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EVOLUÇÃO DA NORMATIZAÇÃO DE BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO (BPF) E O SEU IMPACTO NA QUALIDADE DE MEDICAMENTOS COMERCIALIZADOS NO BRASIL. Evolution of norms of Good Manufacturing Practices (GMP) and its impact on quality of drugs marketed in Brazil. Fernando Justino Torres de Deus Paula Frassineti Guimarães de Sá* * Doutorado em Química/Bioquímica (PhD) RESUMO A produção de medicamentos de uso público é sustentada por quatro pilares fundamentais: segurança, eficácia, acesso e qualidade. A adoção de Boas Práticas de Fabricação (BPF) garante não somente a uniformidade do processo de manufatura de medicamentos, mas é a expressão da incorporação da filosofia da garantia da qualidade neste processo, o que traz benefícios, principalmente, aos consumidores. Globalmente, observa-se que as BPF foram aprimoradas ao longo dos anos, refletindo a responsabilidade compartilhada de forma igualitária pelo Estado e pelos fabricantes de medicamentos com a saúde da população. No Brasil, no decorrer das últimas décadas, essa evolução na regulamentação das BPF é o reflexo de tal compromisso. Sendo assim, ao exigir a adoção dos princípios filosóficos da garantia da qualidade nos processos de produção de medicamentos por meio das ferramentas sanitárias legais, o Estado cumpre com os princípios constitucionais a ele delegados no que se refere ao cuidado com a saúde da população. Paralelamente, ele também contribui para o desenvolvimento das indústrias locais, tornando-as mais competitivas e cientes do seu papel. Palavras-chave: Boas Práticas de Fabricação. Garantia de qualidade. Produção de medicamentos. ABSTRACT The drugs production for public use is supported by four ground pillars: safety, efficacy, access and quality. The Good Manufacturing Practices (GMP) incorporation warrantees not only the drug manufacturing process uniformity, but it also expresses the quality warrantee philosophical principles, which favors, mainly, the costumers. Globally, it has been observed the GMP improvement over the years, reflecting the responsibility shared by the State and the Drug Manufacturing holders with the population health. In Brazil, along the last decades, the GMP regulation evolution is just a reflex of this commitment. Therefore, when the Sate requires the adoption of the quality philosophic principles in the drug manufacturing process through legal sanitary tolls, it makes the State compliant with the constitutional principles of health population care, that are under its scope. At the same 1 time, it also contributes to the development of the development of local industries, making them more competitive and aware about its duties. Keywords: Good Manufacturing Practices. Quality warrantee. Drugs production. 1. INTRODUÇÃO A partir do momento em que a saúde passou a ser um dever constitucional, mais do que institucionalizá-la como um direito do cidadão, a Constituição Federal (CF/88) apresentou um mecanismo pelo qual o Estado garantiria à população brasileira o acesso aos serviços de saúde (PAULUS JÚNIOR e CORDONI JÚNIOR, 2006). Paralelamente, nascia o embrião do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual foi regulamentado posteriormente em 1990, por meio da Lei 8.080, a qual também definia o seu modelo operacional, propondo também a sua forma de organização e funcionamento (POLIGNANO, 2001). De acordo com esse novo modelo, o Estado assumiu a responsabilidade indelegável de preservar os princípios doutrinários do SUS - universalidade, integralidade e equidade/igualdade, bem como a formulação de uma política de medicamentos efetiva (BRASIL, 1990). Por conseguinte, as seguintes ações passaram a nortear algumas decisões do SUS: a adoção de uma relação contemplando os medicamentos tidos como essenciais, a evolução de uma regulamentação sanitária de medicamentos robusta e factível pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a reorientação da assistência farmacêutica, a promoção do uso racional de medicamentos, o incentivo à produção de medicamentos e o desenvolvimento científico e tecnológico do setor, a garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, e por fim, o desenvolvimento e capacitação de recursos humanos. Isso posto, é indiscutível que um dos reflexos da evolução das políticas de saúde ao longo dos anos foi uma preocupação cada vez mais significativa no que se refere ao fabrico e comercialização de medicamentos e produtos para a saúde. Nesse contexto, o medicamento passou a ser considerado elemento essencial na prevenção e recuperação da saúde, sendo, portanto um insumo básico e não mais um simples bem de consumo (TETILLA, 2008). Consequentemente, deu-se a criação e aprovação, por meio da Portaria Ministerial nº 3916/98, da Política Nacional de Medicamentos (PNM), cuja finalidade era a de garantir a segurança, a eficácia e a qualidade dos medicamentos, bem como a promoção do uso racional destes e o acesso da população àqueles considerados como essenciais. 2 Como a garantia ao acesso igualitário a medicamentos era preconizada pelos princípios do SUS, com a aprovação da PNM, o Estado Brasileiro se tornou o maior comprador de remédios do país. Considerando o cumprimento dos quatro pilares estabelecidos pela OMS, ele deveria garantir que os medicamentos disponibilizados à população deveriam cumprir com quesitos de segurança, eficácia, acesso e, principalmente, qualidade, além de dispor de mecanismos que possibilitassem o controle de qualidade dos medicamentos distribuídos na rede. Consequentemente era inevitável que os pressupostos filosóficos de qualidade, alcançados, nesse caso, por meio da implementação de Boas Práticas de Fabricação (BPF), passasse a ser um dos norteadores das ações da vigilância sanitária no setor de medicamentos em nosso país, sendo este incorporado à sua regulamentação como condição necessária para a comercialização de produtos. Infere-se assim que, no Brasil, o SUS acabou sendo uma grande turbina propulsora para a melhoria da qualidade dos medicamentos, uma vez que ele instituiu várias políticas públicas para a garantia da saúde, criou leis de fiscalização e promoveu a vigilância sanitária pelo simples fato de consolidar o Estado como o maior comprador de medicamentos do país. Portanto, indiretamente este contribuiu para que as empresas aprimorassem seus processos de produção exigindo, acima de tudo, a garantia da qualidade dos medicamentos distribuídos pelo sistema. 2. Breve Histórico sobre a inserção da filosofia da qualidade no contexto da produção de medicamentos 2.1. Reforma Sanitária e definição do papel do Estado no que se refere à criação de políticas públicas na área de medicamentos. No Brasil, entre os anos de 1985 a 1988, importantes modificações foram introduzidas nas políticas econômicas e sociais brasileiras. Foi neste período que se consolidou a chamada Nova República, confirmada através da promulgação da CF, em 1988. A partir de então, um novo paradigma norteou as ações sócio-econômicas, sendo este consolidado pelos compromissos governamentais com o crescimento do país. No âmbito social, os movimentos sociais organizados ganharam força e começaram a ter maior representatividade nos conselhos de gestão nacional em diversas áreas, tais como saúde, previdência, educação e trabalho. Reformas dos sistemas tributário, financeiro e administrativo, reformas na área social (educação, previdência social, habitação, 3 assistência social,alimentação e nutrição) e a Reforma Sanitária foram colocadas em pauta, sendo amplamente discutidas durante o período de consolidação da Nova República. Nesse cenário de intensas mudanças, a Reforma Sanitária Brasileira pode ser considerada mais do que apenas uma reforma setorial. Ela pode ser entendida como uma ferramenta democrática para o resgate da cidadania no país, se situando como um projeto específico que, aliado à outros econômicos-sociais de caráter reformador, constituiu uma trajetória maior no âmbito da saúde. De acordo com Gallo e colaboradores (1998) ela consubstanciou “projetos parciais” que gravitavam em torno da unificação do Sistema de Saúde e sua hierarquização, descentralização para estados e municípios, com unidade na Política de Saúde; universalização do atendimento e