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FACULDAE UNIÃO DE CAMPO MOURÃO – UNICAMPO PSICOLOGIA Jussara Prado ATOS OBSESSIVOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS CAMPO MOURÃO 2013 Atos Obsessivos e Práticas Religiosas No texto “Caráter e Erotismo Anal”, Freud distingue certos tipos de indivíduos que possuem determinados traços de caráter, onde em sua infância uma de suas funções corporais e um órgão está envolvido. Ele apresenta três características dessas pessoas: Ordem; Parcimônia e Obstinação. Cada uma delas abrange um pequeno grupo ou série de traços de caráter interligados. A Ordem abrange a noção de esmero individual como o escrúpulo no cumprimento de pequenos deveres e a fidedignidade. Seu contrário seria o descuido, a desordem. A Parcimônia pode parecer de forma exagerada como avareza. E a Obstinação pode transformar-se em rebeldia, à qual pode facilmente associar-se a cólera e os ímpetos vingativos, ou seja, agir de maneira excessiva à suas próprias convicções. A inferência de Freud é que na primeira infância, esses indivíduos dependeram um tempo relativamente longo para superar sua incontinência fecal infantil, e que na infância posterior sofrera falhas isoladas nessa função. Freud diz que a ‘excitação sexual’ recebe importantes contribuições das excitações periféricas de determinadas partes do corpo, ou seja, as zonas erógenas (os genitais, a boca, o ânus e a uretra). Entretanto, a quantidade de excitação que provêm dessas partes do corpo não possuem destino igual em todos os períodos da vida. Ou seja, só uma parcela dela é utilizada na vida sexual; outra parte é defletida dos fins sexuais e dirigida para outros, no qual Freud chama de ‘sublimação’. Durante o período de ‘latência sexual’ (final do quinto ano às primeiras manifestações da puberdade), criam-se na mente formações reativas, ou contraforças, como a vergonha, a repugnância e a moralidade. Erguem-se diques para opor-se às atividades posteriores dos instintos sexuais. Contudo, o erotismo anal é um dos componentes do instinto sexual que no decurso do desenvolvimento e de acordo com a educação que a nossa atual civilização exige, se tornarão inúteis para os fins sexuais. Resumindo, é plausível a suposição de que esses traços de caráter (ordem, parcimônia e obstinação), com frequência relevantes nos indivíduos que anteriormente eram anal-eróticos, sejam os primeiros e mais constantes resultados da sublimação do erotismo anal. A partir de alguma falha, trauma ou mau funcionamento ocasionado em algum momento dessa etapa de desenvolvimento, pode se desencadear uma futura obsessão no indivíduo que pode resultar em uma determinada maneira de agir, podendo ser considerada como ‘fora do normal’. Em seu texto Atos Obsessivos e Práticas Religiosas, Freud percebeu uma semelhança existente entre os atos obsessivos dos que sofriam de enfermidades venosas e as práticas pelas quais os crentes expressavam sua devoção. Essa semelhança não é apenas superficial, pois o insight da origem do cerimonial neurótico pode nos estimular a estabelecer deduções sobre os processos psicológicos da vida religiosa. As pessoas que praticam atos obsessivos ou cerimoniais pertencem à mesma classe das que sofrem de pensamento obsessivo (ideias, impulsos obsessivos e afins). Os cerimoniais neuróticos consistem em pequenas alterações em algumas ações cotidianas, sejam pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares. Além de não possuírem nenhum sentido. O próprio paciente não as julga, mas é incapaz de cessá-las, pois ao se afastar dessas cerimônias, surge uma ansiedade intolerável no indivíduo, que o obriga a melhorar sua omissão. O cerimonial é sempre executado como se existissem certas leis implícitas. Como por exemplo, um cerimonial relativo ao ato de deitar-se: a cadeira deve ficar numa determinada posição ao lado da cama, as roupas colocadas sobre a mesma numa determinada ordem, o cobertor preso embaixo do colchão e o lençol bem esticado, os travesseiros arrumados de maneira especial, e o corpo da pessoa deve adotar uma posição bem determinada. Só depois disso tudo ela poderá dormir. Em casos leves, o cerimonial parece ser nada mais do que a intensificação de hábitos ordeiros muito justificáveis; é a consciência especial que cerca sua execução e a ansiedade que surge com qualquer falha que lhe dão o caráter do ‘ato sagrado’. Em geral não conseguem suportar qualquer interrupção no cerimonial, sendo quase sempre realizado sem ter ninguém por perto. Toda atividade pode converter-se em um ato obsessivo. Além disso, o conteúdo do distúrbio abrange proibições e impedimentos, que na realidade apenas