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VeraLins Gonzaga Duque Critica e utopia na virada do século

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Prévia do material em texto

PAPƒIS AVULSOS 25
Vera Lins
Gonzaga Duque:
cr’tica e utopia na virada do sŽculo
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA MINISTÉRIO DA CULTURA RIO DE JANEIRO 1996
Presidente da Repœblica
Fernando Henrique Cardoso
Ministro da Cultura
Francisco Weffort
Funda‹o Casa de Rui Barbosa
Presidente
Mario Brockmann Machado
Diretora Executiva
Rosa Maria Barboza de Araujo
Diretor de Administra‹o
Alberlandino Silva
Diretor do Centro de Mem—ria e Documenta‹o
Jayme Zettel
Diretor do Centro de Pesquisas
JosŽ Almino de Alencar e Silva Neto
Chefe do Setor de Filologia
Adriano da Gama Kury
ISBN 85−7004−182−9
Lins, Vera
Gonzaga Duque: cr’tica e utopia na virada do sŽculo/Vera
Lins. — Rio de Janeiro: Funda‹o Casa de Rui Barbosa, 1996.
32 p. — (PapŽis Avulsos; 25)
1. Duque, Gonzaga, 1863 − 1911 — Cr’tica e interpreta‹o. I.
Funda‹o Casa de Rui Barbosa. II. T’tulo. III. SŽrie.
CDU 869.0 (81) Duque (G.) .06
Gonzaga Duque: cr’tica e utopia na
virada do sŽculo
Este ensaio foi redigido a partir da tese de Dou−
torado em Teoria da Literatura ÒNovos pierr™s,
velhos saltimbancos: a vis‹o cr’tica de Gonzaga
DuqueÓ, defendida por Vera Lins na Faculdade de
Letras da UFRJ, em abril de 1995.
4
5
Gonzaga Duque: critica e utopia na virada do sŽculo
Fazer cr’tica nesta abenoada terra de reclames, parece arrojo
se n‹o Ž demncia.
GONZAGA DUQUE1
A ironia de Gonzaga Duque, ao se referir ˆ cr’tica em Òterra de reclamesÓ,
configura uma cena em que a mercadoria roubou o espet‡culo. Nos anœn−
cios, nas vitrines, nos epis—dios de rua que aparecem em Mocidade Morta, se
imp›e e exerce sua sedu‹o:
A multid‹o noct‰mbula passava. Vultos encapotados entrecruzavam−se pela
estreiteza da rua; burguesinhas amaridadas, abrindo olhares cobiosos para as
vitrines iluminadas, seguiam pelos braos de seus homens circunspectos; al−
gumas toaletes de teatro eram adivinhadas sob os metros confeccionados de
casimiras ˆ water proof.2
Gonzaga Duque escreve no Rio de Janeiro entre 1888 e 1911. Com ele se
articula o primeiro grupo simbolista carioca, em torno da revista Folha Popu−
lar. Ficcionista, cr’tico de Artes Pl‡sticas e tambŽm historiador, seus textos
revelam uma concep‹o de arte e modernidade que faz lembrar Baudelaire.
Em ÒParque CentralÓ, Walter Benjamin fala da boufonnerie de Baudelaire
como a conscincia de uma perda. Num mundo em que se profana tudo que
Ž sagrado, o buf‹o apontaria, com sua posi‹o ir™nica, o vazio: ÒBaudelaire
via−se obrigado a reivindicar a dignidade do poeta numa sociedade que n‹o
tinha mais nenhuma dignidade a conceder.Ó3 Para viver dignamente os tem−
pos modernos, Ž preciso uma posi‹o her—ica de recusa ˆ transforma‹o ge−
ral que opera a mercadoria. Mas esse her—i moderno apenas representa um
papel. O desejo de ir contra a marcha do mundo, resistir ao efmero e fugaz,
acompanha a conscincia de sua impossibilidade e arma a cena tr‡gica.
Para Baudelaire a modernidade Ž apenas uma metade da arte, a outra Ž o
eterno e imut‡vel. Sem desprezar ou prescindir desse elemento transit—rio e
fugidio, Ž necess‡rio extrair da modernidade Òa beleza misteriosa que a vida
6
humana involuntariamente lhe confereÓ. Sua postura dupla marca um mo−
dernismo que difere do que as vanguardas que se seguem v‹o propor. Ape−
nas caricatura do moderno, porque submetidas ao imperativo do tempo4, as
vanguardas pregam a liquida‹o do passado em nome do novo, identificado
com o atual, a urgncia do momento.
Os textos de Gonzaga Duque revelam uma conscincia tr‡gica da moder−
nidade, incomum na literatura brasileira. Tr‡gico n‹o Ž o patŽtico, mas, sim, a
cr’tica radical que prop›e a revers‹o da ordem das coisas. V−se o mundo
como aparncia, ilus‹o, e se pretende vir‡−lo do avesso, o que se traduz na
busca de uma outra linguagem com a imagina‹o livre para ultrapassar o
sens’vel. Essa conscincia tr‡gica Ž a œnica possibilidade de contraposi‹o ao
otimismo progressista, ˆs tentativas modernizadoras, ˆ identifica‹o do pen−
samento como c‡lculo.
7
O cr’tico da cultura: uma revis‹o da arte e da hist—ria
Em A Arte Brasileira5, Gonzaga Duque conta como o artista JosŽ Leandro Ž
forado a encobrir, com camadas de cola, o retrato que pintava. A multid‹o
nacionalista, enfurecida, n‹o queria sinais de estrangeiros no pa’s e exigia
que se destru’sse o quadro, um retrato de D. Jo‹o VI, mulher e filhos, em que
o pintor se orgulhava de estar fazendo seu melhor trabalho. A multid‹o fora
o pr—prio pintor a apagar sua obra. Gonzaga Duque ressalta a violncia do
ato:
Os patriotas n‹o cediam. Em grupos, pelas ruas, vibrando cacetes, exalta−
dos, ostentando no topo do chapŽu posto ˆ banda fitas distintivas com as cores
do pavilh‹o nacional, pediam o devastamento do painel. Afinal JosŽ Leandro
apareceu.
Era um homem alto, cheio de corpo, obeso, olhar tristonho, a fisionomia
grave. Entrou na capela. Diversas vozes partiram da multid‹o [...]
O artista entrou p‡lido, os olhos fixos no ch‹o. Atr‡s dele vinha um apren−
diz trazendo uma caarola e uma brocha. As portas do templo estavam fecha−
das; no recinto, no coro, alguns rapazolas empregados em acolitar os sacerdo−
tes nos of’cios espiavam para a rua atravŽs das vidraas. Puseram ao lado do
altar−mor uma escada, o artista subiu por ela e l‡ do alto comeou a brochar o
painel. A m‹o tremia−lhe; copioso suor de febre inundava−lhe o rosto, mas enŽr−
gico e resignado, ia lentamente passando e repassando a brocha untada de
cola. O berreiro da multid‹o ecoava longe como um som abafado de trov‹o
que vai rolando pelo infinito.
[...]Desde esse tempo JosŽ Leandro desapareceu.
A imagem se torna emblem‡tica do que tem acontecido na arte e na litera−
tura brasileiras, inclusive com a escrita de Gonzaga Duque. O mesmo sacrif’−
cio sofre Cruz e Sousa na vis‹o curta do naturalismo evolucionista de JosŽ
Ver’ssimo, que v na sua poesia apenas o ressoar dos tambores africanos.
Exerce−se na cr’tica uma raz‹o que n‹o Ž capaz de apreender o paradoxo, a
pluralidade de experincias, o que excede seu quadro da realidade. Uma luta
aparentemente progressista mostrava, no entanto, total incompreens‹o com
a arte, que ficava obrigada a se ajustar ao momento, ao nacionalismo
imediatista. Como se com a cultura, no Brasil, acontecesse o mesmo que com
o quadro de JosŽ Leandro — num constante apagamento, camadas de cola
obscurecessem as imagens que se produzem, assim obstruindo os sentidos
que podem trazer ˆ tona. Vai ficando em falta, incompleta, fr‡gil, sem hist—−
8
ria, quer dizer, sem mem—ria e imagina‹o. O cr’tico aponta uma sociedade
que apaga suas produ›es em nome do novo, enquanto o mais recente; em
que a arte n‹o tem autonomia como reflex‹o. Cria−se uma linguagem de ex−
clus›es e silncios. Gonzaga Duque vai preencher essas lacunas, ao trazer
imagens esquecidas e contar uma hist—ria da arte e da pol’tica brasileiras
apenas esboada ou deixada de lado pela historiografia oficial. Em vez de
uma dimens‹o teleol—gica, que marca a modernidade esclarecida e progres−
sista, o tempo com que trabalha Ž o da mem—ria, buscando imagens do pas−
sado para produzir novos s’mbolos. Sua inten‹o Ž refazer uma tradi‹o cri−
ticamente.
