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LOCAST CIVIC MEDIA INTERNET MÓVEL, CIDADANIA E INFORMAÇÃO HIPERLOCAL Org. Eduardo Campos Pellanda (PUCRS) Apresentação: Federico Casalegno (MIT) LOCAST CIVIC MEDIA INTERNET MÓVEL, CIDADANIA E INFORMAÇÃO HIPERLOCAL Porto Alegre 2010 © EDIPUCRS, 2010 CAPA Rodrigo Valls ILUSTRAÇÃO DA CAPA Bruno Todeschini REVISÃO DE TEXTO Julia Roca dos Santos EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Gabriela Viale Pereira L811 Locast civic media : internet móvel, cidadania e informação hiperlocal [recurso eletrônico] / org. Eduardo Campos Pellanda ; apres. Federico Casalegno. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010. 152 p. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: <http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/edipucrs/Capa> ISBN 978-85-397-0058-5 (on-line) 1. Comunicação e Tecnologia. 2. Comunicações Sem Fio. 3. Redes Sociais. 4. Jornalismo. I. Pellanda, Eduardo Campos. II. Casalegno, Federico. CDD 301.16 SUMÁRIO Apresentação: Locast: transmissões baseadas no local geográfico, computação móvel em rede e conteúdo pelo usuário ..................... 7 Federico Caslaegno Introdução ......................................................................................... 12 Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação ..................................................................................... 13 Eduardo Campos Pellanda Narração caminhante: as possibilidades da plataforma Locast ... 24 Mágda Rodrigues da Cunha Locast e o potencial da informação geolocalizada ........................ 41 André Fagundes Pase Locast Civic Media e as redes sociais móveis na reconfiguração dos espaços urbanos ....................................................................... 45 Sandra Henriques Mídia Cidadã: repensando o Jornalismo ........................................ 63 Eduardo Ritter Espaços híbridos, a plataforma Locast e algumas possibilidades ..74 Stela Menezes A relação entre o LocastPOA e seus integrantes: uma leitura da produção de sentido ........................................................................ 80 Polianne Merie Espindola Mobilidade e descentralização: Projeto Locast .............................. 92 Gustavo Buss Cezar Jornalismo Colaborativo: uma leitura do imaginário de Porto Alegre através da Plataforma Locast ........................................................ 111 Ana Cecília Bisso Nunes Priscilla Guimarães Jornalistas cidadãos ...................................................................... 123 Inaiara Cunha Locast: Jornalismo Colaborativo e mídias móveis ...................... 128 Bruno Germer Moraes Mauro de Oliveira Plastina Locast Civic Media: Jornalismo Colaborativo como prática da cidadania e impulso para a ubiquidade da informação ............... 136 Nayane Schaun Brose Mudando o tom: a Plataforma Locast e a publicidade no cotidiano de Porto Alegre. .............................................................................. 144 Gabrielli Tiburi Soares Pires APRESENTAÇÃO LOCAST: TRANSMISSÕES BASEADAS NO LOCAL GEOGRÁFICO, COMPUTAÇÃO MÓVEL EM REDE E CONTEÚDO PELO USUÁRIO Em 2008, com a minha equipe no MIT Mobile Experience Lab, começamos um projeto de pesquisa com a RAI New Media, a televisão estatal italiana. Começamos a repensar a televisão, a comunicação e o ecossistema de informação, bem como uma nova forma de as pessoas terem acesso e distribuir conteúdos, baseados em três pressupostos iniciais básicos: 1) a informação da televisão também é distribuída no ambiente físico e não mais somente trancada em casa; 2) a televisão está ligada, como um palimpsesto, pode ser um lugar para nossas redes sociais; 3) a informação é híbrida, misturando o conteúdo gerado pelo usuário com o conteúdo de autoria. Nós projetamos o Locast, que significa transmissão de eventos baseadas em local [location+ narrow casting], para ser uma plataforma de localização flexível e de vanguarda que combina conteúdos Web distribuídos e aplicações móveis, que criam experiências hiperlocais e altamente conectadas. Locast sobrepõe camadas de informação dentro do espaço físico. Este aumento de espaço real é escolhido democraticamente pelos usuários do Locast, em tempo real, à medida que participam no processo de geração de conteúdo. Cada interação dentro do sistema pode ser vista simultaneamente pelas pessoas envolvidas no espaço físico e aquelas que participam online. A interligação entre os conteúdos, espaços e pessoas é simultânea e ubíqua. O Locast usa serviços baseados em localização a fim de melhorar o conhecimento do contexto oferecendo um conjunto de ferramentas para reconhecer a localização e melhorar a navegação e aumentar a quantidade de informações de qualidade e acessíveis. A plataforma Locast é projetada para ser facilmente combinada com o hardware externo, como dispositivos portáteis, sensores ambientais e outros aparelhos eletrônicos altamente específicos que melhorem o seu potencial 8 CASLAEGNO, F. • Locast através de recursos adicionais. A filosofia Open-API torna o Locast uma plataforma ideal para ser aplicada em um número de diferentes contextos, tais como: mídia cidadã, turismo, engajamento cívico, aprendizado baseado no local, jogos urbanos e muitos mais. Locast é uma plataforma que nos permite projetar rapidamente protótipos e experimentar uma variedade de projetos e ideias. O primeiro projeto foi a experiência de viagem, que nós dividimos em quatro fases: 1. Organizar Enquanto ainda em casa, os usuários podem organizar a visita, e o Locast fornece uma visão geral sobre o lugar que se deseja conhecer. Os usuários podem acessar vídeos postados pela transmissão da TV RAI ou obtidas pelos arquivos da RAI, ou ainda acessar o conteúdo compartilhado em tempo real por Locasters durante as suas visitas: com roteiros, eBooks e documentos em PDF para serem baixados e lidos quando desejado. 2. Viagens Ao viajar para o destino, o Locast mantém os usuários informados sobre transportes, previsão do tempo, webcams e alertas de tempo importantes. Usuários podem também criar um guia personalizado e baixá-lo em seus dispositivos móveis (iPods, telefones etc.) para os podcasts serem vistos enquanto viajam para chegar ao seu destino. 3. Descubra e compartilhe O Locast oferece uma série de ferramentas para melhorar a experiência durante a visita. Sua infraestrutura baseada em uma aplicação web distribuída, um serviço móvel e um dispositivo de visualização de dados wearable pode aumentar a percepção dos espaços e adicionar-lhes novos elementos que enriquecem o conjunto da experiência. A aplicação móvel dá aos seus usuários uma ferramenta eficaz para navegar e orientar, uma vez chegado ao destino. Além disso, os usuários podem assistir a vídeos extraídos de Locast Civic Media 9 arquivos da RAI ou compartilhados por outros Locasters, capturar seus próprios vídeos e espalhá-los em tempo real para a comunidade da plataforma e a todos os amigos em sua rede social (Facebook ou Twitter). Graças ao sistema de posicionamento XPS, as características de localização também estão disponíveis em locais fechados. Finalmente, um dispositivo para vestir pode ser usado para se mover com precisão na cidade, facilmente seguir itinerários e alcançar os lugares que se quer visitar. 4. Mantenha-se em contato A plataforma Locast permite aos usuários compartilhar memórias e as mantém vivas também na volta para casa. Graças à URL personalizada/página, você pode compartilhar com toda a comunidade Locast, amigos ou pais,a sua experiência em Veneza. No dispositivo de visualização wearable, os dados podem ser convertidos em uma moldura que exibe em tempo real imagens provenientes de outros usuários que estão visitando Veneza com o Locast. Após o sucesso desta primeira aplicação, iniciou-se uma colaboração frutuosa com a Faculdade de Comunicação da PUCRS (FAMECOS), em Porto Alegre, onde os talentosos professores e estudantes trabalham em um projeto de engajamento cívico. Com o objetivo de promover o jornalismo participativo e o engajamento cívico, nós projetamos o Locast Civic Media como plataforma móvel e web para exercer a cidadania no processo de captura, reportagem e disseminação de notícias e informações relacionadas com o ambiente urbano. A aplicação móvel permite ao usuário criar reportagens de rua (casts) através de vídeo e áudio e decidir se devem ser apresentados individualmente ou em conjunto com outros tópicos agrupados em áreas ou assuntos. Casts e projetos são criados, coletados e compartilhados em tempo real no site Locast, onde os membros da comunidade inteira podem juntar-se a conversas e comentários de outros casts. O projeto de pesquisa visa explorar a mídia baseada em localização como uma ferramenta para aumentar a conscientização dos cidadãos sobre eventos e dinâmicas sociais que ocorrem ao seu redor. 