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FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LITERATURA AULA 3 Prof. Phelipe de Lima Cerdeira 2 CONVERSA INICIAL Esta aula será muito importante por já assinalar uma etapa distinta de nosso estudo, na qual a sua participação e reflexão serão ainda mais necessárias. Desde o início, nos esforçamos em demonstrar que cada um dos temas apresentados aqui tem o compromisso de expandir o que foi – muito provavelmente – abordado em sala de aula no contexto de sua formação no ensino médio, ainda que de maneira mais ampla ou não necessariamente sistematizada. A grande diferença é que, agora, na graduação e, principalmente, pensando nas demandas exigidas para um aluno de Letras, é preciso que tenhamos paciência para tirar todas as dúvidas e pensar a literatura para além de uma disciplina obrigatória. Juntos, seguimos com a apresentação dos principais conceitos, categorias, elementos e problemáticas que irão acompanhá-los ao longo dos estudos literários. É fundamental, pois, que você aproveite todas as considerações trabalhadas aqui não apenas como uma introdução, mas também como um conteúdo que pode ser acessado permanentemente, sempre que for necessário retomar alguma ideia-chave para as demais disciplinas. Pois bem, com base na apresentação de diferentes teóricos e críticos literários, foi possível entender que o que determina a ideia da literatura não é apenas a forma como um texto se estrutura e manipula a linguagem, dando ênfase para um conjunto de fatores externos, tal como o contexto histórico e cultural de uma determinada comunidade. Ainda que a literatura congregue em sua origem uma relação com o ato de escrever e com a consagração de certo tipo de manifestação artística, foi possível aprender o quanto critérios de seleção acabam determinando o que é e o que não é literatura. Assim, se no início do século XX parecia ser suficiente investigar um texto literário com base em seus elementos estruturais – aquilo que os teóricos do estruturalismo russo chamariam de literariedade ou literaturidade –, hoje, a proposição está muito distante de atender às expectativas dos estudiosos da literatura. Ao dar ênfase a uma compreensão da literatura como manifestação discursiva múltipla, abrimos novas frentes para pensar e encarar os nossos estudos. Ao vencer o que poderíamos chamar de problemática zero – a difícil tarefa de determinar o que é a literatura –, passamos a pensar nas diferentes 3 naturezas e formas em que o texto literário pode se manifestar. Ao retomar discussões presentes na Poética de Aristóteles, descobrimos que épica, lírica e drama se fundamentam como os gêneros literários clássicos. Ainda que o reconhecimento de cada um desses gêneros garanta uma abordagem mais didática e de identificação, reservamos espaço para demonstrar como a perspectiva do pós-modernismo tem assumido papel preponderante para que as fronteiras entre os gêneros sejam relativizadas, justamente por conta de projetos literários cada vez mais híbridos. Após retomar tudo o que discutimos até aqui, cabe-nos um exercício para identificar algumas das características que modulam dois dos grandes gêneros literários: a narrativa e a lírica. Para tanto, iniciaremos o nosso raciocínio buscando um reconhecimento dos gêneros literários baseados em suas características mais epidérmicas ou salientes. Ganhará destaque, por isso, a própria relação entre o texto e o papel, pensando na manifestação tanto da narrativa quanto da poesia em suas expressões impressas. Após tal estágio, esta aula dará destaque para os elementos que consagram a narratologia, grande área dos estudos literários dedicada à observação dos principais elementos que arquitetam uma narrativa (narrador, personagem, enredo, tempo e espaço). Como sempre, a fim de que seja possível facilitar a sua leitura e a retomada de algum conteúdo, a disciplina segue a proposta de divisão em seções, as quais são apresentadas a seguir: 1. Contextualizando; 2. A ideia da mancha no papel; 3. Narratologia: a importância de Genette; 4. O narrador e o jogo narrativo; 5. Tempo, espaço, enredo e personagens. É importante reforçar que, ao falar de literatura, espera-se que a leitura seja sempre uma ação presente e necessária. Conto com a sua participação para que possamos estabelecer um diálogo profícuo até o final desta aula, (re)descobrindo um mundo chamado literatura. 