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Além do didático: Os livros paradidáticos no ensino de química Prof. Jorge Machado (UFPA / Centro de Educação) Introdução Quando Paracelso (1492 - xxxx) (que de fato chamava-se Philiphus Auréolos Teophrastus Bombastus von Hochenheim) quis manifestar enfaticamente o fato de que estava além de Celso (um grande médico de sua época), e que portanto, era melhor do que este, denominou-se Paracelso, que quer dizer justamente “além de Celso”. Para é uma expressão grega que significa “além” ou “adiante”. Seriam então os livros paradidáticos aqueles que estariam “além dos livros didáticos”? Seriam, portanto, os livros paradidáticos avanços capazes de ir além dos livros didáticos, no sentido de que possam de alguma forma contribuir para melhorias no processo ensino- aprendizagem em química? Surgidos no epicentro de convulsivas mudanças na produção de livros didáticos comerciais, os para didáticos tem a pretensão de tornarem-se festivas contribuições capazes de “incentivar o aluno ao estudo”, “contribuir para a contextualização e atualização dos conteúdos” e, ainda, “tornar lúdico o aprendizado”. Sem assumir trincheiras a priori, sem avaliações precipitadas e superficiais, desconsiderando horrorosas formas de utilização desse material instrucional, é essencial debruçarmo-nos mais demoradamente sobre a questão do livro paradidático em busca de uma análise imparcial de suas vantagens e desvantagens quando devidamente utilizado. Antecedentes: o livro didático e o ensino de ciências O estudo realizado por Mortimer (1988) sobre os livros didáticos comerciais destinados ao ensino secundário e as considerações de Krasilchik (1987) sobre a evolução no ensino das ciências no período 1950-1985 permitirão, por extensão, estabelecermos uma breve pré-história da evolução dos livros paradidáticos, utilíssima para a compreensão do quadro que hoje se delineia. Para Mortimer (1988), os livros didáticos comerciais da atualidade (ou, pelo menos, dos anos finais da década de 80) podem ser caracterizados pelo seguinte perfil genérico: 1. São em geral cópias uns dos outros, desatualizados e refratários a inovações metodológicas; 2. Valorizam mais a forma do que o conteúdo, caprichando na apresentação gráfica, capas coloridas, muitas ilustrações e o predomínio da imagem sobre o texto; 3. São o resultado de maciços investimentos de grandes empresas comerciais visando o lucro, em um mercado massificado, competitivo e altamente rentável, uma vez que educação no Brasil é mercadoria de elevado valor; 4. Apresentam projetos de leitura prontos para os alunos, que dessa forma ficam dispensados de criar seu próprio projeto de leitura, entregando-se à exaustiva reprodução de fórmulas prontas que inibem o pensamento criativo e a imaginação; 5. Metodologicamente, são inadequados para o ensino de ciências, uma vez que a mera exposição de informações já se revelou insuficiente para, efetivamente, a construção do conhecimento científico e o exercício do método peculiar à ciência. Mas, então os livros didáticos comerciais não tem nenhuma virtude? Tem sim! Ainda segundo Mortimer, são verdadeiras aulas expositivas impressas, instrumento eficientes para o trabalho docente de um professor sobrecarregado (de alunos e de trabalho), mal formado, mal pago e sem tempo para uma reflexão consistente sobre sua prática; professor, enfim, mais preocupado com a tarefa que tem a cumprir do que propriamente com a qualidade do resultado dessa tarefa. Não que essa alienação quase que obrigatória seja sua opção preferencial... Essa massificação do livro didático coincide, não por acaso, com a decadência do ofício docente, pois, como lembra Krsilchik (1987), “(nos anos 70) ...uma anomalia já de longa data instalada no sistema, os ‘cursinhos’ preparatórios para o exame vestibular começam a se ampliar e passam a oferecer cursos regulares de primeiro e segundo graus, mantendo as suas características de escola preocupada apenas com a transmissão de informações e reforçando o ensino, como exigiam as provas para a entrada na universidade. Então, se em um plano havia esforços para mudanças, em outro esse esforço fora anulado por forças mais poderosas: a legislação em vigor, os precários cursos de formação de professores que colocavam no mercado profissionais despreparados e incompetentes. Estes, por sua vez, dependiam de livros-texto, em sua maioria de má qualidade, pois deveriam servir para suprir a incapacidade dos docentes, assim como suas péssimas condições de trabalho. O livro passou a ser uma peça de importância central, impondo-se o modelo chamado de estudo dirigido, termo mal aplicado a exercícios, em geral compostos por questões de múltipla escolha que dependiam apenas