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SIQUEIRA, A. C. ; JAEGER, F. P. & KRUEL, C. S. Familia e Violência Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas. 2013. Pag. 97 109.

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i Capítulo V I I 
A C O L H IM E N T O I N S T I T U C I O N A L : 
NÃO S E P OD E P E R D E R O 
M EN INO DE V I S T A 
Cláudia Vidigal 
"Não se pode falar de educação sem amor". Paulo Freire 
No Brasil, cerca de 30 mil crianças e adolescentes estão em 
serviços de acolhimento. O acolhimento institucional é uma medida 
jirotetiva, temporária e provisória e absolutamente necessária para que 
algumas crianças e adolescentes possam ser garantidos em seus direi-
tos básicos em momentos de vulnerabilidade social e familiar. Esta 
medida está presente no Brasil, mas também em quase todos os países 
desenvolvidos da Europa, América do Norte etc. Com isso, entende-
mos que se trata de uma questão que extrapola o âmbito económico e 
explicita a possibilidade de crises familiares em qualquer camada so-
cial nas quais o Estado precisa agir para proteger as crianças e adoles-
centes, bem como as famílias, que precisam de apoio para superar este 
momento e poder voltar a cuidar de seus filhos. 
As últimas décadas trouxeram avanços significativos para es-
ta medida em nosso país, tomando-a cada dia mais acolhedora, de 
98 Cláudia Vidigal 
verdade. Desde a Constituição Federal, em 1988, até os dias de hoje, 
diversos avanços legais foram alcançados, sendo o Estatuto da Criança 
e do Adolescente (1990) o mais importante de todos eles. Acontece, 
porém, que o emblema do Brasil Colónia, assistencialista, marcado 
por profundas diferenças sociais traz ainda resquícios importantes de 
sua história para nossa prática, e aproximar os parâmetros legais da 
realidade cotidiana é um objetivo que precisamos perseguir com vee-
mência. Para tanto, é fundamental estarmos absolutamente cientes das 
leis, dos planos e das diretrizes nacionais, conseguindo assim fortale-
cer a indentidade das instituições de acolhimento dentro de todo o 
Sistema de Garantia de Direitos. Formação e capacitação contínua 
para os trabalhadores que atuam neste sistema são imperativos. 
O Instituto Fazendo História é uma organização social sedia-
da em São Paulo que tem como objetivo contribuir com o desenvol-
vimento de crianças e adolescentes que estão em instituições de aco-
lhimento, trabalhando junto a sua rede social. Em 2010, o Instituto 
teve mais de 100 abrigos parceiros em processos de formação em bus-
ca de um melhor acolhimento. Todos os seus programas têm os parâ-
metros legais que iremos presentar a seguir como diretrizes do traba-
lho e as histórias de vida de cada criança e adolescente que está nos 
abrigos onde trabalha como eixo transversal de todas as suas estraté-
gias de atuação. 
Não se pode perder o menino de vista. 
O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 
(ECA, 1990) 
No processo de reordenamento e profissionalização dos abri-
gos, percebe-se que a adequação às novas práticas de atendimento, 
propostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, de-
pende fundamentalmente de um novo modo de compreender a infân-
cia e adolescência, tendo como pressuposto que a criança e o adoles-
cente são sujeitos de direitos. 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 99 
Antes, existiam os grandes orfanatos que se pautavam pelo 
modelo de uma instituição fechada (as chamadas instituições totais) à 
semelhança dos manicómios, conventos, prisões e, portanto, as ativi-
(lades de educação, saúde, lazer, profissionalização eram realizadas 
dentro da instituição, e a convivência familiar e comunitária era prati-
camente nula. 
Trata-se de uma mudança do olhar e do fazer, uma mudança 
lie mentalidade de todos os atores, no sentido de superar práticas assis-
(encialistas e colocar em foco uma nova concepção de atendimento, 
pautada na educação e no olhar individualizado para cada criança e 
adolescente, considerando sempre seu contexto social. O desafio está 
cm reconhecer não só a criança e o adolescente como sujeitos de direi-
to, mas também reconhecer a família e a comunidade como referên-
cias fundamentais na constituição da identidade desses sujeitos e em 
seu percurso em direção ao futuro. 
