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0 APOSTILA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL I Profa. Évelyn Cintra Araújo PUC GOIÁS - 2017 1 1 INTRODUÇÃO Se pudéssemos conceituar Direito diríamos que é “o conjunto das normas gerais e positivas que regulam a vida social”. Portanto, o principal objetivo do Direito é harmonizar as relações sociais intersubjetivas; é tornar possível a vida em sociedade, conferindo-lhe ordem (ubi jus ibi societas – não há direito sem sociedade) através de regras de conduta dotadas de coercibilidade. Estabelecido o direito objetivo, faz nascer, por outro lado, a prerrogativa ou a faculdade individual de exigir o cumprimento dos preceitos que lhe diga respeito. Portanto, se a norma diz que “todos são iguais”, surge para cada um o direito de ser tratado sem discriminação. Fala-se, então, em direito subjetivo. A facultas e a norma são os dois lados de um mesmo fenômeno: um é o aspecto individual, o outro o aspecto social. Qualquer direito pode ser apreciado pelo lado do indivíduo, que dele extrai uma segurança jurídica ou uma função, como pelo lado do agrupamento social, que institui uma regra de conduta. O direito subjetivo manifesta-se através de uma relação jurídica, a qual pressupõe um sujeito, que é o ser a quem a ordem jurídica assegura um poder ou um dever de agir; um objeto, que é o bem ou a vantagem sobre a qual o sujeito exerce tal poder ou dever; e um vínculo, que é o liame que une ambos os sujeitos ou partes entre si e estes com o objeto, formando a relação jurídica. A vida em sociedade produz uma série de relações, que, quando protegidas pela ordem jurídica, transformam-se em relações jurídicas, como o casamento, o emprego, o aluguel de um imóvel etc. Todas elas são motivadas pelo desejo de satisfazer um direito subjetivo1, ou seja, uma necessidade, um interesse (formar uma família, ganhar dinheiro, ter um lugar para morar etc). Quando isso ocorre fala-se em relação jurídica material. Mas pode acontecer que, numa relação jurídica material entre A e B, os interesses sejam opostos; por exemplo, A quer manter o casamento, mas B não. Surge, então, um conflito de interesses, ou seja, um “choque de duas ou mais vontades sobre o mesmo objeto”. Nesse momento, se A insiste em manter a sua posição, exigindo que B subordine ao seu interesse, surge o que chamamos de pretensão. Pretensão, portanto, é “a exigência de subordinação de um interesse alheio ao próprio.” Se B ceder, o conflito é resolvido pela satisfação da pretensão de A. Porém, se B resiste, nasce uma lide, que, no conceito brilhante de Carnellutti, nada mais é que “um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida”. 1 Para Ihering, direito subjetivo é o “o interesse juridicamente protegido”. 2 Nesse momento ENCERRA O PLANO DE DIREITO MATERIAL2... --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Acontece que, quando o Estado se estruturou e passou a dotar-se de maior poder, trouxe para si a responsabilidade de ditar a solução para os conflitos de interesses, proibindo qualquer espécie de justiça privada (atualmente, excepcionalmente, admite-se a autotutela, como o desforço imediato, a legítima defesa e a greve). O Estado assume, assim, o monopólio da JURISDIÇÃO (que significa dizer o direito no caso concreto), exercido precipuamente por um de seus poderes – o Poder Judiciário. Como conseqüência da previsão desse direito objetivo à jurisdição (aliás, consagrado a nível constitucional – art. 5º, inciso XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), ofertou-se ao indivíduo, que não podia mais realizar o seu interesse através da própria força, o poder, a prerrogativa, a faculdade, o direito subjetivo de bater às portas do Judiciário para exigir a solução do litígio que porventura pudesse estar envolvido. Tal direito subjetivo de provocar a jurisdição denominou-se direito de AÇÃO. Mas, como ele é exercido? O direito de ação é exercido através de um ato processual chamado demanda. Portanto, demanda é o ato processual pelo qual o autor exercita o direito de ação. Este ato materializa-se através de um instrumento denominado petição inicial. Mas, assim como se assegura ao autor o direito à tutela jurisdicional, o qual é exercido por meio do direito de ação, ao réu é garantido direito correlato, dando-lhe a chance de receber a prestação jurisdicional (direito à análise do mérito; de preferência, no sentido de improcedência do pedido do autor – tutela jurisdicional negativa). A este direito dá-se o nome de direito à defesa, previsto constitucionalmente no art. 5º, LV. O direito de defesa é exercido através de alguns atos, quais sejam, a contestação e a reconvenção, os quais se materializam também através de uma petição, que, por não mais ser inicial, é chamada genericamente de petição interlocutória. Oportunizado ao réu o direito de defesa, independentemente se ele o tenha exercido ou não através de quaisquer daqueles atos, tem-se por formado o PROCESSO completamente. Assim, o processo poder ser entendido como sendo a relação jurídica de direito público (processual) que une autor, juiz e réu, e que se exterioriza e se desenvolve pela seqüência ordenada de atos com vistas a um fim, qual seja, a sentença. 