levam adiante o trabalho dos atos obsessivos, ou seja, o indivíduo veda algumas coisas a si mesmo, enquanto outras são permitidas apenas após a realização de um determinado cerimonial. As compulsões e as proibições são tão significativas que, inicialmente são aplicadas à atividades solitárias do sujeito, e por muito tempo não afetam seu comportamento social. Os que sofrem dessa condição são capazes de manter o seu mal como um assunto privado, mantendo-o em segredo por muito tempo. Para muitos, a ocultação se torna fácil quando são capazes de desempenhar seus deveres sociais durante parte do dia, desde que dediquem algumas horas à suas atividades secretas, longe de olhares. As semelhanças entre cerimoniais neuróticos e atos sagrados religiosos são: A negligência desses cerimoniais gera culpa ou escrúpulos de consciência; Na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na proibição de interrupções); E na extrema consciência com que são executados em todas as minúcias. As diferenças são óbvias, e algumas tão gritantes que tornam qualquer comparação um sacrilégio: A grande diversidade individual dos atos cerimoniais [neuróticos] em oposição ao caráter estereotipado dos rituais (as orações, o curvar-se para o leste, etc.); O caráter privado dos primeiros em oposição ao caráter público e comunitário das práticas religiosas; Enquanto todas as minúcias do cerimonial religioso são significativas e possuem um sentido simbólico, as dos neuróticos parecem tolas e absurdas. É Somente com a investigação psicanalítica que poderemos penetrar profundamente no verdadeiro significado dos atos obsessivos. No decorrer da terapia, dilui-se completamente o aspecto tolo e absurdo dos atos obsessivos, sendo explicada a razão de tal aspecto. Descobre-se que todos os detalhes dos atos obsessivos possuem um sentido, que servem a importantes interesses da personalidade, e que expressam experiências ainda atuantes e pensamentos que foram investidos com afeto (catexizados). Fazem isso de duas formas: por representação direta ou simbólica, podendo, consequentemente, ser interpretados histórica ou simbolicamente. O que é representado nos atos obsessivos e em cerimoniais deriva das experiências mais íntimas do paciente, principalmente das sexuais. Como por exemplo: uma mulher que estava vivendo separada do marido via-se sob a compulsão de deixar intacta a melhor porção de tudo aquilo que comia, só aproveitava as beiradas de uma fatia de carne assada. A explicação dessa renúncia foi encontrada por meio da data de sua origem. Ela surgiu no dia seguinte àquele em que se recusara a ter relações maritais com seu marido – isto é, após ter renunciado ao melhor. A mesma paciente só podia sentar-se em uma determinada cadeira, da qual se levantava com dificuldade. Devido a certos aspectos de sua vida de casada,a cadeira simbolizava o marido, a quem ela permanecia fiel. Essa mulher encontrou a explicação para sua compulsão na seguinte frase: “É tão difícil nos separarmos de alguma coisa (um marido, uma cadeira) a que já nos fixamos”. Nos atos obsessivos tudo tem sentido e pode ser interpretado, já que eles servem para expressar motivos e ideias inconscientes. Uma das condições da doença é o fato de que a pessoas obsessivas não compreendem o sentido daquilo que fazem. É somente através do tratamento psicanalítico que ela se tornará consciente do sentido do seu ato obsessivo e dos motivos que a compelem ao mesmo. Já o indivíduo religioso, executa o cerimonial sem ocupar-se de seu significado, embora os sacerdotes e os investigadores científicos estejam familiarizados com o significado, em grande parte simbólico, do ritual. Para os crentes, entretanto, os motivos que os impele às práticas religiosas são desconhecidos ou estão representados na consciência por outros que são desenvolvidos em seu lugar. Aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do qual, nada sabe, ou seja, um sentimento inconsciente de culpa. Esse sentimento origina-se de certos eventos mentais primitivos, constantemente revivido pelas repetidas tentações que resultavam de cada nova provocação. Além disso, acarreta um sentimento de ansiedade expectante, uma expectativa de infortúnio ligada, através da ideia de punição, à percepção interna a tentação. Quando o cerimonial é formado, o paciente ainda tem consciência de que deve fazer isso ou aquilo para evitar algum mal, e em geral a natureza desse mal que é esperado ainda é conhecida de sua consciência. O que já está oculto dele é a conexão entre a ocasião em que essa ansiedade expectante surge e o perigo que ela provoca. Assim o cerimonial surge com um ato de defesa ou de segurança, uma