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Teoria da Literatura - Prosa Material teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha Revisão Textual: Profa. Ms. Helba Carvalho Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance 5 Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento da unidade: 1) Leia o conteúdo teórico da disciplina; 2) Leia o esquema gráfico do conteúdo teórico; 3) Assista à apresentação narrada; 4) Faça a atividade de sistematização; 5) Faça a atividade de aprofundamento; 6) Leia o material complementar; 7) Formule suas dúvidas ao professor da disciplina por meio do módulo Mensagens do blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina; 8) Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão disponíveis na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato com diferentes visões sobre o problema além de fornecer a você um repertório maior de conceitos da teoria da narrativa. Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance Ob jet iv o de Ap re nd iza do Seja bem vindo à unidade III da disciplina: Teoria da Narrativa. Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre os elementos necessários para uma análise do texto ficcional narrativo. Além disso, discutiremos as características essenciais de duas espécies do gênero: o conto e o romance. • O Romance • O Conto: Antiguidade e Contemporaneidade • Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance 6 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Vimos, em nosso conteúdo teórico, o microconto, como uma espécie relativamente nova a que pertence o texto narrativo e a concisão é o elemento-chave da composição, pois força o locutor a carregar cada palavra de significado de forma a suprir as lacunas tradicionalmente preenchidas em textos mais longos com o uso da descrição, do diálogo e da dissertação e por isso pede maior cooperação do leitor. Você pode pedir para seus alunos escolherem uma notícia de jornal e orientá-los a produzirem um microconto a partir dessa notícia. Trabalhe os elementos estruturais da narrativa no momento em que estiver orientando-os na elaboração desse texto narrativo. Assim, os alunos vão perceber a diferença entre o texto literário e o não literário. Para a elaboração dessa atividade, você pode consultar os sites a seguir: SEABRA, C. Microconto. Disponível em http://microcontosdocarlos.blogspot.com.br Acesso em 29-01-2013. ______. Microcontos. Disponível em http://cseabra.wordpress.com/2010/02/25/microcontos-literatura- minima. Acesso em 29-01-2013. ______. Microcontos e educação. Disponível em http://cseabra.wordpress.com/2011/06/11/entrevista-com-carlos- seabra-sobre-microcontos. Acesso em 29-01-2013. Contextualização Para Pensar Ao ler o conteúdo teórico, você observou que foram apresentados os elementos estruturais da narrativa, bem como características dos gêneros conto, crônica e romance. Vamos pensar, agora, como este assunto pode ser inserido no seu cotidiano e no de seus futuros alunos? 7 Narrar é o ato de expor ou contar um acontecimento real ou imaginário. Trata-se de uma atividade humana gregária, porque remonta às origens da vida em sociedade, é uma forma de conhecimento que procura explicar o mundo como, por exemplo, no conjunto dos mitos de determinada cultura. Aliás, a palavra mito, que vem do grego, significa fábula, relato, história. A literatura, como arte da palavra que é, nutre-se desses mitos e os reelabora constantemente por meio da produção de narrativas que tentam reorganizar as experiências humanas por meio da linguagem. Embora seja importante pensar na inexistência de gêneros puros, a narrativa encontra- se associada ao gênero épico, conforme visto na unidade II, cujas espécies mais conhecidas são: o poema épico (longo poema narrativo que relata os grandes feitos de um herói ou de um povo); o conto (narrativa curta); a novela (gênero intermediário entre o conto e o romance); o romance (modernamente concebida como composição em prosa vinculada à sociedade burguesa); a crônica (forma elástica, próxima do lírico, mas que em grande parte dos casos apresenta uma narrativa curta inspirada em fatos do cotidiano), a fábula (conto que encerra uma lição, a moral da história) entre outros. Esse gênero é considerado mais objetivo do que o lírico pela espacialidade, temporalidade, construção de caracteres mais detalhada, apresentação das ações encadeadas e pela presença de um mediador, o narrador, que assume um ponto de vista ou perspectiva e nos conta a história, fato que propicia um maior distanciamento entre o sujeito que narra e aquilo que é narrado, isso porque o narrador conhece, domina o fato que conta, ainda que possa fingir que a ação ocorre simultaneamente ao ato de narrar. Além disso, o gênero permite que o sujeito da enunciação (entendida como ato individual de utilização da língua pelo falante, ao produzir um enunciado, no caso a construção da narrativa, num dado contexto comunicativo)se manifeste por meio das descrições e da apresentação dos personagens ou ainda por meio da técnica de reproduzir, de modo direto, indireto ou indireto livre, a voz dos próprios personagens. Os elementos estruturais da narrativa e sua função na análise dos textos Evidencia-se, desse modo, a necessidade de isolarmos os elementos estruturais da narrativa e refletir um pouco sobre cada um deles para que tenhamos “ferramentas” para fazermos uma análise dos textos épicos. São eles aação, enredo, tempo, espaço, personagens e foco narrativo ou ponto de vista.Esses elementos respondem às perguntas básicas para uma abordagem inicial da obra narrativa: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance 8 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Elemento Estrutural da Narrativa Informações Transmitidas Ação/Enredo O que aconteceu? Como se organiza? Tempo Quando aconteceu? Espaço Onde aconteceu? Personagens Quem