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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE - FAC CURSO DE BACHARELADO EM SERVIÇO SOCIAL FRANCIANA RODRIGUES DA CUNHA AS CONTRIBUIÇÕES DO CENTRO DE REFERÊNCIA FRANCISCA CLOTILDE PARA O PROCESSO DE RUPTURA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM FORTALEZA: OLHARES E CONCEPÇÕES DOS/AS PROFISSIONAIS. FORTALEZA 2014 FRANCIANA RODRIGUES DA CUNHA AS CONTRIBUIÇÕES DO CENTRO DE REFERÊNCIA FRANCISCA CLOTILDE PARA O PROCESSO DE RUPTURA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM FORTALEZA: OLHARES E CONCEPÇÕES DOS/AS PROFISSIONAIS. Monografia apresentada ao curso de graduação em Serviço Social do Centro de Ensino Superior do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Profª. Ms Socorro Letícia Fernandes Peixoto FORTALEZA 2014 Bibliotecário Marksuel Mariz de Lima CRB-3/1274 C972c Cunha, Franciana Rodrigues da As contribuições do Centro de Referência Francisca Clotilde para o processo de ruptura da violência doméstica em Fortaleza: olhares e concepções dos/as profissionais / Franciana Rodrigues da Cunha. Fortaleza – 2014. 87f. Orientador: Profª. Ms. Socorro Letícia Fernandes Peixoto. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade Cearense, Curso de Serviço Social, 2014. 1. Gênero. 2. Violência contra a mulher. 3. Políticas públicas. I. Peixoto, Socorro Letícia Fernandes. II. Título CDU 364 Dedico este trabalho aos meus pais, Francisco Pereira (Valdir) e Ana Maria, meus irmãos, e ao meu esposo, amigo e companheiro, Sílvio da Silva. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus e a Nossa Senhora, por estarem sempre presentes nos momentos em que mais preciso, dando-me força e conforto, mesmo que seja por intermédio de muitos “anjos” que sempre apareceram com palavras de carinho e incentivo. Aos meus pais, Francisco Pereira (Valdir) e Ana Maria, minhas razões de viver, que sempre me apoiaram e me incentivaram em meus estudos. Agradeço por essa tão valiosa herança, que foram os meus estudos e minha formação como pessoa. Aos meus irmãos, Daniel, Adriana e Rafael, pelo apoio e pelas cobranças. Amo muito cada um de vocês! Ao meu esposo, grande amigo, homem da minha vida, Sílvio, que me deu apoio todas as vezes que precisei e que enxugou minhas lágrimas todas às vezes em que achava que não iria conseguir. Amo muito você! Obrigada por confiar em mim. A minha tia, Francisca Heronildes, por ser um exemplo para minha formação, para me fazer querer sempre buscar conhecimento e, com isso, ser uma pessoa ainda melhor. As minhas avós, Maria Patrício e Josefina Gonçalves (Macêda – In memorian), pelo grande exemplo e ensinamentos. A minha orientadora, Professora Ms. Socorro Letícia Fernandes Peixoto, pelo acompanhamento, companheirismo, dedicação, paciência - principalmente com relação ao não cumprimento com os prazos para a entrega do material. Obrigada pelas leituras concedidas e por ter confiado e não ter desistido de mim. A professora Kelma, que me acolheu e compreendeu minha angústia em um dos momentos que mais precisei. Obrigada, Professora! As minhas amigas lindas (As amarelas): Natália Andrade, Mikaella Lopes, Kézia Kelly e Janielle Souza, pela amizade e companheirismo de vocês, fundamental para minha formação. Obrigada pelo apoio e por acreditarem em mim. A vocês o meu mais sincero obrigada! Amo muito cada uma de vocês. A Chirlene, uma amiga que ganhei no decorrer do curso e que o carinho e incentivo foram muito importantes. Muito obrigada! Vocês são um presente de Deus em minha vida. A todos os colegas de turma, pois cada um teve uma importância em minha formação, e por cada um tenho um carinho enorme. Sucesso a todos. Maria da Penha Alcione Comigo não, violão Na cara que mamãe beijou "Zé Ruela" nenhum bota a mão Se tentar me bater Vai se arrepender Eu tenho cabelo na venta Sou brasileira, guerreira Não tô de bobeira Não pague pra ver Porque vai ficar quente a chapa Você não vai ter sossego na vida, seu moço Se me der um tapa Da dona "Maria da Penha" Você não escapa O bicho pegou, não tem mais a banca De dar cesta básica, amor Vacilou, tá na tranca Respeito, afinal, é bom e eu gosto Saia do meu pé Ou eu te mando a lei na lata, seu mané Bater em mulher é onda de otário Não gosta do artigo, meu bem Sai logo do armário Não vem que eu não sou Mulher de ficar escutando esculacho Aqui o buraco é mais embaixo A nossa paixão já foi tarde Cantou pra subir, Deus a tenha Se der mais um passo Eu te passo a "Maria da Penha" Você quer voltar pro meu mundo Mas eu já troquei minha senha Dá linha, malandro Que eu te mando a "Maria da Penha" Não quer se dar mal, se contenha Sou fogo onde você é lenha Não manda o meu casco Que eu te tasco a "Maria da Penha" Se quer um conselho, não venha Com essa arrogância ferrenha Vai dar com a cara Bem na mão da "Maria da Penha" “A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da autoestima, o sentimento de menos valia a depressão; essas são feridas que não saram”. Maria Berenice Dias RESUMO O presente estudo tem como objetivo conhecer as concepções das profissionais do Centro de Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde sobre as contribuições deste serviço para o processo de ruptura da violência doméstica das mulheres. Dentre os objetivos específicos desse estudo, destacamos: compreender os significados atribuídos pelas profissionais ao fenômeno da violência doméstica contra as mulheres; conhecer quais as visões das profissionais sobre as atitudes das mulheres usuárias do serviço, diante das agressões sofridas; apreender as opiniões das profissionais sobre a política de enfrentamento a violência contra as mulheres em Fortaleza. Dialogamos com as seguintes categorias: gênero, violência doméstica contra as mulheres e políticas públicas. A metodologia utilizada na elaboração deste trabalho pautou-se na pesquisa qualitativa. A técnica principal para a obtenção das informações foi a entrevista semiestruturada. Como forma complementar, utilizamos a pesquisa bibliográfica e documental e o banco de dados do Observatório do CRM. Dentre os resultados alcançados, percebemos que as profissionais acreditam que o Centro de Referência contribui para o rompimento do ciclo de violência das mulheres atendidas, sobretudo, por conta do atendimento das principais demandas das mulheres atendidas, como a solicitação por medidas protetivas, a orientação jurídica, o suporte psicológico e a preocupação com o “sustento” financeiro dos filhos. O atendimento ocorre mediante acompanhamentos sistemáticos da equipe do CRM, bem como a realização de encaminhamentos à rede de enfrentamentoà violência contra as mulheres. Palavras–chave: Gênero. Violência doméstica contra as mulheres. Políticas públicas. ABSTRACT This study aims to identify the concepts of professional Reference Center and Assistance to Women in Domestic Violence and Sexual Situation Francisca Clotilde on the contributions of this service to the process of disruption of domestic violence women. The specific goals of this study are that: understand the meanings attributed by the professional to the phenomenon of domestic violence against women; know what the views of professionals on the attitudes of women users of the service in the face of these abuses; grasp the views of professionals on the face of political violence against women in Fortaleza. Dialogued with the following categories: gender, domestic violence against women and public policy. The methodology used in the preparation of this work was guided in qualitative research. The main technique for obtaining information was the semi-structured interview. As a complementary way, we use the bibliographic and documentary research and the CRM Observatory database. Among the results achieved, we realize that the professionals believe that the Reference Center contributes to the breaking of the cycle of violence of women seen mainly due to the care of the main demands of the women seen as a request for protective measures, the legal advice , psychological support and concern for the "meat" of the financial children. The service takes place through systematic follow-ups of the CRM team as well as the realization of referrals to coping network to violence against women. Keywords: Gender. Domestic violence against women. Public policies. LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS § - Parágrafo ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas ADVOCACI - Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos APAVV - Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência B.O - Boletim de Ocorrência CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEJIL - Centro para a Justiça e o Direito Internacional CF - Constituição Federal CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos CNDM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNJ - Conselho Nacional de Justiça COMDIM - Conselho Municipal dos Direitos da Mulher CP - Código Penal CPM - Centro Popular da Mulher CRAS - Centro de Referência de Assistência Social CREAS - Centro de Referência Especializados de Assistência Social CRM - Centro de Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde CSSF - Comissão de Seguridade Social e Familiar DEAMS - Delegacia Especial de Atendimento à Mulher HDGM - Hospital Distrital Gonzaga Mota HMF - Hospital da Mulher de Fortaleza IML - Instituto de Medicina Legal IMP - Instituto Maria da Penha JECRIMS - Juizado Especial Criminal LGBT - Gay, Lésbica, Bissexual e Travesti LMP - Lei Maria da Penha MTE - Ministério de Trabalho e Emprego OEA - Organização dos Estados Americanos OG‟s - Organizações Governamentais OIT - Organização Internacional de Trabalho OMS - Organização Mundial de Saúde ONG‟s - Organizações Não Governamentais ONU - Organização das Nações Unidas OP - Orçamento Participativo PAIF - Serviço de Atendimento Integral à Família PNAS - Política Nacional de Assistência Social PNDH - Programa Nacional de Direitos Humanos PNPM - Plano Nacional de Políticas para as Mulheres PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento SMCDH - Secretaria da Mulher, Cidadania e Direitos Humanos SPM - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres UMC - União das Mulheres Cearenses UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância TCO - Termo Circunstanciado de Ocorrência LISTA DE ILUSTRAÇÕES, DE TABELAS E DE GRÁFICOS Figura 1 - Ciclo da Violência ................................................................................................... 23 Figura 2 - Pesquisa que apresenta o quantitativo de mulheres que denunciam agressões sofridas ..................................................................................................................................... 24 Figura 3 - Eixos Estruturantes da Política Nacional de Enfrentamento á Violência contra as Mulheres ................................................................................................................................... 35 Figura 4 - Mortalidade de mulheres antes e após a vigência da Lei Maria da Penha............... 43 Figura 5 - Fluxograma de atendimento do CRM ...................................................................... 46 Gráfico 1 - Equipamentos existentes no estado do Ceará em defesa da Mulher ...................... 39 Tabela 1 - Dados de atendimentos do CRM ............................................................................. 60 Tabela 2 - Tipos de Violência................................................................................................... 61 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 2 CAPÍTULO I: RELAÇÕES DE GÊNERO E VIOLÊNCIA ............................................... 16 2.1 Conceituando as relações de gênero .......................................................................... 16 2.2 A violência contra as mulheres: contextos e especificidades .................................... 19 3 CAPÍTULO II: POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES ................................................................................................ 27 3.1 Movimento Feminista: as lutas das mulheres ao longo da História .......................... 27 3.2 Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres ....................... 32 3.3 Violência doméstica e familiar contra as mulheres em Fortaleza e no Ceará: entre conquistas e desafios ............................................................................................................. 37 3.4 Lei Maria da Penha e os instrumentos normativos que tratam da violência doméstica contra as mulheres ................................................................................................................ 40 4 CAPITULO III: PESQUISA DE CAMPO: ANÁLISE SOBRE O CENTRO DE REFERÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA FRANCISCA CLOTILDE .......................................................................................................................... 44 4.1 Apresentação do Centro de Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde (CRM) .................................................................................... 44 4.2 Percurso metodológico da pesquisa ........................................................................... 46 4.3 Perfil das entrevistadas .............................................................................................. 50 4.4 Resultado das Entrevistas .......................................................................................... 50 4.5 Os dados do Observatório: demandas das mulheres atendidas (retornos e atendimentos de primeira vez) ..............................................................................................59 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 62 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 65 APÊNDICES ............................................................................................................................ 70 ANEXOS .................................................................................................................................. 74 13 1 INTRODUÇÃO A presente monografia consiste no trabalho de conclusão de curso de Serviço Social e tem por pretensão tratar da violência contra as mulheres no âmbito doméstico, tema bastante debatido principalmente após a aprovação da Lei Maria da Penha. Sabemos que há diferentes formas de compreensão do que vem a ser violência contra as mulheres, dentre elas estão: a violência de gênero que, segundo Saffioti (2004), é aquela que decorre da construção social do masculino e do feminino. A violência conjugal, que ocorre a partir de relacionamentos conjugais, ou seja, entre casais e a violência doméstica que se dá no âmbito da convivência familiar. O interesse em pesquisar sobre as diferentes condições das mulheres diante de violências sofridas teve origem nas observações registradas durante o meu estágio curricular do curso de Técnica de Enfermagem, realizado no Hospital Distrital Gonzaga Mota – Barra do Ceará (HDGM-BC), nos anos 2000 e 2001. Durante o estágio, foi constatada a elevada incidência de mulheres que eram agredidas fisicamente por seus companheiros e aquilo chamou a minha atenção. Outro fator que também instiga a realização de tal pesquisa é o fato de ter amigas que se submeteram ou se submetem a esse tipo de agressão por seus companheiros e ainda não conseguiram se desvencilhar destas relações. A violência doméstica é um tema atual e instigante, sendo esta uma expressão da questão social que atinge pessoas de ambos os sexos e não obedece à classe social, geração, raça, etnia, orientação sexual, dentre outras. No presente contexto, falaremos sobre a violência doméstica contra as mulheres, a qual os agressores, comumente são os maridos e companheiros. Estes, por sua vez, constroem vínculos familiares e afetivos com essas mulheres, conhecem seus modos de vida, tem “livre acesso” a elas, e o mais crítico, muitas vezes, compreendem aspectos de suas subjetividades. De acordo que a violência contra as mulheres continua sendo percebida socialmente como um fenômeno naturalizado, de forma que as pessoas pensam que seja somente uma crise de casal e que “as briguinhas são normais”. Porém, quando a violência se manifesta de forma muito agressiva, a sociedade tende a culpabilizar as mulheres, a partir de falas expressas do senso comum que enfatizam que “mulher gosta de apanhar” ou que “é vagabunda por aceitar estar naquela situação”. Em Fortaleza, existem equipamentos públicos que compõem a Rede de Atendimento às mulheres em situação de violência, dentre eles encontram-se: Casa Abrigo, 14 Centros de Referência, Delegacias e Defensorias de Defesa das Mulheres, Juizados Especiais da Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), Centro de Reabilitação e Educação do Agressor e serviços de saúde especializados no atendimento à violência sexual. Esta pesquisa foi realizada com as profissionais do Centro de Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Francisca Clotilde (CRM) em Fortaleza. Nesse sentido, partimos da seguinte indagação: Qual a concepção das profissionais do CRM sobre as contribuições deste serviço para o processo de ruptura da violência doméstica das mulheres? A partir dessa pergunta de partida podemos citar outros questionamentos pertinentes ao tema: O que as profissionais entendem por violência doméstica contra a mulher? Na visão das profissionais, quais são as principais demandas que as mulheres usuárias apresentam para o CRM? Qual a concepção das profissionais sobre as atitudes das mulheres usuárias do serviço diante das agressões sofridas? Como elas acham que o CRM tem contribuído para o processo de rompimento das situações de violência vivenciadas pelas mulheres usuárias do serviço? Qual a opinião das técnicas sobre a política de enfrentamento a violência contra as mulheres em Fortaleza? Os questionamentos descritos nesse trabalho buscam a obtenção de novos conhecimentos sobre o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres, com o propósito de discutir seus resultados tanto no âmbito acadêmico, quanto no exercício profissional. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo geral conhecer a concepção das profissionais do CRM sobre as contribuições deste serviço para o processo de ruptura da violência doméstica das mulheres. Dentre os objetivos específicos, destacamos: compreender o entendimento das profissionais sobre o significado do fenômeno da violência doméstica contra as mulheres; saber qual a concepção das profissionais sobre as atitudes das mulheres usuárias do serviço diante das agressões sofridas; apreender a opinião das profissionais sobre a política de enfrentamento a violência contra as mulheres em Fortaleza. A metodologia utilizada na elaboração deste trabalho pautou-se na pesquisa qualitativa. A técnica principal para a obtenção das informações foi a entrevista semiestruturada, em vista de apreender os significados atribuídos pelas profissionais do CRM ao processo de rompimento do ciclo da violência doméstica pelas usuárias às quais atendem. Como forma complementar, utilizamos a pesquisa bibliográfica e documental, mediante a utilização de livros e textos pertinentes ao tema, bem como de artigos de periódicos, jornais e 15 revistas e demais documentos de órgãos governamentais e não governamentais. Recorremos ainda aos dados quantitativos advindos de pesquisas que tratam do fenômeno estudado. Ressaltamos que as categorias utilizadas para a realização deste estudo foram: gênero, violência doméstica contra as mulheres e políticas públicas. Portanto, a monografia foi dividida em três capítulos: O primeiro capítulo abordou o tema das relações sociais de gênero e violência contra as mulheres, o qual contextualizou o cenário histórico da violência contra as mulheres, a partir das categorias de violência e gênero. Para essa discussão fundamentamo-nos principalmente em Scott (1990), Saffioti (2004), Osterne (2008) e Giddens (2001). As Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra as mulheres foram apresentadas no segundo capítulo, a partir da relação histórica com o movimento de mulheres e feministas. Destacamos também a Lei Maria da Penha, como um dispositivo legal de proteção as “vítimas” de violência. Por fim, o terceiro capítulo tratou das informações referentes à pesquisa de campo, no qual abordamos com mais precisão os procedimentos metodológicos de investigação, as dificuldades enfrentadas na coleta das informações, a contextualização do lugar, tipo e natureza da pesquisa, os sujeitos e as falas das profissionais do CRM. 16 2 CAPÍTULO I: RELAÇÕES DE GÊNERO E VIOLÊNCIA No primeiro capítulo abordaremos o tema Relações de Gênero e Violência, contextualizando o cenário histórico da violência contra a mulher. Discutiremos, ainda, as categorias gênero e violência, bem como será apresentado um breve histórico da violência contra as mulheres. 2.1 Conceituandoas relações de gênero Segundo Giddens (2001), o gênero está associado às noções socialmente construídas de masculinidade e feminilidade, não sendo, necessariamente, um produto direto do sexo biológico de um indivíduo. A distinção entre sexo e gênero é fundamental, pois muitas diferenças entre homens e mulheres não são de origem biológica. O que é ser-se um homem? O que é ser-se uma mulher? Pode pensar-se que ser-se um homem ou uma mulher é algo associado em última instância com o sexo do corpo em que nascemos. Mas, a semelhança das inúmeras questões que suscitam o interesse dos sociólogos, a natureza da feminilidade e da masculinidade não é assim tão fácil de classificar. Algumas pessoas acreditam, por exemplo, ter nascido no corpo errado e procuram «endireitar as coisas» mudando de gênero ao longo da vida. (GIDDENS, 2001, p. 108) Para melhor compreensão dos papéis culturais distintos entre homens e mulheres, torna-se necessário destacar as análises de Giddens (2001), nas quais, culturalmente, ambos exercem atribuições variadas, além de destacar que a natureza dos corpos masculinos e femininos pode não estar diretamente vinculada aos papéis que exercem. No entanto, aprimoramos nosso olhar para uma discussão pautada nos papéis desempenhados por homens e mulheres, em relações heterossexuais, diante de uma sociedade ocidental de tradição e valores patriarcais ainda sólidos. Nesse contexto, afirmamos que os homens, em geral, são mais valorizados que as mulheres, bem como as relações de poder entre ambos admitem hierarquias que os privilegiam. Às mulheres é “dada”, culturalmente, a responsabilidade de educar os filhos e de se ocupar das atividades domésticas, enquanto aos homens é “imposta” a responsabilidade de sustentar a família, apesar de alguns cenários de mudanças. Desse modo, a divisão de trabalho entre sexos os levou a assumirem posições desiguais em termos de poder, prestígio e riqueza. Ainda na infância, as crianças são ensinadas sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, sendo elas educadas conforme modelos sociais bem delineados do masculino e 17 do feminino. Os brinquedos são distintos e direcionados para meninos e para as meninas, e, além disso, são ditadas regras de comportamento e de postura igualmente diferenciadas. Também são estabelecidos padrões estéticos de vestimentas, postura e apresentação. Geralmente, os meninos espelham-se nos modelos dos homens adultos, enquanto as meninas nos modelos das mulheres adultas. Desse modo, são impostos paradigmas de beleza, docilidade, comportamento e fragilidade para as mulheres, e virilidade, coragem e poder para os homens. Para entendermos a violência contra as mulheres, partiremos do conceito das relações sociais de gênero concomitante ao conceito de patriarcado. Gênero, conforme o dicionário Aurélio (2010), é uma categoria que indica, por meio de desinência, uma divisão dos nomes baseada em critérios, tais como sexo e associações psicológicas, e, ainda segundo este dicionário, há gêneros masculino, feminino e neutro. Segundo Scott (1990), gênero diz respeito a uma categoria útil para análise histórica, sendo que o uso deste conceito vem sendo bastante discutido, destacando-se com frequência no campo das Ciências Sociais, Sociologia, Psicanálise e Antropologia. Seu fortalecimento ocorreu com as produções acadêmicas referentes ao sexo feminino, realizadas por feministas na década de 1970. Dessa forma, ao longo dos séculos, [...] as pessoas utilizaram de forma figurada os termos gramaticais para evocar traços de caráter ou traços sexuais [...], as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos [...]. Em vários idiomas indo-europeus existe uma terceira categoria – o sexo indefinido ou neutro. (SCOTT, 1990, p. 73) Scott (1990) diz ainda que gênero é um termo proposto pelas pesquisadoras feministas que trabalhavam com estudos sobre mulheres, e que este conceito adotado por elas transformaria os paradigmas no seio de cada disciplina. “Gênero” é sinônimo de “mulheres” [...]. O uso do termo “gênero” visa indicar a erudição e a seriedade de um trabalho, pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres” [...]. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT, 1990, p. 75) Assim, a incorporação do gênero por parte das ciências sociais visa fortalecer o caráter social das relações entre os sexos e desmistificar o determinismo biológico dos termos sexo e diferenças sexuais. 18 Saffioti (2004) também discorre sobre o conceito de patriarcado, que expressa a dominação-exploração das mulheres pelos homens, de forma que elas são vistas apenas como reprodutoras de trabalho, de filhos e de satisfação sexual para os homens. Os códigos de gênero, por meio do poder simbólico, contribuem para ratificação de determinadas estruturas sociais, conforme afirma Bourdieu (1998, p. 15), admitindo-se, assim, o uso de seu conceito de dominação simbólica: A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos [...]