equalização do acesso com extensão de cobertura de serviços; participação da população através de entidades representativas na formulação, gestão, execução e avaliação das políticas e ações de Saúde (controle social) e a racionalização e otimização dos recursos setoriais com financiamento do Estado através de um Fundo Único de Saúde em nível federal. Nesse contexto, a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em março de 1986, consolidou a idéia de se colocar saúde como um direito, contrapondo a triste realidade na década de 80 onde havia uma notória exclusão da maior parte dos cidadãos no que se refere ao direito à saúde. (GALLO et al, 1998). Como afirmado por Pepe e colaboradores (2009), a VIII CNS ampliou o conceito de saúde, redefinindo-o não somente como o resultado de condições adequadas de alimentação, habitação, educação, trabalho, lazer e acesso aos serviços de saúde, mas, sobretudo como sendo uma consequência da forma de organização da produção na sociedade e das desigualdades nela existentes. Resgantando o conceito de saúde plena e as estratégias para alcançá-la, concebe-se o uso racional de medicamentos como uma delas. Justifica-se, assim, a mobilização de recursos e esforços do Estado para garantí-lo por meio de políticas públicas. Hunt e Khosla (2008) reforçam tal proposição e afirmam que o Estado não deve disponibilizá-los à população por meio de medidas que garantam a sua produção. Justifica-se a razão pela qual, na década de 90, as instâncias gestoras e de controle social do país passaram a avaliar e regulamentar a ampliação do acesso aos medicamentos no Brasil. Dada a necessidade de criação e instituição de políticas públicas que esclarecessem e regulassem o acesso a medicamentos, observa-se, em 1998, a consolidação da PNM e da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF). 4 As prioridades e diretrizes dessas políticas se estruturam em torno da assistência farmacêutica básica aplicada às práticas do SUS, principalmente no que concerne as esferas de organização e gestão. Somado a esse grupo de medidas políticas, encontram-se os pactos em defesa do SUS, dos quais se destaca o Pacto de Gestão, o qual define como responsabilidade dos três gestores do SUS a aquisição de medicamentos e insumos e a organização das ações de assistência farmacêutica necessárias, de acordo com a organização dos serviços de saúde (PEPE et. al., 2009), sendo financiamento da Assistência Farmacêutica, foi regulamentado pela Portaria MS 204/2007 e este abrange um componente básico, estratégico e um de assistência excepcional (BRASIL, 2007). Atualmente, ela abrange o componente básico, o componente especializado, o componente estratégico e o Programa Farmácia Popular (BRASIL, 2011). 2.2. Escândalos históricos relacionados à qualidade de medicamentos. Ao longo da história, novas descobertas impulsionaram os caminho do desenvolvimento em áreas diversas. O desenvolvimento da indústria, do comércio e, consequentemente, os lucros advindos de novos produtos impulsionaram essa busca pelo inovador. E foi a partir da aliança entre industrialização e pesquisa que a área de saúde se desenvolveu principalmente no que tange à esfera de medicamentos. Não há dúvidas acerca dos benefícios advindos com a produção industrial de medicamentos. Contudo, com essa “massificação”, os riscos também se fazem presentes. Riscos estes não somente associados ao consumo inadequado, mas também relacionados a uma maior probabilidade de falhas durante o processo de produção e/ou desenvolvimento. E assim, paralelamente à industrialização de fármacos, inúmeros escândalos envolvendo erros de fabricação e no controle da qualidade de medicamentos vieram à tona. KAWANO e colaboradores (2006) destacam alguns desses erros. O primeiro deles relaciona-se à troca de excipientes no elixir de sulfanilamida, em 1937, o qual ocasionou a morte de 100 crianças nos Estados Unidos. Posteriormente, destacam outro fato ocorrido no mesmo país, em 1958, que envolveu uma contaminação cruzada de tabletes vitamínicos de uso pediátrico contaminados com estrógeno, o qual ocasionou o aparecimento de caracteres sexuais secundários