10 CASLAEGNO, F. • Locast Mais importante ainda, pretendemos observar as dinâmicas que permitem que os cidadãos participem ativamente e se envolvam na comunidade com o compartilhamento de eventos através do Locast. O objetivo principal do projeto foi entender como redes sociais móveis poderiam impactar a cidade e a mídia representativa com as pessoas, ajudando o outro a manter-se informado, socializado e participar ativamente do processo de produção. Professores e alunos da FAMECOS foram envolvidos ativamente no projeto, e tornou-se possível trabalhar como jornalistas na rua durante todo o período da pesquisa de campo. Alguns dos principais aspectos do projeto Locast Civic podem ser resumidos nos seguintes pontos: Hiperlocal: O Locast Civic Media fala sobre sua cidade, região, bairro, rua. Propõem-se narrações locais para complementar as globais provenientes de meios de comunicação oficiais. Participativo: Os cidadãos de forma autônoma criam reportagens, discutem com a comunidade e redefinem a agenda de pautas. Flexível: O Locast oferece várias opções para participar na comunidade. Qualquer pessoa com um equipamento digital básico e uma conexão à internet pode encontrar uma maneira de fazer a sua voz ser ouvida. Space 2.0: O Locast aumenta o espaço físico com múltiplas camadas de informações que são democraticamente geradas de baixo para cima por seus usuários. Tempo Real e Onipresente: Jornalistas e cidadãos usando o nosso aplicativo móvel estão estreitamente relacionados com o resto da comunidade. Quando a conversão é criada, ela se torna imediatamente disponível online para ser analisada e visualizada pelos outros membros. Locast Civic Media 11 Os docentes e alunos envolvidos no projeto têm trabalhado muito e apaixonadamente para explorar e repensar a melhor forma de utilizar a comunicação em rede para melhorar o envolvimento cívico com processos democráticos. Esta publicação ilustra elementos-chave do projeto, mostra a riqueza da pesquisa e da oportunidade de uma melhor concepção de um ecossistema de mídia interativa para apoiar o envolvimento cívico e o jornalismo participativo. Federico Caslaegno Massachusetts Institute of Technology Mobile Experience Lab, Lab Design http://mobile.mit.edu http://locast.mit.edu Agradecimentos: Obrigado ao MIT Mobile Experience Lab, à equipe Locast, em particular a David Boardman e Steve Pomeroy, e à Faculdade de Comunicação da PUCRS (FAMECOS). Tradução: Eduardo Campos Pellanda INTRODUÇÃO Este livro é um relato da pesquisa Locast Civic Media, que, em novembro de 2009, esteve realizando o seu teste nas ruas de Porto Alegre. A união da Faculdade de Comunicação da PUCRS (Famecos) e do Mobile Experience Lab (MEL), do MIT, proporcionou este experimento que foi um exemplo de pesquisa aplicada na área da comunicação. O projeto envolveu alunos de graduação, pós-graduação e pesquisadores das duas instituições que em parte estão representados neste trabalho. Para que tudo fosse possível, tivemos o apoio fundamental do Grupo RBS e da TIM, que não só contribuíram para a infraestrutura do experimento, mas participaram ativamente dos testes. A adição de uma empresa de comunicação como RBS foi fundamental para que fosse possível estudar o funcionamento de uma plataforma como o Locast em um ambiente de jornalismo profissional. Todas estas conexões nos mostraram fundamentalmente que é possível agregar várias partes da sociedade e duas renomadas instituições de pesquisa para investigar as respostas para todas as novas e complexas transformações do universo da comunicação. PROJETO LOCAST COMO EXEMPLO DE PESQUISA APLICADA EM COMUNICAÇÃO Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda1 RESUMO Este texto busca relatar algumas percepções do experimento com a plataforma Locast. Trata-se de um sistema de publicação de vídeos através de celulares, desenvolvido pelo Mobile Experience Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT – MEL), que contou com a colaboração de desenvolvimento da PUCRS. A plataforma móvel e online permite aos usuários atuarem de forma ativa no processo de coletar, reportar e disseminar notícias e informações relacionadas com as suas rotinas urbanas. O principal objetivo deste experimento foi entender como se dá a conexão dos locais físicos com os fatos e as informações no ciberespaço. A plataforma teve como foco a discussão e a potencialização de um novo canal de cidadania. PALAVRAS-CHAVE: mobilidade; espaços físicos; virtualização; cidadania; internet. O desenvolvimento das plataformas móveis de comunicação tem integrado a percepção de ambientes virtuais e espaços físicos (PELLANDA, 2005). Esta relação acaba transformando a experiência de obtenção de informações relacionadas aos pontos geográficos viabilizadas por tecnologias de detecção de localizações. Esta possibilidade pode vincular acontecimentos com os seus espaços físicos, o que potencialmente pode significar uma nova forma de percepção de notícias, acontecimentos e relatos que acontecem em volta do indivíduo. Neste contexto, este texto busca relatar algumas percepções do experimento com a plataforma Locast.2 No princípio da Internet, a conexão era restrita aos pontos baseados em computadores pessoais conectados aos cabos de rede que 1 Professor e pesquisador da Famecos, da PUCRS, e membro do Programa de Pós- Graduação da mesma instituição. Coordenador do projeto Locast pela PUCRS. 2 http://locast.mit.edu/. 14 PELLANDA, E. C. • Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação necessariamente precisavam estar dentro de ambientes fechados. Como consequência, os lugares na cidade estavam deslocados do contexto de dados (MITTCHELL, 2003) não potencializando conexões importantes de contexto histórico, características físicas e outros elementos peculiares dos espaços tangíveis. A profusão dos aparatos móveis, como smartphones atrelados ao espaço de redes de terceira geração, tem caracterizado um quadro de novas janelas para o ciberespaço (LÉVY, 1996). A percepção é de que o processo comunicacional é realizado dentro do monitor do computador (TURKLE, 1995) e a “existência do virtual” acontece somente neste local. O esquema ubíquo de informação que se desenha neste novo quadro da Internet móvel viabiliza o envolvimento do indivíduo com a sua conjuntura informacionalgeográfica. Um exemplo empírico deste quadro é o sistema de procura do Google Móvel, que classifica o resultado das buscas em relação ao ponto físico da ação de busca em algumas plataformas. Neste contexto, os lugares nas cidades começam a ser pontos informacionais que se conectam em uma nova camada da rede (MITTCHELL, 2003). Trata-se de uma Cibercidade (LEMOS, 2004) em que, além do fluxo normal de átomos, há uma nova categoria de bits que estão intimamente interligados. Esta relação é nova na história das mídias, que na perspectiva analógica e massiva nunca tiveram uma conexão precisa com o espaço geográfico. Sempre existiram, porém, exemplos como rádios comunitárias ou jornais de bairro, em que a abrangência era focada em indivíduos em uma região e não em um único indivíduo em um ponto físico preciso. Do ponto de vista econômico, é um grande potencial que se abre para as empresas produtoras de conteúdo, mas também se caracteriza por um desafio complexo de se transpor pela grande quantidade de informações que devem ser captadas e processadas. Um dos grandes efeitos da popularidade dos meios de comunicação móveis não é só o fato de o indivíduo estar always on (PELLANDA, 2005) com um fluxo de dados de informações constante, mas também o fato de ele ser um ponto de compartilhamento de fatos ao seu redor. O trio smartphone, câmera e rede ubíqua somado ainda a softwares inteligentes que se conectam a redes sociais geram um Locast Civic Media 15 grande potencial de broadcast de informações de maneira extremamente eficientes. Surge, nesta perspectiva, uma possibilidade de difusão do efeito “cidadão jornalista” (GILLMOR, 2004) que produz conteúdos classificados como UGC.3 Neste cenário, o Mobile Experience Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT – MEL) desenvolveu, inicialmente para a rede de TV italiana RAI, um sistema de publicação de vídeos através de celulares chamado Locast. A PUCRS colaborou na adaptação do sistema para um contexto de mídia cidadã em Porto Alegre. A plataforma móvel e online permite aos usuários atuarem de forma ativa no processo de coletar, reportar e disseminar notícias e informações relacionadas com as suas rotinas urbanas. Este experimento contou com o apoio dos estudantes de graduação e pós-graduação da PUCRS, que atuaram como jornalistas posicionados nas ruas de Porto Alegre durante o período da pesquisa aplicada. Além disso, jornalistas da empresa RBS também utilizaram a plataforma para que fosse testado o uso complementar aos meios do Grupo. A operadora TIM também colaborou com a pesquisa, cedendo 25 aparelhos com o sistema operacional Android e com rede de dados. Estes usuários captam e distribuem informações de maneira mais rápida e eficiente do que as grandes e lentas estruturas tradicionais de jornalismo. Um exemplo recente deste fato é a foto tirada logo após o avião da U.S Airways pousar no Rio Hudson em Nova Iorque. Essa foto foi tirada por um passageiro de uma balsa com um aparelho iPhone e compartilhada em tempo real via rede Twitter. Trata-se da primeira imagem tirada do fato que, posteriormente, obteve uma larga cobertura da mídia tradicional por se tratar de um acontecimento de relevância. Contudo, uma série de outros fatos, que são menores ao olhar da mídia massiva, acontece ao redor do indivíduo e que pode ter um significado contextualmente diferente pela questão da proximidade geográfica. Esta informação ao redor do indivíduo, captada com o auxílio de artefatos que detectam a posição geográfica, é a que consiste em um fato novo. A pesquisa teve como objetivo explorar a mídia cidadã aplicada ao contexto do local como ferramenta de divulgação e estimular as 3 User Generated Content. 