2 As leis classificam-se, quanto à sua natureza, em materiais ou substanciais (as que regulam o direito em si) e formais ou processuais (modo de realização da lei material - atos processuais). 3 O processo será civil (ou de natureza cível, como queira) se a lide posta em juízo se instaurou em virtude de qualquer ramo do direito que não seja trabalhista ou penal (que possuem processos próprios correlatos, a saber, processo do trabalho e processo penal), ou seja, em virtude de um direito pertencente ao Direito Civil, Empresarial, do Consumidor, Tributário etc. Para regular o processo, o Estado criou um conjunto de normas jurídicas que formam o chamado Direito Processual, também denominado de formal ou instrumental, por servir de forma ou instrumento de atuação da vontade concreta das leis de direito material ou substancial, que solucionarão as lides colocadas pelas partes em juízo. 1.1 Conceito de Direito Processual Civil A bem da verdade, Direito Processual é um só. A divisão em sub-ramos (Processo Civil, Processo Penal, Processo do Trabalho etc) e suas respectivas legislações são de ordem prática e didática, conforme a natureza da lide posta em juízo. Todavia, se pudéssemos individuar e conceituar, diríamos, com auxílio da doutrina mais robusta nessa matéria, que Direito Processual Civil é “o complexo de normas e princípios que regem o exercício conjunto da jurisdição pelo Estado, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO). Ou, ainda: “é o ramo da ciência jurídica que trata do complexo das normas reguladoras do exercício da jurisdição civil”. (AMARAL SANTOS). Por fim, uma das melhores conceituações é a trazida pelo processualista italiano Chiovenda, para quem o Direito Processual Civil é “o ramo da ciência jurídica que trata do complexo das normas reguladoras do exercício da jurisdição civil” (CHIOVENDA). É, portanto, ramo do direito público, não se confundindo com o direito material que instrumentaliza (este normalmente pertencente ao direito privado, p. ex., D. Civil), devendo, portanto, sempre ser afastada a denominação direito adjetivo, por aludir a uma relação de dependência do direito processualpara com o direito material, o que, na verdade, não existe. Enquanto o direito material cuida de estabelecer as normas que regulam as relações jurídicas entre os particulares, o direito processual visa regular uma das funções soberanas do Estado (função jurisdicional). Dessa forma, ainda que a lide seja eminentemente de interesse privado, há no processo sempre um interesse público, qual seja, a pacificação social e a manutenção da ordem jurídica. 4 1.2 Evolução Histórica do Direito Processual Civil A história do Direito Processual Civil processo se desenvolveu em 3 fases: imanentista, científica e instrumentalista. 1.2.1 IMANENTISTA (do Direito Romano até 1868) Também conhecida por fase civilista ou privatista, a fase imanentista surgiu no Direito Romano, tendo como principais expoentes Celso, Ulpiano e Savigny, e durou até meados de 1868. Durante toda a sua longa existência, o imanentismo foi “evoluindo”, razão pela qual pode ser melhor compreendido em sub-fases, quais sejam: a) primitiva ou das legis actiones (das ações da lei) => havia 5 ações da lei, as quais deviam ser manejadas pelas partes com muito rigor e formalismo, sob pena de perder a demanda caso se equivocasse em uma palavra ou gesto (não havia advogados). b) período formulário => com a expansão do Império Romano, o manejo das 5 ações da lei ficou limitado. O magistrado, agora, examinava a pretensão do autor e a defesa do réu, e concedia uma fórmula de ação capaz de compor especificamente o conflito (ele fixava o objeto do conflito, cabendo ao árbitro, escolhido entre os cidadãos, o julgamento da causa – semelhante ao instituto do Júri Popular). Já havia advogados e princípios do livre convencimento do juiz e do contraditório. c) fase