Após a promulgação do ECA, inicia-se o desmonte das 
grandes instituições, dando lugar a pequenas casas, de caráter residen-
cial para grupos menores de crianças e adolescentes. Os irmãos devem 
jicrmanecer juntos. O encaminhamento para as unidades deve ser de 
caráter excepcional e provisório. As transferências de abrigo devem 
ser evitadas. Os atendimentos passam a ser personalizados. Passa-se a 
utilizar os recursos púbhcos da comunidade do entorno das unidades 
de acolhimento para assegurar saúde, educação, cultura e lazer. As 
unidades de acolhimento devem estimular e favorecer a convivência 
familiar e comunitária. Antes do ECA, acreditava- se que o melhor 
lugar para muitas crianças e adolescentes de famílias pobres ou mais 
desorganizadas crescer era, de fato, uma grande instituição. Acontece 
t|ue, desde o perído pós-guerra, na Europa, diversos estudos aponta-
ram para as dificuldades encontradas para se promover um desenvol-
vimento integral em nossa sociedade ocidental fora de um núcleo fa-
miliar. Entendeu-se que a instituição não é o melhor lugar para uma 
criança crescer e se desenvolver, mas sim, a família, ainda que dife-
rente da idealizada por todos. 
O conceito de família é então ampliado e mais valorizado. O 
poder público reconhece que possui parcelas de responsabilidade em 
desenvolver políticas públicas para suprir as necessidades básicas de 
manutenção das famílias das crianças e adolescentes em medida de 
proteção. 
100 Cláudia Vidigal 
O PLANO NACIONAL DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR E 
COMUNITÁRIA (2006 - PNCFC) 
Em dezembro de 2006, o Plano Nacional de Promoção, Pro-
teção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência 
Familiar e Comunitária (PNCFC) é divulgado e constitui-se como um 
marco nas políticas públicas do Brasil, visando primordialmente in-
vestir na preservação dos vínculos familiares e comunitários, enten-
dendo a família enquanto lugar privilegiado para o desenvolvimento 
integral das crianças e adolescentes e rompendo com a cultura da insti-
tucionalização de crianças e adolescentes em função da pobreza ou 
dificuldades circunstanciais de sua família. Trata-se não só de uma 
compreensão da realidade, mas também, de um plano de metas de se 
modificar a realidade para que o Estatuto possa ser garantido. 
O PNCFC reforça os preceitos da não discriminação, o inte-
resse superior da criança, os direitos ao pleno desenvolvimento e o 
respeito à opinião da criança. Alude à importância da convivência 
familiar e comunitária para um desenvolvimento saudável da criança e 
adolescente e responsabiliza o Estado e a família como coparticipan-
tes nesta empreitada. 
ORIENTAÇÕES TÉCNICAS: SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO 
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES (OT, 2009) 
Em 18 de junho de 2009, foi aprovado o documento Orienta-
ções Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes 
(OT) com a finalidade de dar parâmetros claros para que os serviços 
de acolhimento pudessem ganhar qualidade. O documento indica pro-
cedimentos técnicos ftindamentais para a profissionalização desses 
serviços estabelecendo, inclusive, orientações metodológicas e diretri-
zes nacionais que possam contribuir para que o atendimento no servi-
ço de acolhimento seja transitório, porém reparador. 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 101 
Assim, a partir da divulgação deste documento, os serviços 
de acolhimento de todo o país passam a ter maior clareza do que é 
esperado deles, de qual é o seu papel no Sistema de Garantia de Direi-
I D S e, mais do que isso, passam a ter claro um caminho metodológico 
comum para o estabelecimento de um serviço de acolhimento de qua-
lidade. Não se trata do engessamento de propostas pedagógicas, mas 
lia concepçãoe socialização de um mesmo norte e da organização de 
propostas para serem atingidas. Neste documento, estabelece-se qua-
tro modelos para os serviços de acolhimento: abrigo, casa-lar, famílias 
acolhedoras e república jovem. Para cada modelo, há uma diretriz de 
luncionamento. 
LEI 12.010 - NOVA LEI NACIONAL DE ADOÇÃO 
Ainda em 2009, foi aprovada a Lei 12.010, conhecida como 
Nova Lei Nacional de Adoção. Ela altera diversos artigos do ECA 
(Brasil, 1990). A partir da promulgação desta lei, os juízes, além de 
justificar e fimdamentar a entrada e saída de crianças e adolescentes 
das unidades de acolhimento, passam a ter um prazo de seis meses 
para reavaliar a permanência das crianças e adolescentes neste serviço, 
liste dispositivo garante uma revisão e avaliação permanente de todo o 
sistema de proteção e da necessidade da medida protetiva, em cada 
caso. Outra inovação foi a fixação do tempo de dois anos como o pe-
ríodo máximo de permanência em programa de acolhimento institu-
cional e familiar e a obrigatoriedade de justificativa da autoridade ju-
diciária, quando este prazo for superado. Este procedimento pretende 
prevenir que não haja demora excessiva na solução de algumas situa-
ções de acolhimento, bem como, assegurar que o direito da criança ou 
adolescente de viver em uma família, biológica ou substituta, seja pri-
vilegiado em detrimento da permanência em um serviço de acolhi-
mento. 