4 TEMA 1 – CONTEXTUALIZANDO Ao tomarmos o pressuposto, enfim, de que a literatura vai além de uma elaboração específica da língua como código, passa a ser possível avançar em nosso raciocínio. A proposta é começar a esmiuçar certas condicionantes da literatura, sendo possível estudar as diferentes manifestações do plano literário baseando-se em seus gêneros. Como já sabemos, a figura de Aristóteles é uma referência para os estudos literários, justamente pelo fato de o pensador grego sistematizar na Poética algumas das características do que chamamos como gêneros clássicos. Na referida obra, Aristóteles dedica atenção especial para diferenciar os discursos de natureza histórica (diretamente ligados à imagem de Heródoto) e os demais de natureza poética (personificados pelo caso de Homero, por exemplo). Passa a ganhar relevância na perspectiva aristotélica, assim, a ideia da representação daquilo que é narrado, da imitação da realidade, ou, como preferimos pensar na literatura, do conceito da mimese. A mimese é certamente um conceito-chave para quem estuda a literatura, não apenas por permitir pensar os limites e fronteiras entre os discursos, mas também por ajudar a determinar certas nuanças entre os gêneros literários. Dentre tantas contribuições seminais para os estudos literários, é fundamental que você, aluno, tenha em seu horizonte de perspectiva e de leitura futura um trabalho seminal que parte da ideia da mimese de Aristóteles: trata-se da obra Mímesis: a representação da realidade ocidental (1971), de autoria do filólogo alemão Erich Auerbach. Neste momento, por questões didáticas, não dedicaremos um maior aprofundamento dessa obra, justamente pelo fato de entender que algumas das discussões presentes nesse texto exigem um caminho anterior que será desenvolvido em outras disciplinas, como é o caso de Teoria da Literatura. Por ora, vale a rápida alusão para que seja entendida a dimensão da contribuição de Aristóteles e como a ideia de representação da realidade permeia os estudos para se pensar o discurso literário. O que nos é caro, neste momento, sem dúvida, é como a forma escolhida para representar ou imitar certa realidade acabou definindo a natureza dos gêneros literários. Na Poética, pontualmente no capítulo V, Aristóteles exemplificará as diferenças entre epopeia (forma particular do gênero narrativo) e tragédia (forma, por sua vez, ligada ao drama): 5 7. Quanto à epopeia, por seu estilo corre a par com a tragédia na imitação dos assuntos sérios, mas sem empregar um só metro simples ou forma negativa. Nisto a epopeia difere da tragédia. 8. E também nas dimensões. A tragédia empenha-se, na medida do possível, em não exceder o tempo de uma revolução solar, ou pouco mais. A epopeia não é tão limitada em sua duração; e esta é outra diferença. (Aristóteles, 2001, p. 8, grifos nossos) Na leitura do excerto anterior, é possível vislumbrar que Aristóteles arrola questões pragmáticas que diferenciam os dois gêneros, tais como o uso específico de um metro (alusão a um tipo de notação rítmica das palavras) e da própria extensão do que é representado. Ainda que saibamos que, na contemporaneidade, a teoria literária guarda reserva para esse tipo de simplificação, é bem verdade que a lógica aristotélica acaba sendo utilizada por muitos de nós – leitores e estudiosos – para uma aproximação e identificação inicial de determinado textoliterário. Parece-lhe impossível que isso ocorra em nossa prática leitora até hoje? Seria um exagero dizer que a forma, a estrutura de determinado texto verbal acaba suscitando nos interlocutores diversas hipóteses iniciais? Certamente não. Diante de uma formação minimamente semelhante ao longo dos anos na educação básica, acabamos por nos acostumar a classificar certo texto segundo o gênero dramático, narrativo ou lírico logo de partida, apenas pela maneira que o enunciado é apresentado. TEMA 2 – A IDEIA DA MANCHA NO PAPEL Sem nos preocuparmos inicialmente com uma leitura crítica, ao abrirmos um livro em uma biblioteca ao acaso e não buscarmos demais informações