerca de 40 quilômetros que separa Maratona de Atenas, chegando antes da frota persa. Ao chegar, esgotado, gritou: “Nike! Nike! (Vitória! Vitória!)” e caiu morto. Os atenienses entenderam o recado e fecharam os portões da cidade, reforçando as muralhas e acabando com a farsa persa. Os persas recuaram (MANFREDI, 2008). O feito heroico de Filípides foi imortalizado pelo renomado historiador grego Herótodo. Em 1896, o barão Pierre de Coubertin restaurou a realização dos Jogos Olímpicos. Na ocasião, a sede foi Atenas. Para homenagear o feito de Filípides, Coubertin idealizou uma prova de corrida com 42 quilômetros e a nomeou de Maratona. Para abrilhantar ainda mais o momento, o campeão da primeira Maratona foi Spiridon Louis, um pastor de ovelhas grego. Atualmente, a Maratona é disputada a cada quatro anos por ocasião dos Jogos Olímpicos e em outras inúmeras realizações esportivas por todo o planeta (MANFREDI, 2008). As frequentes incursões dos persas contra a Grécia fizeram com que as cidades-estados gregas firmassem alianças. Após a batalha naval da Salamina,os gregos vitoriosos selaram a aliança conhecida 25 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA como Liga de Delos. A união era organizada com a cobrança de tributos, que eram usados para sustentar as frotas e Exércitos conjuntos, sob a liderança de Atenas, que passou a usar os recursos da Liga de Delos para subjugar as demais cidades gregas que eram membros da aliança, interferindo em sua autonomia política. Nesse período (de 461 a.C. a 429 a.C), Atenas exerce uma ação imperialista sob o governo de Péricles (VICENTINO; DORIGO, 2013). Durante o governo de Péricles, Atenas viveu seu período áureo democrático, no qual aprimorou-se a democracia. Péricles criou cargos públicos remunerados, possibilitando a participação popular na administração da cidade. Atenas foi restaurada e ornamentada, foi erguido o Partenon (templo em homenagem à deusa Palas Atena) e foi construída a grande muralha em torno da cidade, ligando Atenas ao porto de Pireu, viabilizando proteção e acesso rápido ao mar em caso de sítio (MANFREDI, 2008). Lideradas por Esparta, as pólis aristocráticas formaram uma aliança contra Atenas, a Liga do Peloponeso. Os conflitos por interesses e a disposição belicosa de Atenas levaram as duas ligas a entrar em guerra em 431 a.C., a Guerra do Peloponeso, que durou ao todo 17 anos. Nela, confrontos sangrentos dizimaram gerações de ambos os lados da batalha, enfraquecendo a Grécia e a deixando susceptível ao ataque de invasores externos. O conflito só terminou em 404 a.C., com a vitória de Esparta (VICENTINO; DORIGO, 2013). As constantes guerras tiveram como resultado o enfraquecimento das cidades-estados gregas, o que abriu caminho para a invasão dos macedônios, povo do norte da Península Balcânica. Em 338 a.C., o rei Felipe II conquistou a Grécia e a incorporou ao grande Império Macedônio (VICENTINO; DORIGO, 2013). Figura 6 26 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Lembrete O mundo grego antigo não era constituído de um único reino ou país; era a reunião de cidades-estados independentes entre si, porém com traços culturais e origens semelhantes. 3.2.5 Período Helenístico (séculos IV a.C.-II a.C.) O período iniciado com a conquista da Grécia pela Macedônia, em 338 a.C., foi conhecido como Período Helenístico e se estendeu até o século II a.C. Inicialmente governados por Felipe II, os macedônios não se limitaram à conquista da Grécia e expandiram suas conquistas para o Oriente. Sob o comando de Alexandre, o Grande, filho de Felipe II, o Império Macedônio alcançou vasto território (VICENTINO; DORIGO, 2013). Educado por Aristóteles, Alexandre assimilou valores da cultura grega e, após dominar a Grécia, partiu para a expansão territorial, tomando a Ásia Menor e a Pérsia e expandindo seu território à Índia. Morreu aos 33 anos (323 a.C.), e o grande Império se desestruturou após sua morte. No entanto, Alexandre foi responsável por disseminar a cultura da Grécia por todo o Oriente, chegando até o Egito e ao norte da África. As regiões dominadas por Alexandre tinham a sua cultura fundida à cultura grega. Alexandre fundou e renomeou inúmeras cidades, várias delas batizadas de Alexandria. Inaugurou inúmeras bibliotecas e foi responsável pela dispersão da cultura grega, que, fundida às culturas orientais, ficou conhecida como cultura helenística (VICENTINO; DORIGO, 2013). Saiba mais Obra histórica com leitura acessível, ilustra a ascensão e queda de Atenas como pólis imperial no mundo grego antigo. MANFREDI, V. M. Akropolis: a grande epopeia de Atenas. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. 3.2.6 Filosofia, corpo e exercício na Grécia Antiga Ao estudar os assuntos relacionados à área da Filosofia aplicada à Educação Física, remete-se ao Período Clássico grego como forma de buscar uma orientação original. A Grécia, berço da cultura ocidental, viveu, em meados do século V a.C., uma grande explosão intelectual que abrangeu as esferas mais variadas do saber humano. Filosofia, Astronomia, Medicina, Arquitetura, Poesia, Teatro, Direito e Educação são algumas das áreas que alcançaram níveis de crescimento jamais vistos – crescimento que, em parte, deve-se ao florescimento do modelo de vida urbano pautado no modelo da pólis (CHAUÍ, 2000). 27 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Nesse período, os grandes pensadores se debruçaram na temática que colocava o homem como centro do discurso (antropocentrismo). É nesse meio que as questões do corpo e do exercício passam a ser discutidas a fundo por filósofos e seus discípulos. O corpo era um elemento da existência humana bastante valorizado e cultuado na Grécia Antiga. Por diversos fatores e motivos, os gregos exercitavam o corpo, chegando a venerá-lo. Os pensadores gregos buscavam dissociar o corpo da alma. Eles acreditavam ser entidades distintas, que viveriam em equilíbrio durante a existência humana. O corpo representava o mundo material, suas imperfeições, instabilidades e degradações, ao passo que eram sensíveis aos mais diversos problemas enfrentados pelo corpo no decorrer da vida, sendo o mais evidente o fato de o corpo perecer, definhar com o passar dos anos (CHAUÍ, 2000). A alma, por sua vez, representava o mundo das ideias; aliada à mente, seria uma entidade perfeita, eterna, que se aperfeiçoava cada vez mais com o passar dos anos. Era a alma a chama da vida humana, que animava o corpo. Já a mente seria a morada dos pensamentos e das ideias, onde tudo poderia ser perfeito. Sócrates (470-399 a.C.) pensava na perspectiva do autoconhecimento. A consciência do corpo e da alma levava à evolução do ser humano (“conhece-te a ti mesmo”). Sócrates acreditava no equilíbrio entre corpo, alma e mente, sendo que nenhuma dessas partes poderia ser atingida sem que as demais também sofressem. Seu pensamento estimulou a assimilação e prescrição da ginástica médica, que buscava a saúde do corpo e o equilíbrio do homem como um todo. O pensamento de Sócrates a respeito do corpo pode ser perfeitamente adequado à máxima utilizada pela medicina romana, que, por sua vez, foi inspirada na Grécia: “mens sana in corpore sano” (CHAUÍ, 2000). Platão (427-347 a.C.) foi discípulo de Sócrates e seu verdadeiro nome era Aristócles, em uma homenagem ao seu avô. Platos significa largura e é quase certo que seu apelido veio de sua constituição robusta, ombros e frontes largos, um porte físico forte e vigoroso, que o fez receber homenagens por seus feitos atléticos na juventude. Platão defendia a alma como entidade perfeita e eterna, ao contrário do corpo, o qual considerava apenas a morada mundana e imperfeita da alma (CHAUÍ, 2000). Apesar de Platão considerar o corpo subordinado à alma, não negava a importância dos cuidados para com o corpo, sobretudo a prática da ginástica e das disputas atléticas. No entanto, o adestramento do corpo não deveria sobrepor o preparo da mente e da alma. Platão criou, em Atenas, a Academia, escola que preconizava a educação do homem como um todo (Paideia). Na Academia, os pupilos de Platão aprendiam Filosofia, Poesia e Astronomia e treinavam seu corpo com a prática da ginástica, mas, sobretudo, dedicavam-se à Matemática (Geometria). Correntes contemporâneas do pensamento humano defendem a perspectiva da unidade corpo-mente-alma, em que não se tem um corpo e sim se é um corpo, o corpo sujeito. A preocupação com o corpo na Grécia Antiga não ficava apenas na esfera filosófica. Os gregos se preocupavam bastante com os próprios corpos, sendo o exercício físicouma prática muito disseminada na cultura dos helenos. 28 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I A veneração pelo corpo era refletida na construção mitológica da Grécia Antiga. Os gregos cultuavam uma centena de deuses antropomórficos, aos quais atribuíam histórias e responsabilidades que explicavam os acontecimentos terrenos. O sucesso nas guerras era atribuído ao deus Ares, a proteção às embarcações era solicitada a Poseidon (deus dos mares), as paixões eram atribuídas aos encantos da deusa Afrodite (RUBIO, 2002). Os deuses gregos eram retratados em estátuas, nas quais se pode perceber a preocupação em apresentar os mínimos detalhes e toda a plasticidade das formas humanas. Os heróis mitológicos como Héracles (Hércules) e Aquiles também eram retratados em estátuas e cerâmicas, assim como os grandes atletas campeões dos diversos jogos realizados em honra aos deuses (RUBIO, 2002). Para homenagear os deuses, os gregos realizavam disputas atléticas, denominadas jogos, onde os mortais tentavam copiar os feitos dos deuses. Nesses jogos, os campeões recebiam o título de semideuses e recebiam o status de heróis sobre-humanos. A preparação do físico para a participação nos jogos era uma tradição e envolvia os jovens desde a infância (RUBIO, 2002). Figura 7 – Hércules Além da perspectiva religiosa, a preparação do corpo viril, robusto e enérgico era justificada pela postura agonística (de enfrentamento) do grego. Em função das constantes guerras enfrentadas pelos povos gregos, a cultura helênica cunhou um importante valor moral denominado aretê. O aretê tinha por característica valorizar a coragem e a prontidão do grego para o combate. Fugir, esconder-se, acovardar-se ou mesmo vacilar em uma situação de confronto não era tolerado dentro da ética grega antiga. Para isso, tanto o corpo quanto o espírito do garoto eram forjados desde cedo (RUBIO, 2002). Outra característica da cultura grega antiga que valorizava os cuidados com o corpo era a visão da beleza como valor moral desejável. Nas diversas áreas da cultura, a funcionalidade das coisas não 29 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA bastava, a beleza era fundamental. Assim, a arquitetura era bastante rebuscada, as poesias, vestimentas e obras de arte aspiravam à beleza como valor moral. O corpo humano também se enquadrava nessa forma de pensar. A beleza do corpo era desejável. Alguém que não cuidasse de seu próprio corpo não era bem-visto na sociedade, não inspirava confiança, sobretudo se fosse adepto dos vícios da bebida, da comida e do ócio. O valor moral grego que determinava a virtude da beleza era denominado kalokagathia e representava a ideia de que “o belo é bom” (RUBIO, 2002). A apreciação da beleza do corpo durante os exercícios e competições era evidenciada pelo hábito de exercitar-se nu. Os gregos apreciavam as formas corporais executando os gestos de luta, os lançamentos de disco e dardo, as corridas. Em função disso, encontramos inúmeras estátuas representando gestos atléticos, nas quais os modelos encontram-se nus. A estátua mais conhecida nesta categoria é o Discóbolo, de Míron, símbolo da Educação Física. Figura 8 – Discóbolo de Míron Como já foi visto, com os pensamentos de Sócrates, a valorização do exercício ocorria como forma de promoção da saúde do corpo e consequentemente da alma. Portanto, a formação de um corpo forte e saudável contribuía para a formação do homem como um todo, pronto para a vida de cidadão na pólis grega. Dessa forma, a educação na sociedade grega antiga acabava por contribuir para a formação desses valores associados ao corpo. No entanto, o modelo educacional preconizado pelos educadores e filósofos buscava formar o Homem Integral, o ser político, apto a exercer todos os seus direitos e cumprir todas as suas funções para com a sociedade. Essa educação global foi 30 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I denominada Paideia e foi aplicada, sobretudo, nas cidades gregas aliadas de Atenas, adeptas do modelo democrático e possuidoras de grande desenvolvimento intelectual. As cidades aliadas de Esparta tinham uma sociedade militarizada, e a educação priorizava o desenvolvimento físico e o adestramento para as guerras. A Paideia buscava o equilíbrio entre corpo, alma e mente. Uma escola adepta deste modelo foi a Academia de Platão, onde o corpo era adestrado através da ginástica (gimno – nu, a arte de exercitar-se nu) e da disputa de provas atléticas, a mente era desenvolvida através da Matemática (Geometria), Filosofia, Arquitetura, Astronomia e Política, e a alma era trabalhada pelas artes: poesia, teatro, escultura e pintura (RUBIO, 2002). Contudo, percebe-se a estreita relação do grego antigo com o corpo, o que fez surgir uma grande herança cultural associada à prática do exercício físico, que acabou por inspirar o desenvolvimento da Educação Física moderna. 