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MARCELLI, Daniel. Infância e Psicopatologia. Porto Alegre: Artmed, 2009. Cap. 2 - O Normal e o Patológico A questão de ser normal ou patológico é mais preocupante para o filósofo do que para o médico, já que este se preocupa apenas com o que pode ou não fazer por seu paciente. O psiquiatra deve levar em conta os problemas éticos, culturais, sociais e políticos, do paciente. O psiquiatra da infância, além de tudo isso, deve se preocupar com o crescimento da criança e o lugar que ela ocupa na família e na sociedade. Como não é a criança quem solicita o exame do psiquiatra, os critérios de normalidade não podem ser limitados sobre o motivo da solicitação do exame, muito menos se resumir a uma simples grade de decodificação sintomática. Não se pode definir normalidade sem uma patologia, e vice-versa, da mesma forma que não se define saúde sem a doença. Dessa forma, normalidade pode ser vista como saúde, como o ideal ou capacidade de retorno ao equilíbrio. Não podemos reduzir a doença simplesmente nos sintomas, ela deve ser interrompida com o intuito de recuperar a saúde, se aproximando da normalidade. Tudo que foge da média é tachado de anormal ou anomalia, como por exemplo, uma pessoa superdotada intelectualmente ou uma pessoa de baixa estatura. Por isso que na psiquiatria, a cultura é levada em consideração, pois, algo que foge da normalidade cultural é considerada como algo anormal, mesmo que muitas vezes não seja. Como se pode observar, não existe uma definição simples do normal, pois o normal e o patológico são muito dependentes um do outro. Diante disso, o médico enfrenta diversos dilemas, especialmente ao lidar com crianças. Para avaliar a normalidade e a patologia, é preciso reconhecer o sintoma, avaliar seu peso e sua função dinâmica, tentando situar seu lugar dentro da estrutura, e por fim, examinar essa estrutura no quadro da evolução genética e dentro do ambiente. A primeira preocupação é avaliar o caráter patológico ou normal de uma conduta incomum do indivíduo. Para isso, deve-se introduzir no campo do funcionamento mental, uma solução de continuidade que, desde Freud, não existe. O médico irá observar dois tipos de condutas no indivíduo: o primeiro se caracteriza como condutas sintomáticas próprias do âmbito patológico, e o segundo como condutas existenciais próprias da normalidade. Depois, deve-se acrescentar uma avaliação dinâmica e econômica. Dinâmica para avaliar a eficácia com que a conduta sintomática liga a angústia conflituosa, autorizando o prosseguimento do movimento maturativo, ou mostrando-se eficaz para ligar essa angústia que ressurge sem cessar, provocando novas condutas sintomáticas e entravando o movimento maturativo. E econômico para avaliar em que medida o paciente foi parcialmente amputado de suas funções pelo compromisso sintomático, ou em que medida ele pode reintroduzir essa conduta em seu potencial de interesses ou de investimentos diversos. Levantamentos epidemiológicos sistemáticos revelam que a ausência de sintomas em uma criança é uma eventualidade rara. Entretanto, algumas crianças crescem sem apresentar sintomas, logo, não são tratadas. Freud foi um dos primeiros a mostrar que a conduta do ‘insensato’ era tão carregada de sentido quanto a do indivíduo sadio. Ele introduziu uma linha divisória entre os indivíduos que apresentavam uma organização mental de tipo psicótico e os que tinham uma estrutura neurótica, não em função do significado de sua conduta, mas em função da eficácia da psicanálise. Para Freud, a única diferença entre o indivíduo neurótico sadio e o indivíduo neurótico doente reside na intensidade das pulsões, do conflito e das defesas, intensidade que se constata nos pontos de fixação neuróticos e na relativa rigidez das defesas. A compulsão de repetição, característica essencial do neurótico doente, representa o elemento de morbidade mais distintivo: a definição da normalidade como processo adaptativo aplica-se relativamente bem a esse quadro, e a saúde pode ser definida como a capacidade de utilizar a gama mais ampla possível de mecanismos psíquicos em função das necessidades. Ou seja, a única diferença é quantitativa: a intensidade das pulsões agressivas pode efetivamente provocar uma angústia tal que a evolução maturativa é bloqueada. A definição de estrutura mental de uma criança é cheia de incertezas. Logo, a delimitação de condutas patológicas é mais