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1 CASOS CLÍNICOS DO AMBULATÓRIO DE CUIDADOS PALIATIVOSDA UNIFESP

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1 CASOS CLÍNICOS DO AMBULATÓRIO DE CUIDADOS PALIATIVOSDA UNIFESP-EPMChefe: Prof. Dr. Marco Tullio de Assis FigueiredoCasos para discussão didáticaA maior satisfação do grupo de cuidados paliativos é o surpreendente resultadoalcançado com os pacientes e seus familiares. O breve relato de alguns casos, faz-senecessário para a melhor compreensão e julgamento de nossa luta.1-
 
FMF, homem, 83 anos, procedente do sertão paraibano, portador de um câncer de pele, de evolução lenta, que lhe destruira a hemiface D. Chegou ao Hospital SãoPaulo com pedido médico de avaliar o caso sobre a possibilidade de reconstruçãoda hemiface. Infelizmente, ainda existia tumor residual em atividade, o que eraimpeditivo de nova intervenção cirúrgica. Queixava o paciente tão somente, dedor facial do mesmo lado do tumor. FMF era pai de 26 filhos, nascidos de 2casamentos: com a primeira esposa teve 16(ficou viuvo) e com a segunda, 10.Apesar da destruição da hemiface D, que mantinha oculta sob curativo, massalivando muito o que o obrigava a freqüente cusparadas e a manter lenço à boca,o paciente esbanjava simpatia, era comunicativo e cooperante. “Enturmou-se”logo com a equipe. O dentista Zeca verificou que a dor facial era causada por umaraiz exposta, que removida acabou com o sofrimento. Não havia necessidade demedicamentos, mas tão somente a freqüente troca de curativos. Essa infelizmentecausava-lhe desconforto devido à aderência da gaze ao tecido de granulação daferida aberta. Durante a sua estadia conosco, estabeleceu-se uma comunicaçãodireta entre a cavidade oral e o céu aberto, e conseqüente exposição da lingua, oque se tornou desconfortável ao paciente. Decidimos que o paciente(temporariamente hospedado na casa de um neto, cuja esposa estava em adiantadoestado de gravidês) poderia voltar ao seu lar, no sertão paraibano. Eu cheguei aredigir um relatório para o diretor médico do hospitalzinho mais próximo, distante2 horas de onibus, de sua morada. Mas o nosso amigo disse que para a Paraiba elenão mais voltaria. Ele irá mandar buscar a sua esposa. Indaguei-lhe a razão darecusa, e ele me disse que aqui ele era muito bem tratado, querido e paparicado,eaqui permaneceria até o fim. Ao longo dos 4 meses em que o tivemos, as suasvindas ao ambulatório eram um verdadeiro festival de abraços e beijos (dasminhas meninas) tanto na chegada como na despedida. Devido ao seu progressivo enfraquecimento, ele acabou por não mais retornar ao ambulatório,mas nós sempre o acompanhamos através do telefone, orientando os familiaresquanto às etapas do processo do morrer. FMF faleceu sem sofrimento fisico, emcasa, com a esposa, filhos e netos, e foi sepultado em São Bernado do Campo.Epílogo- O câncer da face não lhe causou dor física, mas sim uma enormedesfiguração, que provavelmente lhe deve ter custado algum embaraço deconvívio social. Embora não aparente, o embaraço me parece ser revelado pelo
 
 2 seu desejo de permanecer entre nós, a ponto de mandar buscar a sua esposa. Entrenós ele sempre foi recebido com carinho, atenção e respeito. A sua doença foicuidada, mas a sua pessoa era respeitada e querida. Segundo a família, a suamorte foi tranqüila e digna. Eles e nós ficamos agradecidos pelo resultadoalcançado. Custo de medicamentos e exames ZERO. Custo da equipeIMPAGÁVEL.2-
 