. Ainda segundo Bourdieu (1998, p. 41), a dominação propriamente dita já constitui uma violência: A violência simbólica institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominador (logo, à dominação), uma vez que ele não dispõe para pensá-lo ou pensar a si próprio, ou melhor, para pensar sua relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo senão a forma incorporada da relação de dominação, mostram esta relação como natural; ou, em outros termos, que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e se avaliar ou para perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto. Torna-se relevante ainda, trazer à tona o debate sobre o conceito de poder apresentado por Michel Foucault (1979), o qual expressa que o poder em si não existe, mas sim relações de poder. De acordo com o referido autor, o poder é como um instrumento de diálogo entre os indivíduos de uma sociedade, sendo este relacional. A noção de poder onisciente, onipotente e onipresente não tem sentido nesta versão, pois tal visão somente serviria para alimentar uma concepção negativa do poder. [...] o indivíduo é um dos primeiros efeitos do poder, e não o outro do poder. Em síntese: “o indivíduo é o efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu”. (FOUCAULT, 1989, p. 183-184) Percebemos assim, que embora haja uma relação de hierarquia entre homens e mulheres, estas podem manifestar sinais de resistência às agressões masculinas. Portanto, o autor cita que “(...) lá onde há poder, há resistência e, no entanto, ou melhor, por isso mesmo, 19 esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 91). No tópico seguinte, faremos um breve histórico da violência contra as mulheres, bem como falaremos sobre a categoria violência e suasespecificidades no que tange às relações de gênero, por meio de algumas definições sugeridas por autores que discutem tal tema. 2.2 A violência contra as mulheres: contextos e especificidades Os termos sexo e gênero foram utilizados durante muito tempo como tendo o mesmo significado, que seriam de traços que diferenciariam homens e mulheres. A historiadora norte-americana Joan Scott (1990) cita que esse novo uso da palavra gênero expressa um elemento de relações sociais fundadas sobre as diferenças naturalmente percebidas entre os sexos, sendo assim uma construção social e histórica dos sexos. O movimento de mulheres surge a partir da organização coletiva de algumas destas que questionavam os lugares atribuídos a elas socialmente. Segundo Peixoto (2007), o movimento de mulheres pode ser considerado como toda forma de organização de mulheres que lutam para conquistar seus objetivos: seja um grupo de mulheres que lutam por melhorias em sua comunidade; seja o movimento de uma determinada categoria profissional; seja o movimento de mulheres negras. Além da busca pela igualdade de gênero e igualdade de direitos, as mulheres reivindicavam a conquista dos seus direitos em igualdade com os homens. Dentre as conquistas que as mulheres tiveram, destacam-se: a implantação das delegacias especializadas de defesa das mulheres e o reconhecimento legal da violência doméstica como uma violação dos direitos humanos, a citar, por exemplo, a Lei Maria da Penha. As feministas afirmam que essa luta não tem como objetivos a destruição ou a “desestruturação” das famílias, mas sim mostrar à sociedade e às autoridades que “lugar de mulher não é em casa e nem no fogão”. Sendo assim, o objetivo, segundo elas, é acabar com a dominação masculina e a com a estrutura patriarcal. A violência é um tema característico da vida em sociedade, principalmente devido às relações sociais entre os sexos. Popularmente, Saffioti (2004, p. 17) denomina que “violência doméstica trata-se da ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, psíquica, sexual, moral.”. 20 Conforme afirma a citada autora, a violência contra as mulheres pode ser cometida não apenas por parentes, como também por pessoas de confiança ou do convívio do domicílio, mesmo que não haja nenhum vínculo. Já a violência doméstica é aquela que é praticada por parentes da “vítima”, ou que vivem na mesma residência e mantêm laços afetivos, podendo ser parentes, esposos, tios, etc. “Assim, o poder „dado‟ aos homens é como uma autorização social para fazer o que quiser com as vítimas” (SAFFIOTI, 2004, p. 18). A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu, em 1981, violência como “a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis” (MINAYO & SOUZA, 1993, p. 71). Dessa forma, a violência é considerada epidemia, tanto pelo número de “vítimas”, como pela seriedade das sequelas que produz na saúde física e mental das pessoas. Ainda segundo Minayo e Souza (1993), a violência foi identificada como criminalidade, quase que objeto exclusivo das Ciências Jurídicas, sendo, recentemente, inserida mais intensamente em outras áreas do conhecimento. Teles e Melo (2002, p. 15), definem violência como: Violência [...] quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio; é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. Osterne (2008) nos diz que a violência doméstica contra as mulheres é o reflexo da violência de gênero e que teve sua origem no patriarcado, na forma de estruturalização social do gênero. Para que ocorra o enfrentamento da violência doméstica, é necessário que haja a intervenção de agentes externos, principalmente de equipes multiprofissionais e de uma rede de equipamentos de proteção a essas mulheres. Saffioti (2004) relata que dificilmente uma mulher conseguirá se desligar de um homem violento sem a intervenção externa, e conclui afirmando que até que ocorra o desvencilhamento da relação, as mulheres reagem à violência através de variadas estratégias. “(...) a violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino” (SAFFIOTI 2004, p. 81). De acordo com os autores acima citados, violência doméstica contra as mulheres é entendida a partir das relações de poder pautadas na dominação masculina, sendo que culturalmente, a violência é naturalizada nas relações sociais. 21 De acordo com a Lei nº 11.340/2006, que trata da criação dos mecanismos para reprimir a violência contra a mulher, mais conhecida como Lei Maria da Penha, são formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres aquelas que são praticadas no interior do ambiente familiar, em relações interpessoais, em relações homoafetivas, em locais onde o agressor tenha ou teve convívio com a mulher no mesmo domicílio, podendo abranger a violência sexual, psicológica, moral, patrimonial, etc. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), conhecida como Convenção de Belém do Pará, remete à violência, em seu artigo 1º como: “violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (BRASIL, 1994, p. 86). Para a Organização Mundial da Saúde (apud TELES; MELO, 2003, p. 12): [...] a violência doméstica contra a mulher no âmbito doméstico tem sido documentada em todos os países e ambientes socioeconômicos; e as evidências existentes indicam que seu alcance é muito maior do que se supunha. Destacamos que a violência cometida contra as mulheres se manifesta de várias formas, resultando em lesões corporais, em agressões que prejudicam a autoestima e as relações da pessoa agredida, além de traumas psicológicos e/ou mortes. Apesar de as mulheres estarem obtendo conquistas tanto no campo profissional, quanto no político e social, ainda precisam avançar no campo privado das relações pessoais, no âmbito doméstico e familiar. As mulheres, muitas vezes, ainda são vistas como inferiores e vítimas dos preconceitos, em consequência do machismo que insiste em imperar nas famílias e na sociedade. Conforme divulgação das estatísticas do Mapa da Violência (2012), realizado pelo Instituto Sangari, no decorrer de 1980 a 2010, foram assassinadas no país mais de 92 mil mulheres, sendo que 43,7 mil aconteceram somente na última década. Esses dados representam um aumento de 230%, ou seja, os índices passaram de 1,353 para 4,465. Segundo o artigo 7º, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: I - a violência física é compreendida como aquela na qual o agressor ofende a integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica é compreendida como qualquer conduta que cause diminuição da autoestima e danos emocionais ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que 22 vise degradação ou controle de suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outromeio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual é entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. As agressões se iniciam com ameaças, empurrões, tapas, xingamentos, violência na presença da vítima (como esmurrar a parede ou uma mesa), e/ou danos a animais ou objetos. A agressão pode incluir abuso sexual, empurrões e/ou jogar a vítima ao chão, esfaqueamento, mordidas, pontapés, chegando a representar ameaça à vida, com a utilização de armas. O ciclo da violência contra as mulheres divide-se em três fases. A primeira é a fase da tensão, onde ocorrem insultos menores, que se manifestam por meio de atritos, ameaças, crises de ciúmes, onde a mulher tenta acalmar o agressor, sendo prestativa, dócil, e acaba achando que realmente a culpa pode ser sua. Em seguida, vem a segunda fase, que é a da explosão, do descontrole, sendo marcada por agressões mais graves. Por fim, vem a terceira e última fase, que é a do arrependimento, da “lua de mel”, da reconciliação, na qual há pedidos de perdão, demonstrações de remorso, promessas de mudança de comportamento. O agressor mostra medo de perder a companheira, promete que tudo que aconteceu não vai se repetir; é a fase na qual ele promete qualquer coisa, implora por perdão e compra presentes. A imagem a seguir ilustra um pouco de como essas fases acontecem. 