em crianças. Fato esse observado também em 1962, quando tabletes pediátricos de isoniazida foram contaminados com dietilbestrol. Os autores também apresentam um surto de salmonelose ocorrido em Estocolmo. Cerca de 240 pacientes medicados com comprimidos utilizados para tratar hipertireodismo, 5 foram infectados por dois tipos de salmonelas, a S. muenchen e a S. bareilly. Investigações realizadas indicaram que a fonte de contaminação havia sido a matéria-prima utilizada no fabrico dos comprimidos, a qual continha uma quantidade de acima do permitido de bactérias por grama, sendo a maior parte delas da flora fecal. Ainda na Europa, os mesmos pesquisadores destacam que no ano de 1988, foram diagnosticados 40 casos de conjuntivite hemorrágica decorrentes do uso de uma solução de lente de contato fabricada em condições inadequadas. (KAWANO et. al.2006). No Brasil, assim como em outros países, a história da indústria farmacêutica também apresenta alguns episódios envolvendo produção e qualidade no fabrico de produtos. Destacam-se os casos do contraceptivo oral Microvlar® e do medicamento Celobar®, um contraste usado em exames radiológicos, o qual levou a óbito 20 pacientes em Goiânia (TUBINO e SIMONI, 2007). 2.3. Qualidade total e a produção de medicamento. Segundo Cassiani (2005), cerca de 88% dos pacientes que procuram os serviços profissionais médicos recebem prescrições de medicamentos. No Brasil, estes ocupam, portanto um lugar de destaque no sistema de saúde. Contudo, para que o uso de medicamentos seja considerado uma alternativa efetiva, presume-se que além da utilização orientada, pressupõe-se que eles cumpram com critérios mínimos de qualidade. O conceito de qualidade envolve não somente o conjunto de propriedades e características de um produto que lhe fornece a capacidade de satisfazer as necessidades implícitas e explícitas do seu uso, como descrito por Conte e Durski (2002). MARTINEZ (2007) amplia tal conceito ao defini-lo como “a totalidade das características de uma entidade que lhe confere a capacidade de satisfazer necessidades explícitas e implícitas dos clientes”, sendo a qualidade total “um estado ótimo de eficiência e eficácia na ação de todos os elementos que constituem a existência da empresa”. E é frente a importância da manutenção da qualidade e de um programa que a garanta tanto nos produtos, quanto nos serviços, que as indústrias do ramo farmacêutico sustentam o pilar da qualidade para zelar pelos seus nomes e reputações e não apenas vender medicamentos.2.4. Histórico das Boas Práticas de Fabricação (BPF): evolução na legislação brasileira. 6 Como já foi mencionado anteriormente, a qualidade é indispensável na manufatura de produtos relacionados à saúde. Consolidada por meio de uma regulamentação robusta, ela estabelece um padrão que oferece segurança aos consumidores finais. O marco referencial para a implementação de padrões adequados de qualidade de medicamentos e produtos para a saúde foram os acordos estabelecidos pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Ao determinar que os países membros devessem implementar sistemas de controle que assegurassem a segurança e a qualidade de todos os produtos destinados à exportação, a OMC contribui para o surgimento e estabelecimento das BPF (SANTICH et. al. 1994) Um dos primeiros sinais da implementação das BPF no mundo ocorreu em 1963, quando os Estados Unidos publica as suas Good Manufacturing Pratices (GMP). Elas se consistituiam de recomendações para a prática de processos de controle de qualidade e foram incorporadas ao arcabouço legal após a sua publicação pelo o FDA, em 1973. Assim, a partir década de 70 se observa um desenvolvimento e estruturação das BPF em diversos países. Destaca-se como marco histórico a “28ª Assembléia Mundial de Saúde, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), realizada em maio de 1975 (WHA 28.65). Nela foi aprovado o texto ‘Guia de Boas Práticas de Fabricação para a Indústria Farmacêutica’ que, posteriormente, em 1992, teve a incorporação do conceito de validação aos seus princípios gerais. Baseado nesse “Guia”, a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) adotou