da cognitio extraordinária => desaparecem os árbitros, surgindo a figura do juiz como o único investido do poder jurisdicional. O procedimento passa a ser eminentemente ESCRITO, compreendendo desde o pedido do autor até a sentença e sua execução. Porém, com a queda do Império, o processo civil sofreu um retrocesso ao ser influenciado pelo direito do povo bárbaro-germânico, caracterizado pelo formalismo exacerbado, fanatismo religioso e misticismos. Foi nesse contexto que surgiram os chamados “juízos de Deus”, “duelos judiciais” e “ordálias”. O processo era FORMAL, e as provas produzidas deviam ser interpretadas segundo regras legais, não possibilitando qualquer participação do juiz. Este só reconhecia o cumprimento/realização da “prova” e fixava a sentença segundo as regras do direito positivo. Não se buscava a verdade real, mas a formal, pois se acreditava na INTERFERENCIA DIVINA nos julgamentos (autênticos jogos de azar ou rituais de bruxaria). Entretanto, com o fim de preservar o direito romano, surge o Direito Canônico e o direito desenvolvido pelos glosadores nas Universidades, que, em conjunto com o direito germânico, formaram o chamado PROCESSO COMUM, que vigorou desde os séculos XI até XVI. 5 O processo comum era escrito, lento e extremamente complicado. Mas, dele se extraíram as características que, aperfeiçoadas, inspiraram o processo moderno. Foram abolidas as ordálias e juízo de deus, mas a tortura continuou até o século passado, como meio de obtenção da verdade. Somente após a Revolução Francesa retomou-se o conceito de livre convencimento do juiz, relativamente às provas, eliminando a tarifa legal, primeiramente no processo penal, depois no civil. Conclui-se que, na fase imanentista, o direito processual era totalmente confundido com o direito civil (privado e material). Portanto, havia uma grande confusão metodológica entre ambos, negando-se a existência autônoma do processo, o qual se encontrava imanente, ou seja, dependente do direito material. Para os imanentistas, só havia ação se houvesse direito material e vice-versa. Obviamente que tal teoria não prosperou, pois não conseguiram explicar, por exemplo, a possibilidade de o autor lançar mão da ação e do processo para buscar justamente a declaração de inexistência de um direito (ação declaratória negativa). Esqueceram-se também de que, ainda que ação fosse declaratória positiva, o juiz poderia julgar improcedente o pedido, negando a existência do direito; ou, por fim, poderia o magistrado simplesmente decretar a prescrição (perda da pretensão) mesmo tendo havido o exercício da ação e a instauração do processo. 1.2.2 CIENTÍFICA (de 1868 a 1950) Com o fracasso do imanentismo, as doutrinas alemã (expoentes: Oskar Von Bulow, Windscheid) e italiana (Calamandrei, Chiovenda, Carnelutti, Liebman), desenvolveram a teoria do processo como ciência autônoma, uma vez que fora finalmente reconhecida a sua total independência em relação ao direito material. Enquanto este sempre teve uma configuração linear (sujeitos ativo/passivo; objeto – bem da vida; e vínculo de direito material), o processo revela-se como uma relação jurídica triangular, com elementos próprios e distintos (sujeitos ativo/passivo e o Estado-juiz; objeto – pedido; e vínculo de direito processual). Assim, haveria duas relações jurídicas autônomas: a material e a processual, as quais não se confundiam. Consequentemente, o direito processual passou a ser compreendido como ramo autônomo e público, com institutos e princípios próprios. As provas deixaram de ser tarifadas e passaram a ser valoradas pelo juiz segundo critérios próprios (deixando de atuar como expectador da vitória do mais hábil), tendo amplos poderes, inclusive, na sua produção; etc. Todavia, o processo passou a ser intensamente estudado como objeto autônomo, deixando de servir ao direito material, o que criou excessos formalistas. Dessa forma, tal processo era permeado por ideais iluministas e liberalistas, onde a propriedade individual, a autonomia da 6 vontade e a titularidade do direito de agir exclusiva ao titular do direito privado eram “a pedra de toque”. 1.2.3 INSTRUMENTISTA (de 1950 aos dias atuais) Por forte influência das doutrinas de Garth (EUA) e Cappelletti (ITA), os intrumentistas ou instrumentalistas vão além dos autonomistas e veem o processo como instrumento não só de realização dos interesses particulares, como também de pacificação social e realização da lei, portanto, mais efetivo, realizador da justiça, em tempo hábil e com o menor dispêndio possível. O processo deixa, então, de ser um fim em si mesmo, e passa ser considerado um meio, um veículo para se atingir um fim, qual seja, a solução do litígio por meio de uma tutela jurisdicional efetiva. Dessa forma, reaproxima-se o direito material do processual, sem, contudo, perder a autonomia do processo. 