3.2.7 A cultura da Grécia Antiga e o exercício A Grécia Antiga viveu momentos de grande importância para o desenvolvimento cultural da humanidade. A Grécia não constituía uma nação com unidade territorial na Antiguidade. Também chamada de Hélade, a Grécia era uma região habitada por povos com origem nos povos jônios, dórios, eólios, aqueus, micênicos e cretenses. Essa região se espalhava na forma de colônias independentes umas das outras, instaladas na Ática (região continental da atual Grécia), no Peloponeso (faixa de terra separada do continente por um istmo), em inúmeras ilhas no Mar Mediterrâneo e em terras ao sul da Península Itálica, ao norte na Macedônia e em toda a costa da Ásia Ocidental (RAMOS, 1982). Os helenos, como eram chamados os gregos, tinham cultura similar, falavam a mesma língua com dialetos diferentes e adoravam as mesmas divindades antropomórficas para as quais erguiam suntuosos templos, estátuas, santuários e oráculos, sendo o mais famoso e temido de todos o Oráculo de Delfos, dedicado ao deus Apolo. Delfos era consultado por líderes de toda a Grécia antes de se tomar qualquer decisão determinante para o destino das cidades-estados. O oráculo orientava os ilustres devotos através de uma pitonisa (sacerdotisa de Apolo), que supostamente recebia as orientações do próprio deus (GODOY, 1996). Outro importante santuário grego era a cidade sagrada de Olímpia, um conjunto de templos dedicados a Zeus, deus supremo do panteão grego, onde eram realizados, a cada quatro anos, os Jogos Olímpicos da Antiguidade (GODOY, 1996). Os gregos eram um povo mercantilista e por isso tinham grande domínio da tecnologia naval. Algumas cidades, como Atenas, foram verdadeiras potências comerciais e militares com esquadras grandiosas e poderosas. Outras cidades, como Esparta, foram grandiosas como potências militares terrestres. Nota-se que os gregos eram muito belicosos, vivenciando muitas guerras. Em muitas ocasiões, as cidades gregas, mesmo as inimigas entre si, uniram-se para combater inimigos externos, como os persas; outras vezes, guerreavam entre si por anos, como o ocorrido na Guerra do Peloponeso (RAMOS, 1982). 31 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Devido a este convívio próximo com a guerra, o grego desenvolveu um espírito de combatividade bastante aguçado. O espírito de enfrentamento franco e direto, o desejo pelo confronto, era denominado aretê. Esse valor era praticado em jogos e no constante treinamento desenvolvido paraforjar o corpo e o espírito agonista (RUBIO, 2002). Essa realidade se deve ao fato de todos os cidadãos gregos serem treinados e convocados para o serviço militar. Diferente do que acontece na atualidade, em que os contingentes militares representam apenas pequena parcela da população, naquela época todos eram convocados para a luta e os confrontos eram bastante frequentes. Essa característica fazia com que os jogos e disputas atléticas gregas tivessem um nível maior de violência permitida (ELIAS; DUNNING, 1992). O nível superior de violência física nos jogos antigos correspondia às características da sociedade grega antiga. Esses pressupostos determinavam uma postura de combate franca, incisiva e consequentemente mais violenta (ELIAS; DUNNING, 1992). O espírito combativo grego expresso pelo aretê era desenvolvido em condições extremas em sociedades militarizadas, como a da cidade de Esparta, onde as esposas despediam-se de seus cônjuges desejando que voltassem da guerra com seus escudos vitoriosos ou sobre eles no caso de derrota, ou seja, ou a vitória, ou a morte. A boa morte chegava a ser desejada pelos guerreiros. O desejo pelo combate valoroso tornava as lutas muito violentas nos jogos gregos, mas, de acordo com as regras, não eram permitidos golpes baixos e covardes, fugas ou matar seu adversário em combate atlético. Fora isso, o nível de violência era bastante tolerado. A regulamentação e sistematização das atividades esportivas modernas, com o intuito de controlar a violência contida nas ações atléticas, estão vinculadas ao desenvolvimento da sociedade na forma de Estados Nacionais. A regulamentação das atividades atléticas coibindo o uso da violência é uma das características fundamentais do esporte moderno (ELIAS; DUNNING, 1992). Esparta e Atenas foram as cidades-estados gregas que primeiro delinearam uma relação de corpo e movimento com critérios pedagógicos. Esparta era uma pólis guerreira por excelência e tinha por objetivo aumentar seu poder e defender-se dos perigos e ameaças dos povos vizinhos. Era dotada do melhor Exército da Grécia e educava seus jovens através do exercício físico dirigido à atividade guerreira, sob o ideal do cidadão-soldado, educado para o Ministério das Armas (RAMOS, 1982). A educação em Atenas tinha por objetivo primordial a formação geral do indivíduo e, apesar de ter uma postura mais aberta, em função da estruturação política democrática ocorrida por volta do ano de 500 a.C., também utilizava os exercícios físicos como preparação militar (GODOY, 1996). Os gregos desenvolveram um vasto legado filosófico, matemático, astronômico, físico, político e artístico. A sociedade grega adquiriu níveis de complexidade admiráveis, chegando a implantar um modelo verdadeiramente democrático em Atenas. A vivência e transmissão desta herança cultural fez surgir um rico sistema educacional denominado Paideia, que objetivava a formação do Homem Integral, apto a vivenciar com plenitude a vida na pólis (cidade). Esse modelo de educação bastante abrangente era formado por diversos tipos de escolas particulares, nas quais os garotos iniciavam seus estudos a partir dos 7 anos de idade, sempre acompanhados de um tutor contratado para guiar o jovem durante todo o processo de aprendizagem (GRIFI, 1989). 32 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Ainda jovem, o garoto frequentava o Gramático, onde era instruído nas letras e literatura pátria. Também frequentava o Citarista para aulas de música e recebia instrução na Palestra, onde fazia exercícios físicos e era iniciado em Filosofia e Ciências. Com cerca de 12 anos o garoto passava a frequentar o Ginásio, onde os exercícios físicos se intensificavam e os estudos de leis, Oratória, Política, Ciências e Matemática eram aprofundados em um verdadeiro modelo generalista de aprendizagem (GRIFI, 1989). Vale lembrar que a Paideia é um modelo ateniense de educação. Cidades autocráticas e militarizadas, como Esparta, possuíam um modelo educacional muito mais simples e pragmático, visando a oferecer ao jovem um nível de instrução básico e um treinamento físico e militar exemplar desde os 7 anos, idade em que era retirado da guarda de seus pais e passava a ser propriedade da pátria. Aos 12 anos o garoto espartano era transferido para uma austera escola militar denominada Caserna, onde passava por duro treinamento físico, fazia longas caminhadas com fardos, era aprofundado em artes de guerra e marchas e ainda era submetido a privações, como fome e frio, visando a endurecer seu espírito (GRIFI, 1989). Por volta dos 17 anos todos os garotos gregos, de Atenas ou de Esparta, eram admitidos na Efebia, uma escola militar preparatória, o último estágio de treinamento e inserção gradual do jovem no serviço militar (GRIFI, 1989). Percebe-se que, em ambos os modelos educacionais, o treinamento do corpo é considerado com seriedade, sendo que em Atenas não é tão privilegiado quanto em Esparta, mas tampouco é colocado em segundo plano. O fato é que, além de a formação militar exigir do grego um rigoroso preparo do corpo, outro senso de valor moral exigia cuidados corporais bastante sérios. Para o grego, o senso de harmonia e estética era algo muito importante, a beleza era uma virtude, o equilíbrio e a precisão das formas eram admiráveis. O mesmo pensamento recaía sobre o corpo, que deveria exemplarmente manter-se belo, forte e funcional – kalokagathia (RUBIO, 2001). Em virtude do entendimento moral que considerava a beleza uma virtude – kalokagathia: o belo é bom –, os gregos exercitavam-se nus. A própria origem etimológica da palavra ginástica significa a arte de exercitar-se nu. 3.2.8 Os jogos na Grécia Antiga A organização político-social da Grécia Antiga teve sua evolução a partir da monarquia patriarcal, passando por governos citadinos com base oligárquica e culminando no modelo democrático das pólis. A religião dos gregos tinha o caráter politeísta antropomórfico: eram adorados deuses que possuíam poderes divinos e formas humanas. Os gregos também adoravam semideuses ou heróis divinizados em função de suas gloriosas ações, como Héracles, Aquiles, Teseu, Perseu e Orfeu. Foi no âmbito do culto às divindades e aos heróis que surgiram os jogos (GRIFI, 1989). Os heróis eram semideuses com poderes extraordinários, que viviam entre os homens realizando feitos incríveis. Os heróis gregos eram componentes da mitologia, considerados filhos da união entre deuses e mortais. A miscigenação que deu origem aos heróis semi-humanos gerou uma aproximação, 33 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA pois estes entes eram a representação simbólica que complementava o ego e a força que faltava aos homens perante os deuses. Era atribuído aos heróis um grande rol de façanhas, como a fundação de cidades, a instituição de leis, a metalurgia, a escrita, o canto, táticas de guerra, a instituição dos jogos antigos em homenagem aos deuses e o combate a bandidos, feras e monstros (RUBIO, 2001). Inspirados nos heróis, os gregos organizavam grandes festas pan-helênicas, que reuniam gregos vindos de toda a Hélade nos grandes santuários. As festas religiosas contemplavam cerimônias, sacrifícios e grandes concursos atléticos, os jogos, realizados em honra aos deuses (GODOY, 1996). Os jogos mais célebres da Grécia Antiga foram: os Jogos Olímpicos, realizados em Olímpia, em honra de Zeus; os Jogos Píticos, realizados em Delfos, em honra de Apolo; os Jogos Nemaicos, em Nemeia, em honra de Zeus; e os Jogos Ístmicos, realizados próximo a Corinto, em honra de Poseidon (GODOY, 1996). Zeus era o deus da justiça e da razão, da ordem e da autoridade,depositário das leis do mundo e pai universal. Para homenagear Zeus, a cada quatro anos eram promovidos os Jogos Olímpicos, em Olímpia, local onde esse deus era especialmente venerado. Esses jogos eram soberanos sobre todas as outras festas religiosas na Grécia Antiga e foram realizados sem interrupção durante 12 séculos (GODOY, 1996). A origem dos Jogos Olímpicos está mesclada à mitologia. Acredita-se que o herói Héracles foi o criador dos jogos realizados em Olímpia em honra de Zeus, seu pai. No entanto, registros históricos apontam o surgimento dos jogos a partir de um tratado de paz, o Ekeheiria, firmado em Olímpia no ano de 884 a.C., entre os reis de Pisa, Elis e Esparta. A realização dos jogos sagrados foi instituída para celebrar a paz (GODOY, 1996). Figura 9 – Os pancracistas São considerados os primeiros Jogos Olímpicos da Grécia Antiga aqueles realizados no ano de 776 a.C., pois foi a partir de então que se encontraram registros dos nomes dos campeões dos jogos encravados na pedra de fundamentação do templo de Zeus (RAMOS, 1982). A cada quatro anos, embaixadores sagrados eram enviados a todas as partes da Grécia Antiga para anunciar a realização dos Jogos Olímpicos, proclamando a trégua sagrada: durante os jogos, as guerras e conflitos entre as cidades–estados eram suspensos e todos que se dirigiam a Olímpia eram invioláveis. 34 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Era proibido entrar armado na cidade. O Senado olímpico cumpria rigorosamente a carta de proclamação dos jogos: “Que o mundo esteja livre do crime e do ruído das armas” (GODOY, 1996). Figura 10 – Os Jogos Olímpicos antigos Os concorrentes chegavam com antecedência e se exercitavam durante dez meses no ginásio de Elis. Os jogos eram presididos pelos helanódices, que policiavam o concurso, aplicando sanções aos contraventores do regulamento. De acordo com Godoy (1996), para que o atleta estivesse credenciado a participar dos jogos, precisava obedecer ao seguinte código: • Ser cidadão livre: nem escravo, nem estrangeiro. • Não ter sido punido pela justiça, nem ter moral duvidosa. • Estar inscrito dentro do prazo, comparecer ao ginásio de Elis para cumprir o estágio de concentração, passar pelas provas classificatórias e prestar juramento. • Todo retardatário estará fora da competição. • As mulheres são proibidas de assistirem aos jogos. • Durante as competições, os treinadores devem permanecer num recinto destinado a eles, próximo ao local da prova. 