as mesmas recomendações e editou a Portaria nº 16/SVS/MS, em 6 de março de 1995 (DOU de 9/3/1995). Em seu escopo, era apresentada uma versão nacional de BPF para as indústrias farmacêuticas locais, sendo essa, considerada o marco regulatório das BPF no Brasil. Em 1997, mais três Portarias relacionadas ao tema foram publicadas. A saber: • Portaria Federal 348/97, que trata das BPF e Controle para produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes. • Portaria SVS/MS 327/97, que trata das BPF e Controle para estabelecimentos produtores de saneantes domissanitários. • Portaria SVS/MS 326/97, que trata das BPF para estabelecimentos produtores e industrializadores de alimentos. Posteriormente, em 1999, a criação da ANVISA impulsionou uma nova dinâmica para saúde no Brasil uma vez que essa autarquia começou a regular e fiscalizar todos os 7 setores diretamente relacionados à saúde no país, especialmente as indústrias farmacêuticas e se seus processos. A idéia era colocar as indústrias locais em consonância com o ambiente regulatório mundial, atribuindo-lhes a responsabilidade de controle de qualidade de seus produtos e cumprimento das BPF por meio da criação e execução de regulamentações, bem como através da prática constante da fiscalização aliada ao poder de polícia que a mesma tem. Sendo assim, a publicação da RDC nº 134/2001 apresentou ao setor regulado o Regulamento Técnico das Boas Práticas para a Fabricação de Medicamento, o qual incorporava os princípios contidos no documento da OMS, revisto em 1992 e determinava o cumprimento das suas diretrizes a todos os fabricantes de medicamentos comercializados/distribuídos no Brasil. (BRASIL, 2001). Posteriormente, em 2003, foi publicada a RDC 210. Esta, além de aprovar e atualizar as BPF, apresentou a Classificação e os Critérios de Avaliação dos itens constantes do “Roteiro de Inspeção para Empresas Fabricantes de Medicamentos”, com base no risco potencial de qualidade e segurança inerentes aos processos produtivos de medicamento. Ou seja, determinou em seu Guia as exigências mínimas para validação de processos, procedimentos de limpeza, metodologia analítica e qualificação de fornecedores. Nos anos subsequentes, outras Resoluções complementares foram publicadas. Destaca-se aqui: a RDC 249/2005, que dispõe sobre o Regulamento Técnico das Boas Práticas de Fabricação de Produtos Intermediários e Insumos Farmacêuticos Ativos; a RDC 204/2006, que dispõe sobre o Regulamento Técnico de Boas Práticas de Distribuição e Fracionamento de Insumos Farmacêuticos, e a RDC 67/2007, que dispõe acerca das Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e Oficinais para Uso Humano em farmácias. Atualmente, a legislação vigente é a RDC nº 17/ 2010, que além de ter incorporado em sua abrangência os medicamentos destinados a ensaios clínicos, alterou e agregou outros temas ao texto da RDC 210/03, a começar pelo objetivo. Pela nova norma, o cumprimento das BPF é padronizado de uma maneira mais completa e se encontra no escopo instituído pelo MERCOSUL Ressalta-se também que, em relação às definições, a norma incluiu algumas e excluiu outras, além de estar estruturada de uma maneira muito mais objetiva, sem depender previamente de um glossário, como ocorria na RDC 210/03. 8 A RDC 17/10, apesar do rigor sanitário, mostra-se mais flexível ao fabricante, no que se refere ao controle de qualidade de processos e métodos. Ela permite ao fabricante a adoção de medidas alternativas, desde que sejam por ele validadas e assegurem a qualidade do medicamento. Essa alteração é considerada vantajosa, visto que permite o acompanhamento do controle de processos considerando a possibilidade de avanços tecnológicos no setor e o atendimento a determinadas peculiaridades de medicamentos específicos. Como exemplo, pode-se citar as determinações previstas no controle do fabrico de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. No que se refere à Garantia de Qualidade Assegurada na Fabricação de Medicamentos, a RDC 17/10 endossa o que foi publicado na RDC 210/03 e contempla mais três requisitos, dispostos no art. 11. São eles: o relato, a investigação e o registro dos desvios; a implementação de um sistema de controle de mudanças e a condução de avaliações regulares da qualidade de medicamentos, com o objetivo de verificar a consistência do processo e assegurar sua melhoria contínua. A abordagem feita pela RDC 210/03 para os tópicos de Qualificação e Validação foi atualizada pela permissão do uso de sistemas computadorizados. A nova RDC define ainda, a necessidade da análise prévia da legislação vigente, quando o recolhimento de produtos com desvio estiver em pauta, enquanto a RDC 210/03 não apontava tal obrigatoriedade. Relativo às auto-inspeções, a RDC 17/10 incluiu mais itens obrigatórios para a realização de auto-inspeções, a saber: vestiários, armazenamento de produtos intermediários, bem como institui sistemas computadorizados relativos às BPF e ao transporte de medicamentos intermediários. Destaca-se que ao invés de utilizar o termo “descarte de resíduos”, previsto na RDC 210/03, ela apresenta “gerenciamento de resíduos”. As atividades realizadas pelo pessoal chave, dispostas na antiga RDC foram acrescidas de mais algumas, são elas: controles em processo e o estabelecimento e monitoramento das condições de higiene. Contudo, enquanto a RDC 210/03 não especifica os campos de conhecimento exigidos e necessários para a execução das atividades de produção exercidas pelo “Pessoal Chave”, a RDC 17/10 os define de forma mais completa. A atual regulamentação também inova ao discorrer acerca dos equipamentos utilizados nos processos de produção, inclusive em relação à limpezae diminuição das contaminações cruzadas e microbianas durante a produção. 9 Os ensaios necessários para matérias-primas e materiais de embalagem também sofreram alterações, destacando-se nesse caso, o art. 300° que exclui a possibilidade desses produtos poderem ser reprocessados. Em contrapartida, a nova Resolução não exige que os livros de registro diários sejam mantidos ao lado dos principais equipamentos, como era exigido na anterior. Destaca-se também a ampliação do conceito de materiais, definido pelo art. 153, o qual inclui gases, materiais auxiliares ao processo e os materiais de rotulagem, além de outros não contemplados na RDC 210/10. Outra mudança de grande impacto sanitário refere-se aos procedimentos realizados com produtos recolhidos do mercado. Segundo a RDC 210/03, estes deveriam ser identificados e armazenados separadamente em área segura até que se definisse o seu destino. No entanto, a RDC 17/10 determina a sua destruição imediata, salvaguardando aqueles que com possibilidade de “correção”, desde que este procedimento não comprometa a qualidade final do produto. Observa-se que a RDC 210/03 não discorria sobre a necessidade de estabelecimento de um Procedimento Operacional Padrão (POP) específico para assegurar a rastreabilidade de lotes. Contudo a RDC 17/10 o torna obrigatório, possibilitando a rastreabilidade em todas as etapas de produção. No que tange a esfera das Boas Práticas de Controle de Qualidade, a RDC 17/10 prevê a garantia de rotulagem correta dos reagentes padrões e outras matérias de sua utilização, estando estas atividades em conformidade com procedimentos escritos. A RDC 210/03 previa o mesmo, só que restringia tal procedimento apenas aos recipientes de materiais e produtos. Nesse mesmo tema, deixou-se de exigir o disposto no item 3.4 da RDC 210/03 e acrescentou o art. 292, que prevê a investigação de materiais ou produtos que apresentam resultados fora das especificações durante o controle de qualidade. O Título III – Produtos Estéreis – da RDC 17/10 altera o antigo texto, acrescentando algumas exigências e excluindo outras. O novo texto aborda com maior detalhamento as atividades envolvidas na produção e no controle da qualidade de produtos estéreis, tais como: sanitização, boas práticas de controle de qualidade, fabrico de preparações estéreis, preparação asséptica (extensa alteração), produtos esterilizados terminalmente, a produção (o item 17.10.6 da antiga Resolução não é mais exigido) e, por fim, os diversos tipos de esterilizações (por calor, por calor seco, gases e fumigantes, etc.). Entre