No livro Revolu›es Brasileiras6, Gonzaga Duque tenta recontar a hist—ria
do pa’s pelo lado libert‡rio, suas revolu›es, como ele denomina o que atŽ
ent‹o era considerado apenas ÒrusgasÓ. Revolu‹o implica transforma‹o.
Inicia com a imagem da revolta dos negros de Palmares, com Zumbi, como
uma ilumina‹o antecipat—ria, imagem que pode provocar uma transforma−
‹o radical. Ele mesmo diz que o Quilombo dos Palmares Òserviu de exem−
plo ˆs tnues aspira›es republicanas do chefe da Guerra dos MascatesÓ,
que, paradoxalmente, foi um dos destruidores do povoado de negros.
Enquanto as armas luso−brasileiras chocavam−se nos campos de batalha de
encontro ao ao batavo, aceirado nas forjas de Amsterd‹e de Haia, quarenta
negros que o tr‡fico tinha roubado ˆs t—rridas regi›es da çfrica, unindo−se a
um pequeno nœmero de mulheres parceiras, fugiam dos engenhos do Porto
Calvo para os sert›es circunvizinhos, confinados com as Alagoas.
Galgando a serra ‡spera, lutando com a fulva ona feroz e os devastadores
queixadas bandeiros, afugentando os terr’veis rŽpteis peonhentos, eles esco−
lheram um s’tio agreste e a’ fundaram o grande Quilombo dos Palmares, onde
viveram vida independente e social durante sessenta e cinco anos!
Sobre os passos dos primeiros, outros vieram e, a pouco e pouco, as choas
foram surgindo dentre a ramagem densa da floresta como uma cidade rœstica.
De outros distritos, de outros lugares, chegavam escravos foragidos e os do
quilombo embrenhavam−se cautelosamente na solid‹o das matas, desciam para
os amanhos dos engenhos ao encontro dos cativos para segredar−lhes a dire−
‹o do couto, onde a liberdade tinha levantado pela fŽ crist‹ um enorme cru−
zeiro tosco de Reden‹o7.
Continua a narrar a Guerra dos Mascates, o Sete de Abril, a Cabanada, a
Revolu‹o Praieira, e outras, concluindo com a Repœblica. Afirma que sua
inten‹o Ž contar o que n‹o fora contado: Òessas sucessivas e sangrentas guer−
ras que vieram conduzindo a nova na‹o sul−americana ˆ posse do governo
do povo pelo povoÓ. Ao recriar essas imagens por sobre as exclus›es, os apa−
gamentos, obra de rasura que uma raz‹o dominante vai operando, Gonzaga
Duque se aproxima da concep‹o hist—rica messi‰nica de Benjamin, para quem
o passado s— pode retornar recriado, num momento de perigo. Comp›e, em
9
Revolu›es Brasileiras, de 1898, uma hist—ria pol’tica ˆ margem da hist—ria ofi−
cial. O in’cio do livro com Zumbi dos Palmares d‡ a dimens‹o da repœblica
no desejo de Gonzaga Duque como uma insurrei‹o que invertesse a ordem
das coisas, dentro de uma tradi‹o libert‡ria.
Para Ernst Bloch8, a utopia resiste a uma realiza‹o, ela Ž sempre desejo do
que ainda n‹o Ž. Como conscincia de que algo est‡ faltando, pressup›e a
idŽia de totalidade, porque acredita numa revers‹o total: Ž o desejo de mudar
completamente a totalidade. Sua fun‹o essencial Ž a reflex‹o sobre o que
est‡ presente. Numa discuss‹o entre Bloch e Adorno, este diz que a utopia
est‡ essencialmente na nega‹o determinada do que existe apenas por existir.
N‹o se sabe o que Ž, mas o que n‹o Ž a utopia. Para Adorno as pessoas perde−
ram a imagina‹o de que a totalidade poderia ser diferente. No entanto, ela Ž
uma aspira‹o, assim como o infinito e o absoluto, para uma raz‹o como a
postulavam os primeiros rom‰nticos e os simbolistas. Mas, ao mesmo tempo,
inating’vel. Segundo Schlegel, o que se chama comumente de raz‹o Ž apenas
uma subespŽcie aquosa; h‡ uma outra, espessa e incandescente9. Em Kant, o
sublime Ž uma disposi‹o do esp’rito que aspira ao absoluto. Este, no entan−
to, permanece apenas uma idŽia regulativa:
Mas precisamente pelo fato de que em nossa faculdade da imagina‹o en−
contra−se uma aspira‹o ao progresso atŽ o infinito e em nossa raz‹o, porŽm,
uma pretens‹o ˆ totalidade absoluta como a uma idŽia real, mesmo aquela
inadequa‹o a esta idŽia da nossa faculdade de avalia‹o da grandeza das
coisas do mundo dos sentidos, desperta o sentimento de uma faculdade su−
pra−sens’vel em n—s10.
Com a raz‹o pragm‡tica e imediatista, banalizou−se a utopia. Bloch, j‡ em
1964, diz que o socialismo perdera sua no‹o e, assim, tendia a se transfor−
mar numa nova ideologia para domina‹o. Segundo ele, a utopia propicia
um horizonte para a imagina‹o produzir formas. A imagina‹o ut—pica di−
fere da mera fantasia, pois as idŽias da imagina‹o possuem uma existncia
ainda n‹o vis’vel, tm um modo antecipat—rio. N‹o s‹o lembranas do pas−
sado, nem s— combinam o que j‡ existe, mas carregam o que existe na sua
potencialidade de ser outro, antecipam uma potencialidade real. A fun‹o
ut—pica inclui a esperana, pois antecipa atravŽs de ideais Žticos e estŽticos.
No entanto, como a aposta de Pascal, Ž o oposto da segurana. Mas o tr‡gico
tem a capacidade de viver em meio a incertezas, mistŽrios e dœvidas, sem
Òuma irrit‡vel procura do fato e da raz‹oÓ, porque postula um absoluto que
n‹o podemos conhecer, mas pelo qual se afirma a lei moral e a liberdade.
Uma raz‹o transcendente, no sentido kantiano, que n‹o tem sentido emp’rico,
como uma faculdade de desejar cujo fim œltimo Ž a liberdade, acolhe a imagi−
10
na‹o que transborda os limites do entendimento e possibilita o v™o do pen−
samento.
A conscincia ut—pica cria a ilumina‹o antecipat—ria — uma imagem que
possibilita um rearranjo, uma transforma‹o radical; imagem do ainda n‹o
consciente, do que est‡ ˆ margem, mas que pode se concretizar. Em Bloch,
como nos rom‰nticos alem‹es, h‡ uma outra idŽia do novo, como este ainda
n‹o consciente — nada a inventar, mas o arcaico reatualizado, produzido de
outra forma, em constante metamorfose.
A idŽia de recriar o mundo externo, de modo a refletir o interno, ainda
n‹o consciente, tem afinidades com a concep‹o de revolu‹o pela poesia, de
Novalis e Schlegel, para quem poesia Ž filosofia e mitologia, i.Ž, reflex‹o e
imagens antigas reelaboradas, recriadas, infinitamente. Poesia Ž uma outra
linguagem, fic‹o, que, ao questionar a representa‹o, reverte a prosa, a lin−
guagem comum. Para os rom‰nticos, s’mbolo, alegoria, hier—glifo e arabesco
s‹o uma mitologia indireta. Pode−se lembrar, para entender a no‹o de mito−
logia dos rom‰nticos alem‹es, a leitura de Vico, do mito e do s’mbolo como
formas cognitivas, anteriores ao pensamento abstrato11. A afirma‹o de que
h‡ uma sabedoria poŽtica que governa a rela‹o dos antigos significa uma
cr’tica ˆ no‹o iluminista de que o mundo Ž racionalmente ordenado.