35 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA • É proibido provocar a morte do adversário de forma voluntária ou involuntária. • É proibido empurrar o adversário, persegui-lo fora dos limites determinados ou utilizar-se de comportamento desleal. • É proibido amedrontar. • A corrupção de árbitros e participantes é punida com chicote. • Todo concorrente contra quem não se apresentar adversário será considerado vencedor. • É proibido ao participante rebelar-se, publicamente, contra as decisões dos juízes. • Todo concorrente descontente com uma decisão pode recorrer ao Senado olímpico contra os árbitros. • Os membros do colegiado de juízes não podem participar do concurso. Eram disputadas as seguintes modalidades nos jogos: no estádio realizavam-se a corrida a pé simples e dupla, a corrida com armas, a luta com mãos espalmadas, o pugilato, o pancrácio, que reunia a luta e o pugilato, e o pentatlo, que era composto por cinco provas – salto, corrida, luta, lançamento de disco e pugilato. No hipódromo, realizavam-se as corridas de carros, com quatro (quadrigas) ou dois cavalos (bigas), de carros atrelados com mulas e de cavalos montados (RAMOS, 1982). O vencedor era designado pelos helanódices e proclamado pelo arauto. Ele recebia como prêmio uma coroa feita com ramos de oliveira. Sua glória era imensa. O campeão era recebido triunfalmente em sua cidade natal. A coroa de ramos de oliveira era apenas um prêmio simbólico, pois outras recompensas representavam as maiores homenagens recebidas pelos campeões olímpicos. Os nomes dos olimpiônicos eram gravados nos muros dos edifícios públicos. Seus feitos eram narrados em placas de mármore com letras de ouro. Os mais famosos poetas imortalizavam-nos em versos líricos. Em algumas cidades os campeões recebiam isenção de impostos, casas, terras, títulos de nobreza e até recompensas em dinheiro (GODOY, 1996). 36 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Figura 11 – Templo de Zeus em Olímpia Existia uma evidente ascensão social e projeção dos indivíduos em função de seus feitos nos Jogos Olímpicos. O atleta vencedor voltava dos jogos sob a condição de herói e semideus. A cidade construía uma nova entrada para que o campeão fosse recebido em seu regresso triunfante dos jogos. Os habitantes tinham orgulho de seus campeões, e quanto mais olimpiônicos tivesse uma cidade, mais entradas eram abertas nas muralhas. Apesar do número excessivo de entradas comprometer a segurança das cidades, seus habitantes sentiam-se seguros com a presença de heróis olímpicos para protegê-los de ataques inimigos (GODOY, 1996). A premiação dos atletas ocorria durante a cerimônia de encerramento dos jogos, que era realizada no bosque sagrado em frente ao templo de Zeus. Na cerimônia, os vencedores eram aclamados como olimpiônicos, tinham seu nome, de seu pai e de sua cidade divulgados e recebiam a coroa de ramos de oliveira. Ao final da premiação, os vencedores eram conduzidos para dentro do templo, onde agradeciam suas graças sob os pés da estátua de Zeus. Esse momento representava a maior ambição dos atletas, pois, sob a condição de olimpiônicos, eram aproximados dos deuses (GODOY, 1996). Lembrete Os jogos gregos não podem ser denominados como esporte. O esporte é um fenômeno moderno, surgido na Inglaterra no século XIX. Os jogos gregos eram festividades religiosas com disputas atléticas. 37 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA 3.2.9 Milo de Crotona: a história de um herói grego A história do treinamento físico não é completa sem a citação de Milo de Crotona, herói dos jogos gregos antigos. Milo detinha extraordinária força, o que o tornou um mito. Sua modalidade era a luta, o pancrácio (pan – pleno; cratus – poder), luta em que foi hegemônico, vencendo inúmeras competições e recebendo cinco títulos dos Jogos Olímpicos Antigos – em 532, 528, 524, 520 e 516 a.C., sem contar os jogos de 540 a.C., em que ganhou na categoria infantil. A derrota de Milo para Timotheos, que marcou o fim da sua legendária carreira, aconteceu em 512 a.C., na 67ª Olimpíada. A luta se desenvolveu por horas sem que os atletas conseguissem anular seu oponente, até que a jovialidade de Timotheos prevaleceu e Milo, com mais de 40 anos, foi derrubado três vezes ao solo (GODOY, 1996). O treinamento de Milo abrangia exercícios como pesos, luta e o exercício de carregar diariamente um bezerro durante os quatros anos que separavam uma edição e outra dos Jogos Olímpicos. Este hábito estabeleceu as fundações de um dos principais princípios do treinamento de força, o da aplicação da sobrecarga progressiva. Milo desenvolveu sua força de forma descomunal devido ao seu treinamento, uma vez que, próximo à competição, o touro que era carregado por algumas centenas de metros pesava várias centenas de quilos (STOJILJKOVIC’ et al., 2013). Figura 12 – Milo de Crotona:treinamento com o touro sobre os ombros Seu método de treinamento foi descrito em várias lendas gregas antigas, que também relatam a dieta de Milo, que seria capaz de ingerir nove quilos de carne, nove quilos de pão e oito litros de vinho diariamente. A lenda diz que Milo carregou sua estátua de bronze até o santuário de Olímpia, onde estava o templo sagrado de Zeus e onde eram realizados os Jogos Olímpicos (STOJILJKOVIC’ et al., 2013). É provável que as histórias de Milo de Crotona tenham sido amplamente exageradas, mas não há dúvida de que sua personalidade era muito impetuosa e que sua extraordinária força e condição física excedeu a força de seus rivais por mais de vinte anos consecutivos. Devido a sua 38 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I personalidade forte e sua soberba, Milo teria provocado sua própria morte. Diz a lenda que, certo dia, ao andar por um bosque afastado, Milo teria avistado uma árvore rachada ao meio por ter sido atingida por um raio. Ciente de sua força, Milo teria tentado acabar de quebrar a árvore com as próprias mãos e acabou ficando preso na fissura e, sem ninguém para socorrê-lo, foi devorado por lobos (GODOY, 1996). Figura 13 – Milo de Crotona sendo devorado 3.2.10 A mulher na Grécia Antiga Durante o século V a.C., as dezenas de pólis gregas uniram-se militarmente pela primeira vez para enfrentar um inimigo comum, os persas, que ameaçavam suas fronteiras orientais. Em Esparta, as mulheres tinham uma vida mais ativa que em Atenas, onde permaneciam em casa, não tinham direitos políticos e deviam obediência ao pai e ao marido. O tratamento dado às mulheres gregas é diferente em função da cidade-estado em que viviam: as mulheres atenienses viviam reclusas em suas casas, enquanto as mulheres espartanas tinham uma vida pública mais permissiva, podiam se exercitar, eram livres para circular na cidade e recebiam a educação estatal destinada a atender às necessidades do seu meio social. Estas mulheres desempenhavam papéis sociais importantes, tinham como objetivo gerar filhos robustos e corajosos. Já as mulheres atenienses se mantinham confinadas em sua casa, cuidando dos afazeres do lar, como tecer, fabricar utensílios de cerâmica e cuidar dos filhos (VICENTINO; DORIGO, 2013). Na Grécia Antiga, as mulheres não podiam participar de competições atléticas juntamente com os homens. Os jogos, a disputa e a apreciação do corpo nu dos atletas fazia parte do universo masculino; 39 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA as mulheres estavam limitadas à função da maternidade. No entanto, nos jogos da deusa Hera, cujos primeiros registros datam de 200 a.C., havia a participação das mulheres, atletas jovens e solteiras em competições a cada quatro anos. As mulheres que competiam nos jogos de Hera não tinham o status de heroínas porque elas não preenchiam os requisitos dos heróis olímpicos e suas estruturas corporais e suas habilidades atléticas não remetiam às façanhas dos heróis. Suas competições eram mais simples e não exigiam o mesmo preparo físico masculino (MIRAGAYA, 2007). O primeiro registro dos Jogos Olímpicos da Antiguidade data de 776 a.C. Embora somente homens pudessem competir nas Olimpíadas, que eram em honra a Zeus, algumas mulheres tinham permissão para assistir. Essas mulheres eram jovens e solteiras à procura de um marido. Elas deveriam observar os corpos fortes e falar com seus irmãos ou pai sobre aquele atleta que queriam para marido. Entretanto, mulheres casadas eram proibidas de assistir às Olimpíadas sob pena de morte. A única mulher casada que tinha permissão de assistir aos Jogos era a sacerdotisa de Demeter (MIRAGAYA, 2007). Mulheres casadas não poderiam nem mesmo assistir aos Jogos Olímpicos, pois se temia que houvesse profanação do local sagrado. Existe o registro de apenas uma violação, quando uma mulher se disfarçou de treinador para ver seu filho triunfar na competição do boxe – embora os árbitros a tenham poupado, não a atirando do penhasco porque ela era filha do famoso boxeador Diágoras (FRANCISCO, 2010). Disfarçada em trajes masculinos, Callipateira, filha e irmã de atletas coroados no estádio, conseguiu acompanhar o filho Pisidoro como seu instrutor. Vendo Pisidoro vitorioso em uma das lutas, a mãe, entusiasmada, largou o disfarce para se lançar na arena ao encontro do vencedor. Apenas por respeito a seu pai, irmãos e filho, ela ficou impune. A partir dessa ocorrência foi promulgada uma lei que exigia a todos os atletas tirarem a roupa antes de entrarem na arena (CHIÉS, 2006). Existem indícios de duas mulheres que participaram dos Jogos Olímpicos antigos por possuírem pais e irmãos com bastante influência política. A primeira mulher do Olimpismo antigo que conseguiu triunfos foi Kyniska, filha do rei Archidamus II, meia-irmã do rei Agis II (427-400 a.C.) e irmã do rei Agesilaus (400-360 a.C.). Os cavalos da princesa espartana venceram a prova de quadrigas (carros puxados por quatro cavalos) das 96ª e 97ª Olimpíada (396 e 392 a.C.); à campeã foi dedicada uma quadriga em bronze de tamanho inferior ao natural, colocada no Templo de Zeus em Olímpia. Segundo Chiés (2006, p. 109), Kyniska alcançou um alto patamar de honra nos jogos e deixou registrado em um epigrama a seguinte frase: “Reis de Esparta foram meus pais e irmãos, e eu, Kyniska, vencendo a corrida de bigas, recebi esta estátua. Eu afirmo que sou a única mulher em toda a Grécia que ganhei esta coroa.” A participação de Kyniska nos jogos não representou uma evolução no quadro de consideração da mulher na sociedade grega. O que se entende foi que a sua participação foi impulsionada por seu irmão Agesilaus, por motivos estritamente políticos. A segunda mulher foi também atleta nas provas de corrida com cavalos (quadrigas): seu nome era Belistiche da Macedônia, vencedora na prova de quadrigas de potros da 128ª Olimpíada (268 a.C.) e na de biga de potros da 129ª Olimpíada (CHIÉS, 2006). A proibição da presença de mulheres na audiência indica o quão limitada era a vida das mulheres casadas no cotidiano da Grécia Antiga, havendo permissão para as solteiras. Nos jogos em homenagem à deusa Hera, as mulheres participavam apenas das corridas, caracterizando um cenário de participação restrita, no qual as mulheres não participavam de modalidades mais violentas ou extenuantes, que pudessem colocar em risco a função da maternidade (FRANCISCO, 2010). 