16 PELLANDA, E. C. • Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação dinâmicas sociais realizadas nos bairros. Outra finalidade foi compreender como as redes sociais móveis impactam na cidade e na representação do espaço urbano. Ainda neste sentido, objetivou-se também observar como esta ferramenta ajuda as pessoas a se manterem informadas, engajadas socialmente e com participação ativa nos processos de criação das mídias, sobretudo nas relacionadas com as suas comunidades. Depois do experimento, que durou dez dias, houve uma série de entrevistas individuais e grupo de discussão com os participantes. 1 O SISTEMA LOCAST Figura 1 A plataforma é composta por um site (Figura 1) que contém as notícias que foram atualizadas por celular ou na própria página. Neste último caso, a atualização da posição geográfica é feita manualmente. Vinculada com cada notícia está um ponto onde ela foi capturada no mapa, estes fatos podem ser visualizados somente deste modo gráfico. Locast Civic Media 17 Deste modo, o indivíduo pode se situar dos acontecimentos ao seu redor, o que representa um modo alternativo de visualização de fatos, já que usualmente os sites e blogs mostram as notícias em modo de destaque pela relevância do fato ou de maneira cronológica. O site teve também a função de cadastrar e gerenciar os usuários do sistema. Figura 2 Além do site, o centro da plataforma é baseado na aplicação móvel (Figura 2), que neste caso foi desenvolvida no sistema operacional Android. O software permitiu que os participantes do projeto pudessem capturar vídeos e enviá-los para o site com uma descrição de texto e a informação da posição geográfica capturada pelo GPS4 do aparelho em forma de metadado.5 4 Global Positioning System – sistema de localização da posição geográfica usando satélites e um chip que captura os sinais nos aparelhos celulares. Estas notícias puderam ser comentadas e também ser compartilhadas na rede Facebook. Um perfil no Twitter também foi criado separadamente e mantido pelos bolsistas do projeto. 5 A informação de latitude e longitude é inserida junto com o arquivo de video, mas só é visualizada pelo sistema do site que traduz a informação para a visualização no mapa. 18 PELLANDA, E. C. • Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação 2 CONTEÚDOS CONTEXTUALIZADOS AOS LUGARES No primeiro dia de experimento foi realizado um workshop para demonstrar a plataforma e criar duplas de trabalho. Estas equipes não receberam nenhum tipo de instrução sobre que tipo de informação capturar. Esta foi uma questão proposital e foi planejada com o objetivo de entender que tipo de fatos os integrantes do projeto entederiam como sendo pertinentes para serem compartilhados na plataforma. Depois dos dez dias de trabalho se observaram diversos tipos de pautas registradas pelos participantes, desde as mais cotidianas como buracos nas ruas e narrações de engarrafamentos até coberturas de eventos, passando por outras mais atemporais que buscavam narrações da vida cotidiana. No caso das informações cotidianas, foi interessante perceber que mesmo os pequenos incidentes da rotina de uma cidade como Porto Alegre ganharam um novo contexto pela questão da localização, pois acontecimentos como ruas fechadas ou acidentes são pertinentes para quem está geograficamente próximo. Por outro lado, quem está distante talvez não tenha necessidade de tomar conhecimento de tal fato. No contexto atual dos sites de notícias este tipo de classificação é inviável. Neste período, aconteceu também uma das mais severas tempestades que a cidade de Porto Alegre já presenciou, tendo inclusive aulas na PUCRS suspensas devido aos bloqueios das vias urbanas. Esta foi uma pauta não planejada e acabou sendo alvo de vários tipos diferentes de visões por integrantes do projeto que estavam em diversos pontos da cidade. O mapeamento destas informações resultouem uma visão ampla de relatos de diferentes problemas causados pelo incidente natural. Outro tipo de depoimento foi captado por uma dupla que estava interessada em perceber a visão dos moradores sobre determinado bairro. Com a pergunta: “Este bairro é o coração de Porto Alegre?”, as duas integrantes do projeto registraram relatos sobre diferentes percepções dos locais de trabalho e moradia daqueles cidadãos. Esta ideia resultou em pequenos documentários não editados sobre diferentes percepções que, muitas vezes, possuíam uma linha clara de pensamento entre as pessoas de uma determinada região. Locast Civic Media 19 Já os jornalistas profissionais da empresa RBS tiveram no Locast uma extensão das atuais plataformas de publicação. O sistema acabou sendo usado nos dez dias de experimento de duas maneiras distintas. Em um primeiro momento, foi feito um complemento da matéria tradicional, em alguns casos como um making of da cobertura. Em um segundo momento, foi utilizado para capturar alguns fatos que não teriam espaços nos canais tradicionais. Um dos objetivos desta integração com a empresa era testar como, em um mesmo ambiente, poderiam conviver conteúdos feitos por profissionais e relatos gerados das ruas. Esta dupla fonte de informações, em um futuro em que se fará o uso aberto do sistema e com uma maior densidade de colaborações, pode ser potencialmente rica para um desenho diferenciado de fatos na cidade. 3 LINGUAGENS TRANSFORMADAS A plataforma Locast teve como base a linguagem audiovisual com os vídeos gerados pelos participantes. Os textos eram basicamente descrições resumidas dos acontecimentos. Especificamente sobre este ponto foram feitas várias observações nas entrevistas individuais e nos grupos. Os vídeos foram todos captados e publicados sem cortes, em plano-sequência, e sem edição. Esta característica foi percebida pelos participantes como um ponto positivo no sentido de relatar fatos. A impressão foi de realismo, uma imagem mais próxima da cena do que a de matérias de TV. A edição foi comparada nas entrevistas como “supressão de realidade”. Esta é, talvez, uma questão que demonstre o desgaste da estética televisiva que não possui uma mudança significativa na transição para os meios digitais (PASE, 2008). O tema da qualidade da imagem gerada por telefones celulares também não foi considerado um problema nesta mesma linha de pensamento. Um dos pontos comentados pelo grupo durante as entrevistas foi a “invisibilidade” da câmera de um aparelho celular, que permitiu que quando a captura era baseada em entrevistas os sujeitos das matérias se mostravam bem mais receptivos do que um contexto tradicional de equipamentos para TV. Alguns vídeos transcenderam a questão de relatar fatos e privilegiaram a estética mostrando imagens que não necessariamente 20 PELLANDA, E. C. • Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação eram úteis, mas tiveram motivações artísticas. Foram cenas inusitadas da cidade, manifestações de arte de rua e algumas experiências de videoarte. Pela característica desta mídia móvel hiperpessoal, tanto no consumo como na produção do conteúdo, ela tem o potencial para o aparecimento de outras formas de linguagem como percebido na produção do projeto. A imagem em movimento, que possui ainda uma forte ligação com a TV, começa uma mutação como aponta (LEVINSON, 2004, p. 151): “... televisão, como conteúdo individual dos videocassetes, reverte o processo e move filmes de volta da tela pública para o cinescópio individual, que os filmes podem ser vistos por uma pessoa por vez”. Se ainda levarmos em conta que esses conteúdos são pontos de conversação em forma de vídeo, há uma nova perspectiva de expressão mediada pelas redes ubíquas. 