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Experimento drogas(Gaiolas)


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Dependência de drogas: o problema é a gaiola 
21 de janeiro de 2014 por Caue Seigne Ameni 
 
Em quadrinhos, o experimento científico que derrubou o mito segundo o qual 
substâncias psicoativas são por natureza nocivas e viciantes. 
Por Cauê Seignermartin Ameni 
Ao estampar em sua capa, na última quinta-feira (16/1), a imagem de uma 
paciente do novo programa para usuários de drogas de S.Paulo fumando 
crack após o trabalho, a Folha de S.Paulo praticou um atentado à 
privacidade da pessoa em tratamento médico, desencadeando crise de choro 
e revolta. E foi além. Na tentativa de “demonstrar” uma tese conservadora (a 
de que as terapias humanizadas são ineficazes para dependentes de 
drogas), ele ignorou um experimento científico realizado há mais de trinta 
anos. Já no final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce 
Alexander demonstrou que a socialização é, claramente, o melhor caminho 
(se não o único) para enfrentar a dependência química. Sua pesquisa, que 
passou a influenciar profissionais de saúde em todo o mundo, está descrita 
até em formato de quadrinhos – inclusive traduzidos para o português (veja-
os ao fim deste post). O fato de prevalecer até hoje, entre os velhos jornais 
brasileiros, a velha crença em métodos de punição e encarceramento só 
demonstra o atraso destas publicações. 
Alexander, que trabalhava na Universidade Simon Fraser, questionou o 
pensamento predominante em sua época, segundo o qual as substâncias 
psicoativas produziam dependência, por sua natureza – e por isso deveriam 
ser proibidas. Para tanto, precisou enfrentar um problema. Em favor da 
crença comumente aceita, havia dezenas de experimentos “científicos”, 
geralmente realizados com ratos, e sempre com resultados semelhantes. 
“Demonstravam” que, uma vez em contato com drogas, os animais 
tornavam-se incapazes de viver sem elas. 
O psicólogo canadense observou, porém, que talvez a causa destes 
resultados recorrentes não estivesse na correção da hipótese que eles 
supostamente “comprovavam” — mas num erro metodológico comum a 
todos os experimentos. Em todo os casos, os ratos testados eram confinados 
em gaiolas. Tinham um canudo implantado cirurgicamente no sistema 
circulatório. Eram treinados a movimentar uma alavanca e receber, 
diretamente no sangue, doses de morfina, heroína ou cocaína. Ao final de 
algum tempo, preferiam a droga aos alimentos ou à própria água, sendo 
levados à morte. “Concluía-se cientificamente” que as substâncias eram 
nocivas e altamente perigosas, e deveriam ser proibidas para humanos. As 
pesquisas foram um poderoso reforço ao proibicionismo e, mais tarde, à 
chamada “Guerra contra drogas”, em curso até hoje. 
Bruce Alexander resolveu testar outra hipótese. Ao invés confinar os ratos 
em gaiolas minúsculas e solitárias, construiu para eles um parque 200 vezes 
maior com túneis, perfumes, cores. Mais importante, colocou outros ratos 
para interação. A experiência ficara conhecida como Rat Park – algo 
como Ratolândia em português. Para completar a “festa”, os roedores tinham 
acesso a duas fontes jorrando, incessantemente, água e morfina. Nestas 
novas condições, que reproduzem muito melhor a vida real, os resultados 
foram impressionantes. Percebeu-se, entre outros fatos, que os ratos livres 
consumiam 19 vezes menos psicoativos que seus iguais enjaulados. 
Hoje, com avanço da ciência, há um maior entendimento sobre o 
funcionamento químico cerebral. O jornalista Denis Russo Burgierman, autor 
do livro O Fim da Guerra, explica como se dá essa relação: ”O centro da 
questão é um químico chamado dopamina, o principal neurotransmissor do 
nosso sistema de recompensa. Quando animais sociais ficam isolados e sem 
estímulos, seus cérebros secam de dopamina. Resultado: um apetite enorme 
e insaciável pela substância. Drogas – todas elas – têm o poder de aumentar 
os níveis de dopamina no cérebro, aliviando essa fissura. O nome disso é 
dependência. Ou seja, não é a droga que causa dependência – é a 
combinação da droga com uma predisposição. E o único jeito de curar 
dependência é curar essa predisposição: dando a esse sujeito uma vida 
melhor, como Bruce Alexander fez com os ratinhos do Rat Park.” 
O paralelo com a situação brasileira é evidente. As políticas tradicionais 
tratam o usuário de drogas como pária a ser afastado do convívio social. 
Esta posição é radicalizada por autoridades e profissionais de saúde mais 
conservadores — para quem é preciso internar de forma compulsória os 
dependentes. Em contrapartida, a nova atitude adotada em São Paulo 
oferece a eles alojamento digno e ocupação e volta ao convívio social. 
Por que são tão fortes e persistentes as teorias retrógradas, mesmo quando 
descoladas totalmente da realidade? O neurocientista Carl Hart, professor 
neurocientista da Columbia University, entrevistado recentemente pela New 
York Times respondeu a essa questão: “Oitenta a 90 por cento das pessoas 
não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura 
científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos. Há um foco 
distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que teremos mais 
dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este 
terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”. 
Bruce Alexander e Carl Hart são duas incômodas exceções. Enquanto ao 
resto, a indústria farmacêutica e bélica agradecem o proibicionismo.