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Pro-Posições- Vol. 9 N° 2 (26)Junho de 1998 Corpo, dança e educação contemporânea: Isabel A. Marques* Resumo: Esteartigodiscutealgumasrelaçõesexistentesentreconceitosde corpo e de dança.Alicerçadopelahistóriadadança,desdeIsadoraDuncanàsexperiênciasmodernase contemporâneasOudsonChurch,BiII T. Jones,Pina Bauschetc.),a autorapontuadesdo- bramentoseducacionaisnaáreadeensinodedançadecorrentesdestesconceitos.Paratan- to, partedehistóriadevida pessoal,comentandoe discutindoo ensinodedançarecebido desdeo baléclássicoàspropostasde dançaditas"contemporâneas".A autoraterminao artigoleventandoquestõessobreo corpo e a dançano mundotecnológicoe comoisto podevir a alterare/ou contribuircomo desdobramentosdesuaspropostaseducacionais. Palavras-chave: dança,educação,corpo,história Abstract: in thisarticletheauthorrelatesdifferentconceptsof thebodyandthedance in society.Basedon dancehistory,from IsadoraDuncanto modemand contemporary danceOudsonChurch, BiII T. Jone, Pina Bausch),shepoints out somedevelopmentsof a pedagogyof dancethatmightcomefromtheseconcepts.The author'sstandpointis her own !ife story learningdancein differentplacesand with differentsocialand cultural backgrounds,fromcIassicalbalIetto contemporarydance.Theauthorfinishesherdiscussion bringingup questionsabout the bodyand the dance in technologicalsocietyand how this relationshipmightaffectand/or contributetowardsthedevelopmentof educational proposalsin theteachingof dance. Descriptors: dance,education,body,history Introdução Meu encontrocomapesquisaqualitativasedeuatravésdosartigosecontatopessoal comaProf!!SusanStinson,quehá muitosanostrabalhasobestaperspectivana áreade .Professora-Doutoroe Pesquisadora membro do NACE-NUPAE do ECA/USP, diretora do CALEIDOS", gru- po de danço e educação. 70 Pro-Posições- Vol. 9 N°2 (26)Junho de 1998 dança.Aprendicomela,principalmente,aimportânciadecompartilharnossashistórias, pois"seiqueasforçasqueafetaramminhaprópriaexperiênciaepensamentotambém[pro- vavelmente]afetaramasexperiênciasepensamentosdeoutrosprofessoresdedança,inde- pendentementedeelesteremchegadoàsmesmasconclusões"(Stinson,1998,p. 24).Aci- madetudo,aprendiqueminhahistórianãoéumahistóriaindividual,que"o eu quefaz minhasprópriasexperiênciaséumeu formadopor influênciassócio-culturais"(ibid). SeguindoasidéiasdeStinson(1998),nesteartigoquerocompartilharminhaprópria históriade"estar-metornando"umaartista-docente,atreladaàsreflexõesquerelacionam meucorpo,adançaea educaçãocontemporânea.Estetemavemmefascinandoe perse- guindohámuitosanos,principalmentedesdeaépocaemquetomeicontato,comodança- rina,comaeducaçãosomática;comopesquisadora,comahistóriado corponasociedade ocidental;ecomoprofessora,desdeo momentoemquemedepareicomamultiplicidade decorposemminhassalasdeaula. Minha experiênciano mundodadançafez-meperceberque,tradicionalmente,dança- rinos/coreógrafos/diretorestêmdificuldadeemmanterumadistânciaemrelaçãoa seus corposfísicos:fomosensinadosa estarsempre,deumamaneiraou deoutra,atrelados, conectados,inseparáveisdeles,mesmoquecoma intençãodesuperá-Iosetranscendê-Ios. Estatendênciadesconsiderao processointelectualparao aprendizadoemdança,por con- siderarqueo dançarinoou dançarinasãosimplesmente"fazedoresdedança".Muito cedo, quandotinha 14anosdeidade,jácomperspectivasdeterumacarreirapromissoranaárea dedança,fui aconselhadapor minhaprofessoraa "fazerum colegialmaisfraco",parapo- dercontinuardançando.Não faz muito tempo,ouvi deduasamigaso depoimentode queforampraticamenteostracizadasdo mundodadançapor teremoptadopor