23 Figura 1 - Ciclo da Violência Fonte: WALKER, L. 1 , 2002. Para “preservar a integridade do lar” e com medo de “desagradar o agressor” e iniciar um novo processo de violência, as mulheres assumem um papel de discrição e de silêncio, sem deixar transparecer a violação da qual são vítimas. 1 BRASIL. Ministério da Saúde. Violência Intrafamiliar: Orientação para a prática em serviço. Caderno de Atenção Básica. n. .8. Brasília, 2002. 24 A partir de uma pesquisa realizada pelo Senado Federal (2013), foi possível identificar que muitas mulheres agredidas não denunciam os fatos às autoridades, dificultando os dados reais da violência sofrida pelas “vítimas”. Figura 2 - Pesquisa que apresenta o quantitativo de mulheres que denunciam agressões sofridas Fonte: <www.senado.gov.br/noticias/datasenado>, 2013. A violência contra as mulheres é praticada nos mais diversos espaços, mas a que ocorre no âmbito doméstico acaba sendo mais complexa, pois se entrelaça de sentimentos relacionados ao prazer, amor, medo vergonha e poder. O Mapa da Violência (2012) relata que após a implementação da Lei Maria da Penha, a proteção às mulheres melhorou, porém, a partir de 2008, os índices de violência retornaram aos números anteriores. Nesse sentido, mesmo com a implantação dessa legislação, há ainda questões reais de ordem cultural que reforçam a subordinação das mulheres com os homens, como nos fala o conhecido ditado popular: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Isto acaba dificultando as denúncias por vizinhos, parentes e amigos, afinal, a casa é considerada como um espaço sagrado e “ninguém pode se intrometer na intimidade do casal”. Percebemos 25 que a violência permeia o dia a dia das pessoas, e diante de uma agressão, ainda há falas que se omitem, chegando a dizer: “essa é mais uma briguinha de casal”. Em 2008, o Brasil assistiu ao vivo o assassinato de uma adolescente de 15 anos, a jovem Eloá Cristina Pimentel, por um ex-namorado inconformado com o fim do relacionamento, este terminado por ele mesmo por ciúmes, e que a vítima não quis reatar. Eloá e uma amiga permaneceram em cárcere privado durante 100 horas. Nesse período, ele bateu, acusou, coagiu e, por fim, martirizou o seu corpo com um tiro na cabeça e na virilha, sendo a amiga também ferida com um tiro no rosto. O femicídio é um crime de ódio, realizado sempre com muita crueldade. Outros casos semelhantes foram os de Mizael 2 e do goleiro Bruno 3 . Nos dois episódios há exemplos covardes de violência contra a mulher, que ganharam grande espaço na mídia, chamando a atenção da população e das autoridades para um problema que não é novo, pois desde o período colonial a mulher é “coisificada”, sendo considerada propriedade do homem e este sempre se sentiu no direito de realizar tal ação, inferiorizando o sexo feminino. Foram crimes hediondos, nos quais nenhuma das duas mulheres tiveram como se defender das situações. A violência contra as mulheres não escolhe idade, beleza, cor ou classe social, e é caracterizada por ser uma forma de violação dos direitos humanos das mulheres, impedindo- as de desfrutar de direitos e das liberdades fundamentais, conforme explicita a Constituição Federal de 1988, ferindo, assim, sua dignidade e autoestima. Segundo o artigo 5º, parágrafo IX, da Constituição Federal: 2 O policial reformado e advogado Mizael Bispo de Souza foi condenado nesta quinta-feira (14) a 20 anos de prisão pelo assassinato da ex-namorada, a advogada Mércia Nakashima, ocorrido em 23 de maio de 2010. O corpo e o carro da advogada foram encontrados em uma represa na cidade de Nazaré Paulista, na Grande São Paulo. Mércia foi morta aos 28 anos. Na leitura da sentença, o juiz Leandro Bittencourt Cano descreveu os três agravantes aceitos pelo Conselho de Sentença ao analisar se o réu era inocente ou culpado. Sobre o agravante de crime torpe, por exemplo - segundo a acusação, Mizael se sentia humilhado pelo fim do relacionamento -, o magistrado definiu: "muitos crimes são cometidos em nome do amor, mas que tipo de amor é esse?", indagou, para completar: "Quando é amor o que se sente, não há o mínimo desejo de se livrar da pessoa amada. O sentimento amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, esse faz sofrer", disse. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/03/14/apos-tres-anos-mizael-bispo-e- condenado-pela-morte-da-ex-namorada-mercia-nakashima.htm>. 3 O goleiro Bruno foi condenado por júri popular em Contagem (MG) a 22 anos e 3 meses em regime fechado (em prisão de segurança média ou máxima) pelo assassinato e ocultação de cadáver de Eliza e também pelo sequestro e cárcere privado do filho Bruninho. Ele está preso desde julho de 2010 na Penitenciária Nelson Hungria. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/julgamento-do-caso-eliza-samudio/noticia/2013/06/supremo-nega- liberdade-goleiro-bruno.html>. 26 Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm o direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deve proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer tipo de discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião políticaou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. (BRASIL, 1988) Entretanto, algumas mudanças ocorreram do ponto de vista legal, como por exemplo, no novo Código Civil (2002), no qual as mulheres passaram a ser vistas como cidadãs, com direitos e deveres. Agora, as mulheres ao casar não apenas assumem “a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família” (Código Civil, 2002, Art. 1.565), mas passa a exercer direitos e deveres baseados na comunhão plena de vida e na igualdade entre os cônjuges. É necessário que os poderes públicos se sensibilizem, em especial o judiciário, e que a população tenha conhecimento desse tipo de violência. É preciso um processo contínuo de conscientização, por meio das escolas, de políticas públicas e da realização de campanhas educativas, além da mídia e das redes sociais, que são instrumentos em potencial para a realização de trabalhos educativos. Enfim, a sociedade precisa tomar ciência dos instrumentos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial, os relacionados aos direitos das mulheres. No capítulo seguinte buscamos tecer considerações sobre o movimento feminista e as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. 27 3 CAPÍTULO II: POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Neste capítulo discorreremos sobre as lutas e conquistas históricas das mulheres, sobretudo do movimento feminista. Abordaremos ainda, o tema das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, onde citaremos também, alguns dispositivos normativos, tais como: Lei Maria da Penha (2006), Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2001) e Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013- 2015). 3.1 Movimento Feminista: as lutas das mulheres ao longo da História A palavra “feminismo” provém do francês femme e do latim femina. O feminismo é um movimento político e social que luta pela igualdade de direitos, de condições e de oportunidades entre mulheres e homens. O movimento feminista, portanto, é contrário à ideologia patriarcal e busca entender as causas da discriminação das mulheres. Lobo (1991) nos fala que o início das conquistas das mulheres ocorreu pela emancipação destas como cidadãs. Com este propósito, lutaram para conquistar seus direitos mais amplos, como o voto, a igualdade na educação e a igualdade civil. O movimento feminista, segundo Goldenberg (1992, p. 17) é conceituado como sendo uma “ação organizada de caráter coletivo que visa mudar a situação da mulher na sociedade, eliminando as discriminações a que ela está sujeita”. Esse movimento surgiu nos Estados Unidos e na Inglaterra, em meados dos séculos XVIII e XIX, e sofreu influência das revoluções Francesa e Industrial. De acordo com Simone de Beauvoir (1970, p. 85): O que elas reivindicam hoje é serem reconhecidas como existentes ao mesmo título que os homens e não de sujeitar a existência à vida, o homem à sua animalidade. Uma perspectiva existencial permitiu-nos, pois, compreender como a situação biológica e econômica das hordas primitivas devia acarretar a supremacia dos machos. Nesse contexto, Scott (2002) ressalta que as feministas passaram a questionar as contradições no discurso político e filosófico que, por meio da “diferença sexual”, delimitavam a universalidade dos direitos individuais. Elas acusaram a Revolução Francesa e as três primeiras repúblicas da França de trair os princípios universais de igualdade, liberdade e fraternidade, ao recusarem o direito à cidadania para as mulheres. 