Ao apostar no pensamento e na imagina‹o, Gonzaga Duque, em Arte
Brasileira e Revolu›es Brasileiras, tenta recriar uma hist—ria da arte e uma
hist—ria pol’tica por caminhos deixados de lado: ÒEm arte, como em literatu−
ra, como em cincia, como em comŽrcio e indœstria Ž foroso ir alŽm do que
h‡Ó, diz ele. Ressalta na cultura do pa’s o papel do negro, cuja presena Ž
reprimida pelo poder. A arte, segundo ele, no Brasil, j‡ nasce desprezada,
como Òof’cio de negros e mulatosÓ:
As profiss›es letradas transbordam assustadoramente, enquanto as profis−
s›es diretamente produtoras passam ˆs m‹os dos estrangeiros que, enriqueci−
dos, constituem−se conforme os seus interesses pessoais em fora motriz dessa
pol’tica. Ora, sendo as profiss›es letradas as que maior interesse despertam ao
brasileiro, Ž claro que a arte, considerada atŽ h‡ pouco tempo um desprez’vel
of’cio de negros e mulatos, medrada em pa’s onde n‹o est‹o ainda desenvolvi−
dos o luxo e bom−gosto, ficasse destinada ˆs classes pobres, aquelas que n‹o
podiam educar convenientemente seus filhos para faz−los entrar nas Acade−
mias12.
V uma atua‹o negativa da Miss‹o Francesa: ÒA Col™nia Lebreton con−
correu involuntariamente para retirar de nossa arte a fei‹o nativa e a origi−
nalidadeÓ. Com a Miss‹o e a importa‹o de um modelo trazido pelos artistas
neocl‡ssicos franceses se institucionaliza uma atividade que j‡ se desenvol−
11
via e, em liberdade, porque ˆ margem, exercida pelos negros e mulatos liber−
tos.
Com o ensinamento da Col™nia desapareceram os nossos coloristas e pai−
sagistas que a pouco e pouco se manifestavam para dar lugar a uma gera‹o
de artistas mais instru’dos, porŽm menos habilidosos. Jo‹o Debret, Nicolau
Taunay e Henrique da Silva desenvolveram o gosto pelos assuntos hist—ricos
e pelo estudo da figura mas t‹o desastradamente que, a partir desse tempo,
os artistas se nos mostraram pretensiosos, frios, amaneirados13.
Gonzaga Duque ressalta que a fora resiste nesta arte feita ˆ sombra. No
discurso de 1908, que termina o livro Contempor‰neos e abre o sal‹o de artes
pl‡sticas da Exposi‹o Internacional, diz que Òa sociedade n‹o necessitava
deles, pois estava rudementeocupada com coisas utilit‡riasÓ14.
Enquanto Watteau, o filho de um pobre mestre pedreiro em Valenciennes,
rematando a decadncia da arte francesa com a eleg‰ncia e a graa da sua
bizarra fantasia nas ftes galantes, era animado e solicitado pelos amadores ri−
cos,... os nossos pobres mestres pintores que enchiam de ingnuas imagens de
santos os ret‡bulos das igrejas e os orat—rios das sacristias, eram humildes e
desamparados; oriundos de fam’lias paupŽrrimas e sem nome, eles ganhavam
por seu of’cio a subsistncia parca de cada dia com o mesmo direito e na mes−
ma obscuridade que os rudes art’fices dos misteres ignaros15.
No pouco interesse pela arte e pela literatura como na pr—pria produ‹o
art’stica do pa’s, Gonzaga Duque v a falta de pensamento, esp’rito, imagi−
na‹o. Pergunta: como se pode ter uma arte onde n‹o se tem pensamento e
a‹o? E, em todo o livro, se esfora por encontrar sinais de alguma reflex‹o,
tanto antes como depois da Miss‹o Francesa, nas imagens que nossa arte
produzia. Mas conclui:
Todas as grandes obras acusam um grande torpor intelectual, nenhum pen−
samento superior as veste, algumas s‹o conclu’das com enorme predile‹o
pelo acabamento e n‹o raras com certa habilidade, mas, em essncia se nos
apresentam com uma pobreza profunda16.
Gonzaga Duque divide Arte Brasileira em trs per’odos: Manifesta‹o, de
1695 atŽ 1816 com o ensinamento da Col™nia e a funda‹o da Academia de
Belas−Artes; o segundo, Movimento, de 1830 a 1870; e o terceiro, Progresso,
que comea com Pedro AmŽrico e V’tor Meireles, Òdesigna‹o que tenta ex−
primir a estabilidade do ensino acadmico e o maior nœmero de produ‹o e
produtores.Ó Afirma que n‹o se tem, nem no terceiro, uma Òescola brasilei−
raÓ, mas, apenas, manifesta›es individuais, pois Ònossa arte n‹o tem uma
estŽtica nem no seu ensinamento existem tradi›esÓ. Publicado em 1888, seu
livro ressalta os pintores Castagneto, Almeida Jr. e Belmiro de Almeida. De−
dica p‡ginas ˆ ÒBatalha do Ava’Ó, de Pedro AmŽrico, com uma descri‹o que
12
tenta acompanhar o del’rio que diz ser a marca dos grandes quadros de bata−
lha de pintores que, como Delacroix, abandonam o academismo:
E que absurdo! tentar o movimento pela ordem na chapa acadmica, Ž ne−
gar o pr—prio movimento. Compreendamos bem que o movimento em um
quadro de batalha Ž o del’rio, e n‹o o movimento resultante da ordem de um
agrupamento de pessoas pouco mais ou menos entusiasmadas17.
Afirma que Òo artista completado Ž aquele que tenha na imagem a tradu−
‹o fiel de seu pensamentoÓ. Quem imita Ž porque n‹o pode inventar.
De acordo com Gonzaga Duque, a pintura moderna tem que deixar as
grandes cenas hist—ricas, para ser a pintura da multid‹o e do interior domŽs−
tico, onde se configuram conflitos psicol—gicos, como no quadro ÒArrufosÓ
de Belmiro de Almeida.
Acusa o que chama de desnacionalismo e busca um pensamento nacio−
nal, que, em arte, n‹o est‡ na mera Òpintura de costumesÓ, mas numa cultura
estŽtica, que possa interpretar o que v:
Os artistas que se inspiram na realidade tm em geral uma no‹o falsa da
arte; os idealistas degringolam para o incompreens’vel, acusando a decadn−
cia de uma arte que ainda n‹o teve estabilidade porque nunca teve unidade de
express‹o. Uns chegam a estado prometedor e depois tombam rapidamente,
outros estacionam para todo o sempre18.
Denuncia a busca superficial do que seja arte brasileira. Por isso ataca a
pol’tica rom‰ntica de idealizar o ’ndio como car‡ter nacional. Na tela de Au−
rŽlio de Figueiredo ÒReden‹o do AmazonasÓ, diz que o artista n‹o quis dar−
se ao trabalho de meditar sobre o assunto. Questiona a representa‹o. Irrita−
se com o indianismo e com a identifica‹o do negro como ÒrŽu pol’ticoÓ.
Contra o ex—tico, procura uma arte cosmopolita e universal, que possa pintar
a natureza da Amaz™nia.
Ah! se o artista em lugar de encher a sua tela decorativa de tanta riqueza de
estofos, colunas de m‡rmore, e tapetes e flores e ‰nforas, tivesse pintado uma
paisagem do Amazonas, a mata virgem daquela regi‹o vast’ssima!.. Talvez
tivesse interpretado o assunto19.
A idŽia de uma arte brasileira, para Gonzaga Duque, Ž mais complexa.
Contra a arte hist—rica e as alegorias nacionalistas, cita o exemplo de Puvis de
Chavannes, que Òn‹o procura reconstruir Žpocas hist—ricas nem criar alego−
riasÓ, mas busca o s’mbolo, como a no‹o pura de que fala MallarmŽ.
N‹o encontra uma interpreta‹o da paisagem brasileira. Grimm, o ale−
m‹o que inicia a pintura de paisagem no Brasil fora do ateli, Òen plein airÓ,
formou sete artistas brasileiros, mas que n‹o fizeram mais do que imit‡−lo.
Por isso, diz o cr’tico, ironicamente, Òo estudo deu sete GrimmsÓ20. Termina
13
afirmando que nos faltam estudos e medita‹o para criar um pensamento
independente:
Num pa’s colocado nas atuais circunst‰ncias em que se acha o Brasil, s—
estudos longos e muita medita‹o podem elevar o artista a sua merecida posi−
‹o e dar−lhe os elementos para sua independncia de pensar e agir.
Segundo Gonzaga Duque, contribu’ram para nosso ÒestacionarismoÓ a
escravid‹o, a violncia da metr—pole com o trabalho de sangria que operou
em nossas riquezas, o dom’nio dos jesu’tas sobre os ’ndios e a ÒpoliticagemÓ.
Para ele, t’nhamos uma Òincultura estŽticaÓ em que o positivismo marcava
lugar. Ao falar de um quadro, ironiza: Òcomo assunto est‡ a lembrar livro de
moral, talvez seja um ponto de estŽtica positivistaÓ. Batalha pela forma‹o de
uma cultura estŽtica, que contenha uma reflex‹o sobre as condi›es singula−
res do pa’s, mas afinada com uma cultura e uma tradi‹o universais.