A família passa a ser considerada em dimensões estendidas e 
ampliadas, para além da unidade pais e filhos e passa a ser compreen-
dida também como aquela, formada por parentes próximos com os 
102 Cláudia Vidigal 
quais a cri-ança"" adolescente convive e mantém vínculos dc H , , , , , 
de e afeti^tM'^ nova lei reforça ainda a necessidade da prcs.M , 
ção dos vííílculK familiares e fraternais, declarando que "os grupo* ,|, 
irmãos senão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma l.imi 
lia substiti^ta' ressalvada a comprovada existência de risco de a h n , . . .,„ 
outra situ^íÇãoflue justifique plenamente a excepcionalidade\lr 
ção divergia, ptocurando-se, em qualquer caso, evitar o r om n u i 
definitivo rdosvínculos" (art. 28 - parágrafo 4). Cria e toma ob,,,.,,,,, 
rio o P l a n^ taf'dual de Atendimento (PIA), um procedimento .,„„ 
resulta ent^ umdocumento onde deverão constar todas as informk.V» 
e o objetivtodoatendimento em relação àquela criança ou adolcsccnl». 
e sua famPlia. Wamental no esforço de dar uma solução efetivi n n., 
cada caso. 'No PIA deverão estar registrados os resultados da avaliu ilu 
interdiscipri'linar'f compromissos assumidos pelos pais ou resnouMi 
vel e pe la i rede de atendimento; e a previsão das atividades a s ou . , 
desenvoIv:'idas com a criança ou com o adolescente acolhido e sn\<, 
pais ou r&fspmvel, com vista à reintegração familiar ou caso sn.i 
esta vedacfda por expressa e fundamentada determinação judicial tm 
providênci«iasaserem tomadas para sua colocação em família subsiiiii 
ta, sob direfetasupervisão da autoridade judiciária. 
O!')utro aspecto positivo diz respeito à escuta das crianças „„ 
dos adolesí«centes, os quais devem ser ouvidos e passam a ter sua opi-
nião devic'àaKÚe considerada. Adolescentes com mais de 12 anos 
precisam «icoísentir seu encaminhamento para famílias adotivas To 
dos passatí»na ter o direito de conhecer sua história ao completar 1« 
anos, e, ar^tes disso, desde que acompanhados por profissionais com-
petentes. 
NOVAS ULIIS, NOVAS PRÁTICAS, NOVOS VÍNCULOS 
QiO stabelecimento de todos esses novos parâmetros legais 
nas últimafsJécadas não é, por si só, suficiente para que novas práticas 
sejam Parsf^*^^^- mudanças ocorrem de forma gradativa, proces-
sual enãa^O'P'^ decreto. Assim, as instituições de acolhimento vêm 
lumil ia e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 103 
liindo para se aproximar cada dia mais do que a legislação espera e IJit delas. Nes te novo paradigma, os técnicos e educadores dos ser-||i'< dc acolhimento buscam qualificar sua atuação para um acolhi-H I I O individualizado que considere a história pessoal e familiar de (III u m e que tenha sempre o direito à convivência familiar e comu-Uiii i i como pano de fundo de suas ações. Para tanto, o estabeleci-lliti) dc vínculos é condição central do trabalho, que ainda aparece fincada por diversas contradições. Com resquícios de uma orientação assistencialista, é comum b o vínculo estabelecido com as crianças e adolescentes nos abrigos jb orientado pela ideia de que, por tratar-se de situações envolvendo nllitos junto aos familiares, é preciso protegê-los e amá-los como se ucni filhos. Assim, constrói-se um trabalho sobre o engano de que Hii possível e adequado substituir a família de origem. Essa orienta-0 S C apoia n um complicado e cmel julgamento em que não se reco-iiliccc a capacidade de cuidar e educar daquela família, além de contar 
mm um impossível: apagar a história passada. E nesta perpectiva, 
|Mi i l c - se o direito à convivência familiar de vista. 