aleatória, e as ligações possíveis entre diversas condutas sempre parecem mais fracas que na patologia adulta. O crescimento e a tendência à progressão constituem o pano de fundo em constante mutação ao qual o psiquismo da criança deve se adaptar. Os processos de maturação são os fatores internos que presidem o crescimento. Além dos fatores de crescimento, há aqueles como as forças progressivas do desenvolvimento, como a criança que procura imitar o pai, os irmãos ou irmãs mais velhos, ou simplesmente os “grandes”. Os processos de desenvolvimento são interações entre a criança e o ambiente, e os fatores externos podem desempenhar um papel positivo ou negativo nesse crescimento. Na prática, não é fácil separar processos de maturação dos processos de desenvolvimento, devido a permanente repercussão mútua. Os processos de maturação não se desenvolvem de maneira regular e harmoniosa, sem choque e nem conflito. Os conflitos são inerentes ao desenvolvimento, que se trate de conflitos externos ou de conflitos internos. Só é possível examinar a capacidade de progressão que a conduta sintomática preserva e que autoriza a organização estrutural ou, seu poder de fixação e/ou de regressão sob uma perspectiva diacrônica. A intensidade e o caráter patogênico desses pontos de fixação e dessas regressões podem provocar distorções cada vez maiores no desenvolvimento. Anna Freud propõe como critério de apreciação do patológico o estudo da desarmonia entre as linhas de desenvolvimento: linha de desenvolvimento que vai do estado de dependência à autonomia afetiva e às relações de objeto de tipo adulto, linha de desenvolvimento da independência corporal, linha de desenvolvimento do corpo do brinquedo e do jogo ao trabalho, entre outras. A patologia pode nascer de uma desarmonia de nível maturativo entre essas linhas. A desarmonia constitui apenas um fator patogênico quando o desequilíbrio dentro de uma personalidade é exagerado. A simples existência de um desequilíbrio não é suficiente para definir o patológico. O desenvolvimento harmonioso representa mais um utopia, do que uma realidade clínica, e diante disso, não existe uma solução de continuidade entre uma desarmonia mínima, que permite a manutenção de um desenvolvimento satisfatório no quadro da normalidade, e uma desarmonia mais importante, que entrava o desenvolvimento e empurra a criança a um quadro patológico consolidado. Outra noção que se refere a um modelo ideal é a imaturidade. A partir dela, muitos casos clínicos sofrem isolados em bases etiopatogênicas muito diversas. A partir de sinais observados em EEG que, são agrupados sob o nome de “registro gráfico imaturo ou dismaturo”, pode-se indicar a situação da criança. A questão é saber qual o grau de correlação existente entre esses desvios eletroencefalográficos e a sintomatologia descrita com o nome de imaturidade. A imaturidade afetiva ou emocional remete a um conjunto de condutas marcadas, sobretudo pela dificuldade de controlar as emoções, sua intensidade e sua labilidade, a dificuldade de tolerar a frustração, a dependência afetiva, a necessidade de segurança, a sugestionabilidade, etc. A avaliação do normale do patológico no funcionamento de uma criança não poderia ignorar o contexto ambiental, parental, fraternal, escolar, residencial, amigável, religioso, entre outros. Várias condutas consideradas patológicas pelo meio se revelam como sinais de protesto sadio, ou como testemunhos da patologia do meio. Os critérios de avaliação aplicados à criança devem levar em conta o contexto em que a criança vive. A avaliação do efeito das condições externas na estrutura psicológico da criança não deve levar a supor que um sintoma possa responder de modo total e permanente a um simples condicionamento ou uma reação linear do tipo estímulo-resposta. É preciso avaliar o grau de interiorização dessa conduta e seu poder patogênico para a organização psíquica atual da criança. Querer definir em função do ambiente uma criança normal e uma criança patológica equivale a definir uma sociedade normal ou patológica, o que nos conduz às diversas definições possíveis da normalidade e ilustra também o risco de uma reflexão fechada em si mesma quando se aborda esse problema em um plano puramente teórico. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR SANT’ANA PSICOLOGIA JUSSARA PRADO RESUMO O Normal E O Patológico – Cap. 2. PONTA GROSSA 2014
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