as mudanças, destaca-se a Esterilização, não apenas pela função que pode assegurar 10 a qualidade e evitar maiores danos à saúde, mas por tornar-se mais completa e restritiva, aumentando a segurança oferecida. Segundo o art. 352, por exemplo, passa a ser exigido o estabelecimento de meios com os quais é feita a esterilização, sendo que estes devem ter eficácia e adequabilidade comprovadas. Instalações, Equipamentos, Finalização de Etapas de Fabricação e Tecnologia de Isoladores são os novos itens incluídos na RDC 17/10. Aos produtos biológicos acrescentaram-se dois tipos de produtos: os alergênicos e os produtos de fermentação (incluindo produtos derivados do DNA), excluindo-se a denominação prévia feita aos produtos de biotecnologia. Mantendo um rigor sanitário adequado, a RDC 17/10 deixou de prever um grande número de exigências publicadas na RDC 210/03, simplificando-as. Contudo, exigências adicionais foram incluídas, como por exemplo, a exigência da imunização por vacinas específicas e o controle de doenças infecto-contagiosas ao pessoal envolvido direta ou indiretamente na manutenção e controle de biotérios, os quais anteriormente eram exigidos apenas para o pessoal envolvido na produção. Outra exigência incluída foi a determinação de que o ar das áreas contaminadas com microorganismos patógenos não deveria ser recirculado. Inclui-se ainda no escopo da RDC 17/10 três novos itens até então carentes de uma regulamentação consistente. A saber: Água para Uso Farmacêutico (Título VI), Sistemas de Informação Computadorizados (Título VII) e Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos Fitoterápicos (Título VIII). Em suma, as mudanças na regulamentação das BPF trazidas pela publicação da RDC 17/10 foram substanciais, uma vez que ela é muito mais abrangente, completa, dinâmica e, apesar da extensão, mais simples. A forma como a referida norma foi estruturada facilita o entendimento do leitor, minimizando erros de interpretação. 2.5. Impacto na implementação das BPF no mercado nacional. A busca pela qualidade dos medicamentos comercializados no mercado nacional, incentivada pelo governo brasileiro, otimizou a evolução das BPF. A inclusão da filosofia da qualidade foi de extrema importância para que garantisse à população acesso a medicamentos “confiáveis”. Dessa forma, a implementação das BPF é considerada uma ferramenta importante para que os medicamentos distribuídos pelo SUS cumpram os requerimentos de qualidade, segurança e eficácia preconizados pela OMS. 11 No Brasil, a consolidação das BPF que houvesse uma tentativa de padronização no processo de produção de medicamentos, mesmo que estes fossem produzidos por diferentes empresas, o que contribui para uma competitividade “mais justa” entre as diversas empresas do setor. Considerando que em termos de qualidade, os produtos nacionais ou multinacionais, passaram a ser equivalentes era possível vislumbrar uma queda nos preços praticados, beneficiando assim o consumidor. Nesse contexto, cabe citar o processo de globalização como um fator contribuinte para a adoção e implementação das BPF pelas indústrias locais. É indiscutível que a participação das multinacionais no mercado brasileiro impulsionou a competitividade e a necessidade de fabricação de medicamentos por meio de processos mais rigorosos e que, consequentemente fossem dotados de mais qualidade e menos riscos à saúde. Tal fato, por sua vez, impactou no comércio exterior, uma vez que as BPF e a adoção de certificados de conformidade servem de padrão para membros de um bloco econômico avaliar a qualidade dos produtos relacionados à saúde de outro membro (FARIAS FILHO et. al., 1999). Também é inquestionável que a implementação obrigatória das BPF impulsionou as indústrias locais a investirem em tecnologia relacionada ao controle de processos, os quais deveriam, por sua vez, assegurar a qualidade de seus medicamentos. O reflexo de tal mudança foi a implementação de práticas de auto-inspeção (inspeção voluntária), nas quais as próprias indústrias criaram as gerências de Qualidade Total/Garantia da Qualidade responsáveis pela auto-avaliação e adequação de