AS, homem, 66 anos, veio ao ambulatório em cadeira de rodas. Acompanhavam-no uma filha e seu marido, e um filho. O paciente e o filho eram surdomudos, e afilha portadora de deficiência auditiva severa, comunicando-se através da leiturados lábios. O paciente muito emagrecido, com as roupas folgadas e pendentes,cabeleira grisalha, revolta. Fácies de sofrimento crônico, olhar cansado, poucoatento, notando-se globo ocular E protruso. Desde logo chama atenção aexistência de incontáveis nódulos cutâneos, violáceos ou enegrecidos,disseminados por todo o corpo, sem poupar regiões. De tamanho variado, desde 2mms em diâmetro até 4 cms. Consistência firme-elástica. No rosto a barba estácrescida, denotando ausência de corte há algumas semanas. Através da filhasoubemos que o paciente passara a apresentar a disseminação dos nódulos há maismenos seis meses. Matriculado no Hospital São Paulo, o exame histopatológicode um nódulo revelou metástase de melanoma maligno. Há referência ametástases no fígado e inúmeros grupos de linfonodos superficiais e profundos;metástases pulmonares. Considerado fora de possibilidades terapêuticas curativas,ele foi referido à Oftalmologia que diagnosticou oftalmite E e iniciou tratamentolocal e com antibiótico. A seguir essa clínica referiu o paciente para os cuidados paliativos. Na primeira consulta, pudemos apurar que o paciente queixava-se de doresdifusas pelo tronco, de intensidade 5 (EVA), de carater obtuso, não sofrendoalteração pela movimentação. Prescrevemos codeina 30 mg 4/4 hs. e decidimosque havia necessidade de visitá-lo no seu domicílio. A visita domiciliar 2 semanasdepois foi realizado pelo Dr. Marco Tullio e a enfermeira Luciana. O paciente,sua esposa (tambem surdamuda) e o filho moram no mesmo apartamento. Imóvel pequeno, com 3 dormitórios, banheiro, sala, cozinha e área de serviço, situado no3º andar, fazendo parte de um conjunto residencial popular. Arejamento einsolação adequadas, limpeza boa. A esposa estava preparando o almoço do paciente – sopa de batata, com legumes. Encontramos o paciente deitado no sofá,calado, emsimesmado. O seu aspecto era de profundo descuido com a própria pessoa; a barba estava crescida e mal tratada; no bigode havia restos de refeiçãoanterior aderida aos pelos; lábios ressequidos, lingua saburrosa. A pedido daenfermeira, o paciente encaminhou-se amparado para o banheiro, onde ele sentou-se no vaso e debruçou-se na pia. Luciene lavou-lhe cuidadosamente o rosto, pescoço, cabelos foram lavados, desembaraçados e penteados. A barba foiaparada com tesoura (não dispunhamos de navalha e/ou lâminas).Enquanto os procedimentos de higiene pessoal eram efetuados, a esposa porgestos e mostrando-me recortes de jornais e fotos, contou-me parte da história
 
 3 pessoal de AS. Ele é um artista plástico (pintor), fundador da feira de arte eartesanato da Praça da República, muito conhecido, e especialista em igrejas, earquitetura barroca brasileira; mostrou-me alguns quadros existentes noapartamento e diversas fotos de suas obras. Em minha opinião elas são bem fiéis.A esposa é tambem artista plástica, especializada em entalhe de madeira. Emmeio ao farto material de noticiário jornalesco, críticas e comentários, 2 fotoschamaram a minha atenção. Uma, tirada em praia de Santos mostra um homem jovem, de seus 30 anos, queimado de sol, belo de rosto, com farta cabeleira lourae um invejável físico apolíneo. Outra, em recorte de jornal, mostra o paciente, jáde meia idade, mais pesadão, mas ainda atraente de físico, sorrindo, ao lado deuma coleção de quadros seus, expostos na Praça da República. Datado do ano de1999. As duas fotos contrastavam penosamente com aquela triste imagem de umhomem emagrecido, deformado pelos inúmeros nódulos tumoraes. Terminado oseu trabalho com o paciente, a enfermeira Luciana comentou comigo que ficaraimpressionada com o mutismo (apesar de ser o mudo o doente) e indiferença do paciente, durante o período de um pouco mais de uma hora de higienização easseio do paciente. Na volta ao ambulatório eu comentei com a Luciana a depressão do pacientee a debacle de sua autoestima. Em apenas dois anos, o melanoma devastara fisica-mente aquele belo homem, que embora surdomudo ainda não era cego. À degra-dação física ele respondia com a destruição de sua auto-estima.Acompanhamos o paciente à distância. O melanoma invadira as duas órbitasacarretando a destruição dos olhos. O paciente era agora tambem um cego!A destruição da pessoa completara-se.Certa noite eu sou chamado ao telefone para falar com os familiares. Eles esta-vam no Pronto Socorro de Hospital São Paulo. Eu pedi para chamarem o mé-dico atendente, que me informou ter a família levado o paciente ao PS por receiode um sangramento externo devido à rotura deum nódulo tumoral. Expliquei aocolega que efetuasse o curativo, e que desse alta ao paciente. Ele estava morrendoe deveria morrer em sua casa. Falei novamente com a família e reforcei a recomendação para regresso ao lar. Cego, surdomudo, em profunda depressão, oPronto Socorro definitivamente não era o lugar adequado para ele morrer.A companhia da família era tudo o que restava a esse esposo e pai globalmentedestruido pelo câncer. E assim foi feito. No correr do dia seguinte ele veio afalecer.Epílogo - A visita domiciliar foi elemento capital para entender a depressão queassaltava o paciente. O impeto de ir levar o paciente ao Pronto Socorro, eradesastroso, e eu penso que nós não fomos suficientemente incisivos em esclarecere enfantisar à família, a inutilidade e inconveniência da iniciativa. Semanas maistarde, eu vi frustadas as tentativas de contatar a família, como é a nossa orientaçãoEla certamente está magoada conosco por não a termos prevenido sobre o risco.

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