Em ÒAranheiro da escolaÓ, relata a hist—ria da Academia de Belas−Artes e
do enquistamento do poder na institui‹o, que resiste a qualquer mudana.
Junto com alguns artistas jovens tenta fundar o ensino livre das Artes Pl‡sti−
cas no Rio. A insubmiss‹o do grupo Ž ficcionalizada no romance Mocidade
Morta.
Assim narra o epis—dio em Contempor‰neos21:
Urgia entretanto remodelar a institui‹o, dar−lhe um regulamento de acor−
do com a Žpoca moderna, refundir os seus moldes e inutilizar aquele compadrio
humilhante. E em prol dessas idŽias, a mocidade acadmica levantou−se com−
batendo o estacionarismo e a caturrice da Academia.
Articulam−se com DŽcio Vilares, AurŽlio de Figueiredo e Montenegro
Cordeiro, que apresentam um projeto Òalgum tanto calcado nos princ’pios
da escola comtiana, mas inegavelmente util’ssimo e sŽrio, dado que ele so−
fresse algumas pequenas modifica›esÓ. Transcreve as medidas que dissol−
viam a escola e concediam Òplena liberdade a artistas e a aspirantes a este
t’tuloÓ. O plano, no entanto, n‹o logra a aten‹o do Governo. Os jovens artis−
tas tentam um compromisso com DŽcio Vilares, pintor e positivista, mas de−
sistem, pois este tenta lhes impor o credo. Gonzaga Duque e seu grupo que−
rem ir mais longe, desejam transforma‹o, enquanto DŽcio Vilares se junta ˆ
iniciativa oficial, que n‹o faz grandes mudanas. Afinal, em dezembro de
1890, Ž promulgada a reforma da Academia, chamada agora de Escola Naci−
onal de Belas−Artes. Quest‹o de r—tulo, segundo Gonzaga Duque. Escolhem
um novo diretor, um artista respeitado — Rodolfo Amoedo. O cr’tico continua
afirmando que n‹o era uma quest‹o de nomes, mas de princ’pios, pois, r‡pi−
do, Amoedo se envolve no Òaranheiro da escolaÓ, uma antiga teia de interes−
ses. Inconformados, ele e seus amigos insistem e tentam, paralelamente, fun−
14
dar o ensino livre das Artes Pl‡sticas do Rio de Janeiro, num barrac‹o. ҃ por
esses abusos que temos apreciado o plano inclinado pelo qual caminham as
cousas de nosso pa’sÓ, afirma, no texto sobre o escultor Correia Lima.
15
O cr’tico como cronista
Segundo Nestor V’tor, a situa‹o das Artes Pl‡sticas era de abandono:
jornalistas e meros rep—rteres dispon’veis no instante passavam a vista no
sal‹o anual. E, ainda, quem escrevia era arbitr‡rio nos seus ju’zos:
... Žpior, no entanto, quando a folha ou revista disp›e de um Òcr’ticoÓ para
o caso. Porque este, quase pela certa, s— o Ž porque tem o encargo de ser, n‹o
que o seja. E um homem j‡ relacionado com os artistas, pois que os procura
habitualmente, e, como tal, simpatizando com estes, antipatizando com aque−
les, n‹o raro porque uns lhe d‹o mais quadrinhos e outros menos. Mas enten−
der propriamente daquelas cousas, ele n‹o entende. ƒ um arbitr‡rio nos seus
ju’zos, irris—rio aos olhos de quem pode ver por si, mas que concorre para
estabelecer falsas idŽias no meio sobre os objetos de que fala, para conservar
tudo mais ou menos no caos, como entre n—s isso de pintura e escultura mais
ou menos se conserva22.
Outros cronistas tambŽm se ocupavam das artes, como Carlos de Laet,
Melo Morais e Bethencourt da Silva, e, entre os simbolistas, Silveira Neto,
Colatino Barroso e Saturnino de Meireles. Mas Humberto de Campos diz
que Gonzaga Duque foi o homem de letras que nos deu a ilus‹o de que pos−
su’amos vida art’stica.
Inicia sua trajet—ria pela imprensa oficial, em 1887, aos 22 anos, sob o pseu−
d™nimo de Alfredo Palheta, em A Semana. Carioca, sem diploma de bacharel,
filho de um pai sueco, que n‹o chega a conhecer (seu sobrenome Ž da fam’lia
da m‹e), suas origens e sua carreira s‹o peculiares. Comea como pintor, de−
pois escreve em jornais e revistas e somente aos quarenta anos se torna funci−
on‡rio pœblico, diretor da Biblioteca Municipal.
Gonzaga Duque molha a pena na palheta, disse Humberto de Campos
sobre sua escrita. Sua cr’tica se sabe um discurso e vai−se fazendo tambŽm
por imagens. Na colet‰nea de artigos, Contempor‰neos, publica‹o p—stuma,
de 1929, est‹o suas cr™nicas sobre os sal›es e exposi›es individuais e um
artigo sobre caricatura, todos publicados primeiramente em Kosmos. Disfar−
ado de um mero Òrabiscador de cr™nicasÓ, como ele mesmo se chama, o
escritor simbolista assim comenta o sal‹o de 1905:
No ‡trio, pouco distante do Gladiador, vejo passar a silhueta ornamental
duma esbelta senhora, encantadoramente cingido por um costume−tailleur cor
16
de musgo. Num gesto r‡pido, em que a eleg‰ncia se confunde com a pr‡tica, a
sua estreita e fina destra, em pelica branca arrebanha a saia. Descubro a linha
de escoro dum borzeguim de verniz... ela galga os degraus. Ao enviesar no
lano esquerdo, em frente ao nicho apanho−lhe o perfil, de relance. ƒ claro.
Tem a pupila negra. Negros lhe s‹o os cabelos [...]
Penso, Ž um bom augœrio. Compro a entrada e o cat‡logo. Subo. Biombos
vermelhos, um espao curto. Levanto o olhar junto ˆ trave da porta, a œnica
que d‡ acesso ao Sal‹o dividido em trs compartimentos, uma figura fria e
negra me surpreende. Parece um corvo atalaiado. Atento melhor. ƒ um retra−
to23.
A passante baudelairiana vai acompanhar sua reflex‹o durante o percur−
so, aparecendo e desaparecendo no texto, como nos v‹os entre os quadros.
Logo depois de interpretar a vis‹o da mulher como um bom augœrio, distin−
gue um corvo, s’mbolo de mau press‡gio, que sua imagina‹o confunde no
negrume de um quadro com um retrato. Com este jogo ir™nico fez seu co−
ment‡rio ˆ obra.
Movendo−se entre sombras e sinestesias, figuras imagin‡rias se sobrepon−
do a reais, perfumes aturdindo−o, continua a visita ao sal‹o, perguntando a
si−mesmo:
Que Ž que me aturde t‹o deleitosamente?! H‡ perto de mim a car’cia duma
sombraÉ Volvo o olhar e dou com ele na esbelta senhora em costume tailleur−
cor de musgo. Suas pupilas negras, que s‹o duas noites claras de lendas, fitam
o retrato, por momentos; o fruto paradis’aco de sua boca se entreabre24 ...
O vulto da mulher desconhecida, misteriosa, que lhe escapa, liga desejo a
imagem. Gonzaga Duque entra nos sal›es como Baudelaire, ˆ procura de
uma coisa rara: imagina‹o. Por isso, o mau agouro. Brinca, faz a pose de um
fl‰neur, como se lhe aborrecesse a incumbncia, mas discute seus conceitos e
o que vai encontrando, definindo sua expectativa quanto a uma arte que n‹o
seja de costumes, mas Òuma prova de nossa vida emotiva−cerebral e uma
afirma‹o de que somos alguŽmÓ.25
Em meio a esse passeio, atra’do pela figura e pelo perfume da desconheci−
da, p‡ra frente ˆ pintura de Heitor Malagutti e coloca sua idŽia de arte, ao
falar da tela meditada, em que se encontra algo de espiritual, resultante de
uma idŽia concebida previamente:
Certo que essa pintura n‹o tem o atrativo comum dos quadrinhos de enfei−
te, Ž um pedao de tela meditado longamente, durante horas de idealiza‹o e
ao queimar duma cigarrilha. E dentro de sua aparente simplicidade encontra−
se algo de espiritual, que resulta duma idŽia preconcebida.26
Malagutti Ž um prŽ−rafaelita e Gonzaga Duque, um ruskiniano, cita Modern
painters e The seven lamps of architecture. Para Ruskin, os fundamentos de uma
teoria da arte se enra’zam no sagrado, a grande arte e o artista autntico vei−
17
culam idŽias fortes: o verdadeiro, o belo, o bom e o intelectual s‹o idnticos.