participa da história? Foco narrativo ou ponto de vista Quem conta e sob que perspectiva? Primeira pessoa (eu) ou Terceira pessoa (ele)? Neste caso, trata-se de um narrador que é capaz de entrar na mente dos personagens, ou seja, possui onisciência? Veja como mesmo em uma narrativa extremamente sucinta, como é o caso do microconto dado a seguir, os elementos básicos são identificáveis: Deixou a Ana Rosa. Rumou para a Liberdade. Chegou no escritório do advogado: o divórcio havia saído. Edson Rossato, Cem toques cravados. Microconto disponível em: http://www.cemtoquescravados.com/2012/01/deixou-ana-rosa-rumou-para- liberdade_14.html, acessado em 29/01/2012 Temos uma sequência de ações representadas pelos verbos “deixar”, “rumar”, “chegar” e pela locução verbal “havia saído”. Essas ações estão organizadas de forma linear, sequencial, o que nos dá o enredo da narrativa: um homem foi de metrô para o escritório do advogado e, chegando lá,recebeu a informação de que seu divórcio se concretizara. Temos, ainda, acesso ao tempo por meio do tempo verbal, os fatos ocorrem no passado, ainda que este não esteja determinado. O espaço também está presente, a ação principal ocorre no escritório do advogado, que fica próximo ao bairro da Liberdade, em São Paulo. Para chegar lá, temos referências espaciais às estaçõesdo metrô Ana Rosa e Liberdade. Podemos, também, identificar um personagem principal dessa história, o passageiro do metrô, e podemos pensar em outros personagens secundários que não são explicitados: a mulher de quem o protagonista acabou de se divorciar e o advogado que cuidou do processo de divórcio. 9 O foco narrativo é de um sujeito que usa a terceira pessoa (ele) rumou, chegou etc. Esse narrador limita-se a contar a história de forma objetiva, sem vasculhar os a mente dos personagens, haja vista a concisão do gênero escolhido. A construção dos sentidos: elementos estruturais e discursivos Note, porém, que essas informações nos ajudam a entender a narrativa, fazer uma paráfrase dela (recontá-la com nossas palavras), mas apenas o exame da organização desses elementos por meio da linguagem, neste caso a linguagem literária, é que nos dará uma leitura mais profunda e evidenciará o caráter estético desse ato de comunicação. Isso significa que, para além de uma visão superficial dada pelo levantamento dos elementos estruturais, será a análise da língua em ação, da enunciação que nos conduz ao discurso, que nos dará uma dimensão mais abrangente, embora não definitiva, do que o locutor (aquele que conta a história ou o sujeito da enunciação) quer comunicar ao interlocutor (aquele que lê, interage com o texto). Essa operação de leitura envolve questões mais complexas, como a experiência que temos sobre viagens de metrô, escritórios de advogado, relacionamentos amorosos e conflitos conjugais, divórcio entre outros elementos que envolvem a memória coletiva. Além disso, devemos considerar que o texto deve ser lido como uma peça literária, o que nos obriga a ativar todo nosso conhecimento sobre linguagem conotativa. Para termos acesso às diversas possibilidades interpretativas da narrativa, temos de cooperar com o sujeito da enunciação e pensar no duplo sentido que assumem os nomes das estações: o substantivo Ana Rosa pode ser entendido não só como nome de estação do metrô, mas como o possível nome da mulher de quem o protagonista se separou e, nesse caso, o nome da estação Liberdade ganha outro sentido, representa o fim de um relacionamento problemático, que aprisionava o personagem, haja vista que esse ponto do percurso está associado à notícia do divórcio. Outra metáfora importante é a da viagem, do percurso, especialmente se associado ao meio de transporte a que o narrador se refere, o metrô. Trata-se de um percurso subterrâneo, que evoca associações com elementos obscuros, coisas que não se revelam claramente, o que nos sugerea imagem de um relacionamento infeliz, que produziu mágoas entre o personagem e sua ex-mulher. Nesse caso, emergir na Liberdade e entrar no escritório do advogado ganha o sentido mais amplo de retomar a vida de forma mais independente, e agora oficial por causa do divórcio, não mais subterrânea aos olhos da sociedade, haja vista que se pressupõe que o casal já estava separado de fato antes que a justiça concedesse o status legal da separação pelo ato do divórcio. 10 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e As escolhas dos verbos (escolhas lexicais) contribuem para isso no texto. Menos força teria o uso dos verbos “partiu da Ana Rosa e chegou à Liberdade”. O uso do verbo “deixou” nos autoriza a pensar no fim do relacionamento, ao passo que o verbo “rumou”, associado à Liberdade, nos autoriza a pensar que o divórcio será a possibilidade de o sujeito assumir ou reassumir as rédeas de seu destino. A natureza mais extensa da locução “havia saído” em lugar do termo mais conciso “saíra” sugere a ideia de que o processo foi longo, doloroso, o que complementa a ideia da viagem, do percurso, ação central da narrativa, viagem que agora pode ser entendida como uma ação subjetiva, não mais como mero deslocamento físico. Por tudo isso você deve ter percebido que devemos levar em consideração mais do que a simples descrição dos elementos estruturais da narrativa, que não fornece uma leitura competente da obra, mas constitui meio inicial de acesso ao texto. Observarmos como a seleção e a organização desses componentes contribuem, além do significado prático eles que têm, para uma leitura mais completa da obra, o que chamamos construção de sentido. Aliás, é preciso notar que esta breve leitura não teve a pretensão de esgotar as possibilidades de interpretativas que nos fornece a narrativa, mas procurou mostrar um exemplo de como podemos partir dos elementos estruturais, que são os que objetivamente se apresentam no texto, e procurar preencher as lacunas do material