fazerum cursodemestrado,mesmoqueemdança. Esteconflito pessoalentre"falarsobreo corpo/dança".Q.Y."vivero corpo/dança"foi "resolvido" em meu trabalho como pesquisadora,durante meu mestrado-e posteriormente doutorado-,quandoaprenditantointelectualquantocorporalmentequepodiapensardançan- do edançarpensando.Mesmoassim,anosmaistarde,surpreendi-mecomarespostadealgu- masdeminhasalunasnaUNICAMP dequeminhapropostaeducacionalparadançaeramuito intelectualizadaenãopermitiaqueelas"vivessemseuscorpos".Estasposturasserefletiam nosplanosdeestágioquedesenvolviamnocursodelicenciatura. Desdeentão,comeceia investigarcommaisassiduidadeeinteresseasrelaçõesentrecon- ceitosdecorpo,dançaeeducação.Atravésdaanálisedahistóriadadança,tiveindicativosdeque estesconceitosestavamintimamenteligados.Compartilhoaquipartedemeureferencialteóri- codestapesquisaqueserelacionaàminhaprópriatrajetórianestasáreasdoconhecimento. o corpoinstrumento Comeceiadançarjá muitopequena,comquatroanosdeidade.Com sete,praticamente "obriguei"minhamãea mecolocarno baléclássico,desconhecendo,atéhoje,asrazões(na época)por tal fascínio.O baléclássicotomoucontademeucorpoedeminhavidapor dez anos,atéque,tendoganhoumabolsaparaestudarforado Brasil,tivede"abandoná-Io". No Canadá,estudandoemumcolégiointernacional,tomeicontatoeaprendino meu corpováriostiposdedança,principalmenteasfolclóricas,trazidaspelosalunosda índia, 71 Pro-Posições- Vol. 9 N°2 (26)Junho de 1998 Checoslov'áquia,Nigéria, Indonésia,Canadá,Egito, Irlanda, Espanhae muitos outros. Estecontato, no entanto, não foi suficienteparaqueeu realmenteacreditasseque o mundoda dançanãoselimitavaao baléclássico:meucorpo (queinclui minha mente) aindaestavamoldadosomenteparaaceitaro baléclássicocomo modalidadededança "deverdade".Paradoxalmente,foi meupróprio corpo queme "disse",algum tempo depois,quenão queriamaiso baléclássico,queminha vida haviamudado,quemeus valoreseramoutros,queminhasbuscasseguiamum rumo diferente. Os depoimentose memóriasde Kirkland (1986)e Brady(1982)e aspesquisasde Gordon (1983)eVincent (1989)sobreo corpo dasbailarinassãoexemplosdestacon- cepçãodecorpo impostapelobaléclássicoedapressãoeda torturacorporalepsicoló- gica por que são/foram obrigadasa passarmilhões de mulheresparaque pudessem "chegarlá", no mundo da dança.Embora não tenhavivido nadasemelhante,minha "paixãocega"pelobaléclássico,incentivadapor minhasprofessoras,quasemelevoua tornar-mea "bailarina quenão tem", tão bemcaptadapor Chico Buarque:não tem verruga,calcinhavelha,namorado,coceira,unha encardida...não temnadaquetodo serhumanoviventenestemundo teria- não temcorpo vivido. Estavisãoalinha-seàconcepçãodecorpo comoinstrumentodadança,comomeio, "máquina"paraa produçãoartística.O corpo nestaconcepçãoé algoa sercontrolado, dominadoeaperfeiçoadosegundopadrõestécnicosqueexigemdo dançarinoumaadap- taçãoe submissãocorporal, emocionale mentalàquilo queestásendorequeridodele externamente.É o dançarino sendovisto como "materialhumano", como muitasve- zesescutei,anos mais tarde,de algunsde meuscolegasda universidadeao sereferi- rem aosnossosalunos. Perceboqueestaconcepçãodecorpo nos leva,como na análisede Bordo (1989, 1993)sobreo corpo da mulherna sociedadeocidental,à diferençaentrepossuir eser umcorpo,ou entreumcorpoqueestácomigoeumcorpoqueSOlleu.Segundoaautora, estadiferenciaçãoécrucial parasuperara tradicionaldualidadeentreuma "menteati- va" e um "corpo passivo" queainda permaneceno cernedos discursos e comporta- mentosdasociedadeocidentalI equeperpetuaadicotomiaentrehomem/mulher,cul- tura/natureza. Em última instância,estaríamosfalandodo "corpo ideal" Uohnson, 1992),pres- crito por diversosestilosdedança.Estecorpo évisto como "um desenhovisual espe- cífico decomo o (não "meu")corpo deve (não"poderia")servisto. Há muitos ideais, indo dabonecaBarbieao malhadordeacademia"(ibid, p. 88). . O processoeducacionalatreladoa estaconcepçãodecorpo visa,conseqüentemen- te,a aprimorar, controlar, vencero corpo e seuslimites fisicos. Não há preocupação como processocriativocorporalindividual, muito menosemtraçarrelaçõesentrecor- po, dançae sociedade.O produto é o objetivo último da educação.Em geral, nesta concepção,é privilegiadoo ensinodetécnicascodificadas(baléclássico,dançamoder- na,etc.). I A leitura de Bordo sobre o "corpo passivo" supõe uma conotação negativa para a passividade. conotação esta predominante na sociedade ocidental. Poroutro lado, vale a pena resguardar que, no pensamento oriental. a passividade significa apenas a "não ação". a recepção. que são elementos indissociáveis. opostos e complementares à ação. do princípioativo. e é esta interação que permite a vida e o equilíbrio harmônico do ser. 72 pro-posições- Vol. 9 W 2 (26)Junho de 1998 o corponatural Regressandoao Brasil,aindaadolescente,logobusqueiminha antigaacademiapara "entraremforma"econtinuarminhatrajetórianadança,entãosinônimodebaléclássico. O espelhojá nãorespondiamais,achava-mehorríveledesengonçada,meucorpo eraou- tro (peso,forma,altura,flexibilidade).Nestaépoca,aconselhadapelaorientadorademeu antigocolégio,descobria expressãocorporal,ou a dançacriativa,ou o quechamamno Brasil (erroneamente)de "métodoLaban".Descobriem meucorpo o quemuitos cha- mamde"liberdadedeexpressão","soltura","meumovimentonatural":podiarolar,cair, expandir,gritar,tocarosoutros,sentirmeusanguecorrernasveias.Descobrioutro tipo deprazerao dançar,um prazerquenãoestavaatreladoao masoquismodospéssangran- do dentrodassapatilhasdeponta,masaocontatocommeucorpofisico talqualeleerae estava. IsadoraDuncanéa figuradahistóriadadançaa quemrelacionoestasexperiências, pois ousadamentedesafioutantoo mundodo baléclássicocomoa sociedadepatriarcal (Duncan,1989).Acimadetudo,Duncanprezavaa liberdadee seucorpo/dançaerauma maneiranãosomentedemanifestarsuacrença,masprincipalmentedeviveresteprincípio. Com Duncan,perpetua-seo discursodeque"dançaévida",relacionando-aintimamenteà natureza.O corpo,assim,como"partedanatureza"étambéma expressão"naturalees- pontânea"do Homem,a manifestaçãodesua"essência". Existe,nestalinha de pensamento,umarelaçãoquasequeapriori entreo corpo,a dançaea criança,tambémconsideradaespontânea,purae livreemsua"essência".Os des- dobramentospedagógicosdestaconcepçãodecorpoedançafundaram,emperíodoposte- rior àmortedeDuncane por muitosartistaseeducadoresdaépoca,a "dançacriativa",a "dançaeducativa",no Brasil a "expressãocorporal",entremuitasoutrasnomenclaturas (videMarques,1996,1997).Estaspropostaseducacionaisbaseavam-senacrençadequea educaçãonãopoderia"invadir"acriançaesimdeveriapossibilitaro desenvolvimento"na- tural"do "artistaqueestádentrodecadaum" (Soucy,1991).Em outraspalavras,o pro- cessoeducativonãopoderia"destruir"a nossa"criançainterior".O processo.assim,tor- na-sebemmaisimportantequeo produto. o corposocialmenteconstruído Não demoroumuitoparaeuperceberquefaltavaalgonasmodalidades"criativas"de dança.Destavez,no entanto,nãofoi meucorpoquedeusinalesimmeusestudosacadê- micosnaáreadeeducação,poisjá estavaterminandoo cursosuperiordePedagogia.Como educadora,perguntava-meondeestavaindo comestasexperiênciascorporais"livres,sol- tas,espontâneas",o queminha professorapretendia,comoorganizavasuasaulas,e