40 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Em Olímpia, foram promovidas competições oficiais somente para as mulheres. Esses eventos foram chamados de Jogos Heranos, nome derivado do culto à deusa Hera. Essa deusa foi venerada como protetora das esposas e mães, e a ela foi construído um templo em V a.C., localizado entre Argos e Micenas, que abrigava a célebre estátua de ouro e marfim de Hera. Esses jogos em louvor a Hera consistiam de corridas a pé, sendo diferenciadas as provas pela idade das jovens. As mais velhas eram as primeiras a correr e assim por diante. Elas corriam de cabelos soltos, com uma túnica colocada um pouco acima de suas cinturas e o ombro direito nu até a altura do peito. Nos Jogos Heranos, as mulheres disputavam apenas uma corrida de 162 metros na cidade de Elis. Para as vencedoras entregavam-se as coroas de oliveiras, e oferendas e estátuas eram esculpidas com seus nomes inscritos (CHIÉS, 2006). Observação A túnica nos Jogos Heranos, recobrindo apenas um seio, era uma homenagem a guerreiras mitológicas, Amazonas, exímias arqueiras que amputavam um dos seios para não atrapalharo retesamento do arco. Observa-se que as primeiras mulheres atletas vieram de Esparta, particularmente porque os espartanos acreditavam que as mulheres que eram saudáveis, tinham condicionamento físico e se exercitavam regularmente teriam filhos saudáveis. Inicialmente, essa filosofia de inclusão pode parecer bastante diferente da filosofia ateniense, que preconizava a domesticidade e a reclusão feminina (MIRAGAYA, 2007). Figura 14 – Os Jogos Heranos 3.2.11 A decadência dos jogos gregos Por volta do século V a.C., os povos gregos começam a entrar em declínio devido às sucessivas guerras travadas entre si. A Guerra do Peloponeso, travada longamente entre os anos de 431 a 404 a.C., foi um conflito armado entre Atenas e Esparta e seus respectivos aliados da Liga de Delos (chefiada por Atenas) e da Liga do Peloponeso (chefiada por Esparta). Esse e outros conflitos entre os povos gregos, 41 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA ocorridos entre o século VI e IV a.C., fizeram com que a população declinasse, as reservas econômicas se exaurissem e as defesas do mundo grego ficassem fragilizadas, expondo a Grécia à investida de inimigos externos, como os macedônios, os persas e os romanos (GRIFI, 1989). Em 338 a.C., Filipe II da Macedônia conquista toda a Grécia ocidental e inicia uma campanha de união dos povos gregos sob seu comando com o intuito de avançar sobre o Império Persa. Em 336 a.C., Filipe é assassinado e assume em seu lugar o seu jovem e brilhante filho Alexandre Magno (O Grande), que leva adiante a unificação da Grécia ao Império Macedônio. O jovem Alexandre, que teve educação grega sob a tutoria de Aristóteles, foi brilhante na arte da guerra e conseguiu expandir as fronteiras do Império Macedônio por grande parte da Ásia, levando consigo a cultura grega e a fundindo com a cultura oriental, fundando cidades e bibliotecas por toda a vasta extensão de seu domínio (GRIFI, 1989). Por essa época, os povos gregos continuaram realizando seus ritos religiosos e seus jogos em homenagem a seus deuses. No entanto, o orgulho e a pungência da civilização grega estavam abalados, pois eram agora um povo dominado, e não mais um conjunto de cidades livres, independentes e até democráticas. A moral, os costumes e as normas dos jogos mantiveram-se intactos durante o período de domínio macedônico, pois os macedônicos tinham aproximação cultural com os gregos, sobretudo seu líder Alexandre, grande entusiasta da cultura helênica (GRIFI, 1989). No entanto, esse grande império não duraria muito tempo. Com a morte precoce de Alexandre Magno, em 323 a.C., aos 33 anos de idade, os territórios conquistados foram divididos entre seus principais generais, ocasionando uma sucessão de conflitos e retaliações que mantiveram os gregos sob domínio. O clima de incertezas sob o domínio macedônico durou até o ano de 146 a.C., quando os romanos conquistaram a Grécia, anexando-a ao território de Roma e mantendo o jugo dos gregos, que poderiam ser denominados cidadãos romanos caso se submetessem às leis de Roma, pagando impostos e fornecendo soldados para o Exército romano (GODOY, 1996). Com o domínio de Roma sobre a Grécia, a cultura dos helenos foi preservada, seus ritos, jogos e funerais foram mantidos e sua educação e desenvolvimento científico e filosófico foram absorvidos por Roma, assim como características da organização social e política, Medicina, Astronomia, Matemática e Artes. No entanto, o povo grego não era mais livre e seu potencial criativo foi sendo reduzido juntamente com sua moral e orgulho nacionalista. Os jogos gregos ilustram a forma com que os costumes gregos foram tratados, ferindo o orgulho dos helenos. Após o domínio romano, muitas cidades de fora da Grécia começaram a participar dos jogos, que antes eram exclusivos dos gregos. Os objetivos originais dos jogos eram homenagear os deuses do Olimpo e, honrosamente, competir em busca da vitória através do bom combate, em que mais valia uma luta valorosa do que uma vitória fácil. A ética grega permeada pelo espírito combativo fazia dos jogos, sobretudo os Olímpicos (disputados em Olímpia, em honra de Zeus), um momento solene de respeito e submissão aos deuses (RAMOS, 1982). 42 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Os povos estrangeiros que passaram a participar dos jogos estavam interessados apenas na vitória a qualquer custo, como forma de ganhar prestígio. Com isso, o rígido código de regras dos jogos caiu em desuso e as disputas passaram a contar com vergonhosos episódios de trapaças e corrupção, além da presença de mercenários, com índole duvidosa, que competiam apenas pela recompensa, deixando a honra muito fora de questão (GODOY, 1996). No ano de 67 d.C., os Jogos Olímpicos contaram com a participação do imperador romano Nero, que era um admirador dos jogos. O imperador disputou a corrida de bigas e foi declarado vencedor, mesmo tendo sido derrubado por seu cavalo e não completando o percurso. Na ocasião, Nero competiu sozinho, pois os outros atletas se recusaram a competir com o imperador; temiam por suas vidas e de seus familiares caso vencessem o imperador ou, ainda pior, caso houvesse uma situação de acidente, bastante comum nas corridas de bigas, que viesse a ferir Nero. Ele conquistou os louros olímpicos graças a um generoso suborno pago aos juízes que arbitravam a competição e, de forma humilhante, se autoproclamou deus dos romanos e deus dos gregos (GRIFI, 1989). Foi pautado nesse triste episódio da história dos Jogos Olímpicos que, quase 2 mil anos mais tarde, o barão Pierre de Coubertin, idealizador do Olimpismo moderno, defendeu duramente o amadorismo esportivo. Coubertin vislumbrava uma participação esportiva semelhante aos Jogos Olímpicos antigos, quando era possível paralisar guerras, gerar o bom entendimento entre os jovens e oportunizar uma disputa leal e honrosa. O amadorismo olímpico moderno perdurou até os Jogos de Barcelona, em 1992, quando os atletas e equipes profissionais puderam finalmente participar e o Comitê Olímpico Internacional se rendeu às forças do capitalismo e do marketing esportivo (GODOY, 1996). Em 390 d.C., na Tessalônica, território grego sob domínio romano, um conflito entre romanos e gregos culminou em uma grande rebelião entre os gregos. Teodósio I, imperador de Roma, ordenou o massacre de mais de 7 mil gregos rebeldes, além da destruição de suas casas e edifícios. Ambrósio, arcebispo de Milão, condenou o ato do imperador (RAMOS, 1982). Após o massacre, Teodósio I foi acometido por uma grave enfermidade e recorreu a Ambrósio pedindo por saúde e paz. O arcebispo o convenceu a converter-se ao cristianismo. Teodósio assim o fez e foi curado. Convertido, confessou-se culpado pelo morticínio dos gregos e, atendendo ao pedido de Ambrósio, o imperador Teodósio aboliu todas as manifestações pagãs em 393 d.C., inclusive os Jogos Olímpicos na Grécia, colocando fim em uma história de mais de 12 séculos ininterruptos de jogos (RAMOS, 1982). 3.3 Os exercícios físicos em Roma 3.3.1 Monarquia (da fundação de Roma ao século VI a.C.) Roma nasceu de um pequeno povoado nas terras férteis do Lácio, região central da Península Itálica. Seu povo tem origem em vários outros povos que habitavam a região, como palatinos, sabinos, etruscos e até os gregos, que já possuíam colônias na Península Itálica e mantinham constante relacionamento comercial com os etruscos, mas as organizações políticas, no início, ocorreram no centro da Península Itálica. A cidade de Roma teria sido fundada pelos netos de Eneias, Rômulo e Remo. Eneias era um imigrante de Troia. Essa hipótese estreita arelação da história de Roma com a da Grécia Antiga (ROSTOVTZEFF, 1983). 43 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A Monarquia Romana se refere à dinastia dos reis Tarquínios, na qual os etruscos tiveram domínio em Roma. Ao todo, foram três reis: Tarquínio, o Velho; Sérvio Túlio; e Tarquínio, o Soberbo. Durante esse período, a economia romana era essencialmente agrícola. A sociedade estava dividida em patrícios, aristocratas e grandes proprietários de terra que possuíam privilégios políticos e religiosos. Existia uma classe de homens livres, artesãos, pequenos comerciantes, que não tinham direitos políticos, os plebeus. Na sociedade romana, durante a Monarquia, existiam também os escravos, formados por povos conquistados ou escravizados por endividamento, que eram em menor número nesse período (VICENTINO; DORIGO, 2013). O rei tinha funções administrativas, judiciais e religiosas e seu poder era controlado pelo Conselho dos Anciãos, dominado pelos patrícios. A cúria era formada pelos cidadãos em idade apta para o serviço militar. No fim do século VII a.C., a dinastia dos reis Tarquínios, de origem etrusca, foi derrubada por um levante liderado pela aristocracia patrícia. A Monarquia deu lugar a um regime oligárquico e republicano, no qual o Senado passou a ser figura central no jogo do poder liderado pelas famílias abastadas da elite romana (VICENTINO; DORIGO, 2013). 3.3.2 República (séculos VI a.C.-I a.C.) O governo republicano foi caracterizado pelo domínio do poder administrativo, político e religioso nas mãos do Senado, que era formado de forma dominante pelos patrícios, classe aristocrata. Os governantes, magistrados, eram eleitos e tinham mandato de um ano; suas funções e decisões eram submetidas à aprovação e votação do Senado, sendo seus poderes bastante limitados. Os patrícios tinham cadeiras vitalícias no Senado, que tinha poder absoluto (VICENTINO; DORIGO, 2013). A organização social, política e militar de Roma no período republicano foi motivada por pressões externas, como invasões de gauleses e celtas, acordos comerciais com a cidade de Cartago e um impulso expansionista em busca da conquista de novas terras na Península Itálica e seus arredores. Nesse contexto, os plebeus foram gradativamente ganhando espaço na representação política no Senado, com a criação de cargos de tribunos da plebe, e na representação em uma assembleia popular formada por representantes dos grupos sociais. Essa nova configuração política gerou a especialização mais refinada dos cargos públicos em Roma (ROSTOVTZEFF, 1983). Os magistrados tinham a função de administrar a República, eram eleitos para mandatos de um ano e eram divididos em função de suas atribuições em: cônsules, que propunham leis, presidiam o Senado e as assembleias e podiam ser nomeados como ditadores temporários em períodos de guerras; pretores, responsáveis pela justiça e pela guarda pretoriana, tropa de elite romana; censores, que funcionavam como classificadores das classes sociais em Roma, categorizando os cidadãos de acordo com a sua renda; edis, que cuidavam da conservação, do abastecimento e do policiamento da cidade; e questores, responsáveis pelas finanças do governo (VICENTINO; DORIGO, 2013). As assembleias romanas populares (centurial, curial e tribal) reuniam-se para a nomeação dos magistrados e a ratificação das leis. O sistema político republicano era controlado pelos patrícios. No entanto, os plebeus marginalizados formavam uma classe descontente e havia um constante clima de tensão. Em 494 a.C., os plebeus, revoltados, exigiam representação política na cidade. As atividades da 44 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I cidade ficaram paralisadas e a oligarquia aristocrática dos patrícios retrocedeu, sendo criados cargos de tribunos da plebe, que passavam a ser representações do povo no Senado – eleitos pelos plebeus, tinham poder de veto sobre as decisões do Senado (ROSTOVTZEFF, 1983). Em 450 a.C. foi elaborada a Lei das Doze Tábuas, uma Constituição romana necessária, pois, desde a derrubada dos Tarquínios, as leis antigas não haviam sido substituídas. As leis passam a ser expostas no prédio do Fórum Romano, dando condições mais igualitárias para patrícios e plebeus. As tensões de classes foram uma importante mola propulsora da organização política romana, motivada também pelas transformações econômicas provocadas pela política de expansão territorial da República Romana (VICENTINO; DORIGO, 2013). Nos séculos seguintes (V a.C. a III a.C.), Roma conquistou toda a Península Itálica e se envolveu em muitos conflitos, como as Guerras Púnicas contra Cartago, cidade fundada por fenícios e que dominava o comércio no Mediterrâneo desde o enfraquecimento grego em função da Guerra do Peloponeso. Cartago ficava no norte da África e dominava a ilha da Sicília. Os romanos viam a Sicília como parte da Península Itálica e tinham interesse em suas terras férteis. O choque entre Roma e Cartago acabou por desencadear a guerra. Após vários conflitos, Cartago foi destruída e Roma assumiu o controle de grande extensão territorial por todo o Mediterrâneo (ROSTOVTZEFF, 1983). A expansão territorial provocou muitas mudanças na estrutura de Roma, que delegou ao Senado a atribuição de administrar um vasto território e toda a riqueza que vinha de impostos, pilhagens e apropriações. O enorme afluxo de bens das províncias conquistadas produziu impacto na economia, com a queda cada vez mais acentuada dos preços dos produtos