O valor da obra est‡ ligado ao rigor moral do artista. Trazido para a Frana,
atravŽs de artigos de Robert Monier de la Sizeraine, na Revue des Deux Mon−
des, na virada do sŽculo, suas idŽias repercutem aqui. Nele, como em William
Morris, se ligam preocupa›es sociais e estŽticas. Para Ruskin, que, contra o
naturalismo, defendia Turner e os prŽ−rafaelitas, a imagina‹o seria anterior
ˆ pintura, e lhe forneceria os sentimentos.
Todos os grandes homens vem o que pintam antes de pint‡−lo, vem
numa maneira passiva — muitas vezes a imagem mental, acredito, em ho−
mens de imagina‹o Ž mais clara que a imagem corporal. Pois o sentimento
poŽtico, i.Ž, apenas emo‹o nobre n‹o Ž poesia. ƒ inerente em toda natureza
humana que merece o nome e se encontra mais pura geralmente no menos
sofisticado. Mas o poder de juntar, com a ajuda da imagina‹o, tais imagens
que excitam esses sentimentos, Ž poder do poeta ou daquele que produz.27
Nestor V’tor diz que Gonzaga Duque preferia os artistas mais cerebrais:
N‹o nos escapa a secreta preferncia que vota Gonzaga Duque pelos artis−
tas de vida interior patente. Uns e outros, os mais refinados, mais cerebrais, j‡
orando pela extravag‰ncia, s‹o visivelmente seus prediletos.28
A concep‹o Ž o ponto de partida: Òo artista tem uma concep‹o pr—pria e
procura no real a transmuta‹o do quanto idealiza.Ó29 A arte Ž uma atividade
intelectual, que reflete sobre a condi‹o humana; a imagina‹o Ž saber e con−
tŽm o esp’rito cr’tico. No mesmo sal‹o, contra a pintura documental de um
DallÕAra, assim defende a pintura simbolista de Malagutti:
Da’ provŽm a fixa‹o intencional do artista que pretendeu e conseguiu dar
ao quadro o car‡ter prŽ−rafaelita dos estetas rebelados contra a tendncia copi−
adora da arte contempor‰nea... sua obra Ž um documento dos cismas estŽticos
que se controvertem modernamente e tambŽm afirma‹o duma individuali−
dade inconfund’vel.30
O simbolismo inclui os prŽ−rafaelitas ingleses, que criavam imagens cho−
cantes para a Inglaterra vitoriana, pois buscavam nos artistas do Quattrocento,
como Fra Angelico e Botticelli, uma pintura que se opunha ˆ tradi‹o natura−
lista renascentista. Pintavam cenas religiosas, mitol—gicas ou liter‡rias com
uma exatid‹o fotogr‡fica, dando−lhes veracidade indubit‡vel, um hiper−rea−
lismo que fora a crena no que Òh‡ de mais etŽreo e mais imaterialÓ. Baude−
laire j‡ vira que, na modernidade, esta crena se enfraquece:
Dia a dia a arte diminui o respeito por si mesma, prosterna−se diante da
realidade exterior e o pintor torna−se cada vez mais inclinado a pintar n‹o o
que sonha, mas o que v. No entanto Ž uma felicidade sonhar, e era uma gl—ria
exprimir o que se sonhava; mas que estou dizendo; ele ainda experimenta essa
felicidade?
[...]
18
N‹o ser‡ permitido pensar que um povo cujos olhos se acostumam a con−
siderar os resultados de uma cincia material como os produtos do belo n‹o
diminu’sse singularmente ao cabo de certotempo a faculdade de julgar e de
sentir o que h‡ de mais etŽreo e de mais imaterial.31
Os impressionistas, em contraposi‹o, seguem a tendncia a pintar n‹o o
que sonham, mas o que vem e, por isso, recebem o ataque de Gauguin (para
quem o centro art’stico Ž o cŽrebro) de que pintam com os olhos e n‹o com o
centro misterioso do pensamento. O intelectualismo que marca Baudelaire e
os rom‰nticos alem‹es est‡ presente nos simbolistas e, depois, em artistas
como Duchamp e correntes conceituais contempor‰neas.
A concep‹o de Gonzaga Duque Ž de arte como idŽia estŽtica. Conceito
kantiano, a idŽia estŽtica, que Ž mais do que se pode pensar em palavras,
permite a transcendncia do abismo entre o sens’vel e o supra−sens’vel. Est‡
na linguagem da poesia e expressa o que Ž inexpress‡vel na idŽia racional,
pois Ž a representa‹o ˆ qual nenhum conceito Ž adequado. As idŽias aspi−
ram a algo situado acima dos limites da experincia e s‹o irrepresent‡veis
num sentido l—gico. Com isso se esboroa o naturalismo que ficava preso aos
fen™menos, ˆ empiria. A matŽria pode ser elaborada por aquilo que ultrapas−
sa a natureza, o esp’rito. A arte Ž dom’nio tambŽm da reflex‹o, que Ž um puro
jogo da imagina‹o.
Um artigo em Contempor‰neos sobre a caricatura revela a import‰ncia que
lhe dava Gonzaga Duque. A ironia e o grotesco s‹o produtos de uma rever−
s‹o que o olhar opera. Para ele, a caricatura Ž um esquema, sintetiza com
espontaneidade as caracter’sticas do que olha e pode assim criticar, demolidora
e irreverente. Numa sociedade parada, em que o m‡ximo acontecimento era
o ch‡ ˆs dez da noite, o aparecimento de uma folha de caricatura como o
Bazar Volante se igualava ˆ provoca‹o causada por dois teatros, o Alcazar
Lyrique e o El Dorado. Ao falar de Raul Pederneiras, diz que a caricatura
sai−lhe espont‰nea, surge inesperada de seu l‡pis, completada num jato,
como se a m‹o copiasse, automaticamente, o que est‡ na vis‹o interior do ar−
tista, que diremos tem a propriedade deformadora desses conhecidos espe−
lhos de invers‹o —tica.32
Por isso seu entusiasmo com o poder cr’tico de um trao que n‹o imita,
mas deforma, inverte. No artigo diz que o caricaturista v o rid’culo por um
modo sintŽtico e lœcido e pode Òexprimir pelo desenho, dando corpo a todas
as idŽias e pensamentos, concretizando o trabalho em seu cŽrebro por ima−
gens materiaisÓ. Para Baudelaire, na verdade, todos os bons e verdadeiros
desenhistas desenham a partir da imagem inscrita no pr—prio cŽrebro e n‹o a
partir da natureza.
19
No quadro de um francs, Gonzaga Duque destaca a luz aturdidora, a
fŽerie Òna selvagem claridade dum meio−dia dos tr—picosÓ. Sua insistncia
com a luz e a luz tropical Ž notada por Gilda de Mello e Souza33, mas n‹o o
aproxima das experincias sens’veis, retinianas, dos impressionistas.
Se, como afirma Kant, a faculdade da imagina‹o pode criar uma outra
natureza, a partir da matŽria que a natureza efetiva lhe d‡, natureza n‹o nos
falta, reconhece Gonzaga Duque, no coment‡rio ao quadro ÒReden‹o do
AmazonasÓ, de AurŽlio de Figueiredo. Nossa paisagem Ž ampla, um espao
gn—stico, como viria a entender Lezama Lima, espao que instaura uma afir−
ma‹o e uma sa’da para o caos europeu. Falta fixar a luz tropical, o que
Gonzaga Duque, continuamente, reclama aos pintores. Pelo que afirma e pro−
cura em seus textos cr’ticos, essa luz seria a produ‹o de uma reflex‹o, a
liberdade de um pensamento nos tr—picos.
A conscincia da linguagem e da arte como idŽia estŽtica marca toda a
escrita de Gonzaga Duque. Diz Ana Balakian34, citando ValŽry, que une os
simbolistas n‹o uma estŽtica, mas uma Žtica: a vis‹o decadentista Ž tr‡gica,
pois quer recuperar, contra a racionalidade moderna, o mistŽrio, o enigma. A
idŽia de s’mbolo, as correspondncias de Baudelaire, e a arte como dom’nio
do espiritual restabelecem um imagin‡rio forte, que marca estes artistas, as−
sim como a rebeldia que Nestor V’tor identifica em Gonzaga Duque: Òh‡ nele
algo de um revel, um irreverente ao academicismo, como em todo simbolista
que se prezeÓ35. O que se traduz por uma atua‹o inconformada, num meio
hostil, em que domina uma cr’tica naturalista.