depa- rei-mecom umgrandevazio.Estaprofessoratambémacreditavaquedançarseaprende dançando,queo intelectobloqueiaadança.Eu já nãoestavatãocertadisto,principalmente por causademinhaintençãoe perspectivasdevir aensinardançano futuro.O prazerde cair,rolar,soltaro corpocomeçavaa ficarsemsentido.Percebiqueestadançaforasignifica- tivasomenteparamedesprenderdo códigodo baléclássico,e nadamais.Descobrique estavabuscandoalgomaisparaminhadança,algoquemeconectassccomminharealidade socialecultural.Afortunadamente,tiveumaprofessoranesteperíodoquemepermitiu 73 Pro-Posições- Vol. 9 W 2 (26)Junho de 1998 investigaracausadadançanaeducaçãoemmeuprojetodeestágio-efoi esteestágioque melevoua Londres,paracursaro MestradoemDança. Os anosemLondresserviramparaumamaiorcompreensãointelectualsobreospro- cessosdadança,poispassavaquasedozehoraspor diaestudando.Em todasasaulaspráti- casquefazia(coreologia,técnicasdeHumphrey-LimóneCunningham,improvisaçãoecom- posiçãocoreográfica),estavamuitopreocupadaementendermentalmenteestaspropostas. Apesardeterconseguidocomsucessoterminarmeumestrado,marcou-memuitoa obser- vaçãodeminhaorientadoradequeeuprecisavavivermais"ospéssujoseo suordo corpo" presentesno mundodadança.Confessoquenaépocanãoentendio queelaqueriadizer comisto.Hoje interpretoestapropostacomo,entreoutras,umareferênciaaum trabalho intelectualconectadoaocorpo,ouaotrabalhodedançaqueconheceo "corpointeligente". Vejoestapropostamuitopróximadadosdançarinosnorte-americanosdadécadade 60quedesafiarama noçãodo "corpo natural"emprol deum corpo quepensasse.A fa- mosafrasedeYvonneRainer(in CopelandandCohen, 1983)deque"a menteéum mús- culo"("mind is a muscle'j éumexemploparadigmáticodestaconcepçãodecorpo.Rainer, comomuitosdançarinosdesuageraçãonosEstadosUnidos, buscavamovimentosinde- pendentementedesuagraça,deseuapelovisual,datécnicarequeridaparaexecutá-Ios.Sally Banes(1987)noslembra,no entanto,quehaviatambémnostrabalhosdeRainerumgos- to pelo"natural".Porém,osmovimentos"naturais"paraelaeram"açõesnãodistorcidas paraefeitoteatral,esvaziadasdecoberturasemocionais,referênciasliteraisou tempomani- pulado"(p. 17).Estesdançarinosinauguraramaépocada"democraciado corpo" (Banes, 1993)-não havia restrições de forma, peso, tamanho, cor, flexibilidade etc. para poder-se trabalharcomdança.O tratamentodiferenciadodo corpoencontradoemmuitosdostra- balhosdasgeraçõesde 60/70nos EstadosUnidos é sinal da existênciade umageração quebuscavanadiversidadeo direitodeexercerautoridadesobresi mesma,refutandopa- drõesconvencionaisimpostosdecorpoe,simultaneamente,dearteedesociedade. Estegrupo, a meuver, inauguroutambémuma novaépocaparao ensino dedan- ça:incorporou como modalidadededançaa improvisação,os trabalhossemfechamen- to, as"coreografiasdo instante"(comoa "contactimprovisation"deStevePaxton).Os conteúdosparao ensinoatreladosa estaconcepçãodecorpo ededançapassama sera consciênciacorporal,os trabalhoscomeducaçãosomática,asartescorporaisorientaisetc. Meu regressodeLondresnão foi marcadopor uma"rupturacorporal"comoquan- do voltei do Canadá.Logo assumia dançacomo profissão,masvoltando-mepara o ensinodedança,que,naépoca,chamavade"dança-educação".Entretanto,minhasalu- nasdaUNICAMP mefizeramperceberque,apesardasaulasdeconsciênciacorporal,de improvisaçãoedecomposiçãocoreográficaasquaiscontinuavafazendoeministrando, haviaumafaltadeconexãoentreo vivido,o percebido,o imaginadoeo "intelectualizado" em/sobremeucorpo e minhadançaenquantoarte,poisviviam intensamenteseuscor- pos,priorizando a dançacomomodalidadeartística.Estapercepçãofoi a molapropul- sorade