4 INFORMAÇÃO GEOLOCALIZADA O ponto principal do experimento era vincular os fatos, as imagens e as conversações aos lugares onde ocorreram. Toda a estrutura de reconhecimento geográfico que os aparatos móveis proporcionam neste momento histórico permite que se liguem espaços ao seu histórico de acontecimentos, tornando assim um ambiente propício para uma memória cotidiana (CASALEGNO, 2006). Esse mesmo autor foi o responsável pela coordenação do projeto no MIT, sustentando o seu trabalho nesta tese de expansão da cidadania com redes de armazenamento e conversação urbana. O mapa de acontecimentos no site permite uma nova visualização dos acontecimentos, de maneira que o próprio indivíduo possa fazer suas próprias conexões entre os fatos que são pertinentes ao seu cotidiano. Em uma futura versão devem ser implantados filtros de assuntos, lugares e pessoas para que a observação destes eventos seja mais precisa. Esta cidade conectada (MITTCHELL, 2003) é composta de uma camada informacional concomitante com as vias físicas. Esta ligação tem o potencial de fortalecer o diálogo da cidadania, como o caso da tempestade em que a visualização das imagens de diferentes regiões Locast Civic Media 21 permitiu um entendimento do todo. Em situações semelhantes, estes fatos vinculados ao mapa podem criar uma conversação que seria peça importante em tópicos como violência, trânsito e grandes eventos. O mapa representa o espelho da polis, mas sem o contexto da camada de informação é somente um nó sem conexão. A possibilidade de percepção do que está acontecendo em volta do indivíduo também é algo de extrema complexidade neste contexto de junção do ambiente virtual com o físico. Mesmo fatos que podem ser considerados de pouca relevância pública, quando geograficamente perto do sujeito, podem ter uma importância elevada para este indivíduo. A proximidade de uma rua fechada por um incidente é mais relevante individualmente naquele espaço de tempo do que um terremoto em outro país. Do ponto de vista coletivo para as pessoas de uma determinada região, a informação compartilhada pode significar uma conversação de aprimoramento da cidadania e ao mesmo tempo de memória coletiva. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta gama de diferentes possibilidades demonstrou que, no contexto de uma câmera conectada, a base dos smartphones pode ser uma interface entre os lugares físicos, ou átomos, e o fluxo de informação baseada em bits, que formam a base da internet. Se “(...) lugares não podem ser separados de seu contexto de experiência” (SANTAELLA, 2007, p. 161), há agora mais potenciais relações contextuais com informações e trocas sociais em redes de comunidades. À medida que se faz uma foto com tag geográfico de um local e se compartilha em uma rede social, o encadeamento de ações com este espaço físico tende a aumentar. Ao agregar as informações aos espaços, estes se transformam ao mudar de significado para o sujeito, salientam Castells et al. (2007, p. 171): “Um espaço que flui informações não é um espaço vazio; ele tem relações construídas na rede e envolta dela (...)”. Acionando-se a isto uma nova percepção do entorno (MEYROWITZ, 2003, p. 97), “Como resultado, estamos experimentando uma mudança radical nos nossos sensos de local, identidade, tempo, valores, ética, etiqueta e cultura”. 22 PELLANDA, E. C. • Projeto Locast como exemplo de pesquisa aplicada em comunicação Embora este tenha sido um experimento e não uma pesquisa em larga escala, as indicações de potencialidades detectadas foram os resultados mais valiosos. Em dez dias e um número limitado de participantes não é possível medir o impacto social que um sistema como o Locast pode significar. Mas o objetivo principal era começar um processo de pesquisa sobre o tema que poderá constatar se estes potenciais se confirmam. Este vínculo dos espaços físicos com o ciberespaço está em fase embrionária, com manifestações como a rede Foursquare6 e o início do uso de tags geográficas no Twitter.7 A aplicação dos conceitosem um experimento como o Locast permite vislumbrar a validação das teorias e, em um segundo momento, escrevê-las novamente com a contribuição do empírico. Todo o material recolhido pelas entrevistas e observações de campo demonstrou que existe uma natural capacidade para que a ligação dos pontos físicos aos seus contextos factuais e históricos, viabilizados por uma convergência de tecnologias, habilita um potencial único de cidadania. REFERÊNCIAS CARON, A. H.; CARONIA, L. referência não encontrada. 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NARRAÇÃO CAMINHANTE: AS POSSIBILIDADES DA PLATAFORMA LOCAST Mágda Rodrigues da Cunha1 RESUMO O presente artigo faz uma observação e uma análise do projeto e dos resultados da pesquisa desenvolvida por intermédio da parceria entre a PUCRS/Famecos e o MIT/Mobile Lab, com participação do Grupo RBS, de Porto Alegre. A investigação traz à tona para reflexão categorias de análise como critérios narrativos, narração “caminhante”, a narração das cidades e dos lugares e jornalismo participativo. PALAVRAS-CHAVE: narração; mobilidade; tecnologia; cidade; jornalismo participativo. O projeto desenvolvido em parceria pela PUCRS/Famecos, MIT/MobileLab e RBS traz à tona, por intermédio de uma situação empírica, a reflexão sobre uma série de fatores e dimensões em torno da narração. Há uma perspectiva que envolve a ausência de um critério narrativo ou da pauta jornalística que traz consigo a pergunta: o que as pessoas decidem narrar quando não recebem um indicativo específico? Vale ressaltar que, na sociedade midiatizada, narradores, profissionais ou não, trazem consigo índices narrativos comuns a vários grupos e historicamente construídos na cultura, pela convivência com os tradicionais meios de comunicação e sua forma de organização de notícias e conteúdos. Há outra discussão importante que diz respeito à narração “caminhante” como decidimos aqui designar, a partir de Certeau (1994), e a consequente relação construída com os espaços, mais especificamente com as cidades. Afinal, a primeira escolha é pela narração das cidades, de seus acontecimentos, de seus problemas, de seus eventos. Caminhar e narrar é a ação que se desenha nesta operação. Mas, quando o projeto envolve também a ideia de cidadania 1 Jornalista, professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em Comunicação Social, Faculdade de Comunicação Social (Famecos), PUCRS. Locast Civic Media 25 ou prática do jornalismo participativo, abre outro debate que não é novo, mas que merece ser revisitado permanentemente: Jornalistas versus Cidadãos e a ação narrativa em torno dos acontecimentos. Para tanto, também são recuperados alguns pensamentos em torno da produção jornalística e avaliada a atualização destes mesmos conceitos. Todas as variáveis, entre muitas outras, estão reunidas em torno da pesquisa aqui descrita e analisada. O que muda no contexto desse projeto é o cruzamento dos hábitos narrativos, culturalmente burilados, com a liberação deste narrador para que escolha, em situação de mobilidade, o que tem importância e o que não tem. Ao circular pela cidade, ele poderá decidir o que deve ser narrado daquele lugar, especificamente. Conforme o foco e interesse desta reflexão, é neste ponto que reside a relevância maior do projeto Locast, em sua fase desenvolvida em Porto Alegre: a observação de práticas narrativas, em um processo que começa a assumir dimensões a cada dia maiores, a situação de mobilidade, não com possibilidade de relato posterior, mas diretamente do lugar, influenciado pelo espaço, portando tecnologia móvel. Essa perspectiva traz ainda possibilidades de reflexão relacionadas à própria narração, à movimentação dos sujeitos narradores, a sua relação com os lugares e também questionamentos referentes à memória. Com a ampliação de possibilidades tecnológicas móveis e de sistemas para narração, as situações de narração do lugar têm suas dimensões ampliadas. Lemos (2008 p. 207) define tal processo como mídia locativa, conjunto de tecnologias e processos infocomunicacionais, cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico. “Locativo é uma categoria gramatical que exprime lugar, como ‘em’, ‘ao lado de’, indicando a localização final ou o momento de uma ação.” O autor acrescenta que as mídias locativas são dispositivos informacionais digitais, cujo conteúdo da informação está diretamente ligado a uma localidade. O processo de emissão e recepção de informação a partir de um determinado local implica uma relação entre lugares e dispositivos móveis digitais até então inédita, conforme esclarece Lemos (2008). 26 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante 1 NARRAÇÃO CAMINHANTE Nessa linha de pensamento, Cunha (2009) entende que a ação narrativa caminhante assume dimensões locais e simultaneamente planetárias, mas distraída. O planeta jamais viveu um momento com tamanho grau de conexão entre as pessoas. Mas estes humanos nunca foram tão distraídos. Paradoxal ou não, este parece ser o retrato do instante planetário. O que se observa nas ruas das cidades, sejam metrópoles ou vilarejos, são caminhantes distraídos para honrar a conexão, exaustivamente mantida por intermédio das tecnologias móveis. Dessa relação, que reúne o contexto planetário e a observação distraída, surge a narração praticada pelos caminhantes em espaços constituídos por camadas de tempos e memórias. É a mesma e é outra comunicação, em que o narrador é também receptor, desenhando um processo complexo. Em consequência da crescente mobilidade humana e tecnológica, além da ampliação dos nós da existência em rede, as ações narrativas ocorrem em larga escala em primeira mão. Há muito mais narradores. O que antes se via à distância, por intermédio dos relatos de outros, hoje se enxerga de perto e se podecontar. Os humanos nunca foram tão móveis. A virada da modernidade se caracteriza, em primeiro lugar, no século XVII, pela desvalorização do enunciado, pela concentração sobre o ato de enunciar, a enunciação, descreve Certeau (1994). Quando se tinha certeza quanto ao locutor (“Deus fala no mundo”), a atenção se voltava