linguístico por meio de uma abordagem cooperativa que ative as nossas experiências e conhecimentos. Essas lacunas só podem ser preenchidas se concebermos a língua como ato comunicativo complexo que envolve a memória, bem como nossa consciência da natureza específica do ato comunicativo literário (como vimos na unidade que conceitua o fenômeno literário) e não apenas a visão do texto como um sistema de códigos a serem decifrados. Além disso, devemos levar em consideração no processo de análise a espécie do texto: o conto, por exemplo, geralmente possui poucos personagens, notações espaciais reduzidas, ações em menos profusão do que o romance, que, em grande parte dos casos apresenta uma pluralidade maior de ações, espaços e personagens decorrente da extensão maior desta espécie em relação àquela. Já a crônica, pela proximidade com o gênero lírico, por vezes dilui a ação em meio às reflexões do sujeito. Todas estas observações decorrem da consciência de que a pureza dos gêneros é um conceito, não uma realidade concreta, ou seja, eles são híbridos e a pureza de gêneros em sentido absoluto não existe. No caso do microconto, espécie relativamente nova a que pertence o texto estudado, a concisão é o elemento-chave da composição, pois força o locutor a carregar cada palavra de significado de forma a suprir as lacunas tradicionalmente preenchidas em textos mais longos com o uso da descrição, do diálogo e da dissertação e por isso pede maior cooperação do leitor. 11 Considerações sobre os elementos estruturais da narrativa Faremos agora algumas observações sobre os elementos estruturais da narrativa, aqueles quedão acesso ao texto. Certamente o espaço de que dispomos não permite esgotar os aspectos que envolvem cada conceito, por isso lembramos que você deve complementar o seu estudo por meio da leitura da bibliografia da disciplina, só desse modo terá à sua disposição o instrumental teórico que fundamentará suas análises literárias a serem realizadas ao longo do curso. Além disso, a Internet oferece bons recursos de pesquisa rápida e de aprofundamento do tema. Um deles, que indicamos para o tema é o site que abriga o E- Dicionário de Termos Literários, coordenado por Carlos Ceia, disponível em: http://www.edtl.com.pt. Lá você encontrará um detalhamento maior de cada elemento discutido a seguir, bem como outras abordagens do mesmo tema que o auxiliarão a formar uma consciência crítica sobre o conteúdo, já que nem sempre os diferentes autores concordam em todos os pontos. a) Enredo: elemento que responde à pergunta o que aconteceu? Também é designado como trama, intriga, fábula e consiste no arranjo da sequência de ações (fatos), que pode ser feito de forma linear, sequencial ou anacrônica, começar no meio da história (in medias res) ou no final (in ultimas res). Em grande parte dos textos há um conflito, um problema, a ação evolui em direção a um clímax, ponto máximo da tensão narrativa. Há narrativas em que o conflito se resolve depois do clímax, há narrativas, entretanto, em que permanece o clima de mistério. Podemos considerar também que há ações externas e internas. Todas essas opçõessão elementos produtores de sentido e devem ser analisadas como decorrentes do estilo de cada autor, de cada subespécie: o romance policial, por exemplo, costuma ser uma obra que privilegia a ação e a resolução do conflito; o romance psicológico tende a diluir a ação em meio às reflexões dos personagens; a epopeia, gênero narrativo, convencionalmente, começa a narrativa no meio da ação, in medias res, como faz Camões em Os Lusíadas: “Já no largo oceano navegavam” (Canto I, 19). O autor situa os portugueses em alto mar para depois contar como foi a partida de Portugal em direção às Índias. Voltando ao microconto que analisamos, percebemos que o enredo se organiza de forma linear. Contudo, a situação apresenta-se próxima do final, da resolução do conflito. Somos jogados, por assim dizer, no meio da história, o que significa que devemos preencher essa lacuna com nossa imaginação. A ação prosaica de apanhar um transporte coletivo apresenta-se como a ponta de um iceberg que nos leva a refletir sobre o sentido dela em função das ações que ocorrem posteriormente. b) Tempo: está essencialmente ligado à ação e reponde à pergunta quando aconteceu? Há alguns tipos de tempo: Tempo cronológico: aquele que pode ser medido em horas, minutos, segundos e se liga ao tempo histórico, em que o narrador nos indica datas. Possui um aspecto quantitativo. 12 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Tempo psicológico: aquele que se passa no interior da mente dos personagens, denominado por Benedito Nunes como tempo vivido ou duração interior. Trata-se de um elemento qualitativo, predominante em romances psicológicos, que não coincide com as medidas temporais objetivas: “uma hora pode parecer-nos tão curta como um minuto se a vivermos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto uma hora se nos entediarmos” (NUNES, 1995, p. 18); mítico, que é o tempo do eterno retorno, aquele das lendas e das narrativas das origens. Tempo linguístico e tempos verbais: estão ligados ao exercício da palavra e se originam no presente da enunciação: “Cada vez que você fala com alguém é agora que você fala, e agora é o presente da enunciação funcionando como eixo temporal a partir do qual os eventos se ordenam” (NUNES, 1995, 22). Passado e futuro estão situados para trás e para frente desse presente implícito que é o presente do discurso que funciona como um eixo entre essas duas dimensões temporais. Tempo mítico: é circular, cíclico, do eterno retorno prevalece nas lendas, narrativas míticas, caracterizando-se pela expressão, nem sempre explicita “Era uma vez...”