Diversas são as histórias em que trabalhadores dos serviços 
ili- acolhimento, ao se vincularem com as crianças e adolescentes, co-
mo se fossem o s pais, de modo consciente ou não, no ímpeto de apla-
lar o sofrimento decorrente do afastamento em relação à família de 
origem, dificultam o trabalho de reaproximação e reinserção familiar. 
Desde a chegada na instituição, os vínculos entre as crianças 
c adolescentes e os trabalhadores do abrigo começam a ser constmídos 
c permitem assim, proporcionar-lhes um lugar acolhedor para que 
i|uestões como: desamparo, saudade, raiva e medo, por exemplo, pos-
sam ser expressas e cuidadas. No entanto, é importante que estes vín-
culos não concorram ou disputem com o vínculo dessas crianças e 
adolescentes com suas famílias. Para tanto, é preciso circunscrevê-los 
dentro de uma proposta de trabalho para cada criança, um Plano Indi-
vidualizado de Atendimento (PIA), que reúna os dados da história 
trazidos pelos órgãos encaminhadores e estabeleça algumas tendências 
para cada caso. 
Se o trabalho do educador é de um trabalho apoiado em rela-
ções afetivas, trata-se, então, também de um trabalho, de uma prática 
que precisa ser profissionalizada. Nas relações afetivas estamos entre-
104 Cláudia Vidigal 
gues, mergulhados, experienciando "coisas" que nem sempre temos 
consciência ou somos capazes de controlar. Esse talvez seja uma das 
questões mais paradoxais dos serviços de acolhida. Como profissiona-
lizar sem anular os afetos envolvidos? Este desafio é tão grande que 
diversos trabalhadores de abrigos, por vezes, chegam a desenvolver 
bloqueios que os impedem de se vincularem às crianças e adolescen-
tes. É muito importante que os educadores estejam atentos para perce-
ber o tipo de sentimento que as crianças e famílias lhes mobilizam. 
Por exemplo: se os educadores se identificam demais com o sofrimen-
to da criança podem atuar de maneira involuntária criando situações 
nas quais afastam a família da criança e aí, não contribuem para os 
processos de inserção familiar. 
A ênfase no trabalho de inserção familiar que atualmente 
orienta as políticas de acolhimento, coloca um desafio para os traba-
lhadores destes serviços: vincular-se afefivamente às crianças e aos 
adolescentes com vistas a apoiá-los no processo de desligamento do 
serviço de acolhimento. Muitos são os relatos de trabalhadores de 
abrigos marcados pela saudade das crianças com quem estiveram 
durante o período de acolhimento. É por esse mofivo que os espaços 
de formação para esses trabalhadores são importantes. . ,,, 
HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM NO ESPAÇO 
INSTITUCIONAL 
A possibilidade de a criança e o adolescente atribuírem signi-
ficado à história e ao sofrimento vividos com sua família, quando isto 
ocorreu, é um dos componentes centrais do papel do educador. Com 
frequência a expressãodessa dor aparece, por exemplo, em compor-
tamentos agressivos, apáticos, nas dificuldades de socialização, nas 
dificuldades de aprendizagem apresentadas na escola. Para o educador 
acessar o que está sendo expresso em cada uma dessas situações c 
preciso, antes de mais nada, enxergar tais situações como oportunida-
des de expressão, mesmo que não se tenha de imediato clareza do que 
está se revelando. Muitas vezes, ocorrem situações no abrigo muito 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 105 
difíceis de serem decodificadas, principalmente no momento da recep-
ção e nas primeiras semanas de chegada da criança. À primeira vista, 
alguns comportamentos podem ser entendidos como ataques pessoais 
aos educadores. É bastante comum, por exemplo, que meninas ou me-
ninos que foram abusados, apresentem grandes dificuldades para se 
aproximar dos educadores do mesmo sexo dos abusadores. Estas difi-
culdades podem ser percebidas, por exemplo, em atitudes excessiva-
mente receosas diante da presença desses educadores. As meninas 
podem se apresentar para a relação com o educador de forma bastante 
sexualizada, como se não houvesse outra forma de receber amor, a não 
=er a partir de seu corpo. Nestas circunstâncias, estabelecer relações de 
ínculo afetivo é um processo que pode inaugurar uma experiência ao 
mesmo tempo amorosa e respeitosa, fundamental na construção da 
identidade, que considere e reestabeleça o caráter protetivo da relação 
ntre um adulto e uma criança. 
Além da própria relação vivida com o educador, a possibili-
ade de a criança e o adolescente conhecerem e falarem sobre sua 
istória e o que se passou em sua família é fundamental. Essas são 
onversas que ocorrem com os trabalhadores dos abrigos quando há 
lações de confiança e, com frequência, em situações do cofidiano. 