anteriores – pistas presentes no título, a classificação da editora localizada na ficha catalográfica, os comentários do prefácio ou mesmo as notas presentes na orelha da obra –, é possível que tenhamos uma opinião inicial sobre o gênero literário ao qual pertence a obra avaliada. Sem contar com a formação especializada em um curso de Letras, é possível dizer que muitos seriam capazes de determinar ou, no mínimo, se arriscariam a dizer se a obra avaliada é um exemplo de narrativa, um poema ou um drama. Já se permitiu pensar por que isso acontece? A resposta está ligada, geralmente, à nossa relação de consumo com a linguagem editorial. Trata-se de uma reação imediata a um determinado padrão com que o texto verbal nos é apresentado desde a nossa formação leitora. 6 Como leitores, estamos familiarizados com determinadas lógicas associadas aos gêneros literários. Seja pelo número das páginas, seja pela apresentação do texto verbal em blocos formados por frases curtas, seja pelo uso de diálogos com o uso de travessões, seja pela presença de capítulos, ao folhearmos um livro, acabamos por lançar diferentes palpites sobre a sua natureza literária. Trata-se, como é possível inferir, de uma herança daquela perspectiva aristotélica plasmada na obra Poética, comentada anteriormente. Mesmo sem querer ou não estando preocupados em criar significados para um enunciado, nossa primeira impressão para diagnosticar o gênero literário de um texto se baseará em uma impressão visual. Para criar uma hipótese para descobrir se um texto corresponde ao gênero narrativo, lírico ou dramático, acabamos por nos fiar na primeira impressão decodificada pelos nossos olhos. Como leitores, sempre nos servirá de atalho (nem sempre confiável) a chamada mancha no papel, isto é, a forma como um texto verbal aparece diagramada nas páginas do livro, criando os blocos de palavras e frases. O termo “mancha no papel” vem justamente da ideia de uma folha em branco que passa a ser “manchada” pela presença das palavras. Sem mesmo ler o que está escrito, nossos olhos acionam uma primeira interpretação baseando-se nessa mancha no papel, contando, é claro, com um padrão e com o método de comparação. Quer um exemplo? Visualize, pois, a imagem a seguir (Figura 1) como se estivesse abrindo um livro neste momento, sem se preocupar em ler exatamente o que está escrito, procurando fazer um diagnóstico de leitura apenas pela mancha no papel: 7 Figura 1 – Reprodução de uma página do poemário Las otras (Antología mínima del silencio) Fonte: Bolaños, 2004, p. 28. Se você seguiu o desafio e não se preocupou em ler o que estava contido na página, pautando-se apenas na mancha no papel, é bem possível que tenha construído uma ideia de que se trata de um livro de um gênero literário específico, certo? Por conta da mancha, da forma como as palavras estão dispostas na folha, pela quantidade de caracteres, pelo alinhamento das frases, é também provável que o seu repertório leitor tenha suscitado a ideia de versos, correto? Se sim, quase imediatamente o seu palpite se encaminhou no sentido de que a mancha no papel representa um poema e, por conseguinte, o livro poderia ser catalogado juntamente com os demais de poesia, que fazem parte do gênero lírico. O mais interessante é que o exercício da mancha no papel permite que criemos hipóteses de leitura, ainda que o código linguístico não seja entendido. Em uma análise preliminar, portanto, independe se o texto está em português, em nossa língua materna, ou em castelhano, inglês ou até russo. A mancha no papel será “escaneada” pelo nosso olhar curioso e gerará uma 8 primeira decodificação. Curiosamente, a mancha no papel da Figura 1 se transformou em segundos em um exemplo de poema. Agora, será que o mesmo acontecerá se você abrir uma obra desconhecida e vislumbrar a Figura 2, apresentada na página a seguir? Figura 2 – Reprodução de uma página do romance O cortiço Fonte: Azevedo, 1973, p. 103. Ao escanear a mancha no papel, lhe parece que a obra se trata de mais uma antologia de poemas, de um livro ligado ao gênero lírico? Como leitor, muito provavelmente, ao se basear apenas na construção visual, uma das primeiras hipóteses a serem refutadas é que se trata de um poema, justamente