. No microconto que estudados vimos que o tempo cronológico não é delimitado, embora os que conhecem a cidade de São Paulo possam inferir que uma viagem de metrô da estação Ana Rosa à Liberdade dure mais ou menos cinco minutos. Além disso, nossas experiências em relação às questões judiciais nos informam que um processo de divórcio pode demorar meses ou anos, assim como um relacionamento pode durar algum tempo antes de se deteriorar. Temos acesso, em certo sentido, a um tempo histórico: a cidade de São Paulo do final do século XX, por causa da existência do metrô, o Brasil dessa mesma época, a partir de quando foi instituído o divórcio no país. Essas noções temporais, contudo, são acessórias, pois o que se impõe na narrativa em questão é o tempo linguístico, conforme observamos na análise do texto: o pretérito perfeito, que caracteriza uma ação terminada no passado; a locução verbal que substitui o pretérito mais que perfeito sugerindo, conforme apontamos, um processo demorado e ao mesmo tempo uma ação concluída antes do início da narrativa e das ações narradas. c) Espaço: responde à pergunta onde aconteceu? O espaço pode ser interior ou exterior, pode ser mais fechado ou mais amplo e, geralmente, concentra elementos significativos a respeito do personagem que o ocupa, principalmente nos romances naturalistas, em que a influência do meio é ressaltada como expressão do pensamento determinista vigente na segunda metade do século XIX. De qualquer modo, como a literatura é um fenômeno essencialmente simbólico, nenhum elemento espacial deve ser considerado como meramente decorativo, mas produtor de sentido se analisado em relação aos outros, isso vale, obviamente, para todos os outros aspectos estruturais. No caso, vimos que metrô é um espaço que agrega forte sentido simbólico: pelo aspecto de viagem, de percurso que sugere; pelo aspecto subterrâneo de sua natureza em contraste com o 13 escritório do advogado; pelo aspecto de transporte coletivo que se conecta à ideia da do divórcio (ato oficial, certificado pela autoridade pública)como reconhecimento social da separação.. d) Personagem (substantivo de dois gêneros, portanto você pode dizer a personagem ou o personagem): personagens são seres fictícios, pessoas imaginárias que se movem no espaço da narrativa. O termo vem da palavra latina persona, que se significava a máscara do ator de teatro. Os personagens são agentes das ações e são delineados, portanto, não só pela descrição que deles faz o narrador, mas pelo que dizem ou não, pelo que fazem ou deixam de fazer. No texto que estudamos, dada a ausência de caracterização da personagem, só podemos ter acesso a ele por meio das ações e da sugestão da qualidade dessas ações dadas pela escolha lexical, como destacamos. Em narrativas mais extensas, o ficcionista não arquiteta o personagem apenas pelas suas ações, mas também pela exposição de pormenores físicos ou psíquicos que, não raro, são apresentados por meio de alguns traços distintivos, já que uma descrição minuciosa poderia comprometer o andamento da narrativa. Há casos, porém, em que essa caracterização pode ser mais detalhada, em função da espécie do texto, como dissemos, ou do período literário. O Realismo, por exemplo, que busca uma aproximação mais estreita entre a arte e a vida, procura caracterizar minuciosamente os personagens. Os romances,obras mais extensas, trazem ainda personagens que foram denominados por E. M. Forster, em sua obra Aspectos do Romance(Globo, 2005), como planas, aquelas constituídas em torno de uma única ideia ou propriedade, que são tipos, não raros estereótipos; e as redondas, personagens mais complexas e que possuem diversas qualidades. Essas classificações, como todas, aliás, devem ser tomadas como elementos norteadores da análise, mas não devem ser tidas como rótulos estanques. Já o conto, pela sua menor extensão tende a condensar na ação as propriedades dos personagens. Além da obra de Forster, que se destina à compreensão da forma romance, é interessante que se faça uma leitura da obra A Personagem de Ficção (Perspectiva, 2002), escrita por Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes, em que são discutidos com muita propriedade os diversos tipos de personagem. Neste momento, interessam especialmente os capítulos “Literatura e Personagem”, de Rosenfeld, e “A Personagem do Romance”, de Candido. e) Foco narrativo ou ponto de vista: É a perspectiva que o narrador assume ao contar a história. Como mediador entre os fatos e o leitor, esse elemento não deve ser confundido com a figura do escritor. Mesmo em textos autobiográficos, devemos considerar que quando conta uma história, o sujeito assume uma postura distanciada em relação aos fatos, cria uma espécie de máscara que imagina para conceber o universo ficcional. 14 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Podemos encontrar o narrador onisciente, aquele que pode, como um deus, revelar a vida interior dos personagens. Ele serve-se da terceira pessoa para isso. Veja como exemplo estefragmento inicial do conto “As Voltas do Filho Pródigo”, de Autran Dourado:“Alguma coisa no ar dizia que Zózimo estava para chegar. Desde longe, antes mesmo de qualquer anúncio, João pressentia: não demorava muito e tio Zózimo estaria de volta.” (BOSI, 1978, p. 199). O narrador fala de uma terceira pessoa, João, e é capaz de saber o que esse personagem está pressentindo no momento. No microconto que estudamos, podemos perceber a presença de um narrador em terceira pessoa que, pela brevidade da narrativa, não nos revela, de modo explícito, o que vai na consciência do personagem. De qualquer modo, a referência ambígua à Liberdade, ao mesmo tempo local em que receberá a notícia do divórcio e condição que esse fato dará ao homem, configura-se como um comentário sugestivo de certa onisciência sutil que nos revela aspectos mentais do personagem: alívio depois de uma longa espera, desejo de tomar um novo rumo etc. Outro modo de narrar é utilizando a primeira pessoa (eu/nós) e, nesse caso, esse eu pode ser assumido por uma personagem secundária, que funciona como testemunha, ou pelo protagonista, personagem principal da narrativa, a quem denominamos narrador- personagem. Como exemplo do primeiro caso temos o narrador testemunha do conto “Civilização”, de Eça de Queiroz: “Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado” (QUEIROZ, s/d). Como exemplo do segundo caso podemos citar o narrador-personagem do conto de Luiz Vilela, “Eu estava ali deitado”: “eu estava ali deitado olhado através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto, tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam nas vidraças...”