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RELATO DE UM CASO - GERIVALDO NEIVA

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Realato de um caso 
Gerivaldo Neiva 
Aceitei calmamente ser revistada e o único pedido é que isto fosse feito por uma policial 
militar. Não gostaria que um soldado me apalpasse e nem que tocasse meu corpo. Tinha 
certeza que o cigarro de maconha seria encontrado naquela revista, mas pelo menos 
não seria tocada por mãos que não queria. 
Era carnaval de 2014 em Salvador. O destino era o circuito Barra-Ondina e a galera 
havia marcado para se encontrar perto das “gordinhas”, no início da Avenida Ademar de 
Barros, e daí seguiríamos no sentido Farol da Barra, fazendo o contra fluxo para 
aproveitar um pouco de cada Trio Elétrico. Hoje era dia de “pipoca”. Nada de corda de 
blocos. Era dia de dançar e beijar muito. 
Tinha saído do interior para Salvador de buzú com a galera para curtir o carnaval de 
Salvador. Como é bom ter mais de 18 anos e viajar sozinha. Ficamos todos os 
hospedados no apartamento de um brother que estava sozinho em casa, pois os pais 
não gostavam da fuzarca do carnaval e tinham viajado para a casa de praia no litoral 
norte. Massa! Um apê liberado, cerveja na geladeira, comida congelada no freezer, 
ninguém para controlar a hora de chegar ou sair. O paraíso é aqui e agora. 
Há meses não “ficava” com ninguém, mas no carnaval isso é impossível não acontecer. 
Ao entardecer, um amigo do brother do apê “chegou junto” e rolaram uns bons amassos 
e beijos molhados na varanda. Faz parte do carnaval. Ao sair para a festa, percebi que 
aquele papel que ele tinha deixado no bolso do meu short era um cigarro de maconha. 
Massa. Não estava contando com essa possibilidade, mas já que caiu em meu bolso, 
seria devidamente aproveitado. Primeiro o carnaval, muitas latinhas de cerveja, depois 
um baseado, a larica, um sanduíche do tamanho do mundo e o sono perfeito. 
Não havia razão alguma para aquela revista. Não me envolvi em confusão e andávamos 
normalmente pela rua quando a guarnição da PM resolveu revistar a galera. Não tinha 
como evitar. Correr seria pior. Quando a policial militar passou a mão no bolso do short 
percebeu logo, pelo formato, que se tratava de um cigarro de maconha. Seus olhos 
brilharam como se tivesse encontrado um troféu. Para livrar a barra de todos, o melhor 
era confessar que era para consumo pessoal e que os demais nem sabiam da existência 
daquele cigarro. 
Fui convidada para ir ao posto policial mais próximo, não fui algemada e apenas a 
policial feminina pôs a mão em meu ombro. Ao meu lado, um policial militar franzino e de 
óculos me dava conselhos durante o trajeto até o posto policial: - maconha é perigosa e 
vai te causar mal, maconha é a porta de entrada para outras drogas, maconha vai 
causar estragos irreversíveis em teu cérebro e pode até te enlouquecer, o consumo 
alimenta o tráfico e causa a morte de outros jovens. Ouvi tudo calada, mas esta última 
observação quase me tirou do sério. Ora, o cara estava querendo me culpar pelas 
mortes causadas pelo tráfico!! Quem está apertando o gatilho e sob ordens de quem? 
No posto policial, fui mais uma vez aconselhada sobre o perigo da maconha pela pessoa 
que me tomou o depoimento e, meio a contra gosto, terminei assinando um documento 
me comprometendo a comparecer perante um juiz de direito quando fosse intimada. Que 
chatice. Tudo isso por conta de um cigarro de maconha! Se soubesse, não teria dado 
bola para o carinha e, sem os amassos na escada, não teria rolado o baseado. 
Estamos em novembro e só agora recebi a intimação para comparecer perante o juiz de 
direito e ouvir uma proposta de transação penal pela promotora de justiça. Soube na 