porque temos certo padrão para identificar o lírico (que não será respeitado por diversas escolas literárias e por projetos como os de Oswald de Andrade, por exemplo). Sendo assim, pautando-se apenas com a informação padrão, a de maior 9 recorrência, é bem provável que a sua hipótese será a de que se trata de um texto do gênero narrativo, que se trata de um fragmento de um romance ou de um conto, por exemplo. Pois bem, a sua intuição acionada com base na observação da mancha no papel estava correta, já que a imagem é uma reprodução de uma página do romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo, publicado no final do século XIX, em 1890. A proposta de avaliar a mancha no papel é uma provocação, um exercício que muitos leitores já fazem ao se deparar com um livro novo, ainda que não tenham essa ação de maneira sistematizada. Agora, como investigadores da área de Letras, cabe-nos expandir essa primeira impressão, usando tal estratégia, inclusive, como elemento para uma análise mais criteriosa e crítica. Muito além de servir como uma ferramenta para categorizar um texto como exemplo do gênero narrativo, lírico ou dramático, descobriremos que a mancha no papel também pode ser o resultado de uma decisão para criar tensão ou mesmo para gerar efeitos de sentido no texto. No caso do gênero lírico, por exemplo, discutiremos posteriormente como a disposição da mancha no papel servirá com um recurso para pensar na concretude das palavras e na multiplicação de significados. Por ora, mesmo que com reservas, parece que a mancha no papel nunca mais será avaliada despretensiosamente. TEMA 3 – NARRATOLOGIA: ELEMENTOS NARRATIVOS Depois de destacar a ideia da mancha no papel, esta aula tem como proposta abrir um capítulo especial para pensar em um dos gêneros literários: o gênero narrativo. A proposta de dar dimensão para esse gênero é o fato de que, como leitores, acabamos por ter grande parte do nosso contato diário com diferentes formas fixas narrativas, seja por conta da leitura de um romance, do acompanhamento de um conto, pela leitura de uma crônica compartilhada no Facebook por alguém que faz parte da nossa rede de contatos ou mesmo por um trecho de um ensaio lido na época do ensino médio. Se, na época de Aristóteles, o gênero narrativo já era foco de interesse (sendo, muitas vezes, personificado pela épica), no nosso tempo, a sua dimensão parece ter sido ainda mais multiplicada. São diferentes as formas possíveis para a construção de uma narrativa, apresentando desde elaborações mais complexas e abertas, como é o caso do romance, passando por resoluções como a novela, o conto, o miniconto, o ensaio, a crônica, dentre outros. De 10 maneira geral, o gênero narrativo acabou ganhando a figura de destaque dentro os gêneros literários, sobretudo após o impacto causado pela elaboração dostipos móveis fundidos, invenção do alemão Johannes Gutenberg no ano de 1455. A partir do final do século XV, então, a maneira de se difundir e se publicar um texto se transforma exponencialmente, permitindo, dentro do contexto da época, um maior acesso aos textos literários. Ao longo dos séculos XVI e XVII, sem dúvida alguma, o número de leitores passa a se elevar, ainda que fosse limitado a pequenos estratos sociais e campos intelectuais. Será no século XVII, inclusive, que a literatura ocidental testemunhará a publicação de uma obra narrativa que mudará o rumo de se pensar a literatura, dando ênfase para o diálogo concreto entre as obras. Alude-se, aqui, ao romance Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, com a sua primeira parte publicada em 1605 e a segunda em 1614. Perceba que a obra cervantina tem relação direta com uma forma fixa do gênero narrativo: o romance. Será exatamente tal modalidade narrativa que será eleita como uma espécie de porta-voz do leitor moderno, principalmente de uma camada social chamada de burguesia. Diante de um afã para registrar uma nova história, diferente daquela heroica e aristocrática, a perspectiva burguesa acabou fazendo do gênero narrativo e, pontualmente, do romance, a voz de um novo tempo. A preocupação é cada vez maior para aquilo que se entende como realismo, uma marca fundamental para diferir os interesses da narrativa moderna