medida protetora. O sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos corresponde à convicção dos indivíduos piedosos de serem, no íntimo, apenas miseráveis pecadores; e as práticas devotas (orações, invocações) com que tais indivíduos precedem cada ato cotidiano, especialmente os empreendimentos não habituais, parecem ter o valor de medidas protetoras ou de defesa. Nos atos obsessivos, há sempre a repressão de um impulso instintual (um componente do instinto sexual) presente na constituição do sujeito e que pôde expressar-se durante algum tempo em sua infância, sucumbindo posteriormente à pressão. No decurso da repressão do instinto cria-se uma consciência especial, dirigida contra os objetivos do instinto; essa formação reativa psíquica sente-se insegura e constantemente ameaçada pelo instinto emboscado no inconsciente. A influência do instinto reprimido é sentida como uma tentação, e durante o próprio processo de repressão gera-se a ansiedade que adquire controle sobre o futuro, sob a forma de ansiedade expectante. O processo de repressão que acarreta a neurose obsessiva deve ser considerado como um conflito interminável, onde inúmeros esforços psíquicos são necessários para contrabalançar a pressão constante do instinto, que está constantemente sob a ameaça de um fracasso. Assim, os atos cerimoniais e obsessivos surgem, como uma proteção contra a tentação e, em parte, como proteção contra o mal esperado. Essas medidas de proteção logo parecem tornar-se insuficientes contra a tentação, surgindo então as proibições, cuja finalidade é manter à distância as situações que podem originar tentações. Um cerimonial é um conjunto de condições que devem ser preenchidas, da mesma forma que uma cerimônia matrimonial da Igreja significa para o crente uma permissão para desfrutar os prazeres sexuais, que de outra maneira seriam pecaminosos. Essas manifestações reproduzem uma parcela daquele mesmo prazer que pretendiam evitar, e servem ao instinto reprimido tanto quanto às instâncias que o estão reprimindo. Os atos que de inicio se destinavam principalmente a manter a defesa aproximam-se progressivamente dos atos proibidos pelos quais o instinto pôde expressar-se na infância. A formação de uma religião parece basear-se igualmente na repressão, na renúncia de certos impulsos instintuais. Entretanto, esses impulsos não são componentes exclusivamente do instinto sexual (como no caso das neuroses); são instintos egoístas, socialmente perigosos, embora geralmente abriguem um componente sexual. Afinal, o sentimento de culpa resultante de uma tentação contínua, e a ansiedade expectante sob a forma de temor da punição divina são familiares há mais tempo no campo da religião do que no da neurose. A omissão do instinto acaba que se tornando um processo inadequado e interminável. Na verdade, as recaídas totais no pecado são mais comuns entre os indivíduos piedosos do que entre os neuróticos, dando origem a uma nova forma de atividade religiosa: os atos de penitência, que têm seu correlato na neurose obsessiva. O simbolismo dos atos obsessivos resultam de um deslocamento, da substituição do elemento real e importante por um trivial – por exemplo, do marido pela cadeira. É essa tendência para o deslocamento que modifica progressivamente o quadro clínico, terminando por transformar um fato extremamente banal em algo de maior urgência e importância. No campo religioso existe uma tendência para o deslocamento de valores psíquicos, de forma que os cerimoniais triviais da prática religiosa adquirem um caráter essencial, tomando o lugar dos pensamentos fundamentais. Por isso é que as religiões sofrem reformas de caráter retroativo, que visam restabelecer o equilíbrio original dos valores. O caráter tranquilizador que os atos obsessivos possuem não é tão evidente nas práticas religiosas. Nelas, descobrimos esse aspecto das neuroses quando lembramos a frequência com que são cometidos, justamente em nome da religião e aparentemente por sua causa, todos os atos proibidos pela mesma – ou seja, as expressões dos instintos por ela reprimidos. Podemos nos atrever a considerar que a neurose obsessiva possui uma relação mútua com a patologia da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal. A semelhança reside na recusa implícita à ativação dos instintos existentes; e a diferença, na natureza desses instintos, que na neurose são exclusivamente sexuais em sua origem, enquanto na religião são de fontes egoístas. REFERÊNCIAS FREUD, Sigmund. “Gradiva” Jensen e outros Trabalhos (1906-1908). Vol. IX. Editora Imago. Rio de Janeiro, 1996.
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