1.3 História do Direito Processual Civil Brasileiro Até a independência, vigorou no Brasil a legislação portuguesa, consistente nas chamadas Ordenações do Reino (Ordenações Afonsinas, de D. Afonso V, de 1446; as Ordenações Manuelinas, de D. Manuel, de 1521; e as Ordenações Filipinas, de Filipe II, de 1603). Tinham por principais características: a) forma escrita, o juiz só podia apreciar o que estava nos autos (verdade formal); b) as partes não participavam da inquirição de testemunhas; c) princípio do dispositivo: autor e réu eram os donos do processo, cuja movimentação era privilégio das partes. Em 1850, o Brasil editou o Regulamento n. 737, o primeiro Código Processual nacional, que visava regular apenas as causas comerciais. Já no período republicano, o referido regulamento alcançou também as causas cíveis, por força da alteração dada pelo Regulamento n. 763, de 1890. Logo após, em 1891, a Constituição estabeleceu a divisão da Justiça Federal e Estadual, e, consequentemente,o poder de legislar sobre processo para cada esfera da federação, dando surgimento a um Código Federal e a vários Códigos estaduais, que acabaram por ser repetições do primeiro. Todavia, a Constituição de 1934 pôs fim aos códigos estaduais, atribuindo exclusivamente à União a competência para legislar sobre processo. Desta feita, uma comissão foi formada para a elaboração de um código unitário, o que redundou no surgimento de nosso primeiro CPC (Código de Processo Civil) em 1939. 7 Como bem nos ensina Sérgio Bermudes (apud THEODORO JR, 2007, p. 17), havia no CPC de 39 “uma parte geral moderna, fortemente inspirada nas legislações alemã, austríaca, portuguesa e nos trabalhos de revisão legislativa da Itália, e uma parte especial anacrônica, ora demasiadamente fiel ao velho processo lusitano, ora totalmente assistemática”. Após 33 anos em vigor, o CPC foi totalmente reformado, com base no Anteprojeto do Ministro Alfredo Buzaid, discípulo direto do processualista italiano Enrico Tullio Liebman (radicado no Brasil no período da 2ª Guerra Mundial, vindo aqui falecer). Daí surgiu o CPC de 1973, o qual sofreu, ao longo de sua vigência, várias alterações e reformas, todas na tentativa de se alcançar, conforme pregam os instrumentalistas, um processo mais efetivo possível. O propósito era abandonar a preocupação exclusiva com conceitos e formas, tão nos bem ensinado pela tradição romana e lusitana, para dedicar-se à busca de um processo de resultados. Todavia, mesmo tendo sofrido diversas alterações, tal código já não atendia os clamores sociais da celeridade processual, bem como ignorava o amadurecimento do sistema de precedentes jurisprudenciais, uma vez que os tribunais passaram a desenvolver cada vez mais mecanismos e procedimentos com vistas a entrega de uma tutela jurisdicional efetiva. Dentro desse contexto, surgiu no Senado Federal o PL n. 166/10, com o fim de elaborar um novo CPC. De autoria de uma comissão de juristas presidida pelo então Min. do STF, Luiz Fux, e subscritado pelo então presidente do Senado, José Sarney, teve por principal objetivo combater a morosidade da Justiça, incorporando ao Direito brasileiro mecanismos consagrados em outros países, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, existente no Direito alemão. Outro objetivo foi simplificar o processo civil, eliminando os recursos, como o agravo retido e os embargos infringentes, bem como muitos procedimentos especiais, que muitas vezes retardavam a aplicação da Justiça. Também teve por alvo fortalecer a conciliação extrajudicial, além de processar o réu que deixar de comparecer injustificadamente à fase de conciliação à condenação a ato atentatório à dignidade da Justiça, etc. Assim, depois de mais de 4 anos de tramitação no Senado e na Câmara de Deputados, com intensos debates no Parlamento, em audiências públicas e na comunidade jurídica, finalmente o NCPC foi sancionado, com alguns vetos, em 16 de março de 2015 e publicado no dia seguinte, entrando em vigor no dia 18 de março de 2016. O NCPC é dividido em 2 partes: uma Parte Geral, composta de 6 Livros; e uma Parte Especial, com 3 Livros, totalizando 1.072 artigos, incluindo aí as Disposições Finais e Transitórias.
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