(BOSI, 1978, p. 291). Cabe notar que o uso desses diferentes pontos de vista aproxima ou afasta a figura do narrador dos acontecimentos: um maior afastamento da ação se dá no foco em terceira pessoa, teoricamente a perspectiva que permitiria maior objetividade; um afastamento intermediário ocorre no caso do narrador-testemunha, uma vez que ao presenciar a ação ele não se envolve tanto com ela quanto se envolve o personagem que a vive; um envolvimento maior na ação se dá no caso do narrador em primeira pessoa, que pode transformar de modo mais subjetivo, mais intenso, as emoções em linguagem. Mais uma vez ressaltamos que essas classificações ou inferências a partir delas não são estanques, têm apenas uma finalidade didática, e devem ser analisadas caso a caso. Na narrativa moderna podemos encontrar em um único fragmento uma mescla mais de uma perspectiva, configurando um discurso polifônico, porque as vozes narrativas soam 15 simultaneamente ao longo do texto. Esse fato também é um índice interpretativo que deve ser associado aos outros aspectos da narrativa para dele serem extraídos os significados.Veja um exemplo do romance Memorial do Convento: Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, (...)a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espectáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira e Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício declarava ser qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que isto fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, (...) e aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no acto recato da sacristia, (...),e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, (...) condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola, (...) vou vê-la, ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, (...), e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe(...) (SARAMAGO, 1982, 30-31) No texto em questão, o narrador inicia o parágrafo sob a perspectiva da terceira pessoa, a personagem Sebastiana assume a narrativa, sob a perspectiva da primeira pessoa e, no final, o narrador em terceira pessoa volta a assumir o discurso. Considerações sobre os elementos da linguagem Como ressaltamos anteriormente, é a linguagem que apresenta e dá sentido aos elementos estruturais da narrativa. Por isso ela deve ser vista sob a perspectiva dos aspectos conotativos: ambiguidades, metáforas, metonímias, mas também do ponto de vista dos tipos textuais que articula. Há obras em que prevalece a narração, outras em que a descrição é bastante frequente. Em certas composições, prevalece o diálogo, por meio do discurso direto, indireto ou indireto livre. Em outras, ainda, é frequente o uso da dissertação, tipo textual em que o narrador expõe suas ideias. A prevalência ou ausência de um ou outro tipo textual também constitui elemento produtor de sentido. Repare que no exemplo que analisamos o tipo textual que prevalece é a narração. Não há descrição, diálogos ou dissertação. Isso, contudo, não impede que o texto assuma uma dimensão argumentativa, haja vista que as formas de construção da linguagem que apontamos sugerem uma série de perspectivas sobre o fato narrado como observamos. 16 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e O diálogo ou monólogo, frequentemente usado para aproximar o leitor dos acontecimentos, é um recurso fundamental nos textos narrativos e também pode ser considerado como uma forma de arranjo da linguagem que produz sentido. A apresentação pode ser por meio do: a) discurso direto, como no exemplo a seguir, extraído do conto “Os Três nomes de Godofredo”, de Murilo Rubião: Insatisfeito com as hipóteses que formulava, arrisquei-me a uma tímida observação: − Você é minha convidada, não? − Claro! E não precisava ser para estar aqui. − Como? – indaguei estupefato. − Ora, desde quando se tornou obrigatório ao marido convidar a esposa para jantar ou almoçar? (BOSI, 1978, p. 123) Note que, neste caso, os diálogos são transcritos sem a interferência do narrador, que dá voz aos personagens. b) discurso indireto, como no trecho de“Singularidades de uma rapariga loura”, de Eça de Queiroz: Perguntei-lhe então se era de uma família que eu conhecera, que tinha o apelido de Macário. E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu caráter uma ideia simpática, porque os macários eram de uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes... (QUEIROZ, s/d, p. 13). Repare que neste trecho o narrador reproduz de forma indireta as falas dele e do personagem com quem conversa, servindo-se do que chamamos de verbos discendi, ou verbos de dizer, tais como: perguntei, respondeu, disse, retrucou entre outros. c) discurso indiretolivre, como no trecho do conto “Gato gatogato”, de Otto Lara Resende: O menino apanhou o tijolo com que vedava a entrada do mistério. Lá embaixo – alvo fácil – o gato dormia inocente a sua sesta ociosa. Acertar pendularmente na cabeça mal adivinhada na pequena trouxa felina, arfante. Gato, gato, gato: lento bicho sonolento, a decifrar ou a acordar? (BOSI, 1978, 134) 17 Note que neste fragmento as observações“alvo fácil” e as impressões e questionamento sobre o gato, se é bicho sonolento, se está a decifrar ou acordar, tanto podem ser atribuídas ao narrador