agrícolas. A política expansionista passou a ser elemento-chave da economia romana (VICENTINO; DORIGO, 2013). Os patrícios ligados ao Senado eram grandes proprietários de terras. Os pequenos proprietários plebeus não conseguiram sobreviver com a concorrência dos abundantes e baratos produtos vindos das colônias e venderam suas terras, mudando-se para a cidade na condição de mão de obra de baixo custo. A cidade de Roma passou a crescer desmedidamente, de forma descontrolada, o que elevou a tensão social. Escravos chegavam aos milhares, vindos das províncias conquistadas. As riquezas acentuaram as desigualdades sociais e as tensões só aumentaram. Os patrícios ricos lucravam com as conquistas e tiveram sua produção beneficiada com o menor custo da mão de obra escrava. Os plebeus perderam suas pequenas propriedades e seus empregos foram substituídos pela mão de obra escrava (VICENTINO; DORIGO, 2013). A crise da República Romana se agravou, e as pressões sociais motivaram rebeliões e levantes populares. O Senado passou a oferecer jogos públicos como alternativa paliativa de contenção das tensões da plebe. Muitos anfiteatros foram construídos com capacidade para milhares de pessoas. Nos jogos, corridas e batalhas sangrentas ocupavam os humores da população cada vez mais pobre e oprimida (RAMOS, 1982). Uma nova tentativa de superação da crise foi a ideia de reforma agrária, proposta pelos irmãos Tibério e Caio Graco, que exerciam o cargo de tribunos da plebe; eles sugeriram a distribuição de terras como uma forma de superar a crise, satisfazendo as necessidades da plebe empobrecida. A proposta chegou a 45 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA ser aprovada pelo Senado, mas não foi implementada, pois desagradava, sobretudo, aos patrícios, donos das terras. O projeto de reforma política e agrária dos irmãos Graco fracassou, e a concentração de terras nas mãos dos patrícios continuou a existir. A questão agrária continuou desencadeando tensõessociais, e outras tentativas de redistribuição de terra foram defendidas, como a de 91 a.C., por iniciativa do tribuno Marco Lívio Druso, que acabou sendo assassinado (VICENTINO; DORIGO, 2013). No decorrer da história, o crescimento do poder militar de Roma elevou o prestígio de seus generais, que eram bem-sucedidos em campanhas de expansão de território ou em guerras para contenção de invasores. Esses generais recebiam a anuência do Senado para governar Roma como ditadores e, em meio à crise interna, controlavam os ânimos com seu carisma e poder, aliando-se aos patrícios e, em outras ocasiões, aos plebeus. Dessa forma, mantinham o equilíbrio interno em Roma assim como faziam nas fronteiras. Com o crescimento em prestígio de mais de um general, alianças foram criadas para evitar conflitos internos. Assim surgem os triunviratos. O primeiro triunvirato foi formado pelos generais Caio Júlio César, Pompeu e Crasso. Com o passar do tempo, uma rede de intrigas e disputas por poder desestabilizaram a tríplice aliança, e Júlio César, a quem era atribuída descendência divina, proclamou-se ditador e implantou medidas econômicas e administrativas, remendando um pacto em que seu poder suplantaria o poder do Senado. Em 44 a.C. foi proclamado ditador vitalício, o primeiro passo para a implantação do Império. No entanto, foi assassinado a facadas em pleno Senado (VICENTINO; DORIGO, 2013). Após a morte de Júlio César, o vazio de poder foi preenchido pelo segundo triunvirato, formado por Marco Antônio, Otávio e Lépido, originando novos confrontos. Marco Antônio arquitetou um plano para assumir o poder, assim como fizera Júlio César, mas sabia que Otávio era seu sobrinho e sucessor legal. O conflito entre os generais levou a várias batalhas, que culminaram com a morte de Marco Antônio e a proclamação de Otávio como imperador em 31 a.C. A partir dessa data, assumiu o posto de ditador com poderes especiais, sendo reeleito anualmente até que, em 27 a.C., promulgou uma nova Constituição no Senado, a qual lhe concedia o título de imperador vitalício. Foi renomeado como Otávio Augusto (divino) (ROSTOVTZEFF, 1983). 3.3.3 O Alto Império (séculos I a.C.-III d.C.) Otávio Augusto teceu uma série de reformas e fez promulgar uma nova Constituição em Roma, concentrando os poderes em suas mãos. A partir de 27 a.C. ficou instaurado o Império em Roma. Com a diminuição do poder do Senado, ocorreu uma profunda reforma política em Roma. O imperador passou a ser cultuado como divino. O império criou uma burocracia constituída por uma nova classe privilegiada de Roma, formada pela aristocracia patrícia e pelos comerciantes enriquecidos com a expansão territorial (homens-novos). Dessa forma, Otávio distribuiu cargos e diminuiu a tensão entre as classes mais ricas de Roma. Para agradar o povo (plebeus), Otávio passou a usar com frequência a oferta de jogos públicos, espetáculos sangrentos e corridas de quadrigas (carruagens puxadas por quatro cavalos e um auriga condutor) e a doação de alimentos (pães, cotas de trigo, entre outros). A celebração de jogos não respeitava apenas o calendário religioso, mas ocorria de acordo com a conveniência do imperador. Essa política de alienação apaziguadora das populações urbanas nas cidades romana foi denominada como política do pão e circo (VICENTINO; DORIGO, 2013). 46 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Figura 15 3.3.4 O Baixo Império (séculos III d.C.-V d.C.) A partir do século III d.C., Roma entrou em uma série de crises. A economia passou a definhar, uma vez que a expansão territorial e as conquistas de novas terras estagnaram. Os recursos oriundos de riquezas, pilhagens, tributos e incorporações dos novos territórios conquistados reduziram drasticamente, ao mesmo tempo que as despesas com o grandioso Exército se manteve, assim como as despesas das cidades. A importância agora era manter as fronteiras e evitar a todo custo a invasão de inimigos e a retomada de territórios (ROSTOVTZEFF, 1983). Sem novas conquistas, a captura de escravos reduziu drasticamente; o sistema de mão de obra escravagista passou a ser substituído por mão de obra assalariada, o que onerou muito as receitas do Império. Os elevados custos para manter as estruturas imperiais, militares e administrativas desestruturaram o poder central do imperador, reavivando os conflitos entre generais do Exército e acelerando a crise imperial (VICENTINO; DORIGO, 2013). Ao mesmo tempo que a crise econômica e militar aumentava cada vez mais, causando deserções e perda de territórios, o imperador, internamente, perdia poder e prestígio com o crescimento do cristianismo. A religião cristã crescia sobretudo entre a plebe e os escravos, que se amparavam na promessa de uma vida melhor e da salvação, mesmo que isso ocorresse apenas após a morte. A ética cristã privilegiava os pobres e afrontava o poder do imperador quando alegava existir apenas um Deus, senhor do céu e da terra. O politeísmo romano incluía a crença na origem divina do imperador, que era cultuado como o Deus Sol invicto. Por muitos séculos, os cristãos foram considerados traidores, 47 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA perseguidos e executados nas arenas e nos circos, crucificados, imolados ou devorados por feras, para o deleite dos espectadores. No entanto, com o crescimento do cristianismo como prática religiosa, as execuções de cristãos ficaram bastante impopulares. Na medida em que a derrocada econômica assolava o Império, cada vez mais homens livres se convertiam ao cristianismo (VICENTINO; DORIGO, 2013). Alguns imperadores tomaram medidas drásticas na tentativa de salvar o Império da crise. Diocleciano (284-305) criou o Édito Máximo, fixando os preços de mercadorias e salários. Não teve sucesso e os problemas de abastecimento aumentaram. Constantino (306-337) promulgou o Édito de Milão (313), que estabeleceu a liberdade de culto aos cristãos. Constituiu uma segunda capital para o Império, em Constantinopla (antiga Bizâncio, cidade grega), a leste e próxima ao Mar Negro, em uma parte do Império menos atingida pela crise do escravismo. Teodósio (378-395) transformou o cristianismo em religião oficial do Império (Édito de Tessalônica), nomeando a si mesmo como chefe da religião. Dividiu o Império Romano em duas partes: do Ocidente (com capital em Roma) e do Oriente (com capital em Constantinopla). No governo de Teodósio, a penetração de povos bárbaros ocorreu de forma lenta e gradual até a total queda do Império em 476 d.C. (VICENTINO; DORIGO, 2013). 3.3.5 Os exercícios físicos em Roma No período monárquico, as atividades esportivas tiveram grande influência do povo etrusco, formador da civilização romana. Eram realizadas, predominantemente, atividades utilitárias de preparação militar: exercícios equestres, marchas, corridas, esgrima, lutas e natação. Nesse período, os jogos públicos já eram realizados em dias festivos, porém com um forte vínculo com cerimônias religiosas (RAMOS, 1982). A segunda fase vai de 510 a.C. a 26 a.C. e foi caracterizada por um período republicano, marcando o início do processo de grande expansão dos domínios romanos. A República foi instituída após quase dois séculos de conflitos entre a classe dos patrícios (aristocracia) e os plebeus em busca de direitos iguais (aproximadamente 300 a.C.). Nessa fase tiveram início as grandes conquistas do domínio romano. O fortalecimento dos grandes generais (Pompeu, Júlio César, Marco Antônio e Otávio) provocou conflitos internos pelo poder. A construção dos grandes anfiteatros e arenas para combates e jogos ocorreu ainda nessa fase como iniciativa para apaziguaros conflitos entre o povo, representado pelos plebeus, e a aristocracia romana, representada pelos patrícios (GRIFI, 1989). Na fase republicana, os jogos públicos tiveram grande desenvolvimento no sentido de entreter o povo em momentos de dificuldades internas geradas pelas longas campanhas de conquista territorial. As atividades físicas eram, ainda, praticadas sob forte preceito militar; no entanto, devido à expansão territorial e à miscigenação cultural, a prática atlética sofreu influência grega e algumas atividades higiênicas e esportivas foram agregadas (RAMOS, 1982). Apesar da difusão cultural helenística, a filosofia grega para a prática de atividades gímnicas com objetivos pedagógicos gerais, buscando um desenvolvimento harmonioso e global do homem, não foi bem-aceita entre os romanos. A prática de atividades físicas entre os romanos tinha caráter estritamente prático, objetivando a formação militar ou a promoção de saúde, no caso das atividades higiênicas desenvolvidas nas inúmeras termas romanas (GRIFI, 1989). 48 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Em 27 a.C., o Senado atribuiu poderes absolutos ao general Otávio, sobrinho de Júlio César, e deu-lhe a denominação de Augusto, instaurando o período do Império Romano, que representou cerca de 500 anos de paz interna dentro das fronteiras de Roma e um grande crescimento das fronteiras e povos conquistados. O Império durou até 476 d.C., quando ocorreu a invasão dos germanos e a derrocada de Roma. O Império Romano representou o apogeu de Roma, período em que seus territórios alcançaram a máxima extensão (RAMOS, 1982). No período imperial, a realização dos jogos públicos atingiu sua fase áurea. Durante o ano chegava a ocorrer dois dias de jogos e diversões para cada dia de trabalho. A população, de forma geral, passou a ter uma função meramente espectadora. A prática de atividades físicas e rigorosos treinamentos era limitada aos soldados do poderoso Exército romano e aos escravos e profissionais que disputavam os jogos públicos (RAMOS, 1982). Houve a degradação das atividades praticadas nas termas, as práticas higiênicas decaíram, os cidadãos passaram a ser cada vez mais sedentários e as termas se limitavam à realização de ritos religiosos, como os festivais feitos a Baco, o deus do vinho. Também se notou uma degeneração geral dos valores atléticos da população, que se contentava em assistir aos espetáculos cada vez mais sangrentos e cruéis (GRIFI, 1989). A realização dos jogos públicos foi bastante importante como fator de política interna do Império. Nos numerosos dias de jogos eram distribuídas cotas de pão à população. Assim, a política do pão e circo foi responsável pela estabilidade interna do Império, alienando as massas, evitando levantes e insurreições populares (RAMOS, 1982). A deturpação dos jogos ocorreu à medida que as atividades se tornaram cada vez mais espetaculares. Nos grandes circos, com capacidade para até 100 mil pessoas, eram realizadas corridas de bigas, quadrigas, batalhas navais e apresentações equestres de habilidades. A disputa acirrada dos competidores inflamava os torcedores e não era rara a ocorrência de mortes em função de acidentes e sabotagens provocadas pelos adversários nas corridas de carros. As