todos os setores às regulamentações vigentes. (FARIAS FILHO et. al., 1999). Portanto, a concretização das BPF no mercado brasileiro permitiu não somente a padronização da produção de medicamentos, mas, indubitavelmente proporcionou um aumento na segurança de seu fabrico, minimizou os erros comumente observados durante algumas etapas da produção, reduziu o desperdício e acirrou a competitividade entre os fabricantes, o que consequentemente, influenciou na queda de preços (FARIAS FILHO et. al., 1999). Por conseguinte, um dos impactos mais relevantes da implementação das BPF foi o crescimento substancial na qualidade do medicamento que chega às mãos do consumidor.Ou seja, indiretamente, o real impacto encontra-se na melhoria da saúde da população brasileira. 3. Conclusão. 12 A importância da implementação das BPF e os seus benefícios são perceptíveis no cotidiano daqueles que lidam e/ou dependem de medicamentos. Os benefícios decorrentes da sua implementação e consolidação se refletem na qualidade e variabilidade dos medicamentos disponibilizados no mercado, o que contribui significativamente para o sucesso terapêutico determinado pelos programas governamentais, tais como o Farmácia Popular. Por outro lado, os produtores de medicamentos se beneficiam não somente pela simples satisfação do consumidor. Os gastos inicialmente alocados para a implementação e controle da qualidade de seus produtos também se diluem no retorno proveniente da redução do desperdício durante o fabrico de medicamentos. Por fim, os órgãos governamentais, ao modernizarem as suas ferramentas regulatórias, consolidam a sua responsabilidade com a saúde da população. Portanto, o zelo pela qualidade nunca se tornará algo que possa se exceder ou ser considerado fatídico. Pelo contrário. A qualidade na produção de medicamentos pode se tornar um diferencial e promover empresas e pessoas, levando-as a um patamar mais elevado. Qualidade gera satisfação, e satisfação gera bem-estar social. 4. Referências Bibliográficas. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. BRASIL, LEI Nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras providências. BRASIL, LEI Nº 8.080 de 19 de Setembro de 1990. Condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. BRASIL, Política Nacional de Medicamentos, Portaria nº 3916/GM em 30 de outubro de 1998. BRASIL, Portaria SVS/MS nº 16, de 6 de março de 1995. Determina a todos os estabelecimentos produtores de medicamentos, o cumprimento das diretrizes estabelecidas 13 pelo "GUIA DE BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO PARA INDÚSTRIAS FARMACÊUTICAS". BRASIL, Portaria nº 184 de 03 de Fevereiro de 2011. Dispõe sobre o programa Farmácia Popular do Brasil. BRASIL, Portaria nº 204/GM de 29 de Janeiro de 2007. Regulamenta o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e serviços da saúde, na forma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento e controle. BRASIL, RDC 17 de 16 de Abril de 2010. Dispõe sobre Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. BRASIL, RDC 134 de 13 de Julho de 2001. Dispõe sobre Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. (revogada) BRASIL, RDC 210 de 04 de Agosto de 2003. Dispõe sobre Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. (revogada) CASSIANI, S. H. B.; A segurança do paciente e o paradoxo no uso de medicamentos. Rev. bras. enferm. vol.58 no.1 Brasília Jan./Feb. 2005. CONTE, A. L.; DURSKI, G. R.; Coleção Gestão Empresarial, v.2 cap.5: Qualidade. FAE Business School, Gazeta do Povo. Editora RPC. Curitiba, 2002. FARIAS FILHO, J. R. ; ROSENBERG, G. ; QUELHAS, O. L. G. . O Processo de Certificação de Conformidade para a Indústria Farmacêutica: uma proposição. XIX Encontro Nacional de Engenharia de Produção, 1999, Rio de Janeiro, 1999. v. 1. GALLO, E.; LUCHESI, G.; FILHO, N. M.; RIBEIRO, P.T. Reforma Sanitária: uma análise de viabilidade. Cad. Saúde Pública vol.4 nº.4 Rio de Janeiro Out./Dez. 1988. 14 HUNT, P.; KHOSLA, R. Acesso a medicamentos como um direito humano. Sur, Rev. int. direitos human. vol.5 nº8 São Paulo Junho 2008 KAWANO, D. 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