do que até então era trabalhado na narrativa clássica. No ensaio A ascensão do romance (publicado em1957), o teórico Ian Watt (2010), ainda que estivesse pensando sobre a forma fixa do romance, ajudará a entendermos as diferenças entre as narrativas moderna e clássica. uma característica do romance que é análoga ao atual significado filosófico do “realismo”: o gênero surgiu na era moderna, cuja orientação intelectual geral se afastou decisivamente de sua herança clássica e medieval rejeitando – ou pelo menos tentando rejeitar – os universais. Certamente o moderno realismo parte do princípio de que o indivíduo pode descobrir a verdade através dos sentidos: tem suas origens em Descartes e Locke e foi formulado por Thomas Reid em meados do século XVIII. (Watt, 2010, p. 12) Ao dar ênfase à individualidade, a narrativa girará o seu eixo não para o herói, um semideus como Aquiles, mas para a perspectiva do homem comum, do João da Silva, de um certo Tom Jones, como foi o caso do romance Tom Jones (1749), do escritor inglês Henry Fielding. Watt dedicará atenção especial 11 para o desenvolvimento do apetite romanesco na literatura, relembrando o fato de que [o] romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. As formas literárias anteriores refletiam a tendência geral de suas culturas a conformarem-se à prática tradicional do principal teste da verdade: os enredos da epopeia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e avaliavam-se os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro derivada dos modelos aceitos no gênero. O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade. (Watt, 2010, p. 13) Explicada a razão da dimensão assumida pelo romance e a relevância do gênero romanesco quando comparado aos demais (lírico e dramático), na teoria literária, passará a ganhar destaque uma área específica apenas para pensar a narrativa. É assim que, na década de setenta do século XX, será consagrada a narratologia, sobretudo por conta do nome do estudioso Gérard Genette, numa obra seminal e que, sem dúvida alguma, o acompanhará em sua formação como aluno de Letras. Alude-se aqui à Discurso da narrativa: ensaio do método (1979), resultado de uma compilação das reflexões de Genette realizadas em um seminário na École Pratique des Hautes Études, na França. No início desta obra, Genette fará menção ao termo narratologia (Genette, 1979, p. 20), apresentando aos seus leitores o que seria a área que deveria abarcar os estudos sobre as narrativas. Ao tomar como exemplo alguns dos romances do francês Marcel Proust, Genette fará uma importante diferenciação entre as ideias de história, narrativa e narração. Para ele, a história é “o significado ou conteúdo narrativo” (Genette, 1979, p. 25); a narrativa, por sua vez, seria o “significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si” (Genette, 1979, p. 25); finalmente, a narração seria o “acto narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar” (Genette, 1979, p. 25). Falando de outra forma, a história seria o que se conta, a narrativa o como e de que forma se conta e, por último, a narração o próprio ato de contar. Os estudos da narratologia passam a se interessar por cinco elementos principais, que seriam como uma espécie de pilares de toda e qualquer narrativa. Trata-se, pois, dos seguintes eixos: narrador, tempo, espaço, personagens e enredo. Vale lembrar que, para pensar nos elementos que constituem os estudos 12 da narratologia, Genette se baseia em contribuições realizadas anteriormente, como foi o caso de Todorov. Vejamos, a seguir, o primeiro elemento-chave para a narratologia: o narrador. TEMA 4 – O NARRADOR E O JOGO NARRATIVO De todos os elementos que compõem uma narrativa, segundo Genette, a instância do narrador se constitui como uma espécie de eixo fundamental, justamente por assumir a responsabilidade de apontar de que forma uma história será contada. Não à toa, o narrador é também aludido por alguns pesquisadores como foco narrativo ou perspectiva narrativa. É com base nos “olhos” do narrador que os leitores serão apresentados a uma história, baseada em uma versão ou perspectiva dos fatos (cada vez mais, como leitores e estudiosos da literatura, passamos a desconfiar do narrador e