minha pesquisadedoutorado,entreoutras,centradano corpo, na dançae na educaçãocontemporânea.Paradoxalmente,estefoi um períodoemqueabandoneitotal- mentemeucorpo,passandopraticamentequatroanossemdançar,somentefazendomas- sagemeLian Gong (ginásticaterapêuticachinesa)a fim,deevitarumatendiniteemfun- çãodashorasehorasseguidasquepassavaemfrenteao computadorfalando,escreven- 74 Pro-Posições- Vol. 9 W 2 (26)Junho de 1998 do, pesquisandosobreo corpo e a dança.Terminadaa pesquisade doutorado, medei contademinhaprópriacontradição-minhasalunasdelicenciaturaqueriamdançar,dei- xandoa educaçãopraticamenteparasegundoplano. Eu queriaeducar,masnão podia deixarmeucorpo parasegundoplano,pois ensinavajustamentedancaejá começavaa perderareferênciacorporalcoma minhaarte. Decidi formarum grupodepesquisanaUNICAMP comex-alunasinteressadasnesta temática:a possibilidadededançareeducaremumaúnicaatividade,inter-relacionada, formandoumaredemultifacetadaderelações,como emum caleidoscópio,imagemjá utilizadaem minha tesededoutoradoem 1997.Com nossotrabalhosemanal,quefoi seintensificandoa cadamês,finalmenteentendiemmeucorpo,deoutro modo,o que eramos "pés sujos" e "suor do corpo" a que tanto sereferia minha orientadora de mestrado.Obviamenteelautilizaraestesexemploscomometáforase minha sensaçãode compreensãonão tinha nadaa ver com o imundo local de ensaiona universidadeou como calorquesentianosensaiosnosmesesdeverão,pois isto já haviaexperimentado muitasoutrasvezes.Entendi com estetrabalho,de formadiferente,o queera"adentrar o mundo da dança"e maisumavez percebiquenão bastavaministrar ou fazeraulasparaqueisto acontecesse:eraprecisoviverno como a arteea estéticada dançamesmo emsituaçãoeducacional. Logo tivedeenfrentarna práticameusprópriospré-conceitosemrelaçãoao corpo ~ dançaeaocorpo.!lí!dança.Compreendinelequeminhaelaboraçãointelectualsobrea "democraciado corpo"sugeridapelosdançarinosde60nãobastavaparaaceitarmeucor- po dezanosmaisvelho,cheiode"vícios"dosanossemtrabalhoespecíficodedança,com umaexperiênciaartísticaquepareciaextremamentelongínqua(meucorponãodavasinais deexperiência).Durantequaseumano,sófui capazdeperceberedeolhar paraaquiloque nãoconseguiafazer;paraoscorposhábeis,jovens,preparados(recémsaídosdauniversi- dade)deminhasex-alunas,membrosdo nossogrupo;sóconseguiaadministrarminhas frustraçõespor nãotero "corpoideal"paravoltaradançar.Enfim, medeicontarealmen- tedecomomeucorpohaviasidosocialmenteconstruídopelopróprio mundodadançae queeuaindatinhaumacerta"cabeçadebailarina"quandomerelacionavacom~ pró- prio corpo. Felizmente, isto não acontecia quando trabalhava com os corpos dos outros - o quemefezperceberqueestesconceitospoderiamsertransformados. Estava,assim,diantedeumaconcepçãodecorpoquesealinha a demuitosdança- rinos quevêm trabalhandodesdea décadade 80:hoje já podemosreconhecerque o corpo ésocialmenteconstruído.pois "o corpo humanoé nelemesmoumaentidadepo- lítica inscrita, sendosua fisiologia e morfologia formadospor histórias e práticasde constriçãoe controle"(Bordo, 1993,p. 21).Com isto,nossocorpo é a expressãodenos- sogênero,etnia,faixaetária,crençaespiritual,classesocialetc. Tomocomoexemploparadigmáticodestaconcepçãoo trabalhodePina Bausch,co- reógrafaalemã,comsuafamosafrasedequenãoestápreocupadacom"comoaspessoas semovemmassim com o quemoveaspessoas".Lembro-metambémdeBill T. Jones, dançarinoecoreógrafonorte-americano,quedesafiouo mundodadançatratandoemseus trabalhosdetemascomo aAIOS e o homossexualismo.Estesdançarinos,emboracom concepçõesestéticasbastantedistintas,fazempartedeum grupodedançarinos-coreógra- fosquereincorporama importânciadanarrativa,valorizamo trabalhocoma auto-biogra- fia,comasituaçãopolítica,o multiculturalismo,assub-culturas(Banes,1994). 