Carlos de Laet recebe mal Arte Brasileira, em sua cr™nica ÒMicrocosmoÓ;
apenas se impressiona com a idade do escritor. Valentim Magalh‹es ressalta
sua beleza f’sica e reconhece seu trabalho como Òum ensaio de grande va−
lorÓ. Mas ambos n‹o fazem uma aprecia‹o da obra.
Nestor V’tor distingue simbolistas, estetistas e parnasianos. Os estetistas
n‹o viram as costas para os parnasianos — epicuristas e cŽticos, que aceitam
Wilde e DÕAnnunzio, mas n‹o v‹o com MallarmŽ ou Rimbaud — e se confun−
dem com os advers‡rios dos parnasianos que s‹o os simbolistas.Ó36 Raul de
Leoni seria um desses e mostra um soneto que pode passar por um de Cruz e
Sousa. Esta Ž uma diferena que Gonzaga Duque aponta, em cartas a Emiliano
Perneta, preocupado com a dilui‹o do movimento. A vis‹o radical, tr‡gica,
estaria apenas nos poucos simbolistas que afinam com MallarmŽ e Rimbaud.
Sua postura Ž Žtica e vision‡ria. Na sele‹o que vai fazendo no percurso
do sal‹o de 1905, p‡ra frente ˆ tela de Roberto Mendes:
20
Sua paisagem comunica−se com a nossa alma, prende−nos dentro da sua
verdade e nos d‡ a sensa‹o de sua vida. E este o mŽrito deste pintor
espiritualista, disc’pulo de Ruskin,que n‹o se deixa fascinar pelas lantejoulas
dos triunfos f‡ceis nem se corrompe com as imposi›es burguesas do meio.37
Busca entre os paisagistas, aqueles que Òmostram mais alguma coisa que
a reprodu‹o da Natureza em dados momentos e diversos pontos; exprimem
uma emo‹oÓ. Procura, na pintura de paisagem, a interpreta‹o da natureza.
De acordo com Baudelaire, o perigo que correm os paisagistas Ž, ˆ fora de
contemplar, esquecerem de pensar e sentir; considerando a natureza um dici−
on‡rio, apenas copiarem o dicion‡rio.38 Gonzaga Duque revela sua predile−
‹o por Roberto Mendes: ÒO aspecto que tanto preocupa os paisagistas e donde
se originou o impressionismo n‹o o toca sen‹o mediocremente. E a express‹o
o que ele quer, ˆ maneira do pante’smo; Ž a alma da Natureza, a alma das
coisasÓ39. Diz ser ele o œnico ruskiniano de nossa arte. Ainda citando Ruskin,
afirma que o belo Ž a verdade, embora esta n‹o seja conforme ˆ realidade.
Aqui se pode voltar ˆ quest‹o da luz, quando fala da fixa‹o da luz tropical.
Cita a Òbright colourÓ de Turner, que Ruskin admirava. O que falta ˆ paisa−
gem brasileira Ž essa luz tropical, a alma da paisagem. Quando comenta Par−
reiras, se refere a nossa assimila‹o do impressionismo, Òmal guiados no exa−
gero da inova‹oÓ. Ressalta nos artistas a busca de fixar essa luz, que n‹o Ž
apenas obra do olho, da retina. A cr’tica ao impressionismo, feita pelos sim−
bolistas, Ž a de que existe uma rela‹o entre a pintura e o intelecto e n‹o entre
esta e a natureza. Para SŽrusier, aluno de Gauguin, o pintor precisa ser inteli−
gente, pois o mundo vis’vel se transforma no mundo real, somente atravŽs
da opera‹o do pensamento40.
A idŽia de forma‹o (Bildung) est‡ dentro dessa oposi‹o entre natureza e
cultura. Segundo Novalis, Òa suprema tarefa da forma‹o Ž apoderar−se de
seu si−mesmo transcendental, ser ao mesmo tempo o eu de seu eu — isto Ž, ser
cr’tica.Ó41 Para criar cultura, Ž necess‡rio transcender uma natureza informe,
dessacralizada e banalizada pela raz‹o instrumental — o mundo enquanto
Òterra de reclamesÓ.
A possibilidade de recria‹o percorre a obra de Gonzaga Duque. O traba−
lho nos limites da linguagem dos seus contos (de Horto de M‡goas), em que
surge a quest‹o do sujeito, do inconsciente, continua na sua cr’tica, que privi−
legia a imagina‹o e uma arte em que pensamento e emo‹o se combinam na
busca da forma depurada.
H‡ uma unidade entre os trs livros sobre arte e o romance, Mocidade Mor−
ta. Seu duplo, o personagem Camilo Pena, tenta, nos esforos atomizados
21
dos pintores ˆ margem da Academia,criar uma conscincia cr’tica sobre a
arte que se fazia no pa’s.
De acordo com Baudelaire, no cr’tico sensato e apaixonado, a paix‹o eleva
a raz‹o a alturas insuspeitadas, a cr’tica se aproxima a todo instante da
metaf’sica, nos limites da raz‹o, com a imagina‹o: independente como deve
ser o artista.
Os artistas, falo dos verdadeiros artistas, dos que pensam, como eu, que
tudo o que n‹o Ž a perfei‹o deve ser escondido e que tudo o que n‹o Ž subli−
me Ž inœtil e indigno, aqueles que sabem que h‡ uma espantosa profundidade
na primeira idŽia que surge e que entre as inumer‡veis maneiras de exprimi−
la, s— h‡ no m‡ximo duas ou trs excelentes, estes artistas, repito,
sempredescontentes e jamais satisfeitos, como almas encarceradas, n‹o rece−
ber‹o obrigatoriamente certos gracejos e certos humores caprichosos de que
s‹o v’timas com tanta freqŸncia quanto os cr’ticos.42
No artigo sobre Helios Seelinger, Gonzaga Duque se entusiasma com o
trabalho, diz que nele o fil—sofo e o artista se encontram,
pois Helios n‹o se contenta com o natural, n‹o Ž em rigor um naturista, o
que o toca no centro emotivo, o que o comove e o leva da idŽia ˆ imagem Ž esse
natural depurado na sua imaginativa.43
Mostra que sabe da secess‹o de Munique, onde Seelinger estudara com
Franz von Stuck. Como na secess‹o de Viena, n‹o se queria romper com o
passado, mas com um tipo de arte que estava se fazendo no momento, marcada
pelo naturalismo e comprometida com o gosto do pœblico. O exagero, pr—xi−
mo ˆ caricatura, que Seelinger tambŽm exerceu, como Helios, faz pensar numa
passagem j‡ para o expressionismo, mas que sua cr’tica n‹o nomeia. O pintor
sabe com Baudelaire que Òa imagina‹o Ž a rainha do verdadeiro, e o poss’vel
Ž uma das esferas do verdadeiro. Positivamente ela Ž aparentada com o infi−
nitoÓ44. Por isso arte n‹o Ž imita‹o, o que o coloca na esteira de uma tradi‹o
que questiona a representa‹o art’stica.
22
Graves e Fr’volos: a cidade sonhada
Em conson‰ncia com uma sensibilidade cosmopolita, Gonzaga Duque,
em Graves e Fr’volos, reœne artigos do in’cio do sŽculo atŽ 1910, em que faz
uma apologia de uma estŽtica Art Nouveau. Com o nome de Jugendstil, na
Alemanha, ou Modern Style, na Inglaterra, o movimento foi um desenvolvi−
mento das idŽias de Ruskin, por Wiliam Morris, o simbolismo tornado social.
Os arabescos, liberados das telas, passam a recobrir todos os utens’lios e a
paisagem da cidade. O Pal‡cio de Cristal, de Munique, e o Elvira Studio, de
August Endell, s‹o constru’dos em 1897 e, ainda no mesmo ano, Ž criada em
Viena a Secess‹o austr’aca, que publica a revista Ver Sacrum. Os secessionistas
n‹o rompem totalmente com o passado. Desencantados com o presente, con−
figuram o que Jean Clair chama de vanguarda epimetŽica, forma diferente de
uma outra vanguarda, como os futuristas, que, prometŽicos, explodem o que
lhes antecedeu. O termo vanguarda est‡ relacionado ˆ guerra. Menos radical
do que uma guerra de independncia, a secess‹o, como guerra civil, dentro
de um mesmo pa’s, Ž mais um movimento de implos‹o: ÒUma guerra de
independncia se cr e se diz revolucion‡ria, o secessionista Ž mais um
reformador, um dissidenteÓ45.