audiência que se tratava de uma carta precatória que teria sido enviada pelo Juizado 
Especial Criminal de Salvador para o fórum local. Indaguei mais sobre o caso e o juiz me 
disse, com dificuldades para me explicar a burocracia da justiça, que a apreensão do 
cigarro de maconha tinha gerado um Termo de Ocorrência e encaminhado para o 
Juizado Especial Criminal. Daí, o processo teria sido encaminhado para um promotor de 
justiça e este teria requerido ao juiz de Salvador que fosse enviada uma carta precatória 
para que fosse proposta uma transação penal pela promotora da cidade. Além disso, 
meu indefeso cigarro de maconha, pesando 1 grama, ainda foi encaminhado à polícia 
técnica para constatar que se tratava mesmo de maconha, ou seja, cannabis sativa. 
Pobrezinho… 
A promotora de justiça me ofereceu as opções de prestação de serviço à comunidade ou 
converter em pagamento de multa. Evidente que não iria me submeter ao vexame de 
prestar serviço à comunidade por ter sido flagrada com um cigarro de maconha. 
Apresentei algumas desculpas para não prestar serviço à comunidade e a Promotora 
ofereceu a proposta de converter no pagamento de 200 reais em duas parcelas, que 
seriam destinadas a entidades filantrópicas da cidade. Melhor assim. Vou retirar de 
minha mesada e pagar duas parcelas de 100 reais. Caso não aceitasse, pelo que 
entendi, seria condenada por portar maconha para consumo pessoal, mas não iria para 
a cadeia. As penas seriam de advertência sobre os efeitos das drogas ou 
comparecimento a programa ou curso educativo.[2] Que coisa mais absurda e fora de 
moda! 
No mesmo dia, ao fundo do salão em que se realizavam as audiências, havia dois 
rapazes algemados à espera de serem interrogados. Eram negros, tinham a cabeça 
raspada e usavam um uniforme azul, calças folgadas com elástico e uma camisa tipo 
bata. Não sei que crime cometeram e o que iria acontecer com eles, mas sei que minha 
cabeça saiu muito embaralhada e intrigada daquele lugar: por que preciso pagar 200 
reais por ter comigo, para meu consumo, um baseado de maconha? Por que esses 
jovens estão presos e algemados? Por que não vivemos todos com paz e dignidade? 
Por que tanta violência e criminalidade? 
Vou precisar fazer alguma economia para pagar a multa, mas imagino que a justiça 
gastou muito mais do que isso para resolver este caso. Além da polícia que me revistou 
e me conduziu para o posto policial, teve o pessoal que me tomou o depoimento e, pelo 
que entendi, o caso virou um processo na justiça e movimentou uma máquina enorme: 
funcionários, sistema de informática, papéis, perito, laboratório, promotor de justiça, juiz 
de direito, correio, mais funcionários, outro promotor, outro juiz de direito, o oficial de 
justiça que foi me intimar, esta audiência… Será por quanto ficou o preço final desse 
processo? Além da minha vergonha, quanto custa um cigarro de maconha para a 
justiça? 
O Juiz me disse, na despedida, visivelmente constrangido em cumprir aquela tal de carta 
precatória, que tivesse cuidado ao usar maconha ou sair com cigarro no bolso. Não me 
recriminou e seu olhar era mais de cuidado e proteção. De minha parte, por mais que 
tivesse sido constrangedor tudo aquilo, continuo entendendo que não cometi crime 
algum, que não sou uma “pobre viciada” e apenas gosto de fumar maconha na 
companhia dos amigos em situações muito especiais e, finalmente, que não sou culpada 
pelas prisões e mortes causadas pela proibição e pela guerra às drogas. 
 
Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a 
Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos 
Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement 
Against Prohibition (Leap-Brasil) 
 
 
Disciplina: Toxicodependência 
Prof.ª: Elza Ibrahim

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