da impossibilidade de uma verdade absoluta ou totalidade de uma história). O pesquisador Luís Miguel Cardoso (2003, p. 57) relembra que “O narrador é considerado como o agente, integrado no texto, que é responsável pela narração dos acontecimentos do mundo ficcional, sendo, por este motivo, distinto do autor empírico e mesmo das personagens desse mundo ficcional, pela amplitude narrativa”. Aprendemos, dessa forma, que o foco narrativo, a instância do narrador não é a mesma de quem escreve a narrativa. A diferença dada pela narratologia é fundamental, não apenas para que nos afastemos de uma leitura de corte puramente biográfico, mas, principalmente, para que possamos valorizar o potencial de arquitetura narrativa. Assim, passa a ser possível entender o porquê de as narrativas escolherem tipos de narradores diferentes para serem armadas. Há, pois, três tipos principais de narrador: 1. Narrador autodiegético (quando o narrador é a personagem principal da narrativa); 2. Narrador homodiegético (aquele que participa da ação como personagem); 3. Narrador heterodiegético (voz que não participa diretamente da ação narrada e que, muitas vezes, parece assumir um grau de omnisciência, ou seja, de conhecimento total dos fatos). 13 O último tipo de narrador, o narrador heterodiegético ou de terceira pessoa, acabou definindo muitas das narrativas do século XIX, assumindo aquele olhar quase de um Deus, capaz de narrar e de dizer o que se passa na cabeça de todas as personagens. Em uma entrevista cedida ao pesquisador João Adalberto Campato Júnior, o crítico português Carlos Reis propõe exatamente uma discussão a respeito da omnisciência do narrador: É verdade que associamos o termo omnisciência a propriedades divinas, de transcendente conhecimento das coisas e das pessoas.Mas em regime homo e autodiegético, essa omnisciência é por assim dizer (e mesmo que a expressão pareça estranha, neste contexto) relativizada à capacidade de conhecimento de uma personagem agora narrador, que sabe mais, muito mais, do que quando era simplesmente personagem. Trata-se de uma sabedoria experienciada e temporalmente sustentada - hoje sabemos mais do que ontem e no próximo ano mais do que neste e assim sucessivamente -, incutido a quem narra a sua própria vida, aventuras e desventuras uma sabedoria peculiar. Parece excessivo chamar omnisciência? Talvez. Então a questão é a de saber que termo substituiria este. (Reis, citado por Campato Júnior, 2004, p. 8) Afastando-nos um pouco do narrador heterodiegético e a modo de exemplificação de um narrador autodiegético, escolhemos apresentar a seguir um fragmento da narrativa Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), obra da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus: 17 de maio. Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com o meu filho José Carlos sem motivo. ... Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis [sic]. Ficam esperando os preços subir na ganância de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monótono [sic]. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas: - Hum! Tá gostosa! A Dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre. (Jesus, 2013, p. 33-34). TEMA 5 – TEMPO, ESPAÇO, ENREDO E PERSONAGENS Após examinarmos algumas das características do que chamamos como elemento-chave da narratologia, o narrador, resta-nos comentar brevemente a respeito dos demais elementos de uma narrativa. O tempo é apontado por Genette como mais um dos elementos constituintes da narrativa, estando ele relacionado não apenas à dimensão 14 cronológica, ou seja, ao período temporal narrado, mas também à questão psicológica do tempo. Se pensarmos na arquitetura de uma narrativa, será possível perceber que nem sempre a escolha do foco narrativo será pautada pela observação linear do tempo, usando, para isso, recursos como analepse (flashbacks para contar fatos que ocorreram anteriormente ao material narrado) e prolepses (adiantamentos de ações que estão no futuro). Ao pensar sobre o tempo, Genette (1979, p. 33) pondera sobre como [e]studar a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida deste ou aquele indício indirecto. Com base nos estudos da narratologia, será possível destacar como o gênero