75 Pro-Posições- VaI. 9 N° 2 (26) Junho de 1998 Na áreadeensinodedança,o reconhecimentodeumcorposocialmenteconstruído temnos levadoaelaborarpropostaseducacionaisqueconsideremtantoo processoquan- too produto,quenãodesconsiderema técnica,masqueaomesmotemponãoabando- nemo processocriativo e que,enfim, trabalhemcom a expressãopessoalcomo uma expressãode um corpo sócio-político-cultural.Estamosbuscandoum ensino dedança quetrabalhecomossignificadosequetracerelaçõesdiretasentredança,educaçãoesoci- edade.Estapedagogiatemsido nomeadaumapedagogiacríticae feministaparao ensi- no dedança(Stinson,1995;Shapiro,1998,Marques,1996,entreoutros). Múltiploscorpos Meu contatocom a dançano último ano mereconectoude maneiradiferenciada como público leigocomquetrabalhamosemnossosprojetoscomCALEIDOS" grupo deDaçaeEducaçã02:Professores,alunose alunas,psicólogos,médicos,assistentessoci- ais,entreoutros, com múltiplos corpose corpos múltiplos (idades,formas,gêneros, raças,etniasetc.).Senti - e não intelectualizei- emmim mesmaa prováveldificuldade, receio,bloqueios,pensamentosnegativose depreciativosemrelaçãoa si mesmosque estaspessoascom quetrabalhamospoderiamestarsentindoao "caíremna dança"em funçãodenossaestruturasocialemrelaçãoao corpo.Esta"voltaao meucorpo" permi- tiu-meelaboraraindamaisminhaspropostasartístico-educativas,cadavezmaiscentradas no corpoeemsuasrelaçõescoma sociedadecontemporânea. Emmeutrabalhodepesquisaatual,percebiquenãopossomaisignorara presença e os efeitosdasnovastecnologiasem relaçãoao corpo e,consequentemente,à dança. Noto que,alémdestecorpo fisico com quetantomepreocupo,hoje temosa possibili- dadedevivernossoscorposdemaneirasmúltiplas. Não seisepor oposiçãoao possível"desaparecimentodo corpo" temido por mui- tospor causadasnovastecnologias(ex:os relacionamentosvirtuais,asteleconferências etc.),ou atémesmopor causadavivênciacorporalquetemosdiantedecomputadores, realidadesvirtuais,mesasdeoperação(ex:aumentaros limiteseascapacidadesdenosso corpo fisico), creioquenuncafoi dadatantaatençãoao corpo no sentidodeproduzir imagense esculturascorporais. Esta tendência,tambémpresentena dança,pode ser identificadacomoumatendênciamundialda"culturado corpo",dasdécadasde80e90 (Bordo, 1993,1989;Shilling, 1993;Johnson, 1993entreoutros).Nestasdécadas,o cor- po passoua serum objetodeexibiçãoe consumo,um campodebatalhacontraa doen- ça,a idadeeagordura.Mais do quenunca,a identidadepessoalestávinculadaao corpo. Ao mesmotempo,"... eles[nossoscorpos] tornaram-seprodutos alienados,textosde nossofazercriativodo qualmantemosum estranhoe irônico distanciamento"(Bordo, 1993,p. 288). Sepor um lado existehoje a possibilidadede um trabalhomais conscientecom nossocorpo fisico nadança,por outro,geraçõesdedançarinosdadécadade90voltama 2O grupovemtrabalhandoemdiversoscidadesdo Estadode SãoPaulocom formaçãocontínuode professores.comcriançase públicoleigoemgeralatravésde doisprojetos:'ProjetoDanço-Es- cola"e 'Caia noDanço". 