28 As feministas francesas, de acordo com Frota & Santos (2012), formularam discursos para reivindicar direitos iguais para mulheres e homens, dentre os quais podemos citar: Olympe de Gouges, que ao exigir direitos iguais aos dos homens elaborou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791; Jeanne Deroin, que concorreu para cargo legislativo em 1849, desafiando a Constituição da Segunda República; Hubertine Auclert, que foi a primeira a reclamar pelo direito do voto feminino; e Madeleine Pelletier, que elaborou um documento emancipatório para a mulher, considerando dentre outras questões, o direito ao voto, além do direito à descriminalização do aborto, sendo este considerado como um direito sobre o próprio corpo. Nesse sentido, Olympe de Gouges, em 1791, ao publicar a Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs, fez uma denúncia à exclusão das mulheres, ao questionar o conceito de igualdade contido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 26 de agosto de 1789. Para ela, a diferença sexual não deve justificar o poder e a cidadania política. No tocante ao movimento feminista, podemos apontar didaticamente três fases: a primeira ocorreu durante o período do Iluminismo à Revolução Francesa; a segunda é característica do feminismo dos séculos XIX e XX; e a terceira etapa ocorreu nos séculos XX e XXI. É possível dividir o feminismo em três ondas ou momentos, sendo que o primeiro momento ocorre no período que compreende a Revolução Francesa até o final da Primeira Grande Guerra, o segundo momento marca o período do seu ressurgimento em 1960 e o terceiro emerge na década de 1990. (LUCENA (s/d), p. 02) O primeiro momento do feminismo foi entre o período de 1850 a 1940, em que as mulheres da elite lutaram por direitos mais amplos, como direito à educação, ao emprego e ao voto. Nessa época, a alfabetização para as mulheres era vista como prejudicial, pois interferia no desenvolvimento dos papéis de esposa e mãe. Com relação ao voto, as mulheres só adquiriram efetivamente o direito em 1932, graças à ação política do Partido Republicano Feminino, criado em 1910, no qual o voto era restrito às mulheres casadas que tivessem autorização dos maridos e a algumas solteiras ou viúvas com renda própria. No entanto, em 1946, foi instituída a obrigatoriedade plena do voto feminino (BRASIL, 2002). Apesar de sempre ter sido possível encontrarmos vozes do feminismo, este só passou a se formar como movimento organizado após a Revolução Francesa, ganhando força durante o século XIX, com o movimento sufragista. O primeiro grupo de mulheres foi 29 inspirado após a Revolução Francesa, e é apontado por Guimarães (2005, p.78) como sendo uma [...] ação organizada de caráter coletivo, que tem como objetivo combater a particular situação de subordinação das mulheres, tendo surgido no meio das mudanças que marcaram a história da Europa ocidental a partir do século XVIII. Vinculou-se ao desenvolvimento da democracia e a uma quantidade de fatos históricos da época da ilustração, da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Tendo raízes anteriores a esse período. Essa primeira fase do feminismo foi chamada de “feminismo igualitário”, que tinha vertente liberal ou marxista. A preocupação era identificar as causas da discriminação das mulheres e a reivindicação por igualdade entre os sexos. Ao longo da história sempre houve mulheres que reivindicaram sua condição, que lutaram por liberdade e que, inúmeras vezes, pagaram com a própria vida. A primeira fase do feminismo ocorreu a partir das ultimas décadas do século XIX, que foi quando as mulheres organizaram-se e lutaram por seus direitos, onde o primeiro a ser popularizado foi o direito ao voto. No Brasil, também se manifestou publicamente através da luta pelo voto. (PINTO, 2009, p. 16) Conforme descrito acima, o direitoao voto feminino ocorreu em 1932 e nesse momento foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas. As mulheres conquistaram também o direito de serem votadas para cargos do Executivo e Legislativo. Em 1933, durante as eleições para a Assembleia Constituinte, foram eleitos 214 deputados e uma única mulher, a paulista Carlota Pereira de Queiroz. Entre 1930 e 1960, houve o surgimento de um livro que marcou profundamente a condição das mulheres e que foi fundamental para a nova “onda” feminista, O segundo sexo (1949), da escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir. Para Lucena (s/d), Beauvoir denominou-se como uma voz solitária no contexto das atividades do movimento de mulheres 4 . Pinto (2009) afirma que a autora estabelece uma das máximas do feminismo: “não se nasce mulher, se torna mulher” e denuncia as raízes da desigualdade sexual. No livro O Segundo Sexo (1949) de Simone de Beauvoir, a autora nos fala sobre a mulher na sociedade, o livro foi publicado numa época em que mulher estava começando a se libertar da dominação masculina, mas que ainda encontrava 4 Movimento de Mulheres é considerado como toda forma de organização de mulheres que lutam para conquistar seus objetivos, seja um grupo de mulheres que luta por melhoria na sua comunidade, seja o movimento de uma determinada categoria profissional, seja o movimento de mulheres negras. Já o Movimento Feminista também faz parte do movimento de mulheres, é um movimento político que tem como objetivo a luta pela igualdade entre homens e mulheres. O feminismo investe na cidadania das mulheres e tem como projeto a auto- organização das mulheres. No feminismo, as mulheres são o sujeito dessa luta (PEIXOTO, 2007). 30 diversos obstáculos. Beauvoir faz uma análise, histórica, social, psicológica e biológica sobre a mulher na sociedade, contrapondo-se completamente a ideias e estudos que tratem de uma condição feminina. O livro é rico em informações e análises profundas, é muito bem fundamentado, numa tentativa de salientar que o "ser mulher" é algo construído histórica e socialmente, tanto quanto a submissão dela em relação ao outro sexo. A autora nega a ideia de que foi a "natureza inferior" da mulher que instituiu o quesito de segundo sexo, mas sim sua invisibilidade histórica. Já que não importa se a mulher é mãe, esposa, moça ou prostituta, ela sempre se determinou por sua função em relação ao homem, simbolizando aquilo que ela chamou de "Outro". Diz ainda que somente através da formação de um conhecimento autônomo e da emancipação econômica que a mulher poderia ser livre e ter plena autonomia sobre seu corpo e seu destino 5 . O segundo momento do feminismo teve origem no final dos anos de 1960, período esse que coincide com o aumento das atividades feministas nos Estados Unidos e em diversos países europeus. Nessa fase, as mulheres buscavam inspiração nos movimentos pelos direitos civis, organizavam passeatas, demonstração pública, pressionavam políticos e formavam organizações de mulheres. Elas defendiam direitos iguais aos dos homens na educação e no trabalho, bem como tornaram público o fenômeno da violência contra as mulheres, sendo, assim, um problema que deveria sair do âmbito privado. No tocante à saúde, levantou-se a bandeira em prol do direito à saúde reprodutiva e sexual. Essa segunda fase do movimento feminista coincidiu com o período da ditadura militar instaurada no Brasil entre 1964 e 1985. As mulheres protagonistas dessa “onda” eram de classe média, tinham grau de escolaridade elevado e algumas estavam inseridas profissionalmente em universidades e nos cursos de pós-graduação. Muitas delas eram ou foram militantes de organizações políticas de esquerda e haviam sido perseguidas pelo regime político ditatorial e, por essa razão, haviam ido para o exílio. É válido ressaltar que o movimento feminista participou intensamente do processo de reconstrução democrática do país. Nesse período também surgiu à pílula anticoncepcional, primeiro nos Estados Unidos e em seguida na Alemanha. Na música, era vivida a revolução dos Beatles e dos Rolling Stones. No ano de 1963, Betty Friedan lança um livro que seria uma espécie de “bíblia” do novo feminismo: A mística feminina. O Ano Internacional da Mulher foi comemorado em 1975, ano em que também foi realizada a I Conferência Mundial da Mulher, devido às demandas do movimento feminista que favoreceram a discussão sobre as condições das mulheres, em cenário 5 Resenha escrita por REIS, Lane. Disponível em: <http://oficinasociologica.blogspot.com.br/2012_08_01_archive.html#.U_JW7fldVqU>. 