narrativo fará a distinção entre o tempo da narrativa (matéria ficcional narrada) e o tempo da narração (como tal matéria é narrada). De acordo com o caso, os tempos da narrativa e da narração podem variar, ajudando a construir o tensionamento e a relação com o leitor. O espaço é outro elemento pertencente ao gênero narrativo. Nele, é possível vislumbrar onde é desenvolvida uma narrativa. Da mesma forma que ocorre com o tempo, o espaço pode assumir uma perspectiva física e psicológica. No primeiro caso, o espaço pode ser resumido em uma cidade, uma região ou até mesmo um lugar específico, como um bar, uma delegacia, um aeroporto ou uma sala de consulta de uma cartomante, por exemplo. Em outros casos, a narrativa pode fundamentar o espaço não a partir de demarcações físicas – paredes ou outros perímetros –, mas via a própria consciência de uma personagem. Casos como esse podem ser exemplificados por projetos narrativos que valorizam o fluxo de consciência de uma voz ficcional (casos emblemáticos são os romances de Clarice Lispector). O enredo, por sua vez, ganha atenção na narratologia por determinar o tema ou assunto de uma narrativa. Mais do que aludir à temática de uma narrativa, o enredo, de alguma forma, assume a função de organizar o foco narrativo. A instância das personagens é, finalmente, o último elemento selecionado pela narratologia como constituinte do gênero narrativo. As personagens são, pois, as vozes escolhidas para dar dimensão ao enredo e ao foco narrativo. O grande destaque é que essas podem ser planas ou redondas. Personagens 15 planas seriam aquelas que parecem não apresentar ambiguidades ou grandes contrastes, sendo elas avalizadas por uma perspectiva maniqueísta. Na prática, isso significa que as personagens são ou boas ou ruins. Do contrário, as personagens redondas demonstram a impossibilidade de um discurso dualista ou simplificado. Pensando na literatura brasileira, um exemplo irresistível seria a personagem Macunaíma, do romance homônimo de Mario de Andrade. NA PRÁTICA Após repassar as discussões deste encontro, responda: 1. No Ocidente, o desenvolvimento da narrativa de forma geral está relacionado com quais transformações extratextuais? 2. Segundo os estudos da narratologia, quais são os elementos que constituem a narrativa? Faça um resumo breve de cada elemento, buscando exemplos a partir de fragmentos literários escolhidos por você. FINALIZANDO Após dar dimensão às problematizações a respeito do conceito de literatura e do campo intelectual e literário que o legitima, a nossa disciplina abriu uma nova etapa para pensar o desenvolvimento dos gêneros literários. Foi dada atenção especial à diferenciação mais epidérmica entre dois gêneros literários: o narrativo e o lírico. Ao aludir ao que chamamos de mancha no papel, foi possível exemplificar como, de forma geral, muitos acabam diferenciando – em um primeiro nível de leitura – um romance de um poema. O nosso terceiro tema, no entanto, privilegiou as discussões a respeito do gênero narrativo. Para tanto, foi necessário contextualizar algumas das transformações extratextuais responsáveis pela consagração das narrativas desde o século XV até a contemporaneidade. Para os estudos literários, a década de 70 acaba se transformando em um período emblemático, sobretudo por conta do desenvolvimento da narratologia com base nas contribuições de Gérard Genette. Via narratologia, demos destaque aos seus elementos constituintes (narrador, enredo, tempo, espaço e personagens), reservando espaço para diferenciá-los de forma clara e objetiva. 16 REFERÊNCIAS ALVES, J. É. L. et al. Estruturas do texto literário. Curitiba: InterSaberes, 2013. ANDRUETTO, M. T. Hacia una literatura sin adjetivos. Córdoba: Comunic- Arte, 2013. ARISTÓTELES. Arte poética. Brasília: Domínio Público, 2001. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000005.pdf>. Acesso em 22 mar. 2019. AUERBACH, E. Mímesis: a representação da realidade ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971. AZEVEDO, A. O cortiço. Rio de Janeiro: Americana, 1973. BOLAÑOS, A. G. Las otras (Antología mínima del silencio). Madrid: Ediciones Torremozas, 2004. CAMPATO JÚNIOR, J. A. 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