76 pro-posições- Vol. 9 W 2 (26)Junho de 1998 martirizar-senasbarras,nosginásiosesportivos,nassalasdemusculação,embuscade habilidadescorporais,devirtuosismo,de"corpos ideais".Temosprogramasuniversitá- rios dedançaemváriaspartesdo mundoestãohojeestabelecendopadrõesdeexcelência corporalnosquaisalunosealunasencontram-setotalmenteenvolvidospelanovaonda culturaldo espetáculoespetacular,do domínio edaperfeiçãotécnicos(VanDyke, 1992). Nestesprogramas,"procedimentosdetreinamentoexagerama importânciados aspec- tos técnicosda dançadeixandode lado os impulsos filosóficos, ideológicose atémes- mo estéticos"(p. 96).Encontrei a mesmapredisposiçãoentremuitos alunosdo Curso deDançadaUNICAMP. Estedistanciamentodo corpo fisico tem-sedadotambémemfunçãodasinfluênci- as das mídias tecnológicas que nos dias de hoje colocam em questão a própria corporeidadee ossignificadosdo corpo atravésdeum esfacelamentodasfronteirasfísi- case limites intelectuaisqueanteso corpo representavaparao serhumano (Shilling, 1993).Assim,o corpovirtualizadoapresentadesafiostantoparao mundodadançaquan- to de seuensino. Se,com Pierre Lévy (1996),considerarmosqueo virtual seopõe ao atual,e não ao real,perceberemosque"a virtualizaçãoé um dos principais vetoresda criaçãode realidade"(p.lS). Destaforma, a possibilidadedevivermosnossoscorpos virtualmente,ao contráriodemuitosargumentos,somenteestariaampliandonossasex- periências,pois "cadacorpoindividualtorna-separteintegrantedeum imensohipercorpo híbrido e mundializado"( ibid., p.31). Com estaconcepçãodecorpo,seriao papeldadança/doensinodedançano mun- do contemporâneo,como tenhoouvido, o detentar"resgatar"o supostocorpo "natu- ral", asemoçõesa ele"inerentes",na tentativade"salvar"o serhumano"ameaçado"de destruiçãopelasmáquinas?Estavisãode dançae deensino,bastantesaudosista,pode serfalaciosa,pois defendetambéma crençano essencialismoquepor séculosacreditou no sujeitouniversalemdetrimentodadiversidade.Ou seja,o argumentodequeo "res- gate"do corpo/movimentonaturaltambémestaria"resgatando"a expressãoindividual nemsempreéconsistente.Por outro lado,há tambéma alternativadenosesquecermos edeabandonarmosnossocorpo fisico, detrabalharmossomentecom avideodança,a realidadevirtual,oscomputadores,o quealterariaradicalmenteo conceitodedançacom queo mundo ocidentalvemtrabalhandonosúltimosséculos. Acredito quenossodesafio,hoje, estejacentradojustamentena possibilidadede convivênciaentreos nossoscorposfisicosevirtuais.Temosquereconhecere deaceitar estecorpo fragmentado,mundializado,semlimites,desenraizadoedispersotrazido pe- lasnovastecnologias(Lévy,1996),percebendoo quantoestarelaçãoestátambémtrans- formandonossoscorposfisicos.O desafioparaa educaçãoé fazercomqueasexperiên- ciasvirtuais não acabemcom o corpo fisico, massim ampliemsuaspossibilidadesde performance,expressão,comunicação,percepção,criatividade,sensaçãoetc.,atravésdasexperiênciashoje possíveisatravésdasmáquinas(ex:a levitação,a ubiqüidade,asvia- gens,o movimentosemmovimento,os implantes,transplantes,etc.). Enfim, acreditoqueos processoseducacionaishojedevamdar maisênfasee incen- tivo à formaçãodeumaredederelaçõesmultifacetadasquetrabalhea intersecçãoentre os mundosvividos,percebidose imaginadosdosalunose alunase suasconexõescomo os processoscriativose interpretativosdadança,formando,assim,umaimensaredede saberes(Marques,1996). 77 Pro-Posições- Vol. 9 N° 2 (26) Junho de 1998 Referências bibliográficas Banes,S.(1987).Terpsichorein sneakers. Connecticut:WesleyanUniversity Press. Banes,S.(1993).Democracy'sbody:judson Dance 7beater,1962-1964.Durham:DukeUniversity Press. Banes,S.(1994).Writingdancingintheageq(postmodernism.Connecticut:WesleyanUniversity Press Bordo,S.(1989).Thebodyandthereproductionof femininity:A feministappropriation of Foucault.In:A.JaggarandS.Bordo(Eds.).Gender/body/knowledge:Feminist reconstrnctionsofbeingand knowing.Londres:RutgersUniversityPress,pp. 13-33. Bordo,S.(1993).Unbearableweight.Berkley:UniversityofCalifomiaPress. Brady,J. 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