atividades realizadas nos anfiteatros, grandes arenas que comportavam até 60 mil pessoas, tinham maior grau de violência. Ali eram desenvolvidos os Jogos Gladiadores, em que guerreiros fortemente armados combatiam até a morte. Também se realizavam nesses recintos as venações, combates entre feras selvagens ou entre gladiadores e feras, bem como batalhas navais simuladas. Outra atividade espetacular e cruel realizada nos anfiteatros era a execução de criminosos e cristãos, que eram lançados às feras ou aos gladiadores sem quaisquer armas ou possibilidades de defesa (RAMOS, 1982). Observação O cristianismo cresceu na periferia de Roma como uma mensagem de salvação para os mais oprimidos. O crescimento da doutrina cristã foi um fator determinante para a desestruturação de Roma. Com a ascensão do cristianismo, marcada pelo Édito de Constantino (313 d.C.) e, mais tarde, com Teodósio instituindo-o como religião do Estado (393 d.C.), houve uma grande perseguição às atividades 49 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA pagãs, levando à extinção dos jogos públicos e das práticas esportivas de origem greco-romana, de forma geral (GRIFI, 1989). Exemplo de Aplicação Um governo altamente centralizador, assolado constantemente por crises internas de fome e doenças, e pressionado externamente por povos bárbaros que tentavam invadir os territórios romanos. Assim era a situação do povo em Roma. A aclamada Pax Romana somente era possível em função de grandes gastos com soldos e manutenção de legiões. A luta travada constantemente nas fronteiras garantiu a paz por séculos no interior dos domínios de Roma. No entanto, essa paz era relativa, pois a iminência de escassez de alimento, os problemas com doenças e a perseguição de cristãos geravam conflitos, levantes e descontentamento na capital e nas grandes cidades em todo o vasto Império. Buscando acalmar os ânimos do povo, os imperadores aumentaram de forma substanciosa a prática do oferecimento de jogos públicos em grandes estádios com capacidade entre 50 e 100 mil espectadores – eram os anfiteatros, arenas com capacidade para cerca de 80 mil pessoas, onde as disputas entre gladiadores, as lutas com feras e a execução de criminosos e opositores (cristãos) eram realizadas. Existiam ainda os grandes circos, com capacidade para mais de 100 mil pessoas, onde eram realizadas corridas de bigas e quadrigas e representadas batalhas disputadas nas fronteiras de Roma. Alguns circos tinham estrutura para simular batalhas navais com barcos e água de verdade. Em períodos de grande conflito, os imperadores chegaram a decretar mais de 150 dias de jogos públicos em um único ano. Nesse período, milhares de animais eram trazidos da África todos os anos para que fossem caçados em espetáculos sangrentos nas arenas. Além do entretenimento, os imperadores decretavam dia de feriado e distribuíam cotas de pães aos milhares de espectadores presentes nas arenas. Ainda existia um clímax emocional nas batalhas: quando, ao final de uma luta, um dos oponentes encontrava-se agonizando no chão, o vencedor solicitava a anuência do imperador para executar ou a clemência para poupar o adversário. O imperador, nessas ocasiões, voltava-se para o público e, em um gesto de interatividade, convidava o povo a participar da decisão. Invariavelmente o povo aclamava pela execução, afinal estava ali para um espetáculo de sangue. Essa política do entretenimento e alienação do povo da consciência crítica quanto aos problemas de Roma foi chamada de política do pão e circo (panis et circenses). Esses eventos, quando oferecidos de forma sequencial, melhoravam a aceitação da opinião pública quanto ao imperador e acalmavam os ânimos, pois o clímax sanguinário das disputas era mais importante do que a discussão dos problemas sociais. Reflita sobre a alienação gerada por espetáculos esportivos no mundo contemporâneo. Podemos traçar um paralelo com esse tipo de política de manobra das massas. Os governantes se aproveitam do fato de a população ficar ocupada com o clímax emocional dos eventos esportivos, dos programas jornalísticos de relatos policiais, que usam o método da “falação” para discutir exaustivamente algum assunto, entoando um ritmo de voz agonizante e apavorador. Jovens, 50 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão: F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I idosos e adultos concentram sua discussão em assuntos de pouca relevância, deixando em segundo plano notícias de votação de aumento de impostos, de aumento do valor de salários dos deputados, aprovação de orçamentos, entre outros. A alienação exclui o povo da crítica, da discussão política. Outro grande fator de alienação é o endividamento por consumo frívolo. As pessoas são levadas a consumirem mais do que ganham através do uso de cartões de crédito. Depois percebem que estão sendo consumidas pelos juros e devem buscar novas fontes de renda para honrar os compromissos, adotam uma postura extremamente pragmática, aumentam a jornada de trabalho, mesmo que através de colocações na economia informal. Sem benefícios, as pessoas ficam cada vez mais dependentes do trabalho. Com a carga horária tomada pelo trabalho, as pessoas não encontram tempo para o lazer e, sobretudo, para a reflexão de problemas. Vivem alienadas, trabalhando para pagarem contas e mergulhadas no lazer anestésico do futebol. 3.4 As disputas atléticas na Idade Média A queda do Império Romano aconteceu devido a uma conjuntura de diversos fatores que geraram uma crise interna. O primeiro e determinante fator foi uma crescente derrocada financeira gerada pela escassez de recursos para manter as vastas fronteiras do Império e o número do contingente militar. A crise econômica desencadeou uma grave crise militar. Com atrasos no soldo, os regimentos passaram a se dispersar, desguarnecendo as fronteiras e gerando a perda de territórios. Além desses dois fatores, o imperador havia perdido poder político e prestígio com a oficialização do cristianismo e o fim dos cultos pagãos. Com isso, a caracterização divina do imperador entrou em descrédito (RAMOS, 1982). Roma não foi tomada simplesmente. O Império ruiu e implodiu sobre suas próprias estruturas desgastadas. O ano de 476 d.C. marca a invasão bárbara dos povos que se opuseram por séculos ao domínio nas fronteiras setentrionais e orientais: unos, godos, visigodos, ostrogodos, germanos, entre outros, tomaram um Império desestruturado e retalharam seus territórios em reinos feudais (RAMOS, 1982). O processo de desestruturação do Império Romano marcou o início da Idade Média, com reestruturação social e de poder. No apagar das luzes de Roma, uma instituição se manteve forte e serviu de pilar para a organização do mundo medieval. A Igreja Católica Apostólica Romana estava bastante estruturada e recebeu os bárbaros invasores como salvadores, estabelecendo alianças (GRIFI, 1989). A maioria dos povos bárbaros invasores possuía uma cultura pautada na oralidade, com costumes, leis e traços passados de geração para geração. A Igreja iniciou um processo de aculturação ao catequizar os bárbaros na fé cristã. Os líderes da Igreja medieval trataram de monopolizar todo o conhecimento clássico greco-romano, queimando e escondendo bibliotecas inteiras, assumindo o papel de educadores da nobreza aliada de acordo com os valores e interesses da Igreja cristã (GRIFI, 1989). As invasões bárbaras provocaram uma retração no desenvolvimento das cidades, passando a prevalecer a organização de feudos. Os feudos eram propriedades rurais fortificadas, protegidas pelos 51 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA senhores feudais. O sistema feudal se organizava através da estrutura de trabalho de servidão. Os servos eram protegidos pelos senhores feudais, trabalhavam em suas terras, lhes deviam fidelidade e obediência. Por sua vez, os senhores feudais serviam ao rei, sustentando-o politicamente e militarmente. Além da hierarquia social da nobreza, a Igreja era um dos pilares de sustentação do sistema feudal, estabelecendo a ordem social por ser detentora da liderança intelectual e espiritual. Mantinha seu poder em função da ignorância do povo, monopolizando o conhecimento e o desenvolvimento cultural. Sua força vinha da disseminação do temor a Deus e do medo da danação eterna (GRIFI, 1989). 3.4.1 Contexto histórico geral A Idade Média pode ser considerada o período entre a Idade Antiga e a Idade Moderna. O período de aproximadamente mil anos, que vai, convencionalmente, da desagregação do Império Romano do Ocidente, após sua ocupação pelos bárbaros em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, foi chamado de Idade Média (VICENTINO; DORIGO, 2013). O período medieval pode ser caracterizado pela ideia de atraso cultural, em função de a Igreja dominar todas as esferas da vida das pessoas. Essa condição teria impedido o avanço do pensamento, da política e das artes. A construção desse pensamento foi fundamentada na comparação do longo período medieval com o considerado “renascimento” das ciências e das artes (VICENTINO; DORIGO, 2013). A ruralização foi uma característica da Europa medieval. Desde o final do Império Romano, as cidades foram sendo abandonadas por causa das invasões bárbaras. A falta de mão de obra escrava atraía vastos contingentes de trabalhadores para o campo, que arrendavam terras na condição de servos. O movimento dessa população marcou a volta a uma economia rural de subsistência. Devido à instabilidade causada pelas guerras e à concentração da população em comunidades rurais, o comércio entrou em declínio, assim como a utilização de moedas. Para proteger-se da agressão externa, construíram-se castelos e residências fortificadas. Ao mesmo tempo, ocorria o fortalecimento do cristianismo, que, pouco a pouco, se impunha à nova sociedade em formação. Vários reinos bárbaros converteram-se à doutrina cristã (VICENTINO; DORIGO, 2013). 3.4.2 Baixa Idade Média No período que vai do século XI ao século XV, chamado de Baixa Idade Média, começaram a ocorrer transformações no feudalismo. As origens dessas mudanças estão no esgotamento da autossuficiência produtiva, ocasionada pelo aumento populacional a partir dos séculos X e XI. Com a diminuição progressiva no ritmo das invasões, as condições de vida se tornaram mais estáveis, o que provocou gradativo aumento de população (VICENTINO; DORIGO, 2013). A explosão populacional exigiu aumento das áreas cultivadas para ampliar a produção, além de um desenvolvimento comercial mais vigoroso, ativando as trocas locais, desbancando a tendência ao imobilismo feudal das unidades produtivas autossuficientes. O aumento populacional, aliado a pesadas taxas e tributos, deixou grande quantidade de aldeões endividados e, consequentemente, sem suas terras, muitos procuraram outras oportunidades de sobrevivência, e outros foram expulsos dos feudos (VICENTINO; DORIGO, 2013). 52 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I 3.4.3 O movimento cruzadista As Cruzadas foram expedições militares de cunho religioso, organizadas pela Igreja para reconquistar a região da Palestina, que estava dominada pelos muçulmanos desde o século VII. Tratava-se de Jerusalém, terra considerada santa para os cristãos, local onde viveu e foi sepultado Jesus. A luta de reconquista já era desejada pelos imperadores bizantinos, que esperavam o auxílio do Ocidente no combate aos povos muçulmanos, sobretudo os turcos. Dessa forma, os interesses religiosos justificavam os interesses políticos e econômicos (VICENTINO; DORIGO, 2013). As Cruzadas elevaram o ânimo dos reis europeus, que se motivaram para a reconquista da Península Ibérica, dominada por árabes muçulmanos. Os conflitos com os mulçumanos e o bloqueio naval do Mediterrâneo impulsionaram a organização das Grandes Navegações, que pretendiam estabelecer novas rotas comerciais para o Oriente, mas acabaram levando às Américas.Dessa forma, a Europa foi capaz de impor sua concepção de mundo, sua cultura e seus valores a todos os povos que foram colonizados (VICENTINO; DORIGO, 2013). No período medieval a educação entrou em crise. As escolas eram restritas ao clero e à nobreza, os conteúdos programáticos apresentados eram bastante doutrinários e dogmáticos. Os livros apresentados eram extremamente selecionados. Os materiais mais controversos à doutrina cristã foram queimados ou trancados nos mosteiros, e apenas membros do alto clero tinham acesso a eles. Na Idade Média, os filósofos floresceram dentro desses mosteiros. No entanto, os filósofos cristãos tinham total alinhamento com os dogmas da Igreja. Dentro dos mosteiros eram realizadas a leitura e a cópia de documentos escritos e de alguns livros das civilizações grega, romana e árabe (VICENTINO; DORIGO, 2013). Saiba mais O filme indicado a seguir narra a investigação de uma série de assassinatos ocorridos em um mosteiro medieval de monges copistas: O NOME da rosa. Dir. Jean-Jacques Annaud. Alemanha; França; Itália: Neue Constantin Film, 1986. 