31 internacional. A Conferência foi promovida, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, a partir daí, instituiu-se a Década da Mulher. Em 1979, realizou-se a primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, dessa vez no México, aprovada pelas Nações Unidas, e que foi denominada Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Esta constituiu um documento que daria alicerce para o surgimento de outros instrumentos internacionais direcionados à eliminação da discriminação contra a mulher. De acordo com Pinto (2009), no ano de 1980, durante a redemocratização, o feminismo lutou com grande efervescência pelos direitos das mulheres. Surgiram diversos grupos, alguns organizados em comunidades e bairros mais pobres, onde se tratavam de temas como: violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito a terra, direito à saúde materno-infantil, luta contra o racismo e o sexismo, melhorias na habitação e saúde. Esses movimentos foram influenciados fortemente pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. A criação do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM) foi uma das grandes vitórias do feminismo brasileiro em 1984, afirma Pinto (2009), pois o surgimento deste órgão foi importante para a inclusão dos direitos das mulheres na Carta Constitucional de 1988. É válido salientar que a Carta Magna é uma das que mais assegura os direitos para a mulher no mundo. Apesar disso, durante os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, o CNDM perdeu totalmente a importância. Porém, no primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, sendo o Conselho recriado. Em 1985, foi criada a primeira Delegacia Policial de Defesa da Mulher (DPDM) em São Paulo, e também surgiu o Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento Psicológico (COJE). Rapidamente, várias outras delegacias foram implantadas em outros Estados brasileiros, como, por exemplo, aconteceu no estado Ceará em 1986. Em Fortaleza, conforme afirma Magalhães (2009), no ano de 1980 foi eleita a primeira prefeita do Brasil, Maria Luiza Fontenele. Nesse período, Maria Luiza apoiou e participou do movimento de mulheres e com outras mulheres, como Rosa da Fonseca e Zélia Zanetti, que lideraram as lutas de enfrentamento à violência sexista, principalmente durante os anos de 1980 e 1990. Nessa época, algumas organizações de mulheres no Ceará foram sendo criadas como o Centro Popular da Mulher (CPM) e a União das Mulheres Cearenses (UMC), voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres (MAGALHÃES, 2009). 32 O terceiro momento do movimento feminista indaga com mais intensidade as questões em torno da igualdade e da diferença, procurando apontar as falhas nas discussões das feministas da segunda “onda”, tendo surgido nofinal dos 1980 e se consolidado a partir da década de 1990. Scavone (2008) relata as relações científicas e políticas dos estudos sobre as mulheres e de gênero com o feminismo. A autora faz um resgate histórico desse diálogo e pontua o surgimento de novos conceitos, sobretudo, nas Ciências Sociais. Nos anos de 1990, conforme nos afirma Peixoto (2007), houve uma ampliação significante do movimento social de mulheres e o surgimento de várias organizações não governamentais (ONGs) feministas no Brasil. Durante esse período, existiu uma atenção especial por parte dos organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), voltadas para o impacto das políticas sobre a vida das mulheres. Ainda segundo Peixoto (2007), a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres em Brasília ocorreu em 2004, coordenada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com o apoio das ONGs e dos movimentos de mulheres e feministas. No ano de 2006 foi aprovada a Lei Maria da Penha, fruto da organização e reivindicação das mulheres. No tópico seguinte, falaremos sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, contextualizando-as mediante as definições sugeridas por alguns autores. 3.2 Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Segundo Alves (2008), entende-se que as políticas públicas são respostas do Estado, através de programas e ações diante das demandas que a sociedade expõe através de suas necessidades. As políticas públicas são frutos da relação entre Estado e sociedade civil e correspondem aos direitos conquistados pelos sujeitos políticos. Conforme descrito anteriormente, no ano de 1979 foi realizada a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Em 1981, surgiu no Rio de Janeiro o SOS Mulher, com o objetivo de atender às mulheres vítimas de violência, além de ser um lugar de reflexões e mudanças na vida destas. O SOS Mulher não é limitado somente ao Rio de Janeiro, mas também foi adotado por São Paulo e Porto Alegre. 33 A luta das mulheres resultou, em 1983, na formação do Conselho Estadual da Condição Feminina. No ano de 1985, foi implantado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), ligado ao Ministério da Justiça por meio da Lei nº 7.353/85, e ainda inaugurada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DEAM). No ano seguinte, criou-se a primeira Casa-abrigo para mulheres em situação de risco de morte do país (SILVEIRA, 2006), pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Essas três conquistas foram resultado das lutas empreendidas pelas mulheres, tornando-se marcos da atuação do Estado no enfrentamento da violência contra as mulheres. Depois da criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, foram estabelecidos os Conselhos Estaduais, entre eles o Conselho Cearense dos Direitos da Mulher (CCDM), vinculado à Secretaria da Justiça do Estado do Ceará (SEJUS), através da Lei nº 11.170, de 02 de abril de 1986. De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência (2011), durante o período de 1985 a 2002, a criação das DEAM‟s e de Casas-abrigo foram o eixo principal da política de enfrentamento à violência praticada contra as mulheres. Em 1998 tivemos mais um marco no avanço das políticas públicas para as mulheres, com a criação da Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual, pelo Ministério da Saúde. Essa legislação determinava a garantia do atendimento nos serviços de saúde às mulheres que fossem vítimas de violência sexual, como uma das medidas a serem adotadas para a redução dos agravos desinentes deste tipo de violência. Com a oferta desses serviços, as adolescentes e mulheres tiveram o acesso imediato aos cuidados de doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. Cinco anos depois foi promulgada a Lei nº 10.778/03, que trata da Notificação Compulsória para os casos de violência praticados contra as mulheres (BRASIL, 2011, p.16). Conforme o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013-2015), uma pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no período de 2006 a 2010, apontou que o Brasil esteve entre os dez países com maior incidência de homicídios femininos, sendo que a maior parte deles é cometida por homens com quem à vítima possuía relações afetivas, utilizando objetos cortantes ou arma de fogo. Ainda de acordo com o atual Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013), que vigorará no período de 2013 a 2015, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres passou por modificações, as quais muitas das ações da PNPM já estão sendo executadas. Em 2012, por exemplo, a Secretaria de Políticas para as Mulheres conveniou-se com o Ministério da Previdência Social, com a finalidade de que as mulheres 34 tenham o direito de entrar com ações em casos de aposentadorias ou pensões causadas por violência doméstica. Com isso, a responsabilidade com o custeio da violência passa a ser do agressor e não mais do Estado (BRASIL, 2013, p. 42). Atualmente, tivemos um aumento na quantidade de delegacias: em 2006 eram 394 em todo o País; hoje contamos com 475 Delegacias ou Postos Especializados de Atendimento à Mulher 6 . O número de delegacias ainda é considerado insuficiente para atender a todas as mulheres que são vitimadas, porém, é importante reconhecer seu fortalecimento e ampliação. A criação da Secretaria de Políticas para Mulheres, no início do governo Lula, em 2003, possibilitou um maior investimento para ações de enfrentamento à violência, bem como surgiram novos serviços especializados, como os Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, as Defensorias da Mulher, os Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor, e as Promotorias Especializadas, culminando, assim, na construção de Redes de Atendimento às mulheres em situação de violência. Em agosto de 2007, foi oficialmente lançado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, sendo consolidada a importância do desenvolvimento de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2011). De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011), [...] enfrentamento é definido como uma execução de políticas amplas e flexíveis, que proporcionam a execução da complexidade da violência contra as mulheres em todos os seus aspectos. O enfrentamento exige a ação conjunta por parte dos setores abrangidos com a questão (assistência social, educação, justiça, saúde, segurança pública, entre outros), propondo ações que desconstruam e contestem as discriminações de gênero e violência contra as mulheres; interferindo nos paradigmas sexistas / machistas ainda existentes na sociedade brasileira; promovendo o empoderamento das mulheres; e garantindo atendimento qualificado e humanizado às que se encontram em situação de violência. (BRASIL, 2011, p. 25) Portanto, a noção de enfrentamento não se reduz à questão do combate, pois este abrange também os aspectos da prevenção, assistência e garantia de direitos das mulheres, os quais são compostos pelos Eixos Estruturantes da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. 6 Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAM‟s), 2010. 35 Figura3 - Eixos Estruturantes da Política Nacional de Enfrentamento á Violência contra as Mulheres Fonte: Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2011. Esta Política tem como finalidade instituir princípios, conceitos, diretrizes e ações de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres. Dessa maneira, assegurar direitos de acordo com as normas e instrumentos internacionais, da legislação nacional e direitos humanos. Esse dispositivo jurídico está organizado a partir do Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM), que foi produzido tendo como base a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011) tem como diretrizes: A garantia do cumprimento dos princípios, acordos e convenções internacionais, firmados e sancionados pelo Estado Brasileiro, inerentes ao enfrentamento da violência contra as mulheres. O reconhecimento da violência de gênero, raça e etnia como sendo uma violência estrutural e histórica, expressada pela opressão das mulheres e que precisa de tratamento como questão da assistência social, educação, justiça, saúde pública e segurança. Agir no combate as diversas formas de apoderamento e exploração de mulheres, como a exploração sexual e o tráfico de pessoas. Atuar na execução de medidas preventivas nas políticas públicas, em conjunto com as áreas de assistência, comunicação, cultura, direitos humanos, educação, justiça, saúde e turismo. Incentivar a capacitação e formação de profissionais de saúde para o enfrentamento à violência contra as mulheres. 36 Organizar as Redes de Atendimento à mulher em situação de violência nos Estados, Municípios e Distrito Federal. Outra ação implementada no âmbito das políticas públicas, foi o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011), que se deu por meio de uma ação do Governo Federal, com a finalidade de prevenir e enfrentar todas as formas de violência contra a mulher, tendo como base a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. O Pacto compreende dimensões de assistência, garantia dos direitos, prevenção e proteção daquelas que se encontram em situação de violência, como também o combate à impunidade dos agressores. As ações propostas no Pacto (2011) apoiam-se em três premissas: a) a transversalidade de gênero; b) a intersetorialidade; c) a capilaridade. É válido ressaltar que a Rede de Enfrentamento à violência contra as mulheres é composta por uma ação articulada entre as instituições / serviços governamentais, não governamentais e a comunidade, que almejam o desenvolvimento de técnicas de prevenção, a garantia da construção da autonomia das mulheres e a responsabilização dos agressores, além de assistência capacitada às mulheres em situação de violência. (BRASIL, 2011). Já a Rede de Atendimento é o conjunto de ações e serviços de diversos setores (assistência social, justiça, segurança pública e saúde), que juntos fazem a qualidade do atendimento, a identificação, o acompanhamento das mulheres em situação de violência e a humanização do atendimento. Dessa maneira, podemos afirmar que a Rede de Atendimento às mulheres em situação de violência faz parte da Rede de Enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2011). De acordo com o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013-2015), aumentaram a quantidade de ligações para a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) 7 . Dentre suas ações, uma merece maior destaque, que é a ampliação de seu funcionamento para uma competência internacional, a fim de abranger brasileiras que residam no exterior e que 7 A Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) é um serviço de atendimento telefônico da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, criado com o objetivo de disponibilizar um espaço para que a população brasileira, e principalmente as mulheres, possa se manifestar acerca da violência de gênero, em suas diversas formas. O serviço presta seu atendimento com foco no acolhimento, orientação e encaminhamento para os diversos serviços da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em todo o Brasil. Disponível em: <http://www.spm.gov.br/ouvidoria/central-de-atendimento-a-mulher>. 37 sofrem diversas formas de violência, entre as quais o tráfico de pessoas. O Supremo Tribunal Federal decidiu pelo aumento do Ligue 180, transformando-o em uma central de denúncias. No tópico seguinte serão abordadas as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres em Fortaleza. 3.3 Violência doméstica e familiar contra as mulheres em Fortaleza e no Ceará: entre conquistas e desafios Segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, Fortaleza possui uma Rede de Atendimento às mulheres em situação de violência, composta de serviços da área jurídica e de gestão das áreas municipal e estadual. A Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher compõem a esfera jurídica. Desde 1986, a DDM já estava atuante, sendo o órgão competente responsável pela investigação, apuração e tipificação de crimes. A DDM é responsável também pelos registros dos boletins de ocorrência (B.O), solicitação das Medidas Protetivas de Urgência, representação criminal e encaminhamento da guia do exame de corpo de delito ao Instituto Médico Legal. Outro órgão que faz parte da rede no setor judiciário é o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que foi criado a partir da Lei Maria da Penha, e possui competência cível e criminal, sendo responsável por processar, julgar e executar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ainda, desde 2004, tem-se o Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado do Ceará (NUDEM), instituição que presta assistência jurídica e gratuita e atua nas áreas cíveis, criminais e de família. [...] foi inaugurado em Fortaleza, em 2011, o Núcleo de Gênero Pró-Mulher, do Ministério Público do Estado do Ceará. Este núcleo tem o objetivo de atuar na garantia da transversalidade de gênero nas ações do Ministério Público, na formulação e implementação de políticas públicas, na adequada aplicação das leis, em capacitações e campanhas educativas referentes à violência contra as mulheres. [...] na esfera estadual, tem-se o Centro Estadual de Referência e Apoio à Mulher (CERAM), que funciona desde 2004. Este centro presta atendimento interdisciplinar, com uma equipe de médicos ginecologistas, psicólogas, assistentes sociais e enfermeiras. Sua estrutura física fica no mesmo local em que funciona o NUDEM. Há ainda um abrigo estadual, denominado de Casa do Caminho, que acolhe as mulheres em situação de risco eminente, tanto da cidade de Fortaleza, como das demais cidades do Estado do Ceará. A Casa do Caminho é um abrigo para mulheres em situação de violência doméstica, com endereço em sigilo. (CAVALCANTE, 2012, p. 117) Em Fortaleza, de acordo com Alves (2008), durante a gestão da Prefeita Luizianne Lins, foi criada a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres, em desempenho de atividades desde o início de seu governo em 2005; porém, somente em 2007 teve sua oficialização. Dessa forma, foi reconhecida a importância da implantação de políticas
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