N‹o h‡ separa›es entre simbolismo e Art Nouveau, mas uma mesma
vontade de espiritualizar o moderno — insuflar vida, imagina‹o, esp’rito ˆs
produ›es Òda serralheria KruppÓ. Gonzaga Duque tem a inten‹o de desen−
volver, em Graves e Fr’volos, o que diz, em artigo de Contempor‰neos, sobre
Visconti:
ƒ necess‡rio atenuar os violentos efeitos de nossa civiliza‹o, adelgaar a
rudeza do utilitarismo com a m‹o macia e branda da graa. E necess‡rio trazer
ao del’rio industrial destes tempos, que foi o espectro de Ruskin, as miragens
do engano e da compensa‹o, domando a ferocidade humana com o deslum−
bramento da forma e da cor,para que n‹o se perca de todo o resto de generosos
sentimentos existentes na espŽcie soberana sobre a terra.46
Numa cidade em que a companhia ÒCity ImprovementsÓ destr—i teatros e
hotŽis, como o Alcazar Lyrique, e o hotel Frres Provenaux, apagando ima−
gens de um momento e de uma gera‹o, Gonzaga Duque acusa o utilitarismo
portugus de nossas ra’zes. Pede uma leveza ou frivolidade que leve em con−
23
ta a espiritualidade, a arte, o luxo, o prazer, a sensualidade que, escondida
atr‡s de panos pretos, estaria na pr—pria natureza dos tr—picos.
Se, melanc—lico, lamenta a destrui‹o do Alcazar Lyrique pelo ÒHaussmann
brasileiroÓ, em outro artigo, ÒEstŽtica das praiasÓ, pede imagina‹o — trans−
formar Copacabana de um areal acanhado, num balne‡rio de luxo. Repete a
frase — como s‹o belas as nossas praias — e, paradoxalmente, vai mostrando
como nos descuidamos delas, enquanto paisagem (i.Ž, possibilidade de apro−
pria‹o desse territ—rio), por falta de liberdade, por h‡bitos tacanhos, de uma
moral hip—crita. Gonzaga Duque v a falsa moral que cobre as mulheres com
pesadas roupas pretas de banho e descobre os colos nos bailes:
A nossa moral, porŽm, n‹o quer saber disso. A nossa moral Ž
engraada...desafia a risota como os palermas. Ela imp›e todo esse recato ˆs
senhoras que v‹o aos banhos de mar, mas n‹o as considera indecorosas nos
seus decotes de gala. A incoerncia Ž irris—ria.
Vejamos, leitor, o que os moralistas, c‡ dos nossos brasis, pretendem dizer
com esta express‹o seca — Òn‹o Ž digno de civilizadosÓ.
Eu que aqui vou curtindo a minha existncia de pobret‹o, e h‡ quarenta
anos observo e vejo a nossa sociedade, entendo−lhes a segunda inten‹o dessa
frase. Esmiu‡−la−ei ao depois. Por enquanto vamos ao seu sentido apreens’vel.47
Faz uma apologia do corpo nu e livre, contra o temor ˆ liberdade que
descobre na segunda inten‹o da frase que estava esmiuando:
Disse−lhes eu, leitor paciente, que na frase havia uma segunda inten‹o.
H‡, garanto−lhe eu. H‡. O que os maridos, os pap‡s e os manos temem Ž que a
eleg‰ncia das vestes femininas, a liberdade de um pequeno decote, as mangas
curtas, os cal›es justos ou cortados pouco abaixo do joelhos, provoquem co−
ment‡rios desrespeitosos dos amadores das praias.48
Investe contra a situa‹o da cidade: as demoli›es, o abandono e o
mundanismo. E sonha com uma cidade ideal. Em todo o livro est‡ presente
uma cidade imaginada, utopia em que o europeu entra como o artista que
possibilita a imagina‹o alar v™o. Gonzaga Duque aposta numa latinidade
revelada e criada pelas imagens desses artistas, numa conjun‹o fecundadora.
Contra o ’mpeto destrutivo e a moral hip—crita op›e a imagina‹o de artistas
como Felicien Rops, Puvis de Chavannes, ambos simbolistas, um belga, o
outro, francs e os italianos e portugueses, pintando ou expondo no Brasil:
Nicolau Facchinetti, Teixeira Lopes, Malhoa e Castagneto.
Faz uma hist—ria da pintura de paisagem no Brasil, que comeou com a
Miss‹o Francesa e o Bar‹o de Taunay. Facchinetti ganha simpatia de burgue−
ses provincianos, mas n‹o se ilude com o sucesso f‡cil. Criou uma escola
paralela ˆ do alem‹o Grimm (que formou Parreiras, Vasquez e Frana Junior).
AlŽm de seus panoramas, que atingem intensidade colorida, Gonzaga Du−
que elogia em Facchinetti a Òtenacidade no querer, a const‰ncia do desejo, o
amor ˆ profiss‹oÓ. Em Castagneto v um artista rebelado, um bomio, de
produ‹o vertiginosa, mas f‡cil, embora livre, na Òcompleta liberdade de
sua vontadeÓ. AlŽm dele, cita, como pintores de marinhas, Eduardo de
Martino, Gustavo James, Em’lio Roude.
Em outro artigo defende o Art Nouveau no mobili‡rio. Diz Gonzaga Du−
que que essa renova‹o tanto se d‡ pelo ornamento que vem de um exausti−
vo estudo do que Ž invis’vel, do que est‡ no mistŽrio da natureza, mas que,
alŽm disso, adaptou os m—veis ˆs fun›es:Óinteligentemente, resumia m—−
veis e reduzia despesasÓ. O ornamento como livre jogo da fantasia vai ser
atacado por Adolph Loos, arquiteto vienense, que se op›e a outros arquitetos
e pintores secessionistas como Olbrich, Klimt, Schiele. O racionalismomo−
derno tem nele seu defensor. Loos n‹o faz diferenas e vai criar o funcionalis−
mo arquitet™nico.Para ele, o ornamento Ž crime49, pois Ž anti−racional, n‹o
baliz‡vel segundo uma a‹o e um pensamento racionais. Ornamentos s‹o
s’mbolos er—ticos50: ÒMas o homem de nosso tempo, que, por um impulso
interior, suja as paredes com s’mbolos er—ticos, Ž um criminoso ou um dege−
neradoÓ. Loos vai propagar uma emancipa‹o do ornamento; o caminho da
cultura iria no sentido de sua exclus‹o. A compara‹o de ornamento com
crime e a acusa‹o de degenera‹o ao artista aparenta Adolph Loos a Max
Nordau, o alem‹o que acusou os simbolistas parisienses de degenerados, caso
que Gonzaga Duque conta em ÒImagistas nefelibatasÓ, artigo de Graves e Fr’−
volos, a partir do relato de Adolphe RettŽe. Nordau se misturou aos poetas
bomios e anarquistas de Paris, estes perceberam e exageraram suas Òloucu−
rasÓ, o que lhes valeu a acusa‹o de degenerados pelo disc’pulo de Lombroso.
O artigo, originalmente publicado em Kosmos, se ampara em cita›es, para
defender decadentistas e simbolistas da acusa‹o ir™nica de que andavam
nas nuvens, pelos excessos bomios e a linguagem ornamental. Aqui procura
ajudar na compreens‹o das propostas do movimento. Para os simbolistas, o
novo Ž subjetivo,
...pois que o œtil na Arte Ž o Novo: o mais long’nquo o mais intenso. Ora, o
novo Ž o sentimento do artista, a impress‹o pessoal que ele recebe da natureza
universal. A arte Ž, pois, essencialmente subjetiva. O aspecto das coisas Ž ape−
nas um s’mbolo que o artista tem a miss‹o de interpretar. Elas tm verdade
apenas nele, tm apenas uma verdade interna.51
Esse novo Ž sempre o bizarro, o enigm‡tico, o ainda n‹o consciente. A
utopia do Art Nouveau Ž a de trazer ˆ tona esta segunda realidade que vai
transformar a vida e a natureza. Tornar vis’vel o invis’vel, o ainda n‹o cons−
ciente de Bloch, Ž a utopia tanto do simbolismo como do expressionismo.
Em todo o livro, a quest‹o parece ser como se reapropriar de uma tradi‹o
e de uma natureza, transformando−as. A natureza e a sociedade podem ser
transfiguradas, n‹o pelo utilitarismo de uma raz‹o instrumental, mas pela
arte, pela liberdade da imagina‹o. O que significa frivolidade, apenas um
desejo de revela‹o e cria‹o, votado ao fracasso num mundo regido pela
racionalidade pragm‡tica.