130 minutos. Santo Agostinho (354-430), um grande nome da filosofia medieval, foi responsável pela síntese entre a filosofia clássica e o cristianismo. Duas de suas mais importantes obras são Confissões e A cidade de Deus. A obra de Santo Agostinho tem grande alinhamento filosófico com a obra de Platão: seus pensamentos são dedicados ao conhecimento da essência humana, à salvação da alma. Afirmava que a busca racional da verdade deveria sempre seguir a fé, “a fé precede a razão” (CHAUÍ, 2000). 53 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Observação A Idade Média foi um período de mudança de paradigmas em relação à sociedade antiga. Os avanços culturais e artísticos foram mais lentos, mas é um equívoco acreditar que não existiram. 3.4.4 Os exercícios físicos durante a Idade Média As atividades que envolviam o corpo tiveram um desenvolvimento restrito e regulado pelos interesses da Igreja da época. As práticas atléticas antigas da Grécia e de Roma foram proibidas e rotuladas como atividades pagãs. O desenvolvimento de atividades atléticas somente foi alavancado, nessa época, em função da incidência da organização da cavalaria. A cavalaria se desenvolveu como uma tradição na Idade Média, principalmente na constituição das Cruzadas, realizadas para libertar a “Terra Santa” (Jerusalém) do domínio dos mouros. A tradição da cavalaria previa a formação de nobres cavaleiros para lutar em nome de Deus. As atividades atléticas da época desenvolveram-se das rotinas de treinamento dos cavaleiros. Dessas atividades surgiram competições envolvendo habilidades guerreiras, desempenho físico e valores morais e espirituais do cavaleiro (GRIFI, 1989). Geralmente as atividades esportivas eram praticadas por apenas uma pequena parcela da população, representada pela nobreza e pela aristocracia, determinando o caráter elitista das atividades da época. Basicamente, as ações esportivas imitavam as exigências bélicas dos cavaleiros. Eram lutas com armas (espadas, lanças, bastões), equitação, arco e flecha, combates montados. No âmbito competitivo, destacaram-se o torneio e a justa (RAMOS, 1982). O torneio teve duas fases bem definidas. Na primeira, a disputa consistia em uma batalha feroz entre dois grupos de cavaleiros. Os combatentes digladiavam-se até a morte e, ao final do dia, eram computados os feridos e mortos para a determinação da equipe vencedora. Os sobreviventes reuniam-se para um banquete. A segunda fase do torneio foi caracterizada pela diminuição da violência, pelo uso de armas de madeira ou com as lâminas encapadas. Essas mudanças ocorreram após determinações da Igreja com o intuito de reduzir a brutalidade da disputa. A justa era o combate entre dois cavaleiros montados, armados com lanças, armaduras e escudos. Consistia no enfrentamento de ambos com o objetivo de derrubar o adversário de sua montaria (GRIFI, 1989; RAMOS, 1982). 54 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Figura 16 As competições na Idade Média tinham caráter essencialmente amador e respeitavam uma série de regras e posicionamentos morais, sendo comparadas à fase áurea dos jogos gregos, antes da decadência promovida pelo profissionalismo e pela dominação romana. A elitização da prática fica evidenciada pelo fato de apenas nobres poderem participar das disputas realizadas em pátios e arenas montadas dentro ou nos arredores dos castelos e fortificações da nobreza (GRIFI, 1989). Saiba mais O filme indicado a seguir ilustra de forma bem-humorada e com uma linguagem moderna as competições medievais e o contexto cultural da época: CORAÇÃO de cavaleiro. Dir. Brian Helgeland. EUA: Columbia Pictures Corporation, 2001. 132 minutos. 55 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA 4 O RENASCIMENTO CULTURAL E AS PERSPECTIVAS PARA O CORPO E O MOVIMENTO HUMANO Entre os séculos XIV e XVI, generalizou-se na Europa uma série de movimentos artísticos e científicos que tinham em comum o rompimento com valores do período medieval e a recuperação de ideais e modelos da Grécia e da Roma Antigas. Esses movimentos receberam o nome de Renascimento. Os renascentistas foram vistos como os continuadores dos ideais científicos, artísticos e estéticos cultivados no mundo antigo, mais precisamente na civilização greco-romana clássica (VICENTINO; DORIGO, 2013). O Renascimento é considerado um momento de transição, de ruptura entre as estruturas socioeconômicas, políticas e ideológicas da Idade Média e ligação com as novas ideias e organizações sociais da Era Moderna. Esse período de transformações ocorreu primeiro na Europa, entre os anos de 1400 e 1600, de forma diferente em cada país. A característica mais evidente é a ruptura com a ideologia doutrinária e hegemônica da Igreja Católica Apostólica Romana medieval, um afastamento das rígidas concepções teocêntricas e uma aproximação crescente com um pensamento racionalista, humanista e antropocêntrico. Após esse período, a Igreja passou a não mais ter autoridade para regulamentar a vida pública, deixando o homem livre para o crescimento intelectual e artístico, caracterizado pela retomada da cultura antiga greco-romana. O conhecimento clássico grego foi reintroduzido na Europa pelos árabes, que dominaram o Mediterrâneo e invadiram a Península Ibérica (Portugal e Espanha) entre os anos de 711 e 1492 (JAGUARIBE, 2001). Dentro da própria Igreja Católica surge um movimento de sucessivos papas que desenvolveram o pensamento humanista, construíram bibliotecas, criaram universidades e financiaram artistas humanistas – entre eles podem-se citar Nicolau V, Pio II, Alexandre VI (Bórgia), Júlio II e Leo X (Giovanni de Médici). Além do surgimento de papas próximos ao humanismo, inúmeros pensadores e artistas impulsionaram o movimento renascentista na Europa, com destaque para as cidades italianas de Gênova, Veneza e Florença, centros urbanos e comerciais bastante desenvolvidos (JAGUARIBE, 2001). O envolvimento da Igreja em conflitos contra o Sacro Império Romano e a crescente perda de apoio político de cidades e reinos importantes, como Florença, fizeram com que a Igreja se enfraquecesse. Outro fator de declínio da Igreja foi a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, que negou a autoridade da Igreja e publicou 95 teses de protesto na Igreja de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro de 1517. Lutero declarou que a Igreja não tinhamais autoridade, apenas as Escrituras Sagradas (Bíblia) têm autoridade (sola scriptura) plena e, para o cristão, o mais importante é a fé (sola fide). O movimento de reforma se espalhou rapidamente por outros países europeus e nas décadas seguintes dividiu o mundo cristão em dois campos opostos, criando uma divisão permanente no mundo cristão entre as perspectivas católica e protestante (JAGUARIBE, 2001). Durante o Renascimento, a mudança mais evidente e perene foi a explosão do humanismo, do racionalismo e do antropocentrismo nas artes e na produção intelectual. A produção artística dessa época volta ao estilo clássico greco-romano e passa a ilustrar o ser humano como tema central. Pinturas, 56 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I desenhos e esculturas retratam o corpo desnudo em seus mais rebuscados detalhes e expressões, caracterizando um realismo compromissado com o humano em contraste com a arte medieval atrelada à temática sacra (JAGUARIBE, 2001). A evidência histórica do Renascimento como momento de transição entre o medieval e o moderno e entre o sagrado e o humano é a vida e obra do artista Michelangelo Buonarroti (1475-1564), que se dedicou à pintura e à escultura com maestria, produziu inúmeras obras por encomenda da Igreja (Papa Júlio II) e mesmo assim mostrou desprendimento e coragem para expressar o ser humano e o estilo neoclássico. A seguir, a obra David, de Michelangelo Buonarroti (1504). Figura 17 – David, de Michelangelo Outros artistas viveram e expressaram o Renascimento em sua arte. Entre eles cabe destaque a Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael Sanzio (1483-1520), Donatello (1386-1466) e Sandro Boticcelli (1445-1510). Esses artistas inovaram e ousaram produzir obras de vanguarda com um viés humanista, retratando o homem e o mundo sob a ótica do mundo moderno (JAGUARIBE, 2001). No campo filosófico e científico inúmeros intelectuais buscaram a ruptura com a filosofia escolástica medieval, impregnada de dogmas doutrinários, e se alinharam com o humanismo racionalista. Existia, na época, um sentimento de libertação e ressentimento para com o domínio obscuro da Igreja Medieval. 57 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Na área da Educação Física existe a retomada gradativa da produção de estudos e obras pedagógicas defendendo uma educação mais integral, equilibrando o desenvolvimento intelectual ao desenvolvimento corporal. As ações práticas se multiplicaram mais tarde na Europa, em meados do século XVIII, sob a influência dos autores e pedagogos que, a partir do Renascimento, retomaram contato com estudos e obras da Grécia a respeito da Paideia, educação integral, e da prática de ginástica (RAMOS, 1982). 4.1 Os precursores renascentistas A seguir, alguns relatos de professores e intelectuais que iniciaram a publicação de obras e a implantação de modelos educacionais voltadas para a prática de exercícios. Vittorino da Feltre (1378-1446) foi professor de Filosofia e Retórica, inspirou-se na cultura greco- romana e dedicou-se à educação, dirigindo sua escola, La Giocosa de Mantova (Casa Alegre). Ministrava a seus alunos ginástica, jogos com bola, esgrima, corrida, equitação, marcha e exercícios de resistência ao frio e ao calor. Vittorino estimulava as atividades em grupo, a alegria e o alarido próprio dos jovens e crianças e condenava a solidão como desencadeadora de maus hábitos. Buscava o ideal grego de formação integral com a harmonia entre corpo, mente e espírito (RAMOS, 1982). Maffeo Veggio (1407-1458) foi professor dedicado à ginástica e à fisiologia. Publicou, em 1491, a obra Educação da criança, em que pregava que os exercícios físicos deveriam ser ministrados a partir dos 5 anos de idade e indicava a prática de exercícios de intensidade moderada, a fim de evitar a fadiga em nível elevado. François Rabelais (1494-1553), filósofo, escritor e médico, defendeu a vida ao ar livre e o desenvolvimento pleno das capacidades físicas. Defensor da alegria, foi crítico da educação escolástica. Escreveu a obra Gangântua e Pantagruel, na qual ressaltou a necessidade da higiene e do exercício físico. Na obra, o autor conta as proezas realizadas por Gargântua. A personagem é um garoto extremamente ativo e hábil, que domina equitação, arco, luta, natação, saltos ginásticos, jogos com bola, remo, suspensões na barra, levantamento de pesos, entre outros exercícios que buscavam laurear o herói, dando metas para a educação dos jovens da época. Em oposição, o autor desenvolve a personagem Pantagruel, um garoto obeso, glutão e indolente, que evitava ao máximo a fadiga do corpo e do espírito, vivendo uma vida pacata e pouco motivadora, com hábitos de pouca higiene. A personagem era a antítese do herói e sua inação era narrada de forma jocosa e irônica; seus hábitos eram ressaltados como fraqueza de caráter. A obra Gargântua e Pantagruel teve grande repercussão, atraindo a atenção da população a respeito das práticas naturais no âmbito educacional com o fortalecimento do corpo e o arejamento do espírito (RAMOS, 1982). Na obra, destaca-se a forma engraçada de ver a educação calcada em velhos preceitos, como viciosa, suja, doente e decadente, e de higienizá-la se novos procedimentos fossem adotados. O corpo assume uma dimensão muito importante na obra ao ser utilizado como um ponto de referência na crítica ao comportamento desregrado, glutão e preguiçoso dos pais e do próprio Gargântua antes de começar a ser educado de acordo com as novas ideias (HEROLD JUNIOR, 2006). 58 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Gargântua é um exemplo da crença no poder da educação para a transformação do homem, sentimento marcante do pensamento renascentista, que buscava a ruptura com a educação escolástica medieval, extremamente teórica, castradora e doutrinária. A personagem principal de Rabelais, numa situação de excessos, preguiça e ociosidade, transforma-se em um homem vigoroso, inteligente, cultivador da saúde, do trabalho e das virtudes. A intervenção do educador é realçada como determinante para a transformação do garoto através da Educação Física (HEROLD JUNIOR, 2006). Percebe-se, na obra de François Rabelais, o surgimento de novas relações sociais e a crítica aos velhos procedimentos, a valorização do corpo e do movimento na educação. O autor busca, na cultura das sociedades antigas de Grécia e Roma, subsídios para um desenvolvimento físico higiênico e moral, desprezando o abandono ao qual o corpo é deixado durante a Idade Medieval. O autor exprime as mudanças sociais e educacionais que surgiram no momento de transição denominado Renascimento, quando ocorre o processo de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa e o surgimento de novas necessidades educacionais (HEROLD JUNIOR, 2006). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo social, teórico político e escritor suíço. Foi o mais popular dos filósofos que participaram do Iluminismo, movimento intelectual do século XVIII. Suas ideias influenciaram a Revolução Francesa. Em sua obra mais importante, O contrato social, desenvolveu sua concepção de que a soberania reside no povo. Figura 18 – Retrato de Jean-Jacques Rousseau Rousseau publicou muitas obras, mas no seu conteúdo pedagógico destaca-se o romance Emílio, ou Da Educação (1762). Nele, o autor destaca a importância da prática de exercícios físicos pelos jovens, a necessidade do esforço, a vida ao ar livre, a alimentação saudável e hábitos higiênicos, como o uso de roupas leves, o arejamento das residências e oaleitamento materno. Rousseau foi um grande estudioso da filosofia grega e de seu método de educação integral, a Paideia. Em Emílio, o autor estabelece um programa educacional com quatro princípios básicos: 59 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA • O jovem deve ser educado de forma livre. • A infância da criança deve ser vivida de forma plena e prolongada. • A educação do emocional deve preceder a educação intelectual. • O saber importa menos que o exercício de juízo, valores éticos. Rousseau destaca em sua obra frases que até hoje se mostram bastante atuais como diretrizes para a educação: “Quem quiser ser forte espiritualmente deve cultivar suas forças físicas”; “Cultivai a inteligência de seu filho, mas, antes de tudo, cultivai o seu físico, porque é ele que orienta o desenvolvimento mental; é necessário primeiro tornar seu filho são e forte, para poder vê-lo mais tarde, inteligente e sábio” (apud RAMOS, 1982, p. 176). O autor recomenda, em sua obra, a prática de corrida, saltos, subidas em árvores, arremesso de pedras, exercícios de equilíbrio, jogos com bola e levantamento de pesos. Devido a seu grande prestígio, Rousseau influenciou toda uma geração de pedagogos, filósofos e professores, entre eles Pestalozzi e Goethe. Suas orientações pedagógicas podem ser percebidas nos movimentos educacionais ginásticos do final do século XVIII e durante todo o século XIX (RAMOS, 1982). Girolamo Mercuriale (1530-1606), professor, médico e humanista, autor de uma grande obra sobre a prática de exercícios físicos: De arte ginástica, inspirada na obra de Galeno e outros gregos antigos. Os seis tomos da obra apresentam conhecimentos precisos sobre a prática de exercícios físicos. O autor apresenta uma concepção sistemática e racional, com ilustrações bastante explicativas. Ele divide sua obra em exercícios gerais e exercícios adaptados à condição do praticante, faz notas a respeito dos efeitos dos exercícios físicos e dos problemas causados se aplicados de forma incorreta e divide o treinamento físico em três fases: preparatória, fundamental e respiratória. Além disso, prega a necessidade de se considerar a idade do praticante, a estação do ano e até a hora de prática durante o dia (RAMOS, 1982). Sua obra cita e referencia mais de 120 autores antigos gregos, romanos e árabes. Com isso, Mercuriale estimulou a releitura desses autores clássicos por muitos filósofos e pedagogos renascentistas. Seus esforços possibilitaram o reaparecimento da prática de atividades físicas sistematizadas, que entraram em declínio e abandono após o período da Antiguidade Clássica greco-romana. François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715), arcebispo católico francês, publicou em 1687 um tratado sobre a educação das jovens, no qual defende a prática da ginástica feminina como forma de se opor à vida ociosa das meninas. De acordo com o autor: Nesta ociosidade, a jovem abandona-se à preguiça, que é uma languidez da alma e motivo de aborrecimentos. Geralmente, habitua-se a dormir mais do que o necessário, tornando-se mais delicada e exposta às comodidades do corpo. No entanto, um sono razoável, seguido do exercício regular, faz 60 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I qualquer pessoa alegre, disposta e robusta, dando-lhe verdadeira perfeição corporal, sem levar em conta as vantagens resultantes para seu espírito (apud RAMOS, 1982, p. 177-178). Considerava a prática do exercício como um dever diário do indivíduo para com a pátria. Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), filósofo e educador suíço, é tido como continuador da obra pedagógica de Rousseau. Pestalozzi dedicou sua vida à educação e ao humanismo. Para ele, a educação representa o desenvolvimento natural do ser humano, de forma progressiva e sistemática, abrangendo todas as suas forças. Figura 19 - Johann Heinrich Pestalozzi De acordo com Ramos (1982, p. 178), Pestalozzi afirmava que: “O hábito do exercício físico não só desembaraça o corpo da criança, como lhe desenvolve as qualidades intelectuais e morais”. Pestalozzi defendeu a educação geral a todas as classes sociais, reconheceu em seu tempo os males gerados ao corpo pela vida das sociedades industrializadas, sugerindo a prática do exercício como fator de correção ao sedentarismo da vida na sociedade moderna. O autor criou o primeiro método moderno de ginástica experimental, no qual se atentava para a postura corporal, para a correção dos movimentos e para as ações articulares, que foi denominado Ginástica Elementar. Publicou dois livros sobre educação: Leonardo e Gertrudes e Como Gertrudes educa seus filhos. Neles, discute a educação integral do ser humano (RAMOS, 1982). Os autores relacionados antecedem ao movimento ginástico europeu. São precursores teóricos e experimentais que se dedicaram ao exercício de forma isolada e não representaram, assim, um movimento contínuo e coeso, mas sim esforços aleatórios de retomada de um meio de educação que reconhece o corpo e o exercício. 61 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Apesar da ocorrência desordenada em países e épocas diferentes, as obras desses autores possuem denominadores comuns: todas rompem com a educação medieval, restritiva e doutrinária; marcam a transição para uma educação humanista; e reconhecem a importância do exercício físico. Resumo Esta unidade abordou, de forma crítica, o estudo da História, que seria a remontagem dos fatos diante dos seus respectivos contextos sociais com embasamento em documentos e evidências encontrados. O texto usa de metodologia filosófica para promover a discussão e a reflexão dialética dos fatos ocorridos em determinados períodos históricos com as situações vividas no cotidiano do profissional de Educação Física. Foi feita a análise da evolução dos hominídeos, em constante progresso intelectual e rebuscamento nas habilidades motoras. O homem constituiu-se a partir da grande capacidade de adaptação e da união entre desenvolvimento cognitivo e motor para a solução de tarefas do cotidiano, que permitiram sua sobrevivência e a propagação da espécie, como a busca por alimentos e a proteção contra predadores e inimigos. Os povos antigos e sociedades tribais deixaram registros importantes da necessidade de aplicação dos exercícios físicos em diversos setores da vida, como a educação, responsável pela aprendizagem dos hábitos e habilidades necessárias ao homem adulto, e a sobrevivência, representada pela busca pelo alimento (caça, pesca, escalada, mergulho, salto) e pela luta contra invasores e animais. Também foi constatada a presença constante de exercícios na forma de disputas, danças e ritos em cerimônias religiosas e rituais de passagem para a vida adulta, assim como em brincadeiras descompromissadas envolvendo tanto crianças como adultos. As civilizações antigas, que dominaram a produção agrária e fundaram as primeiras cidades, passaram pelo processo de especialização dos papéis sociais e tiveram que aperfeiçoar as destrezas atléticas relacionadas a lutas e defesa para proteger suas reservas de alimento e seu contingente populacional. As lutas, o arco, o dardo, a equitação e as corridas passaram a ser treinados com precisão e afinco no processo de educação dos jovens e disputados com eventos religiosos para pôr à prova seus guerreiros. É assim que no Egito muitas apresentações de destreza física foram encontradas em inscrições antigas em tumbas e documentos. Elas ilustravam,geralmente, as habilidades sobre-humanas do faraó, em uma tentativa de valorizar e reafirmar seu poder divino. 62 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 Unidade I Na Grécia Antiga, os exercícios faziam parte do cotidiano dos jovens, pois existiam valores morais relacionados à sua prática e aos cuidados com o corpo. O aretê era um valor que dizia respeito à combatividade, à coragem e ao enfrentamento. Para tanto, o jovem deveria treinar e forjar seu corpo e seu espírito para o combate até a morte. Para o grego, uma morte honrosa era mais valorosa do que uma vitória sobre um oponente mais fraco. Os gregos possuíam ainda o kalokagathia, referência moral que colocava a beleza e a harmonia como virtude. Por isso, a pessoa que não cuidasse do próprio corpo e se entregasse aos excessos alimentares era tida como alguém de pouco caráter. Esse valor moral conduziu as artes, a arquitetura e todo o senso estético grego. Os gregos produziam estátuas em homenagem aos seus deuses e buscavam a perfeição estética em seus corpos. Treinavam e competiam nus para admirar o gestual do corpo em movimento e produziram magníficas obras de arte ilustrando essas ações. Os gregos adotavam os treinamentos ginásticos em suas escolas para jovens a partir dos 7 anos de idade, visando à formação integral do jovem e ainda à preparação guerreira. A religião grega era antropomórfica e politeísta. Para homenagear seus deuses, organizavam jogos que envolviam diferentes disputas atléticas. Os mais famosos eram os Jogos Olímpicos, que eram realizados a cada quatro anos dentro do calendário religioso e homenageavam a Zeus, deus supremo do Olimpo. O evento, realizado na cidade sagrada de Olímpia, reunia milhares de espectadores e atletas no mês de agosto. O evento, que paralisava guerras devido à sua importância religiosa, também servia como referência para acordos comerciais e tratados de paz. Com o domínio dos gregos pelos macedônios, em 338 a.C., e depois por romanos, os Jogos Olímpicos continuaram a existir, mas, devido à participação de mercenários estrangeiros, entraram em decadência moral. Os exercícios físicos em Roma atendiam à necessidade de treinamento militar de seu grandioso Exército; a população tinha por hábito a prática de exercícios higiênicos em termas. No entanto, o fato que mais marcou o período romano foi a deterioração dos valores higiênicos da população após a intensificação da política do pão e circo, estratégia dos imperadores para distrair o povo empobrecido e faminto. Eram oferecidos jogos sangrentos, espetáculos de sangue, execuções, combate entre gladiadores, lutas com feras e corridas de bigas. Esses eventos deixavam o povo tranquilo e alienado dos problemas, aumentando a governabilidade dos imperadores. 63 EF IS - R ev isã o: R os e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 7/ 01 /2 01 7 FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA Roma entrou em decadência devido à escassez de recursos para sustentar suas grandiosas fronteiras e seu imenso Exército. Internamente, o poder do Imperador foi questionado com a ascensão do cristianismo, doutrina monoteísta, que destituía o poder divino do imperador. Em 476 d.C., Roma implodiu e foi invadida por bárbaros, que retalharam seu território em pequenos reinos e feudos. Diante da invasão bárbara, a Igreja cristã se manteve estruturada, fez alianças e passou a doutrinar os invasores no período que foi denominado como Idade Média. No período medieval, a cultura do mundo antigo foi substituída pela doutrina católica e todas as atividades pagãs foram desestimuladas. Houve um grande retrocesso nas práticas corporais e nos cuidados com o corpo. No período medieval, os jogos estavam atrelados à cultura da cavalaria, oriunda da nobreza e inacessível a toda a população. O período entre os anos de 1400 e 1600 é denominado na história como Renascimento. Foi um momento em que diversos fatores históricos, políticos e sociais contribuíram para a mudança de paradigma da sociedade medieval doutrinária para a sociedade moderna pautada no humanismo e em ideais burgueses. O Renascimento marca, na Educação Física, a retomada da leitura e aplicação dos clássicos greco-romanos e o surgimento de pedagogos e autores precursores da Educação Física moderna.