onisciente como ao personagem, o menino. O discurso indireto livre está bastante associado, embora não exclusivamente, a narrativas que exploram o fluxo da consciência dos personagens e que por isso ganham um tom mais introspectivo, psicológico. Além disso, nestes casos notamos também certa dominância do tempo psicológico. Nas próximas unidades serão feitas análises de textos narrativos de diferentes espécies ou gêneros: o conto, o romance e a crônica. Essas análises terão como base os elementos discutidos neste material, mas é muito importante que você amplie seus conhecimentos por meio da leitura de obras da bibliografia que tratam mais especificamente de cada elemento da narrativa. Para que você tenha um melhor suporte teórico, faremos considerações breve sobre dois tipos de narrativas bastante presentes na literatura, o conto e o romance. O conto talvez seja a mais antiga forma de expressão literária. Etimologicamente, a palavra vem do latim computus, cujo sentido original era cálculo, cômputo, conta, e só mais tarde adquiriu a acepção de narrar, no sentido de enumerar os detalhes de um acontecimento, relatar. Podemos dizer que os textos bíblicos ou ainda os vários episódios da epopeia homérica são conjuntos de contos, o que reforça a antiguidade desse gênero. Há ainda os que acreditam que os contos egípcios são os mais antigos, tendo aparecido por volta de 4000 anos antes de Cristo. Na obra A arte do conto, Roberto Magalhães Júnior fornece um conceito abrangente dessa forma de ficção literária: O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia dos personagens nem nas motivações de suas ações. Ao contrário, procura explicar aquela psicologia e essas motivações pela conduta dos próprios personagens. A linha do conto é horizontal: sua brevidade não permitiria que tivesse um sentido menos superficial. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 10-11). Destacam-se as noções dede linearidade; ausência de profundidade psicológica ou motivacional; prioridade dada à ação; horizontalidade; e brevidade. O Conto: Antiguidade e Contemporaneidade 18 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Devemos considerar, no entanto, que o conto não é linear, horizontal e superficial porque é breve, mas a brevidade que se exige do contista determina aquelas qualidades. Por linearidade narrativa entende-se um tipo de construção clara, simples e direta. A superficialidade de que se fala não deve ser interpretada de forma pejorativa, mas como uma necessidade que o autor tem de se ajustar à extensão reduzida do gênero. Em um romance, o escritor tem espaço para desenvolver verticalmente cada personagem, os seus aspectos psicológicos, analisar cada situação e as suas motivações. No conto, o autor deve traçar, em pinceladas rápidas e precisas, os elementos mais significativos de cada elemento estrutural: tempo, espaço, personagem e ação. Isso torna a linguagem geralmente mais densa, plurissignificativa, conotativa, aproximando-se da linguagem poética. No conto, nenhum detalhe pode ser desprezado, como afirmaram Edgar Alan Poe (1809-1849), escritor norte-americano, e Anton Thecov (1860-1904), escritor russo. Para Poe, “Em toda composição (a ser considerada conto) não deverá haver uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não tenha um desígnio pré-estabelecido”. (apud LIMA,1958, passim). Para Tchecov, “Uma história pode não ter princípio nem fim, mas se os autores descreverem na primeira página um fuzil pendurado na parede, esse fuzil, mais cedo ou mais tarde, terá de disparar”.(apud LIMA,1958, passim). Esse dado reforça o aspecto poético e ao mesmo tempo lúdico da obra, que deve prender o interesse do leitor. Há, ainda, o momento privilegiado que o conto apresenta (MOISÉS,1983, p.21). Trata-se, esse momento, de um acontecimento único, para o qual o passado e o futuro têm importância menor. O passado funciona como preparação para esse fato, enquanto que o futuro se torna previsível ou conhecido, seja porque encerrado (morte ou solução correspondente), “seja porque os atos a praticar foram determinados por aquele hiato dramático, seja porque os figurantes dão a impressão de regressar ao primitivo anonimato”(MOISÉS,1983, p.21). Essa fração ou núcleo dramático único determina a extensão menor do conto e também condiciona os outros elementos estruturais, pois em torno da unidade dramática, giram: − A unidade de espaço: no conto há poucos elementos espaciais, em comparação com o romance, por exemplo; − A unidade de tempo: a brevidade faz com que a história se esgote em um tempo relativamente curto. Caso haja a necessidade de referências ao passado, isto é feito de forma rápida, ocupando poucos parágrafos iniciais, pois ao narrador interessa um acontecimento específico; − O número reduzido de personagens: fato decorrente do núcleo único de ação em que se concentra a história; − A pouca descrição, narração e dissertação: estes procedimentos tendem a anular-se, embora existam no conto, pois a brevidade propicia o predomínio do diálogo. 19 Sendo a mais antiga forma de narração, o conto é, paradoxalmente, uma das mais prestigiadas na contemporaneidade. Isso talvez tenha ligação com sua brevidade, adequada a uma sociedade em que tempo significa dinheiro. Também a capacidade de adaptação desse tipo de narrativa aos temas e motivos contemporâneos garante seu sucesso entre os leitores. Alfredo Bosi analisa a questão do conto contemporâneo de modo bastante elucidativo: O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e as seduções do jogo verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é o quase- documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem. (...) Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda do romance, como põe em jogo os princípios de composição que regem a escrita moderna em busca do texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados”(BOSI,1983,p.7) Apontado o caráter proteiforme, ou seja, a capacidade de mudar de forma que o conto tem, bem como seu caráter estético e democrático, o crítico chama a atenção para as qualidades que asseguram a longevidade desse tipo de narrativa. O romance é uma composição em prosa, narrativa de contornos elásticos que permite ao escritor exprimir uma gama bastante ampla da realidade por meio do retrato da vida em sociedade. Mais que entretenimento, o romance permite que se apresente um amplo painel das experiências humanas que o transformam numa espécie de síntese da totalidade do mundo que se oferece ao leitor de forma que ele possa conhecer a vida de um ângulo privilegiado. O romance visto como forma de conhecimento talvez explique porque o gênero se transformou, a partir do século XIX, em uma das mais importante e complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. Do século XVIII até hoje, passou de mera narrativa de entretenimento a estudo da alma e das relações sociais, a veículo de reflexões filosóficas, a reportagem, a testemunho polêmico. O romancista, antes pouco considerado, passou a ser privilegiado e dispor de um vasto público exercendo uma poderosa influência em seus leitores. O Romance 20 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Estruturalmente,o romance caracteriza-se pela pluralidade de ação. Nesse gênero temos vários conflitos ou dramas ocorrendo simultaneamente. Não há limite definido para a quantidade deles, mas o romancista elege um ou alguns apenas como os mais importantes e em torno deles os outros se articulam. Quando esses conflitos se resolvem, o romance termina, tornando-se, nesse sentido, uma obra fechada. O romance simula uma rede complexa de relações. No que diz respeito ao espaço, o romance oferece uma pluralidade geográfica. Como nasceu vinculado à burguesia, seu espaço típico é o urbano, mas há os romances regionalistas, que não deixam de refletir as estruturas sociais burguesas. O espaço assume uma importância dramática muito grande, funcionando como extensão dos personagens ou como concretização das tendências psicológicas deles. O tempo no romance costuma ir além dos limites cronológicos da história. O ficcionista transforma-se em senhor absoluto do tempo e pode acompanhar os personagens durante toda a existência deles. Para isso, os dois tipos fundamentais de tempo, já estudados na teoria da narrativa,podem ser considerados: o histórico (ou cronológico) e o psicológico (ou metafísico). Os personagens do romance variam em número, mas tendem a ser apresentados em um número razoável, uma vez que o gênero trata do conflito em sociedade. No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é a obra Teoria do Romance, de GyörgiLuckács, publicada em 1920, que relaciona o gênero com a concepção de mundo burguesa, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto entre herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia clássica e a poesia lírica, de um lado, e a epopeia e o conto, de outro. Ainda na década de 1920, outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927, aparece o livro Aspectos do Romance, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que, apesar de todas as suas outras obras, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em flat – plana, tipificada, sem profundidade psicológica – e round – redonda, complexa, multidimensional. Conforme estudamos no tópico sobre personagens, o romance, pela sua extensão, tem possibilidade de desenvolver caracteres redondas, mais complexas, embora não dispense o tratamento de figuras planas, aquelas que são construídas ao redor de uma única ideia ou qualidade. Quanto aos recursos expressivos, o romance apresenta diversidade e complexidade.Preocupado em destacar as especificidades do romance como gênero dotado de originalidade estilística, Mikhail Bakhtin que se dedicou ao estudo do gênero, chamou-o de polifônico e dialógico, porque se decompõe em unidades estilísticas que tais como: a narrativa direta do ator, narrativa tradicional oral, cartas, diários, discursos dos personagens entre outras (BAKHTIN, 1998, p. 74). 21 Bakhtin afirma ainda que a originalidade do gênero romanesco repousa na combinação destas unidades, ao mesmo tempo subordinadas umas das outras, mas relativamente independentes: O estilo do romance é uma combinação de estilos; sua linguagem é um sistema de “línguas”.(...) O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. (...) E é graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das personagens não passam de unidades básicas de composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance. (BAKHTIN, 1998, pp. 74-75) Dessa forma, o romance caracteriza-se pela dialogicidade. Comparando-o com os outros gêneros poéticos, Bakhtin afirma que gêneros como a epopeia seriam centralizadores, enquanto o romance apresenta o jogo vivo das ruas .Ao confrontar o discurso na poesia com o discurso no romance, Bakhtin afirma que nos gêneros poéticos não há o que chama de dialogização, pois “o discurso satisfaz a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora dos seus limites (1998, p. 93) enquanto no romance: O prosador-romancista(...) acolhe em suas obras diferentes falas e diferentes linguagens da língua literária e extraliterária, sem que esta venha a ser enfraquecida e contribuindo até mesmo para que ela se torne mais profunda (pois isto contribui para sua tomada de consciência e individualização). Nesta estratificação da linguagem, na sua diversidade de línguas e mesmo na sua diversidade de vozes, ele também constrói o seu estilo, mantendo a unidade da sua personalidade de criador e a unidade do seu estilo (...) O prosador romancista não elimina as intenções alheias da língua feita de diferentes linguagens de suas obras, não destrói as perspectivas sócio- ideológicas(...) [mas] utiliza-se de discursos já povoados