da leitura ou, mais raramente, questões dissertativas que requeriam transcrição literal do texto.” Como fazer um paradidático Nos anos 90, com a falta de atrativos do livro didático comercial, com seu fracasso em tornarem-se lidos prazerosamente, mesmo com todos os truques gráficos disponíveis e até com a oferta de disquetes, CD-rom ou fitas de vídeo, tornou-se necessário o surgimento de um novo recurso, capaz de ser lido com prazer, contextualizar o conhecimento, “falar diretamente ao jovem”, e outros dentre esses objetivos tão destacados que, juram as editoras, seriam reserva exclusiva dos livros paradidáticos. Assim, com o fracasso dos livros didáticos em seduzir o leitor, que passemos adiante e adotemos os livros paradidáticos. Senhores autores, querem uma fórmula? Vejamos... Para falar de reprodução humana, por exemplo, que tal uma historinha? Certo mês, a menstruação de Mariana atrasa. Ela, apavorada, procura o namorado, Paulinho, que trabalha numa oficina mecânica envenenando motos de competição. Os dois vão à casa da Luciana, uma professora muito moderninha que lhes dá fantásticas aulas sobre reprodução humana, planejamento familiar, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e, afinal, sugere um teste de gravidez, já que a suspensão da menstruação nem sempre é sinal de gravidez. O teste dá negativo e todos vivem felizes para sempre... Será uma história fantasticamente atual e dentro do contexto da adolescência... Sem falar que esse enredo assemelha-se ao de certos programas de televisão vespertinos que, dentre outras coisas, pregam o amor livre entre adolescentes (amor livre uma ova, chega de eufemismos, o sexo livre, sem papas na língua, apenas com línguas nas línguas), vale destacar o caráter absolutamente positivista dessas historinhas, que tornam o mundo adolescente tão cor-de-rosa quanto inverossímil. Quer ser interdisciplinar e ensinar física, geometria, química e biologia? Bruno viaja de avião nas férias para fazenda do seu avô, que fica no Mato Grosso. Viaja com Firmino, o piloto. O avião cai e eles são resgatados por guerreiros de uma misteriosa tribo que vive numa aldeia com pirâmides de pedra onde adoram gatos siameses de jade e praticam a galvanoplastia. Essa tribo é constantemente ameaçada por lagartos pré-históricos gigantes que vivem num lugar cuja absoluta estabilidade conseguiu deter a evolução. Faltam apenas o doutor Benton Quest, Hadji e Bandit para termos uma maravilhosa aventura, que os saudosistas lembrariam com nostalgia: sessões vespertinas em preto e branco num antigo aparelho de TV... O tratamento gráfico é outro espetáculo. Infográficos (que meu processador de textos grifa desesperadamente como palavra desconhecida), fotos, desenhos, esquemas e um tantinho assim de texto (bem hollywoodiano, por sinal), mas nem assim os garotos atiram-se com deleite à leitura desses livros. Não fosse o professor determinar que aquela leitura vale metade da avaliação do bimestre...Talvez nunca vejamos um guri chegar numa livraria e pedir o mais recente paradidático, aquele com as aventuras de dois garotos e seus professores no fundo do mar... Será sempre a mãe a comprar, essa eterna atormentada com as notas do boletim do filho e o carnê de pagamentos da mensalidade escolar... Chegamos, portanto, a uma situação limite que aponta para a existência de dois extremos, tendo sempre uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do professor: de um lado, o completo desprezo pelos livros paradidáticos, já que os alunos somente os lêem porque são obrigados e jamais tiram real proveito do que lêem. Por outro lado, a entrega total aos paradidáticos, como tábua de salvação capaz de resgatar o prazer da leitura e o ensino de ciências como atividade prazerosa e gratificante, falando direto aos anseios e usando a linguagem do adolescente. Sem aderir a um maniqueísmo banal, sem atirar alunos e professores num homogêneo universo, é fundamental considerarmos alguns fatos. Primeiro, é importante questionarmos até onde o aprendizado de algo pode ser realmente prazeiroso. O velho Aristóteles já dizia que as raízes da educação são amargas. Doces são seus frutos. Atirar- se corajosamente sobre a teoria da relatividade exige tanto empenho, sacrifício e renúncia que fica difícil percebermos onde está o prazer nisso (a não ser que esteja em alguma forma de gozo intelectual somente acessível aos gênios, o que é, de qualquer maneira, incomum entre os pobres mortais). Ouvir falar em uma historinha de ficção científica que o tempo anda mais devagar dentro de uma nave espacial viajando com velocidade próxima à da luz pode ser interessante fonte de assunto para uma conversa de botequim ou, quem sabe, uma cantada na garota mais metida a intelectual