para o ato de decodificar os seus enunciados. Mas, quando essa certeza fica perturbada com as instituições políticas e religiosas que lhe davam garantia, pergunta-se pela possibilidade de localizar substitutos para o locutor único. Surge o problema de uma linguagem que se deve fazer e não mais somente ouvir. Cada discurso particular atesta a ausência do lugar que, no passado, era atribuído ao indivíduo pela organização de um cosmos. Ao perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito. O lugar que lhe era fixado por uma língua cosmológica, torna-se agora um nada. Isso obriga o sujeito a apoderar-se de um espaço e colocar a si mesmo como um produtor de escritura. A escritura se torna um princípio de hierarquização social. Locast Civic Media 27 Certeau (1994) enfatiza que a prática escriturística assumiu valor mítico nos últimos quatro séculos, reorganizando aos poucos por onde se estendia a ambição ocidental de fazer sua história e, assim, fazer história. A origem não é mais aquilo que se narra, mas a atividade multiforme e murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como texto. Certeau (1994, p. 226) designa por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, constituir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado. O modelo de uma razão produtora escreve sobre o não lugar da folha de papel. Este texto construído num espaço próprio é a utopia fundamental e generalizada do ocidente moderno. “A cidade moderna também: é um espaço circunscrito onde se realizam a vontade de coligir-estocar uma população exterior e a de conformar o campo a modelos urbanos.” 2 A CIDADE NARRADA A vontade de ver a cidade precedeu os meios de satisfazê-la, relata Certeau (1994). As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que, no entanto, jamais existira até então. Essas obras inventavam, ao mesmo tempo, a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. “Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho celeste” (CERTEAU, 1994, p.170). Certeau descreve a situação do espectador que sobe ao alto do antigo e agora inexistente World Trade Center, como o mesmo que ser arrebatado até o domínio da cidade. O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima, nem possuído, jogador ou jogado. Aquele que sobe ao alto foge à massa que carrega e tritura em si mesmo toda identidade de autores ou de espectadores. Será necessário depois cair de novo no sombrio espaço onde circulam multidões que, visíveis lá do alto, embaixo não veem. Embaixo, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, pensa Certeau (1994), eles são caminhantes, pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um texto urbano que escrevem sem poder lê-lo. A ideia da não leitura, aqui descrita por Certeau, torna-se 28 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante interessante quando trazida para as situações de narração a partir das plataformas móveis. Os corpos obedecem ainda ao texto urbano, mas não são mais orientados apenas por essa perspectiva. Recebem também a orientação das narrações cruzadas. Os caminhantes ajudam cada vez mais na redação do texto urbano que acabam por ler e, por intermédio da reapropriação, reescrever. E a própria perspectiva de cegueira do movimento dos corpos na cidade, conforme entende Certeau (1994) também existe numa perspectiva narrativa atualizada, digamos assim. Esses praticantes jogam com espaços que não veem... Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade (CERTEAU, 1994, p. 171). As redes dessas escrituras, pensa Certeau (1994), que avançam e entrecruzam-se, compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços. Mas é por intermédio dos passos desses caminhantes que a cidade passa a ter sentido. Quando aborda esta perspectiva, Certeau (1994) afirma que cada uma de suas unidades é algo qualitativo, impossível contá-las. “Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares” (CERTEAU, 1994, p. 176). Os processos do caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira a transcreverem-lhes os traços e as trajetórias. Porém, essas curvas remetem à ausência daquilo que passou. Só se deixa captar um resíduo colocado no não tempo de uma superfície de projeção. “Visível, tem como efeito tornar invisível a operação que a tornou possível. Essas fixações constituem procedimentos de esquecimento” (CERTEAU, 1994, p. 176). Nesta evolução, sem dúvida, os processos e operações narrativas tornam-se a cada dia menos visíveis, conforme observa-se em projetos e investigações em torno das plataformas móveis. Os acontecimentos narrados por uma multiplicidade de canais, com origem em fontes diversas, resultam em um texto único, a partir dos muitos fragmentos. A operação propriamente dita é mais sutil, menos visível do que os processos narrativos midiáticos Locast Civic Media 29 centralizados em empresas e construídos até o momento. Muitos narram e leem, gerando um texto interminável, permanentemente tecido. O ato de caminhar, reflete Certeau (1994), está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. O ato de caminhar parece encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. Considerada através desse prisma, a enunciação pedestre apresenta três características que a distinguem do sistema espacial: o presente, o descontínuo, o fático. Se existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades, por onde é permitido circular, e proibições, que impedem de prosseguir, o caminhante atualiza algumas delas. Ele tanto as faz ser, como aparecer, mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada, privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. Entendemos, a partir de Certeau (1994), que essas improvisações são hoje influenciadas por narrativas produzidas e pelos textos compartilhados. A narrativa “caminhante” tem em sua essência o compartilhamento. De nada mais adianta presenciar, seja qual for o fato, a notícia, o acontecimento, se ele não puder ser compartilhado e consequentemente influenciar outras andanças, mudanças de rota. Essa retroinfluência é talvez a principal novidade no processo de permanente deslocamento humano que gera hoje narrativas diversas. O caminhante transforma, conforme Certeau (1994), em outra coisa cada significante espacial, cria algo descontínuo, seja efetuando triagens nos significantes da “língua” espacial, seja deslocando-os pelo uso que faz deles. “Vota certos lugares à inércia ou ao desaparecimento e, com outros, compõe ‘torneios’ espaciais ‘raros’, ‘acidentais’ ou ilegítimos. Mas isso já introduz a uma retórica da caminhada” (CERTEAU, 1994, p. 178). Esta arte de moldar frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos. O uso define o fenômeno social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta de fato: remete a uma norma. “A gesta ambulatória joga com as organizações espaciais, por mais panópticas que sejam: ela não lhes é nem estranha (não se passa alhures) nem conforme (não recebe delas a sua identidade)”(CERTEAU, 30 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante 1994 p. 180). Ela insinua as suas muitas referências e citações, modelos sociais, usos culturais, coeficientes pessoais. Ela mesma é o efeito de encontros de ocasiões sucessivas que não cessam de alterá-la e de usá- la “como brasão de outra”. Esses aspectos instauram uma retórica e chegam mesmo a defini-la, pensa Certeau (1994). “As figuras são gestos dessa metamorfose estilística do espaço. Ou antes, como afirma Rilke, árvores de gestos em movimento” (CERTEAU, 1994, p. 182). “Essas árvores de gestos se movimentam por toda a parte. Suas florestas caminham pelas ruas. Transformam a cena, mas não podem ser fixadas pela imagem em um lugar.” Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar, “esfarelada” por deslocamentos e caminhadas, compensada pelas relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano. Os lugares, reflete Certeau (1994), são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar. No entanto, estão ali como histórias à espera. Permanecem como quebra-cabeças, enigmas, simbolizações marcadas na dor ou no prazer do corpo. A ideia de histórias à espera entende-se, a partir da observação do projeto aqui analisado, que um processo passa a se complementar. Os lugares são agora narrados porque há possibilidades tecnológicas para tal, não por um determinismo, mas pelo fato de corpos e cidades já estarem há algum tempo em situação narrativa, mas isolada, não compartilhada. O sentido do lugar passa a existir também pela narração do outro e complementada a partir das novas vivências. E as cidades são, a cada dia, o espaço mais significativo para estas investigações. É, nas cidades, como até foi possível inferir, que convivem as narrativas cruzadas, os textos corpóreos, que se somam numa grande obra textual. É, nas cidades, como afirma Bauman (2009 p.78), onde vive atualmente mais da metade do “gênero humano”. Elas são de certa maneira os depósitos onde se descarregam os problemas criados e não resolvidos no espaço global. São depósitos sob muitos aspectos, como o fenômeno global de poluição do ar e da água e “a Locast Civic Media 31 administração municipal de qualquer cidade deve suportar suas consequências, deve lutar apenas com os recursos locais para limpar as águas, purificar o ar, conter as marés”. Tudo recai sobre a população local, sobre a cidade, sobre o bairro. As cidades são depósitos nos quais se procuram soluções locais para problemas que foram produzidos pela globalização. Talvez a afirmação de Bauman já seja de conhecimento comum, mas ressalta a necessidade de construção de estratégias para a sobrevivência em cidades que historicamente resultam da conformação do campo, reunindo aqueles que vieram de fora, em condições urbanas muitas vezes não satisfatórias. Trata-se, em certa dimensão, de uma comunidade que precisa localizar meios de superação, para solucionar problemas globais, como reflete Bauman (2009). Redes sociais, plataformas tecnológicas para narração compartilhada, a exemplo do próprio Locast, são recursos que podem estar inseridos para proporcionar a inclusão narrativa, com base em tecnologias móveis. 