pelas intenções sociais de outrem, obrigando-os a servir ao seu segundo senhor. (BAKHTIN, 1998, p. 104-105) Lucien Goldmann, por sua vez, propõe uma abordagem do romance moderno baseado na tensão entre o escritor e a sociedade e na pressuposição da existência de homologias entre a estrutura da obra literária e a estrutura social. O dado inicial do qual parte é a tensão entre o escritor e a sociedade. Em face da sociedade burguesa, o romancista tende a criar a figura do herói problemático em tensão com as estruturas degradadas vigentes, ou seja, estruturas que existem não correspondem aos valores que a sociedade prega: liberdade, justiça, amor, igualdade.A partir daí, Goldmann estabelece uma tipologia do romance de acordo com a 22 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e atitude do herói, que pode empreender a busca de valores pessoais que subordinem a si a hostilidade do meio; pode fechar-se na memória ou análise dos próprios estados de alma; ou pode autolimitar-se e aprender a viver com o que o teórico denomina madura virilidade no mundo difícil em que foi lançado. Goldmann acredita, assim como Georg Lukács, outro grande teórico do gênero que o romance, cultuado pela burguesia, seria a história de uma investigação degradada (denominada demoníaca): trata-se da busca por valores autênticos em um mundo também degradado, mas em um nível diversamente adiantado e de modo diferente. Assim, a característica primordial do romance seria a ruptura insuperável entre o herói e o mundo, ambos degradados.Como afirma Lucien Goldmann: (...) a comunidade do herói e do mundo resulta, pois, do fato de ambos estarem degradados em relação aos valores autênticos (...) O herói demoníaco do romance é um louco ou um criminoso, em todo o caso,(...), um personagem problemático cuja busca (...) de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram “romance". (1976, p.9). Assim, este novo herói é fruto da sociedade individualista que se estabeleceu apósa Revolução Burguesa. O cerne da busca do herói problemático são os valoresautênticos, em um mundo composto por conformismo e convenção. Você pode encontrar uma excelente proposta de abordagem do romance brasileiro sob a perspectiva da teoria de Goldmann no livro do prof. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, no capítulo sobre Tendências Contemporâneas da Literatura Brasileira em “As Trilhas do romance: uma hipótese de trabalho” (1997, p 440-445).Como se percebe por estas observações que podem ser complementadas pela leitura das obras citadas, o romance está vinculado a um momento histórico e, assim como as formas clássicas que desapareceram com o mundo clássico, pode se transformar caso a sociedade burguesa também se transforme. Discute-se, inclusive, a pertinência de se atribuir às narrativas contemporâneas, pelo menos a grande parte delas, o rótulo de romance. De qualquer modo, trata-se de um gênero que permitiu a produção de obras que serão eternas na literatura: Madame Bovary, de Gustave Flaubert; O Vermelho e o negro, de Stendhal; Crime de Castigo, de Fiódor Dostoiévski; D. Casmurro, de Machado de Assis entre outras. A bibliografia a seguir, uma mescla de obras clássicas e atuais, embora parcial, abrange as grandes questões sobre teoria da narrativa, o conto e o romance e pode levá-lo a outros autores, propiciar um aprofundamento no assunto e fornecer instrumentos teóricos para análises de textos ficcionais. 23 Teoria da Narrativa: Para que você possa entender melhor o romance sob a perspectiva Bakhtiniana e compreender melhor a importância que esse filósofo da linguagem confere ao gênero, leia o texto “A Teoria do romance e a análise estético cultural de M. Bakhtin” de Irene A. Machado, publicado na Revista USP. Disponível no endereço: http://www.usp.br/revistausp/05/19-irene.pdf Material Complementar 24 U n i d a d e : T e o r i a d a N a r r a t i v a : C o n t o , C r ô n i c a e R o m a n c e Sobre a teoria da narrativa: BRAIT, Beth. A Personagem. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2006. CANDIDO, Antonio et al. A Personagem de ficção. 10ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1987. LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco narrativo. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2002. MENDILOW, A.A. O Tempo no romance. Trad. Flávio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972. MESQUITA, Samira Nahid. O Enredo. São Paulo: Ática, 1987. MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – prosa. São Paulo: Cultrix,1983 ______. Dicionário de Termos Literários. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 1982. NUNES, Benedito. O Tempo na narrativa. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1998. SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982. Sobre o conto: BOSI, Alfredo. O Conto brasileiro contemporâneo. São Paulo:Cultrix, 1978. GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo:Ática, 1988. LIMA, Hermann. O Conto.Salvador:Universidade Federal da Bahia, 1958. MAGALHÃES JÚNIOR, R.A arte do conto. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. MOISÉS, Massaud. A Criação literária: prosa. São Paulo:Cultrix, 1983. Sobreo romance: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. BERNADINI, Aurora F. et al. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. São Paulo:Cultrix, 1997. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. 2ª ed. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre: Globo, 1974. GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do romance. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. Outras fontes de pesquisa: E-Dicionário de Termos Literários. Coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, consultado em 04-02-2012. Referências 25 _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ Anotações Blank Page
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