do prédio, mas daí afirmar que isso motivará alguém a estudar a relatividade, vai uma grande distância. Tá certo, contemplar o maravilhoso pode realmente motivar alguém para uma carreira científica, mas isso não é exclusividade de livros paradidáticos. Ao observar a misteriosa insistência de uma bússola em apontar para os pólos terrestres, Einstein sentiu-se motivado a estudar ciência. E o livro que lhe abriu as portas da matemática foi a Geometria, de Euclides, que certamente não era um paradidático, se é que conhecemos o velho e rabugento Euclides, que dava murros na mesa, brigava com todos na ágora e vociferava palavrões quando vomitava vinho azedo na túnica... Em segundo lugar, talvez o problema não esteja nos livros didáticos nem nos paradidáticos. Citando Rubem Alves (1985) “Quem não é capaz de perceber e formular problemas com clareza não pode fazer ciência. Não é curioso que nossos processos de ensino de ciência se concentrem mais na capacidade do aluno para responder? Você já viu alguma prova ou exame em que o professor pedisse que o aluno formulasse o problema? O que se testa nos vestibulares, e o que os cursinhos ensinam, não é simplesmente a capacidade para dar respostas? Freqüentemente, fracassamos no ensino da ciência porque apresentamos soluções perfeitas para problemas que nunca chegaram a ser formulados e compreendidos pelo aluno.” E Rubem Alves prossegue, citando Polya (G. Polya, How to solve it, Garden City, Doubleday, 1957): “É tolo tentar responder uma questão que você não entende. É triste ter que trabalhar para um fim que você não deseja. Coisas tristes e tolas como estas freqüentemente acontecem, dentro e fora da escola, mas o professor deve evitar que ocorram em classe. O estudante deve entender o problema. Mas não basta que ele o entenda. É necessário que ele DESEJE a sua solução.” Em outras palavras, antes de discutir se os livros paradidáticos são melhores do que os didáticos para, por exemplo, contextualizar o conhecimento e permitir uma abordagem interdisciplinar da ciência, é importante discutir o próprio ensino de ciências. O que a ciência representa para os alunos? Ela é realmente necessária para eles? Eles desejam formular e resolver problemas científicos sob orientação de um professor? A natureza, origem e fim de todos os trabalhos científicos, que papel vem a ter nessas aulas tão artificiais, onde o professor determina que os alunos leiam um livro paradidático sobre eclipses solares sem se dar conta de que, no dia seguinte, no seu horário de aula, haverá um eclipse total do sol? Qual foi a última vez que os alunos olharam para o céu estrelado? Teriam formulado a mais vasta questão, aquela que pergunta ao céu noturno se estamos sozinhos no universo? Teriam eles observado que um comprimido efervescente reage mais depressa com água quente do que com água gelada? E teriam se perguntado a razão de tal fato? Mentes alertas, mentes observando os fenômenos naturais e fazendo perguntas constantemente... Discutir a capacidade que os livros paradidáticos possam ter para contextualizar o conhecimento e abordá-lo de forma interdisciplinar só tem sentido a partir do momento em que essas questões mais básicas são discutidas. Sem essas reflexões mais preliminares e absolutamente indispensáveis, corre-se o risco de aderir ao modismo, como tem geralmente ocorrido na história recente da educação brasileira. O estudo dirigido já foi mencionado. Houve o tempo da antena parabólica e do videocassete. Agora fala-se no computador... Modismos, modismos, tudo no mundo é frágil, tudo passa... Talvez afinal sobreviva o desejo ardente de saber motivado pela contemplação de uma realidade estranha e assustadora, ou do próprio corpo em transformação. Lembremos sempre daquele menino judeu que percebeu uma ordem oculta na natureza ao observar os movimentos de uma bússola e que foi, ele próprio, magnífico intérprete dessa ordem misteriosa e a tornou inteligível. Quantos meninos, hoje, estarão observando maravilhas em seu universo onde reina a imaginação? Quantos se calam diante dos professores de ciências, cuja argila de que são feitos já secou e sufocou o cientista menino que um dia habitou aquela maravilhosa massa impregnada da infinita plasticidade chamada juventude? Só encontrarão a sabedoria e o paraíso aqueles que souberem tornarem-se crianças novamente... Referências bibliográficas 1. Alves, Rubem. Filosofia da ciência. São Paulo, Brasiliense, 1985. 2. Krasilchik, Myriam. O professor e o currículo das ciências. São Paulo, EPU/EDUSP, 1987. 3. Mortimer, Eduardo Fleury. A evolução dos livros didáticos de química destinados ao ensino secundário. Em Aberto, Brasília, ano 7, n. 40. Out./dez. 1988.
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