Gonzaga Duque termina Arte Brasileira, afirmando que nos falta esp’rito,
i.Ž, reflex‹o. Diz Novalis que Ž muito mais c™modo sermos feitos do que nos
fazermos a n—s mesmos. Nos faltaria essa reflex‹o que possibilite produzirmo−
nos e a uma arte que contenha pensamento, fora das alegorias tradicionais
da nacionalidade, que pintam um ’ndio ou um negro bem comportados ou
embranquecidos. A n—s, nos faltaria criar um pensamento, e sua cr’tica tem
essa liberdade. Gonzaga Duque revela um pensamento que postula um ab−
soluto e tenta ultrapassar a dœvida do ceticismo e o positivismo. Embora sai−
ba esse absoluto inalcan‡vel, sua postula‹o permite um horizonte ut—pico
e uma Žtica. Sua obra, assim como uma grande parte da produ‹o do simbo−
lismo, fica apagada, desfocada, talvez, pela falta de um romantismo que n‹o
apenas cantasse o nacional, mas impusesse uma imagina‹o livre capaz de
fazer essa reflex‹o. TambŽm n‹o havia uma conscincia filos—fica que susten−
tasse a tentativa de bomios dissidentes, isolados num meio hostil em que
predominava uma cr’tica naturalista. As exce›es eram Farias Brito e Jackson
de Figueiredo, com suas limita›es.
O conceito de moderno e de novo de Gonzaga Duque s‹o diferentes das
idŽias em nossa vanguarda modernista. Para o modernismo futurista, a novi−
dade Ž a industrializa‹o, como uma natureza que se imp›e como experin−
cia ao homem moderno. O novo Ž visto como inven‹o e n‹o como algo a ser
revelado pela produ‹o poŽtica, um ainda n‹o consciente.
As vanguardas trazem o negro, o primitivo, o inconsciente ˆ cena, mas
com Òum dogmatismo e um nacionalismo embrabecidoÓ, em manifestos que
explodem categ—ricos, redigidos por intelectuais pragm‡ticos e nacionalis−
tas, ligados a valores circunstanciais.
O Estado−na‹o moderno, cria‹o do sŽculo XIX, produz intelectuais oti−
mistas, em conson‰ncia com o ritmo dos novos tempos, com um triunfalismo
que expulsa a dor que, no entanto, a sociedade industrial intensifica, atravŽs
de seu ritmo f‡ustico de constru‹o e destrui‹o, de suas constantes cat‡stro−
fes.
Mas o simbolismo se mostra um antifuturismo — Ž a rememora‹o de uma
experincia perdida, que permite se opor ˆ cat‡strofe moderna, que lida ape−
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nas com a experincia imediata. O secessionista se interessa pela mem—ria do
que aconteceu:
O secessionista n‹o arrasa nada, ao contr‡rio, ele muda o sentido das obras
do passado. Sua reflex‹o cr’tica nasce de um problema com o passado que ele
vai esclarecendo ˆ medida que vai tornando claro seu processo.52
Da’ o interesse de Gonzaga Duque por uma hist—ria da arte e das Òrevolu−
›esÓ brasileiras, que narra com um olhar excntrico. Como cr’tico suscita
quest›es, consciente de que est‡ criando essa arte com sua escrita. Inscreve−
se tanto fora do racionalismo nacionalista dos bacharŽis da escola do Recife e
de um Ver’ssimo, quanto de uma cr’tica simbolista que dissolvia o coment‡−
rio na mera par‡frase l’rica.
As propostas da nossa vanguarda modernista, como a antropofagia, n‹o
criticam a raz‹o pragm‡tica. Na devora‹o do europeu, apenas corrigir’a−
mos o estrangeiro53, mas n‹o operar’amos uma revers‹o total. A idŽia de rup−
tura se torna apenas uma corre‹o. H‡ uma utopia ingnua no modernismo
que acredita na reden‹o pelo desenvolvimentismo, o que M‡rio de Andrade
reconhece, em artigo que avalia o movimento: ÒServimos apenas de altifalantes
de uma fora universal e nacional muito mais complexa que n—s. Um esp’ri−
to do tempo fatal e irrevers’vel.Ó54
Com outra l—gica tenta−se pensar num movimento cosmopolita e
universalista como o simbolismo, cr’tico da raz‹o moderna. Contra os que
acreditam na cincia naturalista, os simbolistas cariocas apostam na imagi−
na‹o, na arte. Est‹o afinados com os simbolistas europeus, em cujas propos−
tas ressoam quest›es do primeiro romantismo alem‹o: problematizam a re−
presenta‹o, a possibilidade de uma linguagem referencial e prop›em a cria−
‹o de novos mitos.
Enquanto os parnasianos cinzelavam versos, de acordo com as expectati−
vas de um pœblico nada exigente, os simbolistas teciam arabescos musicais e
coloridos. Mas, se com alguns deles isso se transformava em f—rmulas esva−
ziadas de qualquer sentido filos—fico, com outros se transformava numa for−
ma livre de pensar a condi‹o humana. Para Novalis, o poeta transforma o
mundo de novo em poesia, o mundo desencantado do entendimento, da prosa,
se desfaz. No seu romance, Henrich von Ofterdingen, um eremita enfatiza a
import‰ncia da imagina‹o para dar uma narrativa coerente aos aconteci−
mentos. Diz que Ž na lembrana que os momentos da hist—ria s‹o reconheci−
dos. Assim, s— os poetas podem escrever hist—ria, porque podem coletar frag−
mentos de tempo e rearranj‡−los.
27
A cr’tica de Gonzaga Duque tem essa fora, ao lembrar imagens como a
do pintor JosŽ Leandro, obrigado a cobrir seu quadro. Num momento de
terror, uma determinada representa‹o exerce sua violncia como verdade.
Mas a press‹o da imagina‹o se contrap›e ˆ da realidade: a imagina‹o pre−
cisa ser uma violncia interna que nos proteja da violncia externa.55 O artista
cria outra natureza, diz Lezama Lima56, pela reconstru‹o da imagem, pela
possibilidade cognoscitiva do ato poŽtico, da fic‹o, num espao
antidogm‡tico, como pretendia Gonzaga Duque fosse a cidade e o pa’s.
28
29
Notas
1 DUQUE, L.Gonzaga (1929), p.123.
2 DUQUE, L.G. (1973), p.142.
3 BENJAMIN, W. (1985), p.130.
4 CLAIR, J. (1983).
5 DUQUE, L.G. (1888), p. 46.
6 DUQUE, L.G. (1898).
7 DUQUE, L.G. Op.cit., p.7.
8 BLOCH, E. (1989).
9 SCHLEGEL, F. (1991),p. 12, fragmento n…. 104.
10 KANT, I. (1993), p. 96.
11 SEYHAN, A. (1992), p. 115.
12 DUQUE, L. G. Op. cit., p. 243.
13 Ibid., p.240.
14 Ibid., p. 251.
15 Ibid., p.249.
16 DUQUE, L.G. (1888), p. 244.
17 Ibid., p. 123.
18 Ibid., p.244.
19 DUQUE, L. G. (1929), p.86.
20 Ibid., p. 171.
21 Ibid., p.217. O artigo, originalmente publicado em Kosmos, Ž comentado por An−
tonio Dimas (1983).
22 VŒTOR, N. (1979), vol.III, p. 241.
23 DUQUE, L.G. (1929), p.115.
24 Ibid., p. 116.
25 Ibid.,p.213.
26 Ibid., p.120.
27 RUSKIN, J. (1972), p.125.
28 VŒTOR, N. Op. cit., vol.II, p.244.
29 DUQUE, L.G. (1929), p. 57.
30 Ibid., p. 120.
31 BAUDELAIRE, C.(1988), p.74.
30
32 DUQUE, L. G.(1929), p.238.
33 SOUZA, G. de Mello e.(1980).
34 BALAKIAN, A.(1985), p.90.
35 VŒTOR, N.Op. cit., p. 244.
36 VŒTOR, N. Op. cit., vol.II, p.293.
37 DUQUE, L.G. (1929), p.131.
38 BAUDELAIRE, C. (1968), p.398.
39 DUQUE, L.G. (1929), p. 33.
40 PIERRE, J. (1976), p.18.
41 NOVALIS (1988), p.54.
42 BAUDELAIRE, C. (1988), p.155.
43 DUQUE, L.G. (1929), p. 53.
44 BAUDELAIRE, C. Op. cit., p. 76.
45 CLAIR, J. (1986), p. 49.
46 DUQUE, L. G. (1929), p.26.
47 DUQUE, L.G. (1910), p.152.
48 Ibid., p. 154.
49 LOOS, A. (1979).
50 Ibid., p. 277.
51 MORICE, C., te—rico simbolista citado por DELSEMME (1958), p.123.
52 CLAIR, J. (1986), p.47.
53 LIMA, L. C. (1991), p.32.
54 ANDRADE, M. (1958), p.221.
55 STEVENS, W., em SYPHER, W. (1980), p.100.
56 LIMA, J. L. (1988), p.183.
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