Tudo isso permitirá a expressão da criança e do adolescente e o traba-
lho de reintegração às famílias. 
Ao retomar sua história, a criança tem a oportunidade de res-
significar - atribuir outros sentidos - suas lembranças difíceis e abrir 
caminho em direção a recursos que a podem ajudar a superar adversi-
dades. O papel do educador em um abrigo, em grande medida, está em 
oferecer à criança a possibilidade da palavra para a representação de 
suas vivências e para a expressão do que sonha para o flituro, seja na 
conversa, na encenação da brincadeira, no desenho, no acompanha-
mento das tarefas escolares, na organização dos seus objetos pessoais 
e em outras situações prosaicas do cotidiano. Muitas são as situações 
oo longo do cotidiano em que a criança e o adolescente podem se ex-
pressar. A conversa significativa - o diálogo em que há interesse real 
cm escutar o outro - tem um enorme potencial de ajuda no atravessa-
mento dos momentos de muito sofrimento. 
Porém, as conversas sobre as histórias são momentos delica-
dos dentro do abrigo. A dor que as acompanha não é fácil de suportar 
c pode ativar lembranças das histórias pessoais de quem as ouve. E, 
106 Cláudia Vidigal 
então, o educador passa a ter que lidar com os seus próprios sofrimen-
tos. Há também o receio de que as crianças se entristeçam ainda mais, 
uma vez que a dor se ativa novamente. E, mesmo em se tratando das 
lembranças alegres, teme-se que as saudades que desencadeiam tam-
bém as ameacem. Esse receio ou temor leva, muitas vezes, a não que-
rer despertar nenhuma lembrança, mas, o que se constata, com fre-
quência, é que depois de uma conversa difícil para a criança, por 
exemplo, ela fica mais aliviada e consegue brincar ou dar conta de 
alguma tarefa do cotidiano. De fato, ser companhia nesses casos não é 
uma tarefa fácil, mas, falando, é possível começar a sentir menos dor e 
é possível criar espaços internos para viver novas experiências das 
quais sentiremos novas saudades, por exemplo, saudades de boas con-
versas em que fomos ouvidos com respeito e acolhimento. 
O trabalho de retomada da história ganha força quando per-
mite que a criança se aproprie do que viveu e lhe atribua um significa-
do, abrindo espaço para que imagine um futuro, que sonhe, que faça 
planos. As informações reunidas pela equipe técnica a partir de entre-
vistas com os familiares da criança, visitas domiciliares e relatórios do 
fórum e de outros equipamentos, possibilita que a equipe do serviço 
de acolhimento conheça as histórias das crianças por outras fontes que 
não apenas as próprias crianças^, e são de grande ajuda para com-
preender as nebulosas e enigmáticas maneiras que encontram para sc 
expressar. 
Ser companhia para visitar suas histórias, nomear as dores e 
encontrar novos sentidos é uma contribuição fundamental para o pro-
cesso de construção de identidade, de maneira que esta não se apoie 
em uma ideia equivocada de sua própria história. Para que a criança e 
o adolescente experienciem seu próprio valor e cresçam descobrindo 
suas qualidades, a companhia de um adulto com quem esteja vincula-
da e que descubra, reconheça e viva com ele esses valores é crucial. 
Isso ocorre sempre a partir de uma relação afetiva ainda que por cami-
nhos bastante particulares para cada um. Não se pode perder o menino 
de vista. 
"A transmissão pelos técnicos aos educadores/cuidadores ou família acolhedoni 
de informações necessárias ao atendimento das crianças e adolescentes deve es-
tar pautada em princípios éticos, os quais também devem pautar a postura dos 
educadores/cuidadores". - OT - p. 47. 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões P r í t i n . . 
107 
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO 
1. Qual é o melhor lugar para uma criança crescer: família 
ou acolhimento institucional? Reflita sobre as condições 
favoráveis para o desenvolvimento de uma criança e em 
qual ambiente as mesmas poderiam ser alcançadas. 
2. Que famílias ou que membros de uma família estão capa-
citados para o cuidado de um uma criança? Compartilhe 
sua resposta com seus colegas em grupos. 
3. Reflita e cite que práticas poderiam estar presentes no co-
tidiano dos acolhimentos institucionais para que esta ex-
periência não se constitua em mais uma violência. 
REFERÊNCIAS 
(2009). Le, n.. 12.010. de 3 de agosto de 2009. Presidência da República. Brasília

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