3 MEMÓRIA DO TEMPO PRESENTE A narração, diretamente do local do fato, em condição de compartilhamento, traz também à evidência a ideia de retroinfluência, conforme descrito anteriormente, a partir de uma memória presente, encurtada pelo tempo de observação, registro e narração. Virilio (2006) define a memória “vivida”, memória do que ocorre no momento, como um elemento novo oferecido pelas tecnologias de comunicação. Isto traz um paradoxo, pois a televisão ou a internet e outras tecnologias promovem a ideia de uma memória do instante presente. “É como se houvesse um efeito de lupa não sobre um objeto, mas sobre um instante no tempo: um efeito de dilatação” (VIRILIO, 2006, p. 93). Nesta perspectiva, o autor entende que as tecnologias funcionam para a memória como um telescópio. Virilio acredita que a internet e as tecnologias de informação permitirão ver o que se passa no mais curto espaço de tempo, o que se passa na comunicação. Neste ponto de sua reflexão, o autor define que esta é uma memória que diz respeito à comunidade, pois não há memória por si, memória, conforme o seu pensamento, é uma linguagem, um utensílio de comunicação. Não há memória que não seja coletiva. E essa memória 32 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante está sendo construída, conclui-se a partir da investigação aqui analisada, em grande parte com base em tecnologias disponibilizadas para narração. É uma memória escrita a partir de muitos relatos simultâneos, desenhada sobre a ideia de comunidade, construída pelo próprio conhecimento da cidade. 4 JORNALISMO PARTICIPATIVO Até aqui se analisa a prática narrativa, por intermédio de plataformas tecnológicas móveis, como uma evidência do fato que na modernidade valoriza-se o ato de enunciar. O sujeito passa a ser o enunciador e consequentemente precisa localizar o que narrar. O lugar à espera de ser narrado e já enlaçado com os corpos, transforma-se em elemento ou foco de narração. Neste mesmo processo evolutivo, esses corpos, saídos do campo e conformados pela retórica urbana, precisam ter estratégias de conformação e sobrevivência na modernidade e também em tempos globalizados. Narrar seus fatos, seus problemas, grandes e positivos, ou mesmo os buracos de rua, passam a ser na mesma medida – ou a acender as discussões a respeito – exercícios de um jornalismo participativo. Jornalismo Participativo, de acordo com Bowman & Willis (2003), é o ato de um cidadão ou grupo de cidadãos atuar na coleta, reportação, análise e disseminação de notícias e informações. O objetivo dessa participação é proporcionar a independência que requer a democracia. No fenômeno do jornalismo participativo, não há critérios jornalísticos formais. É o resultado de muitas conversações simultâneas distribuídas. Moretzsohn (2006) discute as teorizações que se constroem em torno do chamado jornalismo cidadão ou participativo e o equívoco de apontar um confronto entre cidadãos que desejam comunicar livremente e jornalistas. Em sua reflexão, Moretzsohn (2006, p. 63) também relaciona as alterações no papel do narrador às facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias da comunicação. O fato vem provocando, entre muitas outras, a profecia do fim do jornalismo tal como o conhecemos: munido de um celular com câmera, operando um blog na internet, qualquer um se transformaria em repórter. Locast Civic Media 33 Uma pequena pausa para reflexão levaria, entretanto, a arrefecer significativamente o entusiasmo diante dessa perspectiva supostamente democratizante – ou, talvez mais precisamente, libertária –, que acena com o ideal do poder pulverizado entre “todos” e esconde ou despreza os mecanismos através dos quais esse mesmo poder se reorganiza nas mãos dos poderosos de sempre, ao mesmo tempo que desconsidera um aspecto fundamental para sustentar a profecia: o caráter específico da mediação jornalística, que é o que legitima socialmente esse tipo de informação e impõe procedimentos necessários para que se lhe exija a indispensável credibilidade. A autora cita declaração de Pinto (2005) para quem o papel da edição de informação se torna a cada dia mais necessário. O pesquisador considera provável, no entanto, que esta função tenha de coexistir com formas diversificadas de produção dos cidadãos que uns chamarão jornalismo e que serão a multiplicação de polos de enunciaçãoe a amplificação dos círculos de produção da informação e de opinião na sociedade. Na mesma linha, Pinto (2005) entende que essas tendências, a continuarem e a consolidarem-se, constituirão plataformas relevantes de acompanhamento e de escrutínio público de media e do jornalismo. Há ainda uma dimensão importante nas possibilidades narrativas de parte do cidadão, quando isto se relaciona ou é proporcionado pelas empresas. No caso do projeto Locast, a plataforma não está baseada em uma empresa de comunicação, mas viveria com certa independência. A observação das ofertas feitas pelas empresas evidencia outra dimensão do processo narrativo, relevante, mas que não está no centro do projeto PUCRS/MIT. Moretzsohn (2006) avalia que os acenos das empresas de comunicação ao “repórter cidadão” têm inapelavelmente esse sentido mistificador de sugerir que o “povo” fala, embora não edite. Além disso, representam uma econômica alternativa para obter matéria-prima a partir de uma mão de obra informal, que ao mesmo tempo se comove com a súbita valorização e retribui com sua audiência fiel. 34 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante A edição é, sem dúvida, um ponto de corte fundamental. A cada dia, mais e mais espaços são oferecidos à audiência, que repentinamente passou a ser valorizada. No caso do Locast, trata-se de uma plataforma, onde não há previsão de edição final ou pós-produção do material, mas narrativas brutas, onde os fatos são apresentados sem uma finalização “perfeita”. Todavia, também não se observa nenhuma interferência da empresa RBS em critérios editoriais ou mesmo na edição final do material, antes de sua publicação. Ainda sobre jornalismo cidadão, Moretzsohn (2006) sugere que, para recolocar a questão nos trilhos, será preciso recuperar o referencial de autoridade do jornalismo como mediador, implicado ao “quarto poder”. Para isso, pode ser necessário, segundo ela, desmistificar esse conceito e apontar o papel necessariamente político dessa mediação. Por isso, não há dúvida de que o testemunho (inclusive fotográfico ou videográfico) do cidadão sempre será importante, porém necessariamente como fonte a ser adequadamente checada. E isso se confirma na observação da produção narrativa por intermédio do projeto Locast. Todos se interessaram por narrar. Muitos narraram a cidade. Outros narraram os seus fatos, aqueles que lhes eram caros ou com os quais estavam envolvidos. Em boa dose, muitos narram para si e não para uma audiência, como se constitui nos processos tradicionais de comunicação. Outro aspecto que interessa na observação é que são narrações resultantes do ato de deslocamento. Os jornalistas deixaram as redações com objetivos específicos, narram a partir de um fato em pauta. Seja por cidadãos ou por jornalistas, o conjunto evidencia uma narração sempre em primeira mão, o relato da fonte diretamente envolvida com o acontecimento. Convivem lado a lado na mesma plataforma Locast os fatos como pedras brutas a serem buriladas e polidas, jornalisticamente, e os fatos com suas relações e consequências, a partir de uma produção jornalística. Uma evidência que chama a atenção é o elevado número de projetos, como foram chamados, postados por profissionais da Rádio Gaúcha, pertencente ao Grupo RBS. Também foram distribuídos aparelhos de telefonia celular entre os jornalistas da Zero Hora, o jornal da mesma empresa. Locast Civic Media 35 Uma possível explicação para isso pode estar relacionada ao que descreve Ortriwano (1985, p. 84) de que o rádio foi o primeiro meio de comunicação de massa que deu imediatismo à notícia, graças à possibilidade de divulgar os fatos no exato momento em que eles ocorrem. Mesmo a evolução da telefonia celular foi de grande valia para o rádio, pois aproximou o repórter da audiência, exatamente pela possibilidade de narração diretamente do lugar do acontecimento. Isso ganha força com o uso do telefone celular, alterando o conceito de velocidade e instantaneidade, define Del Bianco (2008). O que contribuiu para aprofundar e explorar a característica do imediatismo inerente à natureza tecnológica do rádio. O tempo entre o acontecimento e a veiculação da notícia foi encurtado. A cobertura ao vivo criou uma sensação de participação do ouvinte no cenário dos principais acontecimentos políticos da época (DEL BIANCO, 2008, p. 5). E, quando se aborda a questão do processo de produção da informação, é relevante trazer o pensamento de Ortriwano (1985), para quem a matéria-prima do jornalismo são os acontecimentos que irão ser ou não formatados como notícia. No projeto Locast, observa-se que estes acontecimentos estão todos narrados, com ou sem formatação. Composta de informação atual, que pode ser lida, escrita, filmada, é a própria rotina do jornalista que produz, formata e entrega ao público a mensagem pronta. Ortriwano (1985) considera que a atuação informativa baseia-se na notícia, que pode apresentar-se de forma pura, limitada ao relato simples do fato em sua essência ou de forma ampliada, incluindo-se a reportagem e os comentários, tanto interpretativos como opinativos. A rede da informação apresenta os fatos objetivos, precisos, para quem não pode estar no local, na hora do acontecimento. E essa é realmente uma dimensão interessante, quando revisitamos os conceitos a respeito da produção jornalística. Se o pensamento de Certeau (1994) aponta que a virada da modernidade iluminou a enunciação, verificamos que as possibilidades tecnológicas narrativas são uma representação da chegada ao contexto contemporâneo, do que começou a ser desenhado anteriormente. 36 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante Interessa cada vez mais, proporcionado pelas plataformas, mas também pelo interesse da audiência, o ato de enunciar. Assim, a ideia de Molotch e Lester (1993, p. 34) de que “as notícias são o resultado desta necessidade invariante de relatos do inobservado, desta capacidade de informar os outros, e o trabalho de produção daqueles que estão nos media”, que coincide com o pensamento de Ortriwano, de 1983, sobre o relato para quem não pode estar no local, precisa ser questionado a partir variante que se torna o local. No conceito de mídia locativa, descrito por Lemos (2008) e demais autores desta mesma linha, o local passa a ser determinante no processo narrativo. Enunciar daquele lugar tem mais relevância e constitui um critério acrescentado ao processo jornalístico tradicional, por intermédio da participação dos cidadãos ou não. O jornalista, de sua parte, trabalha com acontecimentos que podem ou não ser noticiáveis. Para Rodrigues em Traquina (1993, p. 27), cada acontecimento pertence a uma escala de probabilidades de ocorrência. O fato seria, assim, mais noticiável quanto menor fosse a sua probabilidade de ocorrer. O acontecimento jornalístico é, por conseguinte, um acontecimento de natureza especial, distinguindo-se do número indeterminado dos acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pela lei das probabilidades, sendo inversamente proporcional à probabilidade de ocorrência. (RODRIGUES, 1993 p. 27). O tempo determina outra característica da notícia: o imediatismo. Schlesinger destaca: “A notícia é uma mercadoria. Vista de um ponto de vista temporal, é definida pela sua qualidade efêmera e transitória”. No dia a dia das redações de rádio e televisão, pois o jornal não consegue transmitir suas reportagens instantaneamente, o imediatismo de acordo com o autor é um conceito dado ao tempo decorrente entre a ocorrência de um acontecimento e a sua transmissão pública, a notícia. O imediatismo age como uma medida para a deteriorabilidade. Quanto mais imediatas mais ‘quentes’ são as notícias. São ‘frias’ e ‘velhas’ quando já não podem ser utilizadasdurante o dia noticioso em questão. (SCHLESINGER, p. 181). Locast Civic Media 37 Traquina (1993, p. 68), ao falar sobre a notícia, afirma que os jornalistas não são simples observadores passivos, mas participantes ativos no processo de construção da realidade. As notícias, segundo ele, não podem ser vistas como emergindo naturalmente do mundo real, mas acontecem na conjunção de acontecimentos e de textos. “Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento.” No que diz respeito à narrativa, o autor entende que, embora sendo índice do real, as notícias registram as formas literárias e as narrativas utilizadas pelos jornalistas para narrar o acontecimento. Ao citar Robert Karl Manoff, Traquina (1993, p. 169) afirma que a escolha narrativa feita pelo jornalista não é inteiramente livre, mas orientada pela aparência que a realidade assume para ele, pelas convenções que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos acontecimentos pelas instituições e rotinas. “As formas literárias e as narrativas garantem que o jornalista, sobre a pressão tirânica do fator tempo, consegue transformar, quase instantaneamente, um acontecimento numa notícia.” As notícias são o resultado de um processo de produção, definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria- prima, no caso os acontecimentos, num produto, que são as notícias. Os acontecimentos são um imenso universo de matéria-prima, pensa Traquina (1993). A observação da experiência Locast, num contexto em que convivem diferentes plataformas tecnológicas disponíveis para narração, amplia a lente ou o foco sobre todos esses conceitos. Coexistem as diferentes aparências que a realidade assume, para jornalistas e para cidadãos, o tempo de narração e de finalização passa a ser determinado, numa expressão um pouco mais forte, pela possibilidade da plataforma que o sujeito for capaz de portar, que pela não linearidade, manterá os projetos sob demanda. 5 CONSIDERAÇÕES NARRATIVAS OU EXPRESSÃO Narração “caminhante”, narrativas da cidade, memória do tempo presente, jornalismo cidadão, variáveis que se cruzam e que têm na essência a intervenção do sujeito, agora presente no local do acontecimento, permitindo que o lugar indique o critério narrativo, porque 38 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante afinal ele está munido de equipamentos capazes de registrar e compartilhar informações. Mas há intencionalidade no ato narrativo da parte deste sujeito? Sim, o sujeito ingressa num jogo narrativo, por intermédio do qual captura informações e distribui. Mas o que ele deseja, além de estar no centro da evolução de um processo, que encontra sua origem no ingresso na modernidade? Esta pergunta é perseguida por muitas reflexões em torno do tema. Augé (2006) entende que a sociologia real ou a sociedade real é mais complexa do que os modelos que tentam dar conta dela. Na realidade concreta, os elementos que justificam ou dirigem a elaboração de modelos interpretativos não se excluem, mas se sobreadicionam. Na realidade, tal como podemos observar concretamente, nunca houve desencanto do mundo, nunca houve morte do Homem, fim de grandes relatos ou fim da História, mas houve evoluções, inflexões, mudanças e novas ideias, ao mesmo tempo em que reflexos e motores de mudanças (AUGÉ, 2006, p. 115-116). Entendemos, a partir da observação das ações narrativas no projeto Locast, que as formas de expressão e as apropriações em relação às tecnologias narrativas encontram-se em diálogo dentro de um mesmo contexto e emergem simultaneamente. Augé (2006) reflete sobre a individualização dos destinos ou dos itinerários e sobre a ilusão da livre escolha individual, o que, segundo ele, desenvolve-se a partir do momento em que se debilitam as cosmologias, as ideologias e as obrigações intelectuais com as quais estão vinculadas. Augé (2006 p.107) cita que “o mercado ideológico se equipara a um self-service, no qual cada indivíduo pode prover-se com peças soltas para ensamblar sua própria cosmologia e ter a sensação de pensar por si próprio”. Augé (2006) cita o pensamento de Max Weber que, para evocar a modernidade, fala sobre o desencanto do mundo, apresentando três características. A primeira é o desaparecimento dos mitos de origem, dos mitos de fundação, de todos os sistemas de crença que procuram o sentido do presente da sociedade em seu passado. Surge também o desaparecimento de todas as representações e crenças que, vinculadas a Locast Civic Media 39 esta presença do passado, submetiam a existência e, inclusive, a definição do indivíduo de seu meio. O homem do Século das Luzes é o indivíduo dono de si mesmo, de quem a Razão corta os laços supersticiosos com os deuses, com a terra, com sua família, que afronta o porvir e se nega a interpretar o presente baseado em magia ou bruxaria. Seja qual for o objetivo deste sujeito, agora independente sob uma perspectiva moderna, mas enlaçado no nó da rede que ele mesmo ajuda a tecer, ele é elemento propulsor de uma ação narrativa infinita. É exatamente por conta dessa independência que a produção de conteúdos e textos hoje chega a uma dimensão planetária, capaz de narrar desde o buraco na rua até fatos jornalísticos de grande relevância em escala internacional. Todos eles convivem lado a lado. São fatos, acontecimentos, notícias que circulam como matéria-prima, em estado bruto ou pós-produzido profissionalmente. Não podemos esquecer que já há à disposição dos cidadãos tecnologias móveis capazes de proporcionar finalização profissional, ou próximo disso, dos conteúdos compartilhados. Mas esta é a próxima etapa de um processo desordenado de produção de conteúdos, que permanecerá assim em nosso entendimento e está apenas começando. Mais do que uma estratégia consciente, é uma conformação do sujeito às transformações pelas quais vem passando na modernidade. Mais do que isolamento e navegação solitária, é solidariedade por intermédio do compartilhamento de informações. REFERÊNCIAS AUGÉ, M. Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã. In: MORAES, D. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. BOWMAN, S.; WILLIS, C. (2003). We Media. How audiences are shaping the future of news and information, Stanford: The Media Center at The American Press Institute, Julho. Disponível em: <www.hypergene.net/wemedia>. 40 CUNHA, M. R. da • Narração caminhante CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. CUNHA, M. R. Conectados e distraídos. Corpos caminhantes e ação narrativa. In: Revista GHREBH vol. 14, 2009, PP. DEL BIANCO, N. R. Remediação do radiojornalismo na era da informação. In: Bocc, Biblioteca On-line de Ciências das Comunicação, 2008. LEMOS, A. Mídia locativa e territórios informacionais. In: Santaella, L.; ARANTES, P. (org.). Estéticas tecnológicas. Novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2008. MOLOTCH, H.; LESTER, M. As notícias como procedimento intencional: acerca do uso estratégico de acontecimentos de rotina, acidentes e escândalos. In: TRAQUINA, N. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Vega, 1993. MORETZSOHN, S. O mito libertário do “jornalismo cidadão”. 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Além de observar a implantação e a prática, que sinalizam como as ferramentas completam o ofício jornalístico e as práticas cidadãs, também é possível pensar em futuros desdobramentos da plataforma. PALAVRAS-CHAVE: Locast; jornalismo; geolocalização; citzen journalism. Uma das marcas da contemporaneidade digital não é apenas a propagação da informação pelos caminhos digitais, mas a fusão do jornalismo com as linguagens de programação. A natureza open-source do Android permite a criação de aplicações atualizadas praticamente em tempo real com o código livre para colaboração em torno de um objetivo único. No caso do Locast, isto pode ser observado em duas etapas. Antes de o sistema ser disponibilizado para o público, alguns arquivos precisaram de tradução. Mesmo que o sistema apresentasse palavras do universo digital comum dos usuários, como “login”, foi preciso traduzir parte do material para o português. A atividade foi realizada em paralelo com a equipe de Boston, pois foi necessário validar os arquivos. O segundo momento aconteceu durante o workshop inicial do Locast, envolvendo os alunos da Faculdade de Comunicação da PUCRS, a equipe da RBS e o time remoto do Mobile Experience Lab do MIT. Os problemas do software eram detectados pelo grupo durante a apresentação e, quase que instantaneamente, o código era atualizado e publicado. Esta possibilidade reduziu em grande parte erros de processo que poderiam ter ocorrido durante a prática do projeto. Compreende-se 1 Doutor, professor de Jornalismo e coordenador da especialização em Desenvolvimento de Jogos Digitais da Famecos/PUCRS. E-mail: afpase@pucrs.br. 42 PASE, A. F. • Locast e o potencial da informação geolocalizada que o mesmo poderia ter sido realizado com o kit de desenvolvimento do iPhone, por exemplo, porém as liberdades de instalação do software sem caminhar para uma loja como a iTunes Store ou sem a necessidade da sincronia como desenvolvedor autorizado garantiram agilidade no projeto. 1 PRÁTICAS E PUBLICAÇÕES Mesmo com todo o esmero para configurar o sistema, na prática o Locast revelou seu verdadeiro potencial. Além da mobilidade de comunicação, os participantes do projeto utilizaram o material para documentar fatos do cotidiano, problemas com o trânsito e eventos culturais, sobretudo. Além disso, a infeliz tempestade que atingiu Porto Alegre no dia 17 de novembro de 2009 tornou-se uma data especial para avaliar como o Locast poderia ser uma base com informações para orientação em um cenário adverso. A possibilidade de indexação geográfica dos vídeos permite um olhar duplo sobre o material publicado em tempo real. Não apenas é um mapa com os locais ou uma lista com o que foi publicado recentemente, mas o cruzamento dos dois dados. No caso do dia 17, foi possível visualizar os estragos provocados na cidade de uma maneira diferente. Apenas as notícias ou simples imagens colocadas no Twitter, por exemplo, perdem o contexto espacial, sobretudo quando a população precisa pensar como será o seu deslocamento pela cidade. Outro aspecto interessante relatado pelos participantes foi a reação dos entrevistados quando filmados. Muitas vezes, as câmeras provocam reações adversas nas pessoas em foco, que apresentam sinais de nervosismo ou intimidação pelo aparelho. O celular age de maneira menos feroz e, dado o seu uso cotidiano, não se torna tão intrusivo em alguns momentos. Além disso, seu manejo fácil permite que seja carregado mais facilmente pelo citzen journalist ou profissional, que já utiliza o aparelho e não necessita de mais gadgets para sua rotina. A observação das publicações revela que os jornalistas utilizaram a ferramenta inicialmente para informações de contexto da notícia, também conhecidas como “pautas ambientais” no jargão jornalístico, e, sobretudo pela equipe de Zero Hora, como ferramenta para gravação e Locast Civic Media 43 transmissão de entrevistas, com o vídeo servindo para posterior degravação e utilização em matérias textuais. Este uso parece simples, porém é muito útil para o profissional do texto. Ele conta com um complemento para as suas anotações e ainda enriquece o site da sua publicação, com material captado em outras linguagens que pode ser utilizado pelo impresso como ponte para o online e, o mais importante, auxilia na compreensão dos fatos. Desta forma, a ferramenta digital não obriga o jornalista a realizar mais uma ação, mas sim facilita a sua vida. Muitas vezes, a equipe da redação reage contra mais uma tarefa no ato da reportagem, sobretudo quando envolve o online. Ressaltar que a ação substitui outras e ainda é prática, como observado com o Locast, pode servir no processo de inclusão do celular como companheiro de captação de dados. Além disso, o uso do Locast para captar os bastidores da captação também foi observado. Porém, este recurso deve ser direcionado para pautas em específico, pois nem tudo o que acontece com a equipe é de interesse do grande público. Controlar esta espécie de publicação, sobretudo valoriza quando ela é colocada em foco. Apesar de não contar com a pressão pela busca da informação, a equipe de pesquisadores também captou em tempo real, porém preocupados com o fato, não o instante. Muitas vezes a publicação era realizada horas depois, porém houve a busca por um conjunto de planos-sequência, entrevistas e imagens dos fatos sem edição. Esta forma culminou por revelar um vídeo orgânico. Não se trata aqui de rejeitar o fino cuidado da edição, necessário quando há tempo disponível, mas sim observar que a informação direta, desde que acompanhada de uma orientação sonora ou visual do repórter/citzen journalist também é válida. Aliás, esta publicação permite que outra, mais refinada, seja realizada posteriormente. Desta forma, o Locast completa o trabalho do profissional e permite que o público faça um mapa natural do que acontece ao seu redor. Este conteúdo pode ser utilizado por uma empresa jornalística, desde que não haja interferência no conteúdo ou mesmo o público evite publicar por achar que uma publicação pode ir contra o princípio do site. A moderação e gestão do sistema prescindem de transparência e guias claros. 44 PASE, A. F. • Locast e o potencial da informação geolocalizada 2 PROPOSTAS PARA NOVAS AÇÕES As ações do Locast em Porto Alegre mostram que a ferramenta é única e interessante. O uso pelos profissionais e pesquisadores revela que este foi apenas o primeiro impacto, e a tecnologia tem plenas condições de ser utilizada em outros momentos e com novas possibilidades. A plataforma já conta com integrações, mas uma eventual conexão com a API do Twitter permitiria não postar do Twitter para o Locast, mas sim o Locast avisar que há um novo cast. Isto permitiria utilizar uma informação pública em uma timeline específica, sem a necessidade de acompanhar uma pessoa em especial. Além disso, informar o nome de usuário no Twitter do publicador permitiria um diálogo provocado pelo Locast, mas sem poluir o ambiente inicial com informações específicas. Outro uso poderia ser como plataforma para um exercício de newsgaming. Não